quarta-feira, 30 de abril de 2014

Curtas sergipanos

O Teatro Atheneu ficou lotado na última quinta-feira, dia 24 de abril, durante a exibição dos curtas produzidos com recursos da Secretaria de Estado da Cultura. Fui ver com o espírito aberto, e devo dizer que me diverti com o que vi – e não estou falando no sentido pejorativo, já que não fui com a intenção de “catar piolho” e focar apenas nos defeitos do material apresentado. Eles existem, e são muitos, mas não anulam o fato de que há um esforço genuíno para a produção de material audiovisual em nosso estado e ele precisa ser valorizado. Porque, principalmente, é muito bom ver nossa terra e nossa gente retratada na tela grande.

A maratona começou com “Conflitos e Abismos: A Expressão da Condição Humana”, em que minha camaradinha “Teteca”, hoje conhecida como Everlane Moraes, seu nome de batismo, faz uma bela homenagem a seu pai, o artista plástico José Everton. Utilizando-se de efeitos gráficos interessantes e do auxilio luxuoso de Yuri Alves, figurinha carimbada nos eventos alternativos da cidade, ela deu vida às imagens e conceitos narrados em primeira pessoa pelo próprio homenageado. A narrativa, entretanto, é um tanto quanto “truncada”, imprecisa e monocórdica, com um discurso confuso e por vezes até contraditório, já que segue o fluxo de pensamento do personagem, sem grandes elaborações teóricas – até porque ele não é nenhum filósofo, no sentido acadêmico do termo. A montagem também é deficiente, o que faz com que o filme termine de forma abrupta, de “sopetão”. Mas o resultado é bonito e pra lá de satisfatório. Foi aplaudido efusivamente – todos foram, o público estava animado ...

Em seguida tivemos “Morena dos Olhos Pretos”, de Isaac Dourado. Um documentário sobre a forrozeira Clemilda – ou seria sobre o forró em geral? Não dá pra saber, pois ficou confuso, já que o diretor parece ter se empolgado demais e perdido o foco ao ponto de terminar homenageando Josa, o vaqueiro do sertão, embora de forma um tanto quanto questionável, mostrando-o muito doente, em estado crítico. Além disso, a montagem é bastante deficiente, quase aleatória – o pessoal precisa estudar melhor esta verdadeira arte em si que é, no final das contas, o coração do filme, já que é através dela que se imprime o ritmo e a forma como a história é contada na tela. Salta aos olhos – e  aos ouvidos –, também, a ausência de imagens do programa que Clemilda apresentou por muitos anos na TV Aperipê, o “Forró no asfalto”. Temos, por outro lado, importantes imagens de arquivo com entrevistas e trechos da homenagem feita à cantora na penúltima edição do Forrocaju. No final das contas, o curta serve mais como uma prévia do longa que, soube depois, está prometido. Se for melhor trabalhado, especialmente na mesa de edição, pode ficar muito bom.

Madona e a Cidade Paraíso”, de André Aragão, cujo título faz uma ironia com o título até pouco tempo ostentado por Aracaju, o de “capital da qualidade de vida”, é uma ficção baseada num fato real – e triste –: o assassinato da travesti “Madona”, no centro da capital sergipana. O ponto forte do filme são as imagens documentais mostrando o dia-a-dia da cidade durante a realização do pré-caju, auto-proclamada “maior previa carnavalesca do Brasil”. Com direito a uma aparição relâmpago, inclusive, do folclórico “Sapulha”, uma das muitas "criaturas das trevas" que povoam nossas ruas. O clima de decadência festiva, típico do cotidiano de uma parcela considerável de nosso povo, é bem retratado. Ao som da versão de “like a virgin” cometida pelo grupo Asas Morenas, muito popular no extrato social retratado, assistimos às peripécias do personagem principal, em boa interpretação de Ivo Adnil, e sua amiga Folosa, vivida por Zelda Leite. O roteiro, no entanto, é confuso e cheio de clichês. O maior deles está justamente na cena final, em que playboys caricatos assassinam Madona de forma bárbara nas imediações do Beco dos Cocos. Há uma clara tentativa de emulação de cenas violentas de filmes norte-americanos da década de 70, tipo “warriors”, representada na principal arma utilizada por um dos “meliantes”, um taco de beisebol, pouco usual pelas bandas de cá. Somado às interpretações, muito fracas, e à coreografia das cenas em si, um tanto quanto mambembes, temos ao final um resultado não de todo ruim, mas bastante irregular. O que não deixa de ser um avanço se comparado à estréia do diretor, que se deu com o badalado – e profundamente equivocado – “Xandrilá”. Neste, assim como naquele, o destaque vai para a fotografia, a cargo de Arthur Pinto - de bom gosto e com toques de ousadia em ângulos inusitados.

Para Leopoldina”, de Diane Veloso e Moema Pascoini, é certamente, de todos, o mais bem acabado e “cinematograficamente adequado”, digamos assim, muito embora tenho destoado dos demais por ter um ritmo mais lento, reflexivo. Não por acaso, e paradoxalmente, foi o que eu menos me diverti assistindo. Mas suas qualidades são inegáveis, notadamente as boas intepretações, especialmente da protagonista, e o roteiro, enxuto e muito bem conduzido, filmado num ritmo adequado – embora lento. A montagem, verdadeiro calcanhar de aquiles da noite, é também muito bem resolvida. Fosse uma disputa, ganharia “de lavada”. Não é, no entanto, uma obra perfeita: perde muito tempo, por exemplo, mostrando o processo de seleção de um dos funcionários do asilo, em cenas perfeitamente descartáveis, porque de pouca importância para a trama. Mas segue firme e sustenta a narrativa até o final triunfal, com uma belíssima imagem filmada em traveling num dia chuvoso.

Operação Cajueiro – Um Carnaval de Torturas”, de Fábio Rogério, Vaneide Dias e Werden Tavares, era o mais aguardado – por mim, pelo menos, já que o tema me é caro – e foi, infelizmente, o que mais decepcionou, como produto cinematográfico. Tinha a nobre intenção de resgatar um episódio negro e nebuloso de nossa história, a “Operação Cajueiro”, ápice da intervenção do regime ditatorial militar em solo sergipano, mas o fez de forma canhestra, preguiçosa, sem um pingo de ousadia. Resume-se a uma sucessão de imagens “chapadas” de depoimentos enfileirados, com montagem deficiente e sem nenhuma intervenção ilustrativa da parte dos realizadores, já que as únicas imagens de arquivo utilizadas estão no início e no fim do filme. Recursos gráficos poderiam ter sido inseridos no meio das falas, para que se desse ao espectador um descanso diante de tanta narrativa – no mais, prejudicada por problemas na captação de áudio e na sincronização do som. Mas não foram. Uma pena. O produto final, embora imperfeito, tem seu valor, em todo o caso: finalmente alguém teve a iniciativa de registrar, de alguma forma, o sinistro episódio do qual ouço falar desde os tempos em que participei de uma espécie de “Curso de introdução ao marxismo”(ou algo parecido) promovido pelo PCB e ministrado por Wellington Mangueira, no final dos anos 1980.

Encerrando a noite, um belo show da Coutto Orquestra.

Foi bom pra mim.

Me diverti.

A

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quinta-feira, 24 de abril de 2014

40 Anos da Revolução dos cravos

Antes da revolução, era rara em Portugal a família que não tivesse alguém combatendo nas guerras das colônias na África. O serviço militar durava quatro anos, opiniões contra o regime e contra a guerra eram severamente reprimidas pela censura e pela polícia.

Antes de abril de 1974, os partidos e movimentos políticos estavam proibidos, as prisões políticas estavam cheias, os líderes oposicionistas estavam exilados, os sindicatos eram fortemente controlados, a greve era proibida, as demissões fáceis e a vida cultural estritamente vigiada.

A liberdade em Portugal começou com a transmissão, pelo rádio, de uma música até então proibida. Os cravos enfiados pela população nas espingardas dos soldados acabaram virando o símbolo da revolução, que encerrou, ao mesmo tempo, 48 anos de ditadura fascista e 13 anos de guerra nas colônias africanas.

Em apenas algumas horas, as Forças Armadas ocuparam locais estratégicos em todo o país. Ao clarear, multidões já cercavam as emissoras de rádio à espera de notícias. A operação, calculada minuciosamente, havia pego o regime de surpresa. Acuado pelo povo e pelos militares, o sucessor de Salazar, Caetano Marcelo, transmitiu sua renúncia por telefone ao líder dos golpistas, general António de Spínola. Transportado de tanque ao aeroporto de Lisboa, Marcelo embarcou para o exílio no Brasil. Em quase 18 horas, havia sido derrubada a mais antiga ditadura fascista no mundo.

Artistas, políticos e desertores começaram a retornar do exílio. As colônias receberam a independência. A caça às bruxas aos responsáveis pela ditadura acabou não acontecendo e as dívidas do governo anterior foram todas pagas. Os únicos a oferecer resistência foram os agentes da polícia política. Três pessoas morreram no conflito pela tomada de seu quartel-general.

Ao voltar do exílio em Paris, Mário Soares, o dissidente mais popular do governo Salazar, foi recebido por milhares de pessoas na estação ferroviária de Lisboa. Cravos vermelhos foram jogados de helicóptero sobre a cidade e só se ouvia a famosa canção Grândola, vila morena, que já havia se tornado o hino da revolução.

Em 1974, Portugal era um país atrasado, isolado na comunidade internacional, embora fizesse parte da ONU e da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Era o último país europeu a manter colônias e vinha travando uma longa guerra contra a libertação de Angola, Moçambique e Guiné. O regime de Salazar, iniciado em 1926, havia conseguido manter-se através da repressão e fora tolerado pelos países vencedores da Segunda Guerra Mundial.

Em 1º de maio a esquerda, fortemente engajada, mostrou sua força em Lisboa, enquanto trabalhadores rurais do Alentejo expulsavam latifundiários e banqueiros eram desapropriados. A esquerda europeia viu em Lisboa um palco ideal para os movimentos frustrados de 68. A pacata e católica população portuguesa, por seu lado, sentiu-se ignorada e, a partir do norte conservador, iniciou um movimento contra os extremistas.

Em 1975, aconteceu a dupla tentativa de golpe, da esquerda e da direita, contra o governo socialista, levando Portugal à beira da guerra civil. A ala militar extremista de esquerda obteve o domínio da situação em novembro de 1975. Após as eleições do ano seguinte, o general António Ramalho Eanes foi eleito presidente.

O Partido Socialista, com Mário Soares, assumiu um governo minoritário. A crise econômica o levou à renúncia em 1978. Entre 1979 e 1980, o país teve cinco primeiros-ministros. Em 1985, o governo foi assumido por Aníbal Cavaco Silva e Mário Soares tornou-se presidente no ano seguinte. Em 1986, Portugal ingressou na então Comunidade Econômica Europeia, hoje União Europeia.

Salazar

Uma série de ditaduras marcou o mundo ocidental a partir dos anos 20 do século passado. Numa sequência que durou mais de vinte anos, Mussolini inaugurou o cortejo, ao tomar o poder na Itália, em 1922. Seguiram-se Salazar em Portugal (1932), Hitler na Alemanha (1933) e o general Franco na Espanha (1939). Atravessando o Atlântico, o Brasil teve a “glória” de figurar no cortejo, com o golpe de Getúlio Vargas, implantando o Estado Novo em novembro de 1937.

          Os ditadores chegaram ao poder por diferentes vias, numa conjuntura em que a democracia liberal se enfraquecera e os regimes chamados fortes pareciam ser a fórmula regeneradora das nações doentes, corroídas pela desordem. Benito Mussolini se tornou Il Duce após um passeio, mitificado pelos seus seguidores: a marcha triunfal sobre Roma. António Salazar assumiu o poder sem abalos. Adolf Hitler foi chamado pelo presidente Hindenburg para salvar a Alemanha. Francisco Franco se destacou pela via sangrenta da guerra civil, da qual saiu vitorioso.

          Nesse cortejo de ditadores da Europa Ocidental, segundo o grau de sinistra importância, Hitler ficou em primeiro lugar e Salazar na última posição, embora estivesse longe de ter exercido uma “ditadura branda”. Não por acaso, Hitler, Mussolini e Franco foram objeto de excelentes biografias. Salazar, pelo contrário, recebeu poucas atenções fora de Portugal. E é de um historiador português, Filipe Ribeiro de Meneses, uma qualificada e minuciosa biografia do ditador português. O livro foi escrito originalmente em inglês, sob o título de Salazar: A Political Biographye. Não há nessa edição o subtítulo publicitário “Biografia definitiva”, que consta da edição brasileira. Traduzido para o português de Portugal, o livro tem para nós, brasileiros, um sabor especial, pelo palavreado luso, que lhe dá um curioso gosto de autenticidade.

          É de se perguntar: como é possível atravessar as mais de 800 páginas de uma biografia, cujo personagem central não é uma figura especialmente atraente? Se a minha receita servir, li o livro com grande interesse, prestando menos atenção em minúcias que me parecem secundárias para o leitor brasileiro.

          António de Oliveira Salazar, ditador sem brilho, destituído de carisma, teve, entretanto, uma longa carreira política: comandou Portugal por 36 anos. Seus traços de personalidade, seu percurso na condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por muitos abalos, o caráter sui generis do regime autoritário português são motivos suficientes para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa.

alazar nasceu numa pequena cidade, com um desses nomes evocativos de uma aldeia lusa: Santa Comba Dão. Único filho homem da família, viveu a infância num período em que seu pai, vindo da pobreza, alcançara condição mediana. Ao chegar à adolescência, abriam-se para ele dois caminhos numa sociedade que gerava poucas oportunidades econômicas: o sacerdócio e a carreira militar. Salazar entrou para o seminário de Viseu e chegou a receber ordens menores, a caminho de tornar-se sacerdote. Apesar de os padres representarem forte influência na sua formação católica conservadora e no seu moralismo, não seguiu carreira eclesiástica. Seguiu um rumo mais prestigioso, ao ingressar na Universidade de Coimbra em 1910, onde se especializaria em economia e finanças.

           Na vida privada, Salazar foi um solteirão, atendido por uma governanta cinco anos mais velha do que ele durante todo o tempo em que viveu em Lisboa. A natureza das relações entre Salazar e Maria de Jesus Caetano Freire, que o país conhecia como dona Maria, deu margem a muita especulação, mas nada de certo se sabe a respeito. Em compensação, dois casos amorosos de Salazar, depois de chegar ao governo, tornaram-se conhecidos. Ambos envolveram relações complicadas: um deles, com uma sobrinha casada; o outro, com Maria Emília Vieira, jovem de vida boêmia, em Paris e na noite lisboeta. Por mais que ele fosse discreto em seus affaires, não era o “monge castrado” como o chamou num panfleto seu opositor Cunha Leal, banido, aliás, para os Açores.

           Os casos de Salazar estão bem longe do ideal de família e do papel da mulher que pregava em seus escritos. A família, segundo ele, era “a célula social cuja estabilidade e firmeza são condição essencial do progresso”. Quanto à mulher, o maior elogio que se poderia fazer-lhe resumia-se a um epitáfio romano: “Era honesta, dirigia a casa; fiava lã.”

o plano das ideias, além da raiz fundamental – o catolicismo conservador –, ele foi bastante influenciado pela Action Française, movimento de direita em que figuravam nomes como Charles Maurras, Maurice Barrès e Gustave Le Bon. Este último impressionou Salazar pela relativização das instituições políticas existentes e por não acreditar na capacidade intelectual da grande massa.

           A aproximação de Salazar com a política se deu a partir de seus escritos em jornais católicos de província, que tinha em grande conta porque considerava “a imprensa católica do país a mais séria, a mais ponderada, a única decente e limpa, que pode entrar em todas as casas, sem ministrar à donzela incauta o veneno do romance perigoso e sem tecer, sob atraentes formas, a apologia dos criminosos”.

           A República portuguesa nunca chegou a se estabilizar. Ficou dividida entre as correntes partidárias, as conspirações monárquicas, a anarquia administrativa e o desequilíbrio orçamentário – herança maldita dos tempos da monarquia, derrubada em 1910. Em dezembro de 1917, um golpe de Estado abriu caminho para a ditadura militar de Sidónio Pais. Figura extraordinária esse Sidónio Pais! Sempre rodeado de belas mulheres, charmoso, carismático, populista, era pessoalmente o oposto de Salazar, que então iniciava seus passos na carreira política. A “República nova” de Sidónio, porém, durou pouco porque o “presidente-rei” foi morto a tiros, num atentado nas ruas de Lisboa, em dezembro de 1918.

           Portugal voltou a ser uma democracia cuja morte anunciada percorreu os anos caóticos de 1920 a 1926. Após uma tentativa fracassada, Salazar elegeu-se deputado por um pequeno partido, o Centro Católico Português. Mais tarde, manifestaria desprezo por essa breve experiência parlamentar. Em 1920, oito primeiros-ministros passaram de raspão pelo poder e os assassinatos políticos se tornaram moeda corrente. Por fim, em 1928, uma facção militar desfechou um golpe de Estado. A ditadura, como o regime democrático anterior, seria marcada pela instabilidade não só política, como também econômica e financeira.

          Foi um quadro conhecido: gastos crescentes, arrecadação insuficiente, déficits orçamentários. Os ministros da área econômica consideravam essencial obter um empréstimo internacional que ancorasse as finanças portuguesas e permitisse ao país concentrar investimentos em áreas estratégicas. Mas, como lembra Ribeiro de Meneses, havia grande desconfiança de tudo o que fosse português, a ponto de ter-se inventado um verbo em francês – portugaliser –,sinônimo de virar tudo pelo avesso.

          Nesse quadro, a estrela do professor Salazar subia. Adversário do empréstimo externo, ele propôs, num relatório amplamente divulgado, medidas fiscais duras para tirar Portugal de uma situação difícil. Entre outras vantagens, o relatório o aproximou dos grandes grupos econômicos, que não eram muitos. Não tardaria a ser chamado para assumir o Ministério das Finanças, como homem providencial. Na véspera de completar 39 anos, tomou posse do cargo, em 27 de abril de 1928. Cada vez mais prestigiado, em meio às divisões no Exército e na sociedade, Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em junho de 1932. Na realidade, o cargo de primeiro-ministro era mero formalismo. Salazar tornou-se um ditador civil que comandou Portugal quase até sua morte.

          Em linhas gerais, as medidas drásticas tomadas por ele, seja como ministro das Finanças, seja como ditador, surtiram efeito. A obstinação pelo equilíbrio orçamentário assim como um choque fiscal, suportado sobretudo pelas camadas pobres, possibilitaram o reequilíbrio econômico de Portugal. O país atravessou relativamente bem a Grande Depressão mundial iniciada em 1929, mesmo sofrendo um corte significativo dos recursos enviados pelos emigrantes portugueses, provenientes principalmente do Brasil. Ribeiro de Meneses rebate a tese corrente de que o Estado Novo luso se caracterizasse pelo imobilismo. Ao contrário, o regime salazarista representaria uma tentativa frustrada, mas nem por isso menos séria, de permitir a Portugal se desenvolver e se modernizar, dentro da ordem e do respeito às hierarquias sociais.

           Salazar tornou-se ditador de uma forma bem diversa de seus contemporâneos.Mussolini apelou para a mobilização popular e para o nacionalismo. Supostamente, a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, fora desprezada por seus parceiros maiores, vencedores da guerra. Hitler, além de utilizar o terrível ingrediente da conspiração mundial judaico-comunista, inflamou parte da população alemã, batendo na tecla do nacionalismo, ao insistir no direito da Alemanha de ocupar um lugar central na Europa depois de ter sido humilhada pelo Tratado de Versalhes. Franco subiu ao poder como vitorioso em uma guerra civil desastrosa, para ele uma cruzada cristã contra ateus e comunistas.

em longe da retórica ribombante dos ditadores de fascio e suástica, Salazar notabilizou-se por ter salvado Portugal do caos, por uma via que se pode chamar de burocrática. Em torno dele, não se elaborou um culto da personalidade, apesar de seu prestígio na maioria da população. Tinha aversão a aparições públicas, recusava-se a participar de comícios e, para completar, era mau orador e não aceitava baixar o nível dos discursos ou ceder a slogans fáceis de lembrar.

           Nem por isso deixou de zelar por sua imagem, a fim de obter ganhos políticos. Por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional – órgão que lembra o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Brasil do Estado Novo – e dele próprio, sempre se apresentou ao público como um homem humilde, destituído de ambições políticas, que se dispusera a salvar o país, sem medir sacrifícios pessoais. Não fora essa elevada missão, permaneceria na cátedra de Coimbra – um remanso diante das dificuldades de dirigir Portugal. Em maio de 1935, o Diário da Manhã, órgão do regime, lançou essa pérola ao comentar um discurso do ditador: “SALAZAR, ou o ANTIDEMAGOGO: Seria essa a sua melhor definição. O demagogo dirige-se aos maus instintos... Salazar dirige-se às consciências bem formadas, aos impulsos de altruísmo e de equilíbrio, à pequena luz da Graça que dorme, latente, no íntimo de todas as criaturas.”

           O salazarismo enfatizava a religiosidade, o nacionalismo, o anticomunismo, a crítica a um liberalismo que a modernidade do século XX não podia contemplar. O nacionalismo era “territorialmente satisfeito”, não se destacava pelo expansionismo, e sim como um instrumento para abafar a luta de classes. O importante era se dar bem com os vizinhos – a Espanha em particular – e manter o status quo nas “províncias de além-mar”.

           O anticomunismo tornou-se virulento quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola, em 1936. Para o regime, os republicanos e os “vermelhos” eram a mesma coisa, e ambos tinham pretensões negativas em relação a Portugal. Anos mais tarde, o perigo comunista viria a ser uma das justificativas de Salazar para tentar manter as colônias da África.

           À primeira vista, pareceria que a ditadura salazarista era mais um regime fascista implantado na Europa Ocidental. A oposição portuguesa, na sua difícil luta política, tinha razões práticas para não olhar Portugal como um caso à parte. Mas, na verdade, apesar de seus namoros com o fascismo, o salazarismo distinguiu-se das correntes totalitárias tanto internas quanto externas.

omo nota Ribeiro de Meneses, no início do Estado Novo talvez a principal ameaça ao regime e a seu líder não viesse da esquerda, mas da extrema-direita, formada pelos integralistas e pelo Movimento Nacional-Sindicalista, de Rolão Preto. Os nacional-sindicalistas tendiam a transformar seu movimento, o dos “Camisas Azuis”, em um partido único. Insistiam em se constituir uma verdadeira representação corporativa da sociedade. Atacavam sem tréguas o comunismo e o capitalismo internacional. Batalhavam pela criação de um clima social propício ao surgimento de um líder carismático, condição que Salazar, sabidamente, não reunia.

           Salazar preferiu seguir outro caminho – o da implantação de um regime autoritário, apoiado num setor do Exército. Se a garantia da ordem era cara aos militares, muitos oficiais, especialmente os fascistas e integralistas, faziam fortes restrições a Salazar, seja por sua atitude de transferir a cúpula do poder dos militares para os civis, seja pelos cortes orçamentários que impuseram restrições ao aparelhamento das Forças Armadas.

          Como reafirmou Salazar nos últimos anos de vida, os limites do Exército eram claros: a instituição não poderia imiscuir-se nas lutas políticas, nem constituir um partido político, devendo cingir-se a suas tarefas específicas. Mais ainda, Salazar nunca pretendeu se apoiar na mobilização popular, como pretendiam as organizações fascistas, nem na força de um partido único. A União Nacional, lançada no início da ditadura, não teria as características de um partido único nos moldes do fascismo e, principalmente, do nazismo. Uma observação do historiador António Costa Pinto, citada no livro de Ribeiro de Meneses, lembrando que a União Nacional foi criada por decreto governamental, destaca com ironia: “A legislação sobre o partido foi passada do mesmo modo que a legislação sobre as ferrovias. A administração controlava-o, adormecia-o ou revitalizava-o de acordo com a situação de momento.”

alazar se referia a Portugal como país de “elites paupérrimas”. Mas ele pouco fez para ampliar essas elites. Na linguagem de hoje, o primeiro escalão do governo e o aparelho administrativo foram recrutados, essencialmente, nos meios universitários. Além do Exército, apesar das reticências, o regime contou com o apoio da Igreja Católica. Quem, como eu, viveu aqueles tempos associou ao salazarismo dois nomes: o do general Carmona, que foi presidente de Portugal, e o do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira.

           O formato autoritário do regime deveu-se tanto às convicções de Salazar quanto a seu pragmatismo, na medida em que ele levava em conta as lentas mudanças da sociedade portuguesa. Comparando o Estado Novo salazarista com o implantado no Brasil, ao lado de muitas semelhanças há, pelo menos, uma diferença básica: no âmbito de uma sociedade em crescimento, na qual a industrialização ganhava ímpeto, Getúlio não poderia prescindir de uma política para a classe trabalhadora, configurada no populismo.

           No terreno ideológico, se Salazar não se afinava com o fascismo, adotava alguns de seus modelos. Um bom exemplo é o Estatuto do Trabalho Nacional, de setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927. Quase dez anos depois, a Consolidação das Leis do Trabalho, baixada no Brasil no curso do Estado Novo, teve a mesma inspiração.

           O Estado devia ser o centro da organização política e seu papel seria de “promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacionais”, tendo como órgão principal o Poder Executivo. Esse Estado forte deveria intervir em todas as atividades e, decisivamente, no campo econômico, em face da crise de que padecia o capitalismo. Ao mesmo tempo, era necessário reconciliar a nação e o Estado, de uma forma nunca conseguida desde o despontar do liberalismo em Portugal, em 1820. A reconciliação teria de ser alcançada pela educação, por um lado, e, por outro, pelo advento de uma nova Constituição, capaz de reavivar o país, ao refletir realisticamente seus corpos sociais ativos: a família, a paróquia, o município e a corporação econômica. Nessa reconciliação, o papel dominante caberia ao Estado, ao qual a nação deveria se integrar.

           Entretanto, Salazar insistia que havia limites morais e espirituais à ação estatal, em áreas que, para além da política, pertenciam à consciência individual. Essas áreas privadas serviam como baluarte teórico e prático contra a extrema-direita, e para manter os católicos em papel relevante. Nesse passo, Salazar se distinguia de seus mestres da Action Française, ao rejeitar a noção maurrasiana de la politique d’abord – a política antes de tudo.

ma expressão muito utilizada na época definiu o regime salazarista como uma “ditadura constitucional”. A expressão tinha razão de ser. Em abril de 1933, uma nova Constituição, aprovada por plebiscito, transformou o Estado numa República unitária e corporativa. A Constituição previa a eleição de um presidente pelo voto direto, cabendo a ele nomear um conselho de ministros e o seu presidente. Outros órgãos institucionais eram a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa.

          Teoricamente, a maior soma de poderes cabia ao presidente, mas foi o primeiro-ministro – Salazar, como é óbvio – quem concentrou as decisões governamentais. A Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa tinham um papel secundário. Ambas se reuniam apenas três meses por ano e esta última desempenhava papel opinativo. A Assembleia Nacional era uma caricatura de um Parlamento, mesmo porque Salazar – tal como outros ditadores de seu tempo – considerava o Parlamento uma instituição caduca, expressão de um liberalismo moribundo e palco para disputas estéreis dos partidos políticos. O corporativismo era parte de um programa político católico que Salazar sempre defendera. Na prática, porém, as organizações corporativas tiveram como funções prioritárias exercer uma forma de controle social, desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado.

  consolidação de Salazar no poder foi rápida. A oposição formava um arco que ia dos republicanos conservadores, empurrados para fora da ditadura militar e do Estado Novo, ao Partido Comunista Português, o PCP, liderado por Álvaro Cunhal. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, os opositores tiveram escassa repercussão. O desinteresse pela política, a censura aos meios de comunicação, a repressão dos dissidentes, muitos deles sujeitos a prisões e torturas, foram elementos inibidores de uma oposição eficaz.

           Em um país de reduzidas dimensões, a polícia política – a famosa Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide – estava por toda parte. Dois estabelecimentos penais eram especialmente temidos: Peniche, uma fortaleza no alto de um penedo, situado na ponta mais ocidental de Portugal, e o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago em Cabo Verde, onde morreram dezenas de prisioneiros políticos. No verão de 1937, um atentado a bomba – façanha de uma célula anarquista – serviu para “justificar” a repressão e para demonstrações de apoio a Salazar. Em 1945, na onda de democratização que se seguiu ao conflito mundial (como o fim do Estado Novo no Brasil), Salazar anunciou eleições legislativas para novembro daquele ano, abertas a todos quantos quisessem desafiar a lista da União Nacional. Meses antes, chegara a dizer que “as eleições seriam livres como as da livre Inglaterra”. Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de Unidade Democrática, mas a Pide passou a acossar e prender os membros do movimento, que acabou se retirando do pleito.

           Uma variante desse cenário ocorreu nas eleições para presidente da República, de fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande influência, lançou o nome de Norton de Mattos, um general de tendências moderadas. Comícios entusiásticos mostraram que o antissalazarismo ganhava a opinião pública. Mas, ainda uma vez, a acossada oposição se complicou e Norton de Matos retirou a candidatura.

           Tornou-se cada vez mais claro que as eleições, mesmo em condições anormais, tinham-se convertido em um problema para o salazarismo. No pleito de 1958, o país foi tomado por uma febre eleitoral com a candidatura de outro general, Humberto Delgado, salazarista histórico que passara para a oposição. Delgado manteve sua candidatura até o fim, e só a fraude eleitoral permitiu a vitória do almirante Américo Tomás.

           A vida do general Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr Campos, terminou de forma trágica, em fevereiro de 1965, quando ambos foram assassinados em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira para Portugal. As mortes, perpetradas por agentes da Pide com a autorização de Salazar, tiveram repercussão internacional e quebraram o prestígio do “manso ditador”. O ex-presidente Jânio Quadros enviou um telegrama a Salazar, insistindo numa investigação completa do caso pelas Nações Unidas.

spetacular foi a façanha do capitão Henrique Galvão, que em janeiro de 1961 fugiu da prisão em Portugal e, à frente de um grupo rebelde de nome quixotesco, o Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, apresou no Caribe um navio de passageiros – o Santa Maria. Rumando para o sul, Galvão enviou uma saudação ao povo brasileiro, à imprensa e ao recém-eleito presidente brasileiro, Jânio Quadros. Ao que tudo indica, Galvão esperou a posse de Jânio para desembarcar no Recife, pois JK, seu antecessor, tinha boas relações com a ditadura portuguesa. O “homem da vassoura” enviou a Galvão uma mensagem de boas-vindas e lhe concedeu asilo político. Ele nunca mais voltaria a Portugal e, anos mais tarde, morreria no Brasil.

o plano das relações exteriores, Portugal mantinha tradicionalmente laços estreitos com a Inglaterra, numa posição de inferioridade. Apesar da oposição das correntes germanófilas, o país entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados e enviou um contingente militar para lutar nos campos da França. A implantação da ditadura salazarista não impediu a continuidade das boas relações com a Inglaterra, mas esta nem sempre apoiou as decisões do governo português. Salazar suscitou severas críticas dos ingleses, por exemplo, quando, de forma dissimulada mas significativa, ele apoiou o general Franco durante a Guerra Civil Espanhola.

           Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, porém, a neutralidade de Portugal foi apoiada sem ressalvas pela Inglaterra. Salazar manteve essa postura, mesmo quando a queda da França parecia prenunciar a vitória do nazifascismo, e procurou influenciar o general Franco para que a Espanha também se mantivesse neutra. Mas em 1941, quando Hitler invadiu a União Soviética, Franco se colocou abertamente do lado alemão, enviando um contingente militar – a Divisão Azul – para lutar, ou melhor, para ser destroçado, na Frente Oriental.

           Salazar nunca se identificou com o regime nazista, embora agentes da Alemanha, como de outros países, circulassem em Portugal sem serem incomodados. Numa carta enviada a um de seus confidentes mais próximos, em setembro de 1941, ele afirmou: “Considero uma desgraça para a Europa que (...) o nazismo se imponha por toda a parte com a sua violência e rigidez de alguns de seus princípios. Para os que têm da Civilização uma noção moral, será um franco retrocesso.”
Salazar não via os Estados Unidos com os mesmos bons olhos com que via a Inglaterra. Os americanos – segundo ele – eram estranhos aos princípios europeus. E representavam um capitalismo sem freios, com pretensões hegemônicas. Alguém perguntaria: que importava, afinal de contas, para os Estados Unidos, a postura do nanico Portugal? A resposta pode ser sintetizada na importância estratégica do arquipélago dos Açores. Em julho de 1941, o presidente Roosevelt enviou uma carta a Salazar, afirmando que a utilização do arquipélago, e de outras possessões portuguesas, nada tinha a ver com uma ocupação. Para o propósito de proteger os Açores, Roosevelt dizia ter todo o gosto em incluir forças brasileiras, mas não se chegou a tanto. Depois de muitas pressões e longos entendimentos, Portugal autorizou a utilização dos Açores, primeiro pelos britânicos e depois, com relutância, pelos americanos.

           No pós-guerra, a insistência de Salazar na manutenção das colônias da África a qualquer preço acelerou a desagregação do Império português. Portugal invocava a ameaça da União Soviética no continente africano. Dizia que não havia racismo, e sim harmonia de raças nas colônias portuguesas. E lembrava o exemplo maior do Brasil – uma nação luso-tropical cuja história passava pelo papel desempenhado por Portugal. O defensor intelectual dessa ideologia foi Gilberto Freyre, particularmente no livro O Mundo que o Português Criou. Embora Salazar e seus acólitos tivessem horror da importância que ele atribuía à herança africana em Portugal, deixaram o aspecto de lado para utilizar as ideias de Gilberto Freyre, um intelectual de inegável prestígio. Alguns livros do sociólogo brasileiro foram publicados em Portugal e ele visitou o país várias vezes, a convite do governo português.

           As colônias portuguesas na Ásia foram caindo, uma a uma: Timor, Goa, Macau. Mas Salazar não podia admitir o abandono das “províncias ultramarinas” da África, cada vez mais convencido de que a independência delas levaria ao domínio da União Soviética ou ao caos generalizado. Os movimentos de independência estendiam-se da Guiné-Bissau e Cabo Verde a Angola e Moçambique. Em busca de uma política integradora e assimilacionista, o governo tentou sem êxito a reforma – uma espécie de luso-tropicalismo em forma legislativa, na feliz expressão de Ribeiro de Meneses. Na verdade, a prolongada Guerra da Angola, cada vez mais impopular em Portugal e na África, a cujo final Salazar não chegou a assistir, foi um fator dos mais importantesna queda da ditadura.

alazar não teve a morte violenta de Mussolini e de Hitler. Como o general Franco, morreu na cama, de morte natural, em julho de 1970. Meses antes, quando sofrera um acidente cardiovascular, fora substituído no poder, sem seu conhecimento, por Marcelo Caetano, atitude que lhe causou profunda amargura. Caetano tentou inutilmente reformar o regime para garantir sua sobrevivência. A Revolução dos Cravos poria fim à ditadura em 1974, por iniciativa dos quadros médios do Exército, acolhidos pela população, num clima de forte emoção. O deus de Salazar poupou-o desse espetáculo de desordem, como certamente ele o denominaria.

           Passadas muitas décadas, a Europa Ocidental de hoje é muito diversa do que foi dos anos 30 até meados da década seguinte. A era das ditaduras teve fim, a Alemanha e a França – inimigas mortais em três guerras – tornaram-se nações amigas, o comunismo deixou de ser um fantasma perturbador, o sonho da União Europeia converteu-se em realidade.

           Não obstante, nos dias de hoje, a União Europeia atravessa ventos e tempestades, e os temas econômicos e financeiros – déficits orçamentários, irresponsabilidade fiscal – entraram na ordem do dia. Tudo isso soaria familiar aos ouvidos do professor Salazar e ele talvez pensasse que poderia retornar do “assento etéreo” a este mundo, como homem providencial. Nesse caso, alguém precisaria dizer-lhe que os tempos são outros, pois estamos em busca de líderes, aliás muito escassos, e não de homens providenciais.

primeiro texto por Barbara Fischer, em Deutsche Welle
"Salazar" por Boris Fausto, na piauí

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quarta-feira, 23 de abril de 2014

PUNK ROCK JESUS

O que poderia ser pior: mais um reality show de merda ou a volta de Jesus Cristo? Se você, assim como eu, não sabe responder essas perguntas, e também não gostaria de ver nada disso acontecendo, pense de novo! É justamente essa combinação pecaminosa que monta o pano de fundo dessa graphic novel fodida!

Na trama dessa espetacular minissérie, uma geneticista famosa - visando a obtenção de alguns recursos oferecidos por uma produtora de TV -, aceita o desafio de clonar a maior personalidade pop da história da humanidade, o próprio Jesus Cristo. Através de uma amostra de DNA recolhida do Santo Sudário, a experiência é realizada com sucesso e uma jovem virgem é inseminada, dando luz ao mais novo messias e lançando ao mesmo tempo, o maior reality show já visto.

Intitulado de J2, esse abominável Big Brother sacrossanto de imediato se torna um sucesso absoluto de audiência, e passa a transmitir initerruptamente para mais de 3 bilhões de fiéis expectadores, “a segunda vinda” de Cristo, desta vez batizado de Chris, uma criança simples e ingênua, que durante seus 14 anos de estrelato é mantida praticamente em cárcere privado, presa em uma ilha particular, refém do circo de horrores que é o show-business. Após muitas reviravoltas, Chris (o novo Cristo), com seu ódio já bem alimentado pelo espírito do rock’n’roll, resolve rebelar-se contra seus "criadores" e foge, tornando-se um punk revolucionário que destila ódio entre os dentes e está pronto para pregar novas palavras para essa porra de mundo fodido.


Nesse bizarro sci-fi religioso, magistralmente escrito e desenhado pelo irlandês Sean Murphy, nós acompanhamos a trajetória das relações de Gwen, a jovem virgem escolhida para dar a luz ao filho do todo poderoso, de Chris e, do seu guarda-costas Thomas - um católico irlandês casca grossíssima, ex-membro do IRA, que resolve proteger o novo Jesus em busca da absolvição dos seus incontáveis pecados cometidos -, tudo isso enquanto lidam com as adorações e protestos dos fanáticos religiosos, das comunidades científicas e dos políticos com o cu nas mãos ao redor de todo o mundo.

Mais uma puta obra-prima da nona arte. Último trabalho sob a batuta de Karen Berger, a genial editora da DC/Vertigo. Uma crítica ao status-quo, a igreja, a sociedade e a indústria do entretenimento, que cada vez mais tem nos mantidos cegos e afastados dos verdadeiros milagres dessa vida.


por Márcio Barcellos

Nome: Punk Rock Jesus
Roteiro e Arte: Sean Murphy
Ano de publicação: 2012/2013
Selo: Dc/Vertigo


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segunda-feira, 21 de abril de 2014

CLANDESTINO # 7

Rolou de novo: A sétima edição do projeto “Clandestino” aconteceu hoje, feriado de Tiradentes, no principal ponto de referência histórico da cidade de Aracaju, a ponte do Imperador – na verdade um atracadouro construído para a chegada de Dom Pedro II às antigas terras do Cacique Serigy. Infelizmente, mais uma vez, abandonado pelo poder público: está sujo, sem iluminação e quase em ruínas ...

Houve um pequeno atraso porque demorou pro gerador funcionar, mas eis que fez-se a luz – e o som! A auto-denominada banda de “crust universitário” Robot Wars abriu a noite com um show energético e minimalista que se adapta muito bem às limitações naturais da empreitada – notadamente o ronco do gerador, que desta vez não pôde ser posicionado de forma mais adequada e dominou o ambiente. Mas não ao ponto de estragar a festa, muito pelo contrário: faz parte, até ...


Atrapalhou mais “O Cúmplice”, cuja formação não é tão “enxuta”: são duas guitarras, baixo, bateria e vocal. Fazem um som pesado que intercala passagens mais rápidas com momentos climáticos, numa dinâmica envolvente e, muitas vezes, soturna. Foi meio difícil equalizar tudo isso, ficou meio confuso, embolado com o ruído do gerador ao fundo, mas sem problema: rolou! Os caras são de São Paulo e estavam visivelmente satisfeitos em tocar na rua, sem palco, tão longe de casa e num visual tão legal – a tal “ponte” que não é ponte fica no centro da cidade e de lá temos uma vista privilegiada da “rua da frente”, de um lado, e da Barra dos coqueiros, do outro. É realmente bonito – e agradável, já que estávamos sobre o rio e agraciados com uma deliciosa brisa marítima vinda da praia da costa.

Belo fim de feriadão! Que venha o próximo ...

FAÇA VOCÊ MESMO!!!!

A

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anti-heróis & aspirinas

Tenho aqui em minhas mãos uma charmosa e bem acabada edição de bolso do novo livro de Yury Hermuche. Trata-se de um interessante apanhado de divagações aleatórias narradas num fluxo contínuo de pensamento transposto para o papel – de ótima qualidade e encadernado em lombada quadrada com uma capa azul piscina muito bonita. A narrativa não é linear e não há uma história a ser contada, mas ao se deixar envolver pelo que é dito – e está escrito – faz-se a magia: é como se você estivesse entrando na cabeça do autor e passasse a compartilhar de suas angustias, frustrações e sensações: o desejo ao rever uma amiga que já foi um antigo caso, o vento frio no rosto, a sensação de estar sendo seguido(a). “A Cidade sob a sombra. Uivos diferentes ecoam das janelas dos apartamentos e eles são firmes. Viscerais, sensuais demais. A noite é uma delícia. Você só precisa saber se mover para encontrar o leve vento frio que sopra contra o rosto. O metal das placas de trânsito rangendo, as ruas cada vez mais vazias.”

Conheci Yury Hermuche ainda na primeira metade dos anos 1990, quando ainda publicava em cópias xerox distribuídas via correio o meu fanzine, “Escarro Napalm”. Ele morava em Brasilia e produzia uns quadrinhos muito bons, com histórias recheadas de sexo, rock e divagações existencialistas. Gostava bastante do traço dele e dele, como pessoa – publicar um fanzine era, em grande parte, uma desculpa para fazer novos amigos para além das fronteiras geográficas às quais estamos presos, em maior ou menor grau. Mas perdi o contato quando parei de “fanzinar”. Só o reencontrei já no século XXI, por acaso, via internet, como guitarrista da banda “indie” paulistana Firefriend. Não sabia que ele também escrevia. Este, “anti-heróis e aspirinas”, já é seu terceiro livro. Foi lançado por uma editora própria, dele e de mais três amigos, chamada “longe”, que você pode conhecer acessando http://muitolonge.com.br/.


Yury é o personagem principal de seu próprio livro. Ele gosta de estradas, não de igrejas. “Uma estrada é tão diferente de uma igreja. As igrejas e os templos também são muito velhos, assim como as estradas. Mas duas coisas não poderiam ser tão diferentes. A estrada é aberta e avança pelo mundo. A igreja é fechada, te esconde do mundo. A estrada te leva para os lugares, permite que você se mova por aí. A igreja não te leva para lugar nenhum, você entra e sai exatamente da mesma forma todos os dias. A experiência na igreja é totalmente abstrata: você visita as vastidões com as palavras. Mas falam de um mundo muito pequeno. Na estrada, a experiência suga a energia do seu corpo, você pode morrer se não for cuidadoso. E o mundo é enorme. A igreja responde, a estrada pergunta. Para onde você quer ir? A estrada não o julga.”


É também um profundo conhecedor da geografia íntima de sua casa: “Apago todas as luzes da casa. Gosto de andar por ela no escuro. A iluminação da rua entra pela janela e me basta. Gosto de observar os ângulos vazios. O silêncio. Quase inexistente. Aos poucos percebo os ruídos ínfimos que as máquinas produzem. Aqui dentro e lá fora. Esses sons ocupam a casa aos poucos. Mudanças de fase ou picos de energia também influenciam os caminhos dessa música. Se você prestar bastante atenção, vai perceber até mesmo quais são aqueles objetos que melhor reverberam cada freqüência. A madeira no sofá e seu estofo são particularmente interessantes com os graves. Aproveito também para imaginar outros usos possíveis para cada móvel e ambiente. Encontro idéias surpreendentes. Até a forma como a disposição dos ambientes das casas se esgota no mesmo padrão repetitivo é uma manifestação dessa ferramenta de controle, a arquitetura. A vida é muito mais plástica do que a arquitetura. Sinto que este é um mundo vasto, mas absolutamente reduzido por quem o domina. O mundo. Grande mundo. Se eu não fosse tão só, talvez não me dedicasse tanto a explorá-lo. Talvez se convivesse mais com outras pessoas, eu não desejasse tanto descobrir as fendas, rachaduras e passagens que o ampliam.”

Yury está nesse mundo para aumentar o caos, não para contribuir com a ordem.

http://www.youtube.com/watch?v=9jyg7PamiUI

http://www.yuryhermuche.com/

A

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domingo, 20 de abril de 2014

12 Anos de escravidão

FANTÁSTICO, "12 Anos de escravidão". Não tem nada de novelão melodramático, como alguns críticos "polemistas" e apologistas do "politicamente incorreto" apontaram. É um drama, claro, e pesadíssimo, como não poderia deixar de ser, pelo tema abordado. Mas muito bem filmado, fotografado e interpretado - o vilão "principal", vivido por Michael Fassbender, é magistral! Mas a grande sacada é que fica o tempo todo subentendido que não existem "mocinhos" naquela história, já que o pesadelo que vemos na tela é fruto de uma idéia: a de que seria legítima a exploração do homem pelo homem. Legítima ao ponto de reduzir algumas categorias de seres humanos ao nível de mercadoria. É por isso que vemos, por exemplo, a "piedosa" esposa do amo "bonzinho" tentar consolar uma negra que havia sido separada dos filhos dizendo que ela logo os esqueceria.

E é de se pensar até que ponto a situação foi realmente superada, já que a exploração continua a todo vapor. Em outros termos, é verdade. Mas nem sempre, já que vez por outra nos deparamos, nos noticiários, com a informação de que ainda hoje, em pleno século XXI, trabalhadores continuam sendo encontrados encarcerados em condições análogas à escravidão. No Brasil, inclusive, em fazendas de parlamentares ...

As únicas objeções que ouso fazer são a desnecessária escalação de Brad Pitt, que produziu o filme, e o uso da trilha sonora para conferir a certas cenas um tom de melodrama - mas são intervenções pontuais, nada que afete o resultado final, como apontaram alguns. Além do mais, há uma interessante utilização da música, em outros pontos da narrativa, para delimitar os universos retratados: o negro, quando livre e nos salões das "casas grandes", já como escravo, toca violino, um instrumento "civilizado", enquanto nos campos, colhendo algodão ou cana-de-açucar - não sabia que se plantava por lá - entoa os cantos rústicos que com o tempo originariam algumas das mais fantásticas manifestações culturais do século XX, como o blues e o jazz.

Filmaço!

A

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quinta-feira, 17 de abril de 2014

GAME OF THRONES

Quem ainda não se rendeu a “Game of Thrones”, a série de HBO, não sabe o que está perdendo. Eu mesmo hesitei, pensando que se tratasse apenas de mais uma história de fantasia na cola de “O Senhor dos Anéis”, mas assim que comecei a acompanhar o jogo de intrigas, repleto de ação, traição, sangue, suor e lágrimas, fui irremediavelmente fisgado. A magia, aqui, é a narrativa. A outra aparece, mas a conta-gotas – uns dragões aqui, um deus pagão ali, uma ou outra raça de gigantes acolá. Nada que possa atrapalhar com intervenções infantis a fantástica trama que se desenvolve em torna da disputa pelo Trono de Ferro.

É impressionante a força da narrativa criada por George R. R. Martin, que costura com precisão as inúmeras tramas paralelas ao mesmo tempo em que desenvolve personagens inesquecíveis – apenas para matá-los em algum ponto do longo caminho. Não de forma gratuita, já que está tudo perfeitamente de acordo com as necessidades do enredo, mas com uma convicção implacável, alheio a qualquer tipo de pressão, seja ela comercial ou sentimental.


Na verdade valeria a pena apenas pelo Rei Joffrey, que certamente será lembrado como um dos mais cruéis e irritantes vilões já concebidos pela mente humana, mas tem mais, muito mais! Temos Cersei, a "rainha má" mãe do "reisinho"; Tyrion Lannister, o anão ardiloso com uma inteligência acima do comum; Daenerys Targaryen, Khaleese, a mãe dos dragões, com sua beleza desconcertante; John Snow, o bravo guerreiro do norte às voltas com as armadilhas que a vida lhe prega; e mais uma infinidade de personagens absolutamente fascinantes, psicologicamente desenvolvidos de forma brilhante. Todos humanos, demasiadamente humanos, com toda a tragédia e complexidade que esta condição traz.

Admirável!

A

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quarta-feira, 16 de abril de 2014

A Arte de Luis Quiles

Nascido em 11 de maio de 1978, o espanhol Luis Quiles, morador de Barcelona, começou a desenhar desde cedo como um hobby. Fã assumido de cultura pop e rock — o que nota-se em seu trabalho — acredita que a arte não deve ser censurada pois mata a ideia artística. Por suas convicções , seus desenhos considerados mais pesados foram retirados do Deviantart. A censura sempre é uma forma de ocultar aquilo que sociedade tem medo de debater.

Luis ama desenhar. E com sua arte, choca, provoca, irrita e nos mostra aquilo que muitas vezes não queremos abordar ou enxergar por outro ponto de vista. Abaixo, uma entrevista conduzida por Jefferson Correia publicada na Obvious Magazine. E alguns desenhos deste fantástico artista.

© obvious: http://lounge.obviousmag.org/manifesto_da_artes/2014/01/conhecendo-luis-quiles-o-artista-que-quer-nos-provocar-com-seu-trabalho.html#ixzz2z7cKYVD2
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MANIFESTO DAS ARTES: Como começou a desenhar?
Luis Quiles: Desde muito pequeno.
MANIFESTO DAS ARTES: Quais são as mensagens do seu desenho?
Luis Quiles: Perturbar as pessoas. Fazendo odiar o meu trabalho, se necessário. Há muito tempo eu percebi que a imagem não muda as pessoas, nem mesmo muda uma pessoa. É o que eu penso. Ela não vai fazer uma pessoa racista, por exemplo, então eu não faço para mudar isso, eu faço isso para irritar. Muitas vezes pareço insultar as pessoas na internet com um pouco do meu trabalho, e é divertido.
MANIFESTO DAS ARTES: Quais são suas influências e o que você mais gosta na cultura pop?
Luis Quiles: Nirvana, Hayao Miyazaki, Leiji Matsumoto, Alphonse Mucha,Mitsuru Adachi, contos clássicos (Branca de Neve, Peter Pan, Alice ...), Akira Kurosawa, Alfred Hitchcock ...

MANIFESTO DAS ARTES: Você foi censurado no Deviantart. Gostaria de saber O que você acha da censura na arte?
Luis Quiles: Simples: a censura mata a arte. E se você está pronto pra isso, deve procurar uma maneira de dar nova vida e enganar a censura, isso é o que eu tento fazer.

MANIFESTO DAS ARTES: O que te motiva a criar?
Luis Quiles: O mesmo de quando eu era pequeno, eu gosto. Não preciso de uma motivação profunda.
MANIFESTO DAS ARTES: Seus desenhos tem alguma posição politica? Você é libertário, progressista ou conservador?
Luis Quiles: Eu não me importo com as idéias políticas, sejam boas ou ruins. Ou mais relacionado a mim ou fora, no final todos eles têm o mesmo problema. Foda-se a moralidade das pessoas. Todos passam pelo mesmo filtro que suga: os seres humanos! Vivem com a sua ideia do mundo em um nível pessoal, sem perceber que todos são como você ou devem ser, mas não é. Eu me considero de esquerda, mas não me reconheço quando eu ouço falar da esquerda política.

MANIFESTO DAS ARTES: O que você acha dos seus fãs estrangeiros?
Luis Quiles: Eu não gosto da palavra fã. Sou um admirador do trabalho de muitas pessoas, mas não fã. Não é uma descoberta que a palavra fã vem de fanático. Então, eu prefiro vê-los como pessoas que gostam do meu trabalho. Eu gosto de conhecer pessoas de outros países para o nível pessoal ou humano assim o mesmo com o meu trabalho
MANIFESTO DAS ARTES: Qual conselho você pode dar pra quem quer criar arte?
Luis Quiles: Que goste do que faça. Se você trabalhar duro, conseguirá aprender.
MANIFESTO DAS ARTES: Você pretende fazer algum mangá ou história em quadrinho?
Luis Quiles: Quadrinhos. Publiquei há alguns anos e agora eu começo a trabalhar de novo. Mangás não. Eu gosto como leitor, mas já pensei em fazer um mangá.

MANIFESTO DAS ARTES: Sobre as mulheres: Você gosta mais de desenhá-las? Como você acha que as mulheres enxergam sua arte? Você se considera machista?
Luis Quiles: Algumas raramente me disseram que meus desenhos são misóginos. Simplesmente é o que eu quero falar.Eu prefiro desenhar o que as mulheres fazem. Muitos dos meus fiéis seguidores do meu trabalho são as mulheres.Espero que não entendam mal meu trabalho.
MANIFESTO DAS ARTES: Como é o mercado de trabalho para desenhistas na Espanha?
Luis Quiles: Pobre. Pela crise econômica, como na maioria dos trabalhos.
MANIFESTO DAS ARTES Você acha que seus desenhos podem ser usados como arma contra a opressão religiosa ou contra a política?
Luis Quiles: Talvez, mas isso não vai mudar nada. Eles não mudarão por causa de alguns desenhos.
MANIFESTO DAS ARTES: E sobre seus desenhos em apoio a Pussy Riot e contra os padres pedófilos?
Luis Quiles: Eles não mudaram por causa de alguns desenhos. Com a pressão social que você pode obter uma mudança. Um desenho é apenas um pouco mais.

MANIFESTO DAS ARTES: Conhece algum desenhista brasileiro?
Luis Quiles: Desenhista ou design não. Não que eu me lembre.
MANIFESTO DAS ARTES: E de outras artes?
Luis Quiles: Da música, Sepultura e filmes, Cidade de Deus.
MANIFESTO DAS ARTES: Pra finalizar, quais são seus projetos futuros?
Luis Quiles: Escrever e desenhar histórias em quadrinhos.

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