sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Cinema ainda é a melhor diversão

Fui ver Avatar duas vezes no cinema, infelizmente nenhuma das duas da forma como deveria ser visto, em 3D, já que não existem salas deste tipo em minha cidade. Na primeira fui ver dublado, para não perder tempo olhando para as legendas e me concentrar no visual que é, eu já sabia, (para muitos, o único) ponto forte do filme. Confesso que alguns diálogos e cenas, como a da dancinha de invocação da tribo e aquela filosofia new age fajuta, me incomodaram bastante. Na segunda vez vi legendado e com o espírito mais aberto, com a namorada do lado e a fim de ver cinemão pipoca mesmo, me divertir. E foi sensacional, porquê é exatamente isso que o filme é: diversão escapista da melhor qualidade – com uma mensagem edificante um tanto quanto rasteira de pano de fundo, mas com qualidades, sem sombra de dúvidas. O velho combate maniqueísta do bem contra o mal, da ganância do progresso destruindo velhas culturas baseadas no respeito e na interação com a natureza.

De repente me toquei que AVATAR nada mais é do que um faroeste “futurista”. Está tudo lá, especialmente as tribos indígenas cavalgando entre paisagens deslumbrantes e sendo ameaçadas pelo avanço dos “homens brancos” invasores, apoiados pelo aparato bélico infinitamente desproporcional em poder de fogo devido às diferenças no domínio da tecnologia. Me vieram à mente imediatamente as clássicas imagens dos nativos americanos cavalgando seus garbosos corcéis em meio à pradaria, sempre atentos aos movimentos dos “caras-pálida” e seus temíveis “casacos-azuis” (a cavalaria do exército americano). A "virada de casaca" do espião invasor e a clara preferência pelo lado dos N,Avi (como são chamados os habitantes do planeta cobiçado por seu valioso minério) me lembrou “Dança com Lobos”, mas a maior referência é, sem sombra de dúvidas, “Guerra nas Estrelas”. E não apenas em seu conceito e estruturas visual e narrativa, mas também no fato de ser um campeão de bilheteria (ao ponto de já ter superado o recorde – em números absolutos - do próprio diretor James Cameron com seu “Titanic”) e estar sendo considerado por muitos como um novo paradigma para o cinema, uma nova direção a ser seguida no futuro, na eterna luta pela sobrevivência da tela grande que une as pessoas numa experiência coletiva na sala escura contra as novas e cada vez mais avançadas tecnologias que insistem em isolar-nos em nossos cantinhos individuais do mundo.

Chamar a saga ‘STAR WARS” de “Guerra nas Estrelas” denuncia minha idade, já que desde o final dos anos 1990 a franquia foi renomeada com seu título original em inglês em todo o mundo, por uma questão de marketing. Nasci em janeiro de 1971 e a primeira parte da obra máxima de George Lucas foi o primeiro filme que vi no cinema, na época de seu lançamento. Tinha, portanto, entre 7 e 8 anos. Morava em Itabaiana, interior de Sergipe, e não lembro exatamente quando a fita estreou por lá, mas lembro perfeitamente que era um sucesso mundial absoluto, ao ponto do próprio padre, durante a homilia da missa dominical, recomendar aos fiéis que o fossem ver – na verdade ele sempre fazia isso, pois o cinema era instalado num prédio alugado à igreja. Insisti para minha irmã mais velha me levar e, lá dentro, ficava enchendo o saco dela para que me explicasse o que estava acontecendo, já que o filme era legendado e eu ainda não tinha fluência suficiente na leitura. Lembro de ter ficado surpreso ao saber que aquela mulher bonita com os cabelos estranhamente enrolados por cima das orelhas era uma princesa, pois ela não tinha nenhum glamour, especialmente nos trajes, cujo padrão entre os integrantes da aliança rebelde era sempre algo branco e com um corte simples. Mas o visual arrebatador das criaturas alienígenas e das revolucionárias cenas de batalha me deixaram alucinado e fanático pelo filme. Comprei o álbum de figurinhas, o único “souvenir” disponível por lá na época, e colecionava os fotogramas compulsivamente, colando-os no calhamaço de papel com uma goma caseira que o deixava ainda mais volumoso e pesado (ainda não existiam as figurinhas auto-adesivas).

A Saga de Lucas me marcou profundamente e despertou meu interesse pela sétima arte. À medida que fui crescendo fui me tornando um cinéfilo. Lembro que ficava de ouvidos bem atentos quando a propaganda na Radio Princesa da Serra (cujos estúdios ficavam instalados no segundo andar do cinema) anunciava, ao som da musica-tema de Star Wars em BG, a já célebre (pelo menos em minhas memórias) narração: “Cinema ainda é a maior diversão. Hoje, na tela do Cine Santo Antônio ...”. E lá ia eu, caso o filme me interessasse. E muitos interessaram. Foi lá, “na tela do Cine Santo Antonio”, que vi alguns clássicos dos anos 80, como “Conan, o Bárbaro”, “Piranha”, “Piranha 2 – Assassinas Voadoras”, “Ladyhawk, o feitiço de Áquila”, TRON (numa sessão absolutamente caótica, pois foi de graça por conta de uma promoção do Colégio Murilo Braga e estava abarrotada de moleques que só estavam interessados em bagunçar, ou “indiar”, um adjetivo pejorativo bastante usado localmente naqueles tempos ), “Uma Noite Alucinante”, “A Volta dos Mortos Vivos”, "De Volta para o futuro", "Robocop" e “Platoon”, dentre muitos outros.

Me lembro de voltar para casa todo "armado" simulando carregar uma metralhadora depois de ver “Rambo, programado para matar”. Ou de uma sessão tradicional (e bizarra) que acontecia toda sexta-feira santa, onde era exibido uma fita antiqüíssima sobre a vida de Jesus e algumas senhoras a assistiam de joelhos e rezando o terço – nessa época eu já era meio roqueiro pendendo pro ateísmo e achei aquele fanatismo ridículo. “O Dia Seguinte”, o filme-denúncia contra a corrida armamentista, eu vi com amigos e a fim de “indiar” também, para aliviar a tensão – o pesadelo nuclear era sério, uma ameaça real que pairava sobre o mundo e eu tinha ficado absolutamente apavorado com um Globo Repórter sobre o assunto. Lembro também que de vez em quando entravam em cartaz alguns filmes que na época tinham apelo comercial mas hoje andam esquecidos ou são considerados “Cult”, como “Conquista Sangrenta” (Flesh+Blood), de Paul Verhoeven, uma bizarra e brilhante fábula medieval violenta e erótica sobre um farsante (interpretado por Rutger Hauer) que lidera um pequeno exército de fanáticos. Foi lá também que vi pela primeira (e única) vez, já que nunca foi relançado nos cinemas, pelo menos que eu saiba, a primeira obra-prima de James Cameron, “O Exterminador do Futuro”. E o Cine Santo Antonio, veja só, era apenas um dos dois cinemas da cidade. Hoje em dia é luxo uma cidade de pequeno porte do interior ter uma sala de cinema, que dirá então duas. O outro era o “Cine Popular”, mas este eu nunca tive coragem de freqüentar, pois exibia exclusivamente filmes pornográficos e minha timidez e formação católico-repressora rígida nunca conseguiu superar minha curiosidade hormonal adolescente.

Os filmes que eu queria muito ver e não passavam em Itabaiana eu via em Aracaju, depois de muita insistência para que minha mãe deixasse. Foi o caso de “ET – O Extraterrestre”, que eu achei meio decepcionante, meloso demais. Odiei, e ainda odeio do fundo do coração, aquele garoto, Elliot, um dos personagens mais irritantes já produzidos pela sétima arte. Em 1989 me mudei definitivamente para Aracaju e passei a freqüentar os cinemas daqui – mas não a tempo de conhecer o Cine Vitória, que funcionava onde hoje ficam as Lojas Americanas, na época já desativado. Havia também um cinema de bairro na cidade, o Vera Cruz, no Siqueira Campos, que ainda funcionava mas que eu também nunca freqüentei, em boa parte porque já estava em franca decadência, exibindo apenas uma sessão dupla de “sexo e caratê”, a clássica dobradinha de dois filmes (um pornográfico e outro de artes marciais “made in Hong Kong") pelo preço de um, nossa versão tupiniquim para as “grindhouse” americanas. Hoje é a “Catedral da Fé” da Igreja Universal do Reino de Deus em Sergipe. Freqüentei muito o Cine Aracaju, na Rua de Laranjeiras, onde hoje funciona um ... estacionamento. Foi lá que vi “ET”, “Indiana Jones e o Cálice Sagrado”, "o paciente inglês" e muitos, muitos outros. Foi também de lá que saí atordoado com “Parque dos Dinossauros”, imaginando que, ao virar a esquina (depois da tradicional passada pela “Charutaria Chic”, que também funcionava como banca de revistas – minha favorita – e ficava bem em frente) daria de cara com um Tiranossauro Rex ou um bando de velociraptores, tamanho o realismo dos efeitos especiais.

Mas o principal cinema da cidade era, sem sobra de duvidas, o Cine Palace, que ficava no Calçadão da João Pessoa, ao lado do então palácio do governo. Era bem maior e mais luxuoso (e confortável) que o Aracaju, e lá também vi fitas célebres e populares, como “Os Bons Companheiros” de Martin Scorcese, e até filmes “Cult”, como “Sid & Nancy, amor mata”, sobre a vida e o relacionamento conturbado do símbolo-mor do punk junkie e ex-baixista do Sex Pistos, Sid Vicious, e sua namorada-problema Nancy Spungen. O último filme que assisti lá foi “Waterworld”, de Kevin Costner – defenestado pela crítica, mas que eu nem acho tão ruim assim. É uma espécie de “Mad Max aquático”, e eu sou fã da franquia Mad Max e de filmes futurista-apocalípticos “trash” em geral. Este cinema eu fiquei especialmente triste quando fechou, pois era realmente um verdadeiro símbolo da sétima arte no estado. Funcionou por um tempo como bingo (ironicamente mantendo o mesmo nome, “Bingo Palace”) e hoje está lá, abandonado, num verdadeiro tributo ao descaso com a cultura, tão comum em nosso país.

Só não é maior que o descaso para com o Cine Rio Branco, o último cinema de rua de Aracaju a cerrar suas portas. Quando fechou, era um dos mais antigos ainda em funcionamento no Brasil, já que fora inaugurado em 1913, primeiro como Teatro Carlos Gomes, depois como Cine-teatro Rio Branco e finalmente apenas como cinema, não sem antes receber em suas luxuosas dependências artistas do nível de Procópio Ferreira e Bidu Saião. Era de propriedade do Sr. Juca Barreto e chegou a ser tombado e depois "destombado" pelo patrimônio histórico. A partir dos anos 80, foi arrendado e passou a exibir apenas filmes pornográficos até sua demolição, já por volta dos ano 2000. Hoje funciona como uma loja de tecidos. Poderia muito bem ter sido comprado pelo estado ou pela prefeitura e ter se transformado num centro cultural com filmes exibidos a preços populares, como existe em Recife com o Cinema Teatro do Parque, cujo preço do ingresso custa apenas R$ 1,00 graças aos subsidios da prefeitura. Em todo caso, foi nele, no cine Rio Branco, que entrei pela primeira e única vez num cinema pornô, uma experiência que considerei, devo confessar, repulsiva ...

Não por moralismo, pois sempre gostei de pornografia, mas como uma atividade solitária. Nada a ver ficar num ambiente público com pessoas se masturbando ao seu redor. É anti-higiênico e constrangedor – ok, eu também era um punheteiro inveterado e confesso mas o fazia no conforto do meu lar, auxiliado por aquela maquininha maravilhosa que mudou nossas vidas chamada vídeo-cassete - dá pra imaginar um tempo em que para assistir um filme você tinha que esperar por sua estréia na tela grande ou posterior exibição na TV aberta ? Pois esse tempo existiu, antes do vídeo-cassete. Fui ao Rio Branco única e exclusivamente para ver um filme de minha musa maior da industria pornô, Traci Lords, que estava tendo uma verdadeira retrospectiva de sua carreira por lá (detalhe: os filmes não poderiam ser exibidos, já que haviam sido banidos depois de constatado que a atriz era menor de idade quando os fez). Foram vários os títulos estrelados por ela, em sequencia, um verdadeiro festival, mas infelizmente, devido à minha hojeriza à experiência em si, vi apenas um.

Hoje, cinema por aqui só em shopping-centers. Não têm o mesmo glamour mas, por outro lado, têm muitas salas (são os chamados multiplex), o que nos dá mais opções. Como tudo o mais na vida, há os prós e os contras. A lamentar mesmo, realmente, apenas a total falta de salas no interior do estado. Mas antes mesmo da chegada do primeiro multiplex, o Cinemark do Shopping Jardins, funcionaram por um bom tempo, em paralelo aos cinemas de rua, no Shopping Riomar, dois cinemas do tradicional Grupo Severiano Ribeiro. Ainda tentei realizar uma antiga fantasia de transar numa sala de cinema por lá quando soube que iria fechar. Acertei tudo com uma amiga com a qual “ficava” mas demos com a porta na cara – ou fechou antes da data anunciada ou nós que nos atrapalhamos e ficamos, literalmente, na mão – ou não, não lembro se consumamos o ato em outro local menos excitante porém mais apropriado ao pudor e aos bons costumes.

Depois disso, por saudosismo dos cinemas de rua, principalmente, passei a freqüentá-los todas as vezes em que viajava para cidades em que eles ainda existiam. Lembro que assisti ao “Titanic” de James Cameron em 1998 num dos vários cinemas (alguns belíssimos) do largo do Machado, no Rio de Janeiro. Também no Rio, já em 2005, vi “Cidade Baixa” no reformado “Cine Odeon”, na Cinelândia. Em São Paulo assisti “Falcão Negro em perigo” de Ridley Scott num cinema do centro com as pernas para cima para não ser mordido por uma das inúmeras ratazanas que passeavam livremente pelo local. Já em Recife, tive a honra de freqüentar, por pelo menos uma sessão, o majestoso Cinema São Luiz, de frente para o Rio Capiberibe. Neste caso o que interessava nem era o filme em si (aquele do ratinho simpático adotado por uma família de humanos, cujo nome nem lembro no momento), mas a sala, com sua suntuosa decoração de mármore, vitrais e lustres. Realmente exuberante. Já não tão luxuoso era o Cinema Glauber Rocha, no centrro de Salvador, onde vi “AI – Inteligência Artificial” com o nariz ardendo devido ao cheiro de mofo. Ou as simples porém simpáticas e aconchegantes salas dos cinemas de rua de Goiânia onde eu vi o capítulo final da trilogia “Matrix” e o primeiro filme da série “Os Normais”.

por Adelvan Kenobi

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Avatar (e Star Wars) - O Triunfo da Imagem
No visual exuberante e no espírito inovador, Avatar é uma revolução comparável a "Guerra nas Estrelas". No enredo, os dois filmes exaltam um mesmo ideário: a contracultura dos anos 60
Por João Gabriel de Lima
Fonte: Revista Bravo! - Fevereiro/2010
De tempos em tempos uma tribo alienígena desce de uma nave espacial e balança a história do cinema. Isso aconteceu, por exemplo, em 1977 - a nave se chamava Millennium Falcon e um de seus ocupantes era o peludo Chewbacca, espécie de elo perdido entre o homem e o macaco. Na ocasião, Guerra nas Estrelas propôs uma nova maneira de fazer e comercializar filmes. Agora, os ocupantes da nave são índios azuis vindos diretamente do planeta Pandora. Avatar, maior sucesso de bilheteria da história, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme na categoria Drama e candidato a bicho-papão do Oscar, é a maior revolução do cinema desde Guerra nas Estrelas. Quando a saga que opunha Luke Skywalker a Darth Vader foi lançada, a maior crítica de filmes da história da imprensa americana - Pauline Kael, da revista The New Yorker - escreveu que o cinema, para o bem e para o mal, nunca mais seria o mesmo. Do mesmo modo, Avatar parece destinado a dividir o invento dos irmãos Lumière em antes e depois. Há mais semelhanças entre os dois filmes do que pode supor a impenetrável filosofia Jedi - ou vá lá, a peculiar compreensão do mundo dos azulados índios Na'vi.
Quando se fala em revolução, não se trata apenas de uma questão estética. Ela existe, mas é secundária. Guerra nas Estrelas e Avatar se parecem, antes de qualquer outra coisa, por propor soluções originais para dilemas da indústria cinematográfica em suas respectivas épocas. Quando Guerra nas Estrelas foi lançado, o cinema americano vivia uma fase de excelentes diretores - Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Michael Cimino, Steven Spielberg - mas, exceto por algumas produções deste último, havia perdido a conexão com o mundo da cultura pop. Era um tempo em que o Oscar era dominado por filmes "adultos", muitos deles meditações sobre a Guerra do Vietnã, o atoleiro em que os Estados Unidos haviam se metido na época. George Lucas, diretor de Guerra nas Estrelas, queria voltar a fazer cinema para o público jovem. Sobretudo, queria fazer filmes que fossem mais do que filmes. Produções que - como ocorria em outras áreas da cultura pop, como o desenho animado ou os quadrinhos - fossem o ponto de partida para a venda de produtos: brinquedos, roupas, máscaras e os recém-inventados videogames.
Guerra nas Estrelas foi pensado com essa finalidade. E o resultado não poderia ser melhor. Foi o primeiro filme da história a faturar mais com merchandising do que com bilheteria - na época do lançamento, os três primeiros longas da série geraram 1,3 bilhão de dólares, enquanto os badulaques criados a partir da história, como a máscara de Darth Vader, arrecadaram 4 bilhões. O sucesso foi tanto que, na década seguinte, o cinema se voltou para o público para o qual Lucas olhara de forma pioneira: o adolescente do sexo masculino, que pagava ingresso e ainda comprava as traquitanas.
Avatar, do mesmo modo, é uma resposta a um dilema do nosso tempo, este muito mais dramático: a própria existência do cinema. Refletindo sobre o assunto, o jornalista David Denby, que sucedeu Pauline Kael como crítico da mais influente publicação cultural americana, criou a expressão "agnóstico de plataforma". Ele se refere a toda uma geração que não vê diferença entre assistir a um filme no cinema ou na tela de um computador, ou mesmo no microvisor de um telefone celular. Se os agnósticos de plataforma se tornassem maioria, escreveu Denby, os cinemas estariam destinados a acabar, e com eles toda uma fantástica tradição de obras de arte pensadas para a tela grande - ou alguém imagina assistir a clássicos como A Doce Vida, de Federico Fellini, ou O Leopardo, de Luchino Visconti, na tela de um iPhone?
CERVEJA LIGHT E CALÇA JEANS
Avatar é uma das respostas possíveis a esta questão. O filme dá um xeque-mate nos agnósticos de plataforma ao oferecer ao espectador uma experiência estética que só é viável dentro de uma sala de projeção. Apenas em frente à tela grande é possível sentir maravilhamento e medo quando harpias coloridas dão vôo rasante sobre os espectadores - ou quando, assumindo o ponto de vista dos índios que pilotam as aves, nos vemos dando mergulhos acrobáticos em clareiras de uma selva exuberante. O filme ressuscita a técnica do filme em terceira dimensão, que agora finalmente funciona direito - nada parecido com os ineficazes óculos de duas cores usados na pré-história do gênero. Assim como Guerra nas Estrelas teve vários sucessores, já estão anunciados filmes infanto-juvenis feitos com a mesma técnica de Avatar - séries como Shrek e Toy Story ganharão suas versões em três dimensões. Até George Lucas planeja relançar sua saga em 3D.
Outra semelhança entre Avatar e Guerra nas Estrelas é que os dois filmes abraçam um ideário que vem resistindo ao tempo de forma surpreendente: o da contracultura dos anos 60. A saga de George Lucas opunha um Império militarizado, comandado por Darth Vader, a um bando de hippies que acreditavam em coisas como pensamento positivo e percepção extra-sensorial - a chamada "força". O Império era eficiente e planejado. Os hippies, liderados por um velho guru, Obi-Wan Kenobi, e seu epígono, Luke Skywalker, eram desorganizados e intuitivos. Avatar segue a mesma linha, acrescentando pitadas de discurso ecológico. No filme, uma grande corporação quer expropiar índios de suas terras para explorar economicamente um minério valiosíssimo - ao qual o diretor James Cameron deu o irônico nome de "unobtainium", algo que não se pode obter. Para conseguir o seu intento, ela contrata um exército de mercenários e cria uma fantástica tecnologia de espionagem, na qual os informantes podem assumir corpos de índios -são eles os chamados "avatares".
Estão dadas as condições para um desfile de clichês politicamente corretos. A vida comunitária é boa, mas as grandes corporações são más. A ciência - os pesquisadores que querem usar os avatares com fins pacíficos - é "do bem", enquanto a tecnologia é "do mal". Sobretudo, não há espaço para nuances. Quando fez Guerra nas Estrelas, George Lucas disparou uma pedrada no relativismo moral dos anos 70. Ele queria, segundo declarou em entrevistas, fazer um filme onde fosse fácil distinguir o bem do mal, como nos antigos faroestes. Avatar segue a mesma linha. A cada quadro (se é possível chamar de quadro uma imagem que se projeta sobre o espectador) o diretor James Cameron deixa bem claro para quem devemos torcer.
Os diálogos vão na mesma direção. Numa cena em que alguém fala em intercâmbio de cultura entre nós, terráqueos, e os índios puros e idealistas que habitam o planeta Pandora, o protagonista do filme, o ex-fuzileiro naval Jake (interpretado pelo ator Sam Worthington), diz: "O que teríamos para oferecer a eles? Cerveja light e calça jeans?". Claro que ele poderia falar também numa sociedade menos machista (os índios azuis tratam suas mulheres como fazíamos na época das cavernas), ou em realizações artísticas como a Capela Sistina de Michelangelo ou a Nona Sinfonia de Beethoven. Mas aí o filme teria espessura, complexidade, faria pensar - o que não se enquadra na regra do faroeste que baliza tanto Avatar quanto Guerra nas Estrelas.
ROBÔS DE "METRÓPOLIS"
Outra coisa que George Lucas elevou à máxima potência e James Cameron de certa forma segue são as referências à história do cinema. Em Guerra nas Estrelas, os robôs são idênticos aos de Metrópolis (1927), clássico do diretor alemão Fritz Lang, enquanto os figurinos do mestre Obi-Wan Kenobi e demais cavaleiros Jedis são claramente copiados do filme Lawrence da Arábia (1962), a obra-prima do britânico David Lean. Nos anos 70, isso se chamava citação e era considerado "pós-moderno". Avatar, por seu turno, faz um verdadeiro inventário do cinema americano politicamente correto, com referências que vão de Pocahontas (1995) a Dança com Lobos (1990). As referências, no entanto, estão mais no tema abordado - o homem ocidental que se encanta com uma cultura diferente - do que no visual e figurinos.
Além da sensível distância no capítulo efeitos especiais - usando o metro de Avatar, até agora o maior triunfo da era da computação gráfica, as naves espaciais de papelão de Guerra nas Estrelas parecem ainda mais toscas - a grande diferença entre os dois filmes é que, em tempos céticos como os atuais, não se acredita mais em produções que determinem um rumo único para o cinema. Nos anos 70, os intelectuais que na época eram chamados de "apocalípticos" previram que Guerra nas Estrelas e seus sucessores varreriam do mapa as produções calcadas na dramaturgia adulta - ela seria substituída por arrasa-quarteirões com cara de história em quadrinhos. Isso não aconteceu: diretores devotados ao diálogo, como o americano Woody Allen, ou cultores do chamado "filme de arte", como o espanhol Pedro Almodóvar, continuaram existindo e fazendo sucesso. Ao propor, pela via do visual, uma nova experiência estética ao espectador, Avatar é uma resposta poderosa aos dilemas do cinema atual. Na época incerta e fascinante que vivemos, no entanto, sabemos que não é nem será a única.

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Avatar e Amor Sem Escalas - Imagem X Palavra
Já se disse várias vezes que o cinema-espetáculo engoliria os outros gêneros, mas o chamado "filme de diálogo" continua forte. Avatar e Amor Sem Escalas expressam, hoje, essa saudável disputa
Por João Gabriel de Lima
Fonte: Revista Bravo! - Fevereiro/2010
"Rose! Jack! Jack! Rose! Rose! Jack!". No filme Titanic (1997), o personagem Jack, interpretado por Leonardo diCaprio, chama por sua amada Rose 51 vezes. Já Rose, vivida por Kate Winslet, pronuncia, grita ou sussurra o nome de seu namorado Jack 78 vezes (curiosamente, nenhuma delas na tórrida cena de amor em que a moça embaça o vidro de um calhambeque). Apesar do diálogo repetitivo e mal escrito, Titanic era até o mês passado o recordista de bilheteria em todos os tempos, com um faturamento de US$1.8 bilhão. Está em cartaz no Brasil o filme que o superou: Avatar, que em fins de janeiro bateu essa marca impressionante. Além do sucesso, Titanic e Avatar têm em comum o diretor James Cameron, feliz maestro dos filmes mais assistidos da história. E também a ruindade dos diálogos. Só que, em lugar de "Jack! Rose! Rose! Jack!", a saga dos índios azuis abusa dos clichês politicamente corretos. Daria para fazer um best-seller de auto-ajuda com eles.
Claro que os espectadores que deixaram mais de US$3 bilhões na bilheteria dos dois filmes não estão loucos. Titanic e Avatar não podem ser julgados apenas pelas falas de seus personagens. As duas produções - cada uma em sua época - proporcionam ao público o melhor do que se convencionou chamar de "cinema-espetáculo". Além da história de amor entre os protagonistas (acho que não é o caso de repetir o nome deles), Titanic enchia os olhos com a reconstituição do navio mais luxuoso de todos os tempos, e com o impressionante realismo das cenas de naufrágio. Já Avatar ressuscita o cinema tridimensional e propõe uma experiência visual única. O crítico de cinema David Denby, da revista "The New Yorker", escreveu que se trata da produção hollywoodiana plasticamente mais bela em todos os tempos.
O adjetivo "hollywoodiano" costuma ser associado a grandes momentos do cinema-espetáculo como Titanic e Avatar, mas fazer uma ligação imediata entre filmes americanos e produções grandiosas é injusto. Fitas de orçamento altíssimo são exceção, e não regra, em qualquer cinematografia. Até porque não são necessariamente um bom negócio. ...E O Vento Levou (1939) foi um tremendo sucesso, mas um ponto fora da curva. Tentou-se repetir o fenômeno várias vezes com superproduções como Cleópatra (1963), A Maior História De Todos Os Tempos (1965) e A Bíblia (1966) - e todas elas levaram milhões de dólares à tumba. Para não falar de O Portal do Paraíso (1980), que praticamente acabou com a carreira de Michael Cimino, considerado um dos quatro grandes talentos do cinema americano dos anos 70 - os outros eram Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Martin Scorsese. Em valores da época, o filme custou US$50 milhões. Faturou apenas US$1,5 milhão.
Executivos de Hollywood tremem ao ouvir o nome de Cimino, e até recentemente tinham o mesmo pavor de Cameron (que, antes de acertar a mão com Titanic, protagonizou fiascos como o terror submarino O Segredo do Abismo, de 1989). No passado, no entanto, os olhos dos executivos brilhavam à menção do nome de Billy Wilder, o maior roteirista de todos os tempos (autor de Crepúsculo dos Deuses, de 1950 e Quanto Mais Quente Melhor, de 1959, entre outros). A mesma indústria capaz de financiar superproduções atraiu para Hollywood alguns dos melhores dramaturgos do mundo, como o austríaco Wilder - e os diálogos afiados se tornaram a marca do cinema americano tanto quanto a grandiosidade. No negócio das imagens, palavras valem milhões. Em 2006, um grupo de produtores pagou US$250 mil por um roteiro que, com poucas locações e bons atores, daria um filme de, no máximo, US$8 milhões. Depois de encantar a crítica no Festival de Sundance, Pequena Miss Sunshine faturou US$40 milhões na bilheteria, cinco para cada dólar investido. Histórias de sucesso como essa são mais comuns do que superproduções que dão certo.
Existe, assim, uma saudável dualidade no cinema americano. De um lado, as produções "para ver" - os filmes caros, grandiosos, que enchem os olhos. De outro lado, os filmes "para ouvir" - aqueles que ganham o jogo pela força dos diálogos. Nas premiações deste ano cada tendência terá um forte representante. De um lado do ringue, o já citado Avatar, que já ganhou o prêmio máximo - melhor drama - do Globo de Ouro, a prévia do Oscar (leia texto na página 64). No outro corner está Amor Sem Escalas, de Jason Reitman, vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no mesmo Globo de Ouro (leia texto a partir da página 60). Sempre que aparece uma superprodução que desafia padrões, como Avatar, ressurgem os comentários segundo os quais o cinema se aproxima dos jogos de computador e negligencia os temas "adultos", desenvolvidos na boa dramaturgia. Bobagem. Filmes "de espetáculo" e filmes "de diálogo" sempre existirão. Numa oposição saudável que gera inovações dos dois lados e traz vitalidade ao cinema.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Eu não tenho certeza, mas eu acho ...



Fui ver o filme de Lula no cinema, afinal. Resisti o quanto pude, mas em nome dos velhos tempos, resolvi ceder e presenciar com meus próprios olhos (que a terra há de comer, pra já entrar no clima de sabedoria popular da Dona Lindu) esta rara peça de “realismo (pseudo)socialista” moderna tupiniquim. Antes de mais nada, antes do filme em si, o que impressiona realmente é a data do lançamento, com o personagem ainda ocupando o palácio do Planalto e já em plena campanha (velada, claro) para eleger sua sucessora. Que a historia de vida de Lula daria um bom filme ninguém duvida, mas ele só poderia ser lançado, em nome do bom senso (ou da vergonha na cara) a partir do dia 01 de janeiro de 2011. Como ficou, nem é um bom filme (no que não fica nada a dever ao livro no qual foi inspirado, que é um lixo, um panfleto enfadonho em forma de calhamaço) e nem é cinema propriamente dito. É apenas uma peça de propaganda desavergonhada na qual, já no início, os produtores têm a cara de pau de colocar uma legenda informando que não se utilizaram de nenhum recurso publico e contaram “apenas” com o apoio dos patrocinadores, para em seguida nos brindar com um desfile de marcas de megacorporações que fazem obras para o governo ou que têm todo o interesse em estabelecer vínculos com o poder público. O Camarada Stalin ficaria orgulhoso com tal nível de dissimulação.

O filme, em si, não chega a ser um lixo, como o tão badalado (não apenas pelo publico, mas pela critica em si, o que muito me surpreendeu na época) “2 Filhos de Francisco”, mas chega perto. Dramalhão xaroposo dos piores, mas com o agravante de ter um viés ideológico bem definido. Parece se preocupar o tempo inteiro em ressaltar que Lula nunca foi de esquerda, que sempre defendeu idéias moderadas e sempre respeitou e até mesmo admirou a classe empresarial, os patrões, como deixa bem explícito na pior (ou melhor, dependendo do ponto de vista) frase do filme, quando ele encerra um discurso concluindo que “afinal, são eles que pagam nossos salários”. Enfim, eu fui ver mas não recomendo. Fala-se que sairá o DVD com uma tiragem monstruosa a preços populares, “pra combater a pirataria”. Mais cara de pau. Chegaria a ser cômico, se não fosse ... Bom, não chega a ser trágico, mas é lamentável. Trágico mesmo seria uma cinebiografia de Fernando Henrique Cardoso, que Deus nos livre de uma coisa destas.

Mas “Lula, o filho do Brasil”, é apenas um gancho que usei para falar de minha relação com o metalúrgico nordestino que chegou à presidência. Eu já acreditei muito em Lula. Muito mesmo. Hoje, sinceramente, não sei. Não sou daqueles que o rejeitam completamente como um traidor. De repente o que ele está fazendo, realmente, é exercitar um dos muitos ensinamentos de Maquiavel, notadamente o que diz “tenha seus amigos por perto e seus inimigos mais perto ainda”, mas defender publicamente José Sarney ao ponto de afirmar que ele não poderia ser tratado como uma pessoa normal porque “tem uma biografia de serviços prestados ao país” é um pouco demais para o meu estômago. Tudo tem que ter um limite, especialmente o Maquiavelismo. Seu governo, no entanto, apesar de estar MUITO, mas MUITO longe do que a gente (os que não tinham “medo de ser feliz”) imaginava que poderia vir a ser, também está longe, muito longe, de ser um desastre. E não apenas por uma “conjuntura internacional favorável”, como apregoou por muito tempo a oposição, já que estamos passando pela maior turbulência econômica desde o crash de 1929 e o Brasil até que está se saindo razoavelmente bem (pelo menos é o que dizem e o que eu sinto no dia-a-dia, saber ao certo não sei, pois não sou nenhum especialista em economia). Há muitos pontos positivos no governo Lula, como a facilitação do acesso ao credito e um notável esforço de distribuição de renda, não apenas através do Bolsa Família, mas principalmente pela gradual porém progressiva recuperação do poder de compra do salário mínimo. O que eu tenho sérias dúvidas é se essas melhorias são realmente sustentáveis, já que não vejo o esforço necessário (e este sim, teria que ser hercúleo, gigantesco, monumental) na melhoria da educação, que é o que definitivamente produziria as bases necessárias para uma mudança estrutural duradoura. Foi por isso que, pela primeira vez em minha vida (e eu comecei a votar justamente em 1989, na primeira eleição presidencial livre depois do fim da ditadura), eu não votei em Lula no primeiro turno de 2006. Preferi Christovam Buarque. Já no segundo turno não tive dúvidas, assim como não terei novamente este ano: numa eventual disputa entre o PT e qualquer representante do PSDB, DEM ou coisa semelhante, votarei evidentemente no PT. Mas meus tempos de comprar souvenirs na lojinha do partido e ostentar com orgulho a estrelinha vermelha no peito, encarando debates acalorados com meus amigos anarquistas (sempre me achei realista demais para ser anarquista, embora me sinta pessoalmente anárquico ao ponto de não ter o menor saco de militar pra valer num partido político) já passaram, definitivamente. Acho que é necessário, no entanto, sinalizar algum tipo de mudança de rumo à esquerda, por isso já estou de olho nos candidatos que se apresentam como alternativa. Uma delas pode ser Marina Silva. O planeta dá sinais evidentes de que o estilo de vida que é sustentado pelo sistema vigente é ecologicamente inviável e vai levar ao esgotamento dos recursos naturais, e os atuais líderes mundiais não parecem ter ainda a disposição necessária para encarar a realidade dos fatos, a tal “verdade inconveniente”. Mas tenho consciência de que eles, nem mesmo Marina, que por sinal assinou vários decretos no mínimo suspeitos enquanto era ministra de Lula, farão nada sem pressão popular. É como falou Roosevelt, o presidente americano, a uma senhora que o interpelou uma vez sobre promessas não cumpridas “Eu quero fazer, minha senhora, mas vocês têm que me forçar a isso”. As outras opções seriam os partidos radicais nanicos de esquerda, mas estes ainda rezam, em grande parte, por aquela velha cartilha dita comunista (ou marxista) mas na verdade soviético/maoísta/trotskista (embora eu goste de Trotsky, os tempos são outros) que eu já considerava ultrapassada desde o inicio de minha formação política – aliás, meu principal entusiasmo com o PT dos primórdios era justamente a idéia de se tentar criar um partido socialista sem os vícios do stalinismo e/ou do maoísmo. Uma opção poderia ser o PSOL, que é (ou pelo menos tenta ser) uma espécie de volta ao PT de origem, um “começar de novo”. Inclusive demorei bastante a me decidir entre Christovam Buarque e Heloisa Helena na eleição passada. Foram decisivos para minha opção final o discurso claro de priorização da educação do primeiro e um encontro ao acaso que eu tive aqui em Aracaju com a segunda, de braços dados com Gilmar Carvalho e João Fontes num evento no qual ela recebia o título de cidadã sergipana (ué, não era ela que reclamava tanto das “más companhias” do ex-companheiro Lula?). Enfim, no final das contas é apenas mais uma eleição, uma mera formalidade nessa farsa que é o que a esquerda chama de “democracia burguesa” (odeio terminologias “batidas”, mas é isso aí). Enquanto imperar no mundo essa brutal desigualdade na distribuição de renda nunca haverá uma democracia de verdade, pois os que detêm o poder econômico sempre terão infinitamente maiores condições de influenciar a opinião pública através, principalmente, do controle dos meios de comunicação. Em todo caso, não custa nada escolher, já que nos é dada esta opção (e é bem melhor do que não ter nem ao menos esta opção, como era no tempo da ditadura). A meu ver ainda está valendo o velho lema: “Socialismo ou barbárie”. De repente já vivemos em plena barbárie e não nos demos conta ainda disso. O luta pelo socialismo é uma continuação natural e necessária de um processo que começou lá atrás, na Revolução Francesa, e que sofreu seu primeiro revés com a ascenção do Bonapartismo, mas que continua seu curso histórico, com avanços e recuos, altos e baixos (Revolução russa, stalinismo). Abaixo, um pouco do que tem sido publicado sobre os prováveis candidatos do PV (partidinho de merda, mas tapemos o nariz e sigamos em frente, pois Marina é – ou parece ser – gente boa) e do PSOL, Plínio de Arruda Sampaio (Heloisa descartou sua candidatura à presidência em nome de uma bem mais viável disputa a uma vaga no senado).

por Adelvan Kenobi

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Plínio de Arruda Sampaio

Fonte: Wikipédia

Plínio Soares de Arruda Sampaio (São Paulo, 26 de julho de 1930) é um ativista político brasileiro, filiado ao PSOL e pré-candidato à Presidência da República. É um dos mais respeitados intelectuais de esquerda católica e também um do mais árduos defensores da Teologia da Libertação entre o laicato. Suas posições fortes em defesa da reforma agrária o tornam muito querido pelos movimentos sociais de trabalhadores sem-terra. Formado em Direito pela USP em 1954, militou na Juventude Universitária Católica, da qual foi presidente, e na Ação Popular, organização de esquerda surgida a partir dos movimentos leigos da Ação Católica Brasileira. Foi promotor público, deputado federal constituinte e atualmente preside a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), além de dirigir o semanário Correio da Cidadania.

Entrada na vida pública

Durante o governo de Carvalho Pinto do Estado de São Paulo, Plínio foi indicado para a subchefia da Casa Civil. Em 1959, um ano após a eleição de Carvalho Pinto, Plínio tornou-se coordenador do Plano de Ação do Governo, função que ocupou até 1962. Ainda no governo Carvalho Pinto, foi secretário dos Negócios Jurídicos, e entre 1961 e 1962 chegou a trabalhar na prefeitura da cidade de São Paulo como secretário do Interior e Justiça.
Em 1962, foi eleito deputado federal pelo Partido Democrata Cristão e tornou-se membro da Comissão de Economia, da Comissão de Política Agrícola e da Comissão de Legislação Social. Principal liderança da ala esquerda do PDC, foi relator do projeto de reforma agrária, que integrava as reformas de base do governo João Goulart. Criou a Comissão Especial de Reforma Agrária e propôs um modelo de reforma que despertou a indignação dos grandes latifundiários do Brasil.
Após o golpe de 1964 foi um dos 100 primeiros brasileiros a terem seus direitos políticos cassados por dez anos, pelo Ato Institucional nº 1, nos primeiros dez dias do regime.

Exílio e entrada no MDB

Exilou-se no Chile onde morou por seis anos, trabalhando como funcionário da FAO. Tranferiu-se para Estados Unidos da América em 1970, onde cursou o mestrado em Economia Agrícola em Cornell. De volta ao Brasil em 1976, foi professor da Fundação Getúlio Vargas, fundou o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e engajou-se na campanha pela abertura do regime militar e pela anistia dos condenados políticos. Ao lado de outros intelectuais do Cedec e do Cebrap, idealizou um partido à esquerda do MDB e, para isso, ao lado de Almino Affonso, Francisco Weffort e Fernando Henrique Cardoso, articulou-se com líderes emedebistas como Marcos Freire e Jarbas Vasconcelos. Paralelamente, Plínio, Weffort e Almino lançaram a candidatura de Fernando Henrique para o Senado pela sublegenda do MDB. O acordo entre eles era de construir um novo partido de esquerda, se Fernando Henrique ganhasse mais de um milhão de votos.
Na concepção de Plínio, a nova agremiação seria um partido democrático e de massas com base popular e programa socialista, organizado em núcleos de base. Porém, a idéia de criar um novo partido foi abortada pela mudança de planos de Fernando Henrique, que, após se eleger suplente de senador pelo MDB em 1978, declarou como prioridade o fortalecimento da legenda, apesar do compromisso firmado com Plínio, Almino e Weffort de construir um novo partido. Fernando Henrique chegou a receber 1.600.000 votos, derrotando o candidato da Arena Cláudio Lembo, assim conquistando a suplência do senador eleito Franco Montoro. Embora tivesse combinado com Plínio de construir um partido socialista, caso atingisse a marca do milhão de votos, o que demonstraria viabilidade eleitoral de candidatos de esquerda, Fernando Henrique alegou que, se cumprisse o combinado, estaria encorajando o divisionismo. Plínio, perplexo com a inversão de prioridades do colega, rompeu com o MDB.

A fundação e trajetória no PT (1980-2005)

Decepcionados com a atitude de Fernando Henrique, Plínio e Weffort entraram para o Partido dos Trabalhadores em 1980, data da fundação dessa agremiação de orientação socialista. Plínio foi o autor do estatuto do partido e um dos idealizadores do seus núcleos de base. Em 1982, candidatou-se a deputado federal por São Paulo, tornando-se primeiro suplente. Posteriormente viria a ocupar o cargo, quando o deputado Eduardo Suplicy se afastou do parlamento para disputar a prefeitura de São Paulo.
Em 1986, foi eleito deputado federal constituinte, com 63.899 votos, tendo sido o segundo mais votado do PT (depois de Luiz Inácio Lula da Silva) e o 27º mais votado de São Paulo. Ficou nacionalmente conhecido ao propor e defender um modelo constitucional de reforma agrária, que visava acabar com os latifúndios; além disso, tornou-se o único deputado petista a presidir uma Comissão de Trabalho.
Durante a Assembléia Nacional Constituinte, foi membro da Comissão de Redação, da Comissão de Sistematização, da Comissão da Organização do Estado e da Subcomissão de Municípios e Regiões, que presidiu.[2] Fez parte do bloco suprapartidário de articulação da Igreja Católica, como membro da Comissão de Acompanhamento da CNBB na Constituinte. Foi ainda vice-líder da bancada do PT em 1987, e substituiu Lula na liderança do partido em 1988. No mesmo ano disputa as prévias internas no PT para sair candidato a prefeitura de São Paulo sendo derrotado por Luiza Erundina. Exerceu a função de vice - líder petista até 1990.
Candidatou-se a governador do Estado de São Paulo, em 1990, sendo derrotado pelo secretário de Segurança Pública Luiz Antônio Fleury Filho, candidato do PMDB ostensivamente apoiado pelo governador Orestes Quércia.

A adesão ao PSOL e a crítica ao programa democrático-popular (2005)

Após desligar-se do Partido dos Trabalhadores, do qual foi um dos fundadores e histórico dirigente, por não concordar com seu rumo político, ingressou no Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em 2006, como candidato do PSOL a governador do Estado de São Paulo, chegou a dizer, durante debate que precedeu o primeiro turno das eleições, que o programa político do PT era idêntico ao do PSDB.
Por defender a luta pelo socialismo, diverge do programa democrático-popular da direção majoritária do PSOL, representada por Heloisa Helena e pelas correntes Movimento de Esquerda Socialista e Ação Popular Socialista. Acha que eles repetem os erros do PT. Em contraposição, colabora para a construção de um campo revolucionário dentro do partido, com as correntes Coletivo Socialismo e Liberdade, Coletivo Socialista Rosa do Povo e centenas de militantes socialistas como Roberto Leher, Bruno Meirinho, Plínio de Arruda Sampaio Filho, Rosa Marques, Marcelo Badaró, Paulo Rios, Paulo Gouveia, Baltazar Sena, Júnia Golveia, Jorginho Martins, Ricardo Antunes, Paulo Pasin, Leninha e Raul Marcelo.

Pré-Candidato a Presidência da República (2009)

Durante o II Congresso do PSOL, o deputado estadual Raul Marcelo lançou a pré-candidatura de Plínio à presidência da República, com o propósito de construir um programa que sirva para lutar contra os efeitos da crise econômica sobre os trabalhadores e pela unidade da esquerda socialista contra o capital.
“Este consumo desenfreado está chegando ao seu limite. Hoje o PIB americano é quase equivalente ao montante da dívida das famílias americanas. O impacto desta crise é também estrutural e sentiremos seus resultados por muito tempo. Não existem saídas keynesianas para este processo. Há uma necessidade de substituição deste metabolismo perverso pelo socialismo”, afirmou Raul Marcelo.
A tese defendeu o aprofundamento das relações com os países da América Latina para a construção de saídas coletivas, lembrando que o Brasil foi o 2º país mais impactado na redução do PIB e perdeu 1 milhão de postos de trabalho, sendo 800 mil com carteira assinada. “Há setores da sociedade, no entanto, que estão em contradição com aqueles que apóiam o regime e o aprofundamento da crise. São os camponeses, os sem teto, sem terra, a juventude. É preciso reivindicar a agenda da direção do partido para estar ao lado desses setores e construir um programa que consiga amalgamá-los”, disse.
Raul Marcelo também defendeu um partido de militantes nucleados, com autonomia de classe, que não receba recurso dos patrões, com uma política clara de alianças de classe com PCB e PSTU e não com o PV. “E não podemos terminar este Congresso sem uma candidatura à Presidência da República. Respeitamos a posição da companheira Heloísa Helena, mas diante da falta de uma candidatura, um companheiro que viveu a ditadura Vargas e que hoje é referência na luta pela reforma agrária no país colocou seu nome à disposição do partido, porque o PSOL não pode abrir mão desta disputa. E este companheiro é Plínio de Arruda Sampaio”, anunciou.
Dias depois foi apresentado um manifesto com centenas de assinaturas em apoio a pré-candidatura de Plínio de Arruda Sampaio. O conteúdo na íntegra pode ser encontrado no site http://pliniopresidente.com. Até o momento, entre milhares de pessoas que já aderiram à pré-candidatura, há Fábio Konder Comparatto, José Arbex Jr, Dom Cappio, Dom Tomás Balduíno, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Virgínia Fontes, Vito Letízia, Rosa Marques, Marcelo Freixo, Gilberto Maringoni, Chico de Oliveira, Ricardo Antunes, entre outras pessoas com histórica tragetória na esquerda brasileira. E, inclusive tem apoio internacional, como István Mészáros e Françóis Chesnais.


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Sob o título de "O que esperar de 2010", Plínio Arruda Sampaio escreve artigo no Le Monde Diplomatique denunciando o embate Dilma vs. Serra como um confronto "técnico" entre duas versões do mesmo projeto, que ameaça os interesses nacionais.

Diz ele, a certa altura:

"A questão da terra encerrará outra mistificação. O discurso do establishment, celebrando as grandezas do agronegócio, tratará (com certeza e sem sutileza) de desqualificar a distribuição de terras e os movimentos que a reivindicam. Não faltará intelectual conservador para justificar tamanho absurdo das propriedades que estão se formando com industriosos argumentos teóricos. Todos os candidatos da direita deixarão entrever que a reforma agrária é uma bandeira ultrapassada e nenhum deles alertará a população para os enormes prejuízos da antirreforma agrária, violentamente concentradora que o agronegócio está realizando a toque de caixa, com o beneplácito do governo Lula. A medida provisória 458, recentemente convertida em lei, entrega nada menos que uma Alemanha e uma França, somadas (67 milhões de hectares de terra) aos grileiros de terras públicas, constitucionalmente destinadas ao assentamento de famílias rurais sem-terra.
Convém ter claro, porém, que não é o grileiro o beneficiário último desta lei. O grileiro será apenas um intermediário. Sua função será a de vender -- diretamente ou por formas transversas -- as terras recém-legalizadas a empresas que assegurarão o controle da economia exportadora de soja, cana-de-açúcar (para fabricação do etanol), carne bovina e madeira-de-lei vindas da Amazônia. A soja alimentará o gado dos países desenvolvidos; o etanol, misturado à gasolina permitirá que a indústria automobilística do primeiro mundo inunde as cidades com automóveis; a carne bovina satisfará o paladar refinado de europeus e norte-americanos e a celulose responderá pela produção de papel higiênico e guardanapos de papel de alta qualidade, exigidos pelos consumidores do Primeiro Mundo.
Nenhum dos candidatos do establishment burguês, embora se intitulem de centro e centro-esquerda, ousará denunciar que o ataque do agronegócio não se dirige propriamente às terras (à propriedade do solo agrícola), mas ao próprio território brasileiro, a fim de expulsar dele a população rural e de reduzir a soberania brasileira sobre a operação de uma gigantesca agricultura exportadora.
Ninguém se proporá a explicar à população que esse avanço sobre terras que a Constituição reservou para o assentamento da população rural sem-terra, cerca de seis milhões de famílias, responde à lógica interna de uma operação de dimensão planetária: a montagem de uma economia agrícola global, que estabelece o monopólio da produção de alimentos sob o comando de meia dezena de megatransnacionais como Cargill, Monsanto, Syngenta, Dreiffus, Nestlé. As escalas de produção exigidas por esse novo modo são superiores às maiores unidades atuais e, portanto, exigem uma concentração de terra ainda maior do que a existente."


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03/02/2010 – Entrevista à Revista Carta Capital

Fonte: Carta Capital

por Mino Carta

Pré-candidato à Presidência da República pelo PSOL, Plínio de Arruda Sampaio, 79 anos, é intelectual católico próximo de uma corrente que na França produziu figuras como François Mauriac. Iniciou-se na política ao lado do governador paulista Carvalho Pinto, foi deputado federal pelo PDC e despertou as iras dos latifundiários ao criar durante o governo de João Goulart a Comissão Especial da Reforma Agrária. Com o golpe de 1964 foi um dos primeiros cem brasileiros que sofreram a cassação dos direitos políticos. Por seis anos viveu exilado no Chile. De volta, lecionou na FGV e militou no MDB. Em 1980, passou-se para o PT e foi autor do estatuto do partido. Voltou à Câmara Federal em 1986. Desde 2005 liderança do PSOL, aqui expõe suas decepções, esperanças e aspirações.

CartaCapital: É o senhor o candidato do PSOL à Presidência?
Plínio de Arruda Sampaio: Há uma certa disputa de correntes internas que se resolve em março. Eu acho que nós precisamos ter uma candidatura alternativa com capacidade de propor o outro lado, caso contrário será um lado só. A verdade é que entre o Serra e a Dilma há diferenças de nuances aqui, nuances ali, mas não tem uma diferença substancial. Ninguém propõe a solução necessária. Aliás, eu noto o seguinte, o domínio da burguesia é uma hegemonia completa, então o que eles não querem é que se levantem as soluções reais. Discutem-se os problemas através de um artifício: o País amadureceu, as ideologias estão superadas e vamos para as soluções técnicas. Por exemplo: como explorar o pré-sal? Com a Petrobras ou por meio de uma empresa nova? Este não é o problema e esta solução é acidental.

CC: Como o senhor interpreta então a clara resistência da mídia em geral, que é excelente porta-voz da burguesia nativa, ao nome de Dilma Rousseff e, sobretudo, de Lula?
PAS: A mesma coisa deu-se com Getúlio. Ele na verdade defendeu os fazendeiros de café como ninguém. Eu que descendo de fazendeiros de café sei muito bem o que acontecia lá em casa, no entanto o Getúlio com aqueles senhores não tinha vez. Porque Lula tem um vício de origem. Embora, a meu ver, ele tenha passado para o outro lado, totalmente, ele sempre é um cara do lado de lá.

CC: Ódio de classe no caso do Lula. Mas Dilma não é uma ex-metalúrgica.
PAS: A Dilma pode ser a Dilma, pode ser o Zequinha da esquina, pode ser um poste, a Dilma é o Lula.

CC: E Serra não é Fernando Henrique?
PAS: O Serra é melhor que o Fernando Henrique. Mas é o Fernando Henrique. Ele é mais nacionalista que o Fernando Henrique. Eu conheço bem o Serra, nós estudamos juntos em Cornell, fomos companheiros, trabalhamos juntos. Eu o conheço desde menino. Serra é mais decidido que Fernando, que só pensa nele mesmo. Há horas em que Serra não pensa só nele.

CC: A popularidade de Lula não decorre da identificação do povo com um igual que chegou à Presidência?
PAS: Esse é um componente, mas tem outros. O brasileiro diz para si mesmo: não tem jeito, é esse aí mesmo, esse é nosso. Mais um componente é a cultura do favor. Esta é uma sociedade que teve 300 anos de escravidão, quando havia duas figuras econômicas, um senhor de terras e um escravo. No meio ficava o bastardo, um mulato liberto, um branco pobre. Não tinham lugar na economia. Do que eles viviam? Do favor do senhor de terras. Isso está até hoje, a cultura do favor. Lula, ele dá 100 mil reais, ou 200 mil reais, não sei quanto, para 50 milhões de pessoas. O quadro brasileiro é o seguinte: há quem está melhor do que estava, 20 milhões de pessoas que estão consumindo. A minha empregada está comprando um carro zero. Objetivamente, a inflação está segura, ainda é alta para alguns padrões, mas para nós aqui é uma maravilha. Todo mundo gosta de ver o Lula ao lado do Obama. Então na superfície da sociedade a melhora aconteceu. Embaixo é que é o problema, as grandes tendências que estão se acumulando são terríveis. A educação está um horror. A mesma empregada que compra um carro tem dois filhos, os dois meninos estão formados no grupo escolar, não sabem ler nem escrever. E o País se endivida de uma maneira brutal. Amanhã dá um repeteco lá fora e isso aqui vai ser um desastre. Isto é o que tem de ser levantado na campanha, o povo precisa tomar consciência da situação e conhecer as soluções corretas.

CC: Quais são as soluções corretas?
PAS: As soluções concretas dos problemas concretos e em um discurso que aponte para a dinâmica dessa solução concreta. Vou dar um exemplo: reforma agrária, o que pode ser feito agora? O que pode ser feito agora é crédito. Em todo caso, o encaminhamento de uma solução que aponte para um desequilíbrio, uma desestabilização, uma dinâmica de transformação. O MST e a CNBB estão propondo o seguinte: as propriedades com mais de 1.000 hectares serão desapropriáveis, não quer dizer desapropriadas, o que permitirá muito maior flexibilidade. Qual é a solução para o programa educacional? Pagar melhor o professor, mais verba etc.

CC: Mas onde achar a verba?
PAS: Tudo bem, que tem, tem, se não pagar a dívida brutal, essa dívida interna imensa, tem dinheiro adoiado. Mas não é isso, isso segura. O que não segura? Uma ideia. Se nós queremos democratizar este país, a educação tem de ser pública. Trata-se de transformar a educação em uma atividade fora do comércio.

CC: Eliminar a ideia da escola privada?
PAS: Não existe escola comércio. Escola ideológica, escola católica, tudo bem. Faz uma comunidade, vai no fundo de imposto para a educação e diz olha, a minha escola é tal. Só que a verba que ele vai tirar ali é idêntica à verba que uma outra escola marxista, uma outra escola do vudu, da umbanda tirará no Piauí porque aí o menino do Piauí tem o mesmo microscópio.

CC: Isso tudo não é um tanto utópico?
PAS: É utópico, mas na minha campanha eu me empenharia em apontar o outro lado. Não em campanha programática, ideo-lógica, propagandista, não falaria em socialismo, em produção de mercadoria, mas colocaria soluções mais fortes.

CC: Como se enfrenta o desequilíbrio social provocado por uma distribuição de renda muito ruim?
PAS: Eu acho que a primeira medida é justamente a reforma agrária, precisamos colocar 6 milhões de famílias no campo, na terra. Precisamos de uma reforma agrária de verdade. Aliás, eu fiz um projeto para o Lula, um projeto modesto. Para ter uma ideia, no tempo do Sarney o Zé Gomes fez um primeiro plano para assentar 1,4 milhão de famílias em quatro anos, eu fiz para 1 milhão porque a correlação de forças não permite. O plano não passou, cortaram pela metade. E não cumpriram nem a metade. Por que a reforma agrária é a primeira medida? Porque a desigualdade começa no campo. No segundo andar fica a educação, depois vem o resto. Se você resolver educação e terra, que foi o que fez a China...

CC: Mas nós não temos uma elite muito resistente?
PAS: A última vez que eu vi o empresariado foi na festa de CartaCapital. Aquele dia eu achei uma graça o discurso do Lula. Ele dizia “Eu dei tudo para vocês e vocês são contra mim?” Florestan Fernandes diz o seguinte: “Essa é uma burguesia lúcida, consciente, que montou um projeto de contrarrevolução permanente para evitar qualquer réstia de poder do povo”. Essa é uma verdade, ela é capaz. Por outro lado é muito limitada porque aceita viver de comissões. Ela é uma burguesiasinha de acomodação. Então é curioso porque por um lado ela é feroz e competentíssima, por outro lado ela é uma burguesia de negócios. Ela está aqui, o País oferece um monte de negócios e ela é uma espécie de corretor do capital estrangeiro, ela presta o serviço e aí recebe um caraminguá que eu acho o fim do mundo.

CC: O PSOL nasceu como uma dissidência do PT. O que determinou a ruptura?
PAS: O PT era um projeto socialista, era um projeto de transgressão da ordem estabelecida e foi paulatinamente se tornando um partido da ordem. Quem estava lá dentro e não era da ordem era da desordem, falou “não, aqui tem um limite”. Eu segurei o que pude porque acho que o primeiro partido que o povo criou foi o PT, um partido que merecia o maior respeito. Em 300 anos de história, o PT foi o primeiro partido que não se fez no tapete. Segurei o que pude, mas chegou num ponto em que permanecer era impossível. Quando Lula começou a entregar a nossa moeda, o Banco Central rendeu-se à doutrina neoliberal, a reforma agrária não foi executada. Falei: bom, não tem mais o que fazer aqui dentro, vou tentar fazer em outro lugar. Essa é a origem do PSOL, o PSOL é uma tentativa de afastar-se da estratégia atual do PT. Nos seus primeiros 10 anos de vida, a estratégia do PT estava muito correta, respondia a uma realidade anterior à queda da União Soviética. Agora o caminho tem de ser outro, de certo modo mais radical, porque você tem menos intermediação. Naquele tempo havia uma intermediação social-democrata, hoje o conflito foi reduzido, mas ao mesmo tempo a situação não propicia uma correlação de forças favorável a mudanças profundas.

CC: O senhor acha que o governo de Lula foi melhor que o de FHC, ou pior?
PAS: Ah, de longe, muito melhor. É que o talento de Lula é maior que o de Fernando, Lula é um homem talentosíssimo. Ele é de certo modo, pegue a palavra com cuidado, ele é de certo modo um impostor, mas um impostor que acredita na própria impostura. É um demagogo, quando Lula chora, chora mesmo. Não é Jânio Quadros, que chorava lágrimas de crocodilo. Ele não, aquela explosão de choro quando o Brasil foi escolhido para a Copa... Imagine se o Fernando Henrique seria capaz de chorar. Aquilo tem um efeito popular enorme, porque é autêntico, porque é verdadeiro. E o Lula é um homem mais humano, sofreu mais, conhece mais.

CC: O que visa o PSOL ao concorrer na eleição para a Presidência?
PAS: A ideia básica é a seguinte: a nossa é uma candidatura realista, vai discutir os problemas reais e as soluções reais, mas vai mostrar que essas soluções ainda são um começo.

CC: A sua aposta numa votação num primeiro turno?
PAS: O quadro não está montado, mas é coisa pequena, na melhor das hipóteses uns 3% a 5%, não vai muito além disso.


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“O Psol é um partido socialista e a Marina não é socialista”
Entrevista de Plínio de Arruda Sampaio à revista Caros Amigos
Por Hamilton Octavio de Souza e Tatiana Merlino
Fonte: Caros Amigos

A partir deste mês, a Caros Amigos inicia um debate sobre o que está em jogo nas eleições presidenciais de 2010. Entrevistas, análises e artigos discutirão as propostas e programas das candidaturas do campo democrático e popular. A primeira entrevista da série “Eleições 2010” é com o advogado e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Plínio Arruda Sampaio, pré-candidato à presidência da República pelo Psol.
O partido está dividido em relação à candidatura ao principal posto do Executivo. Parte do Psol defende a candidatura própria e apoia o nome de Plínio. Outra é favorável a uma aliança com o PV em torno da candidatura da senadora Marina Silva (PV-AC). A aproximação do PSOL com o PV aconteceu porque a ex-senadora Heloísa Helena (PSOL-AL) descartou a possibilidade de concorrer às eleições presidenciais para tentar voltar ao Senado.

Caros Amigos - Qual a importância do Psol se lançar com uma candidatura própria?
Plínio Arruda Sampaio - A importância está estreitamente relacionada com o objetivo da burguesia em relação a esse processo eleitoral. Há um script montado para essa campanha, para fazê-la de uma maneira suave, morna, fazer da discussão apenas uma coisa técnica e fugir dos verdadeiros problemas e das verdadeiras soluções. Há um processo de distorção do processo eleitoral para que ele não debata nada. E é fundamental desfazer essa farsa, é fundamental que exista uma voz capaz de dizer: “olha, isto aí foge da realidade, não é uma visão real do que está acontecendo no Brasil”. Qual é a dificuldade e a necessidade disso? É que toda a realidade social tem dois planos. Um plano é o da superfície dos eventos, onde estão acontecendo as coisas. E há um plano embaixo, onde estão os processos, as tendências. Esse não se vê sem instrumentos de análise. Em cima, na superfície, as coisas melhoraram para o homem simples do povo porque o Lula é menos perverso do que o Fernando Henrique, ele tira menos dos pobres. E porque a conjuntura externa favorece a entrada de capitais aqui. Então, como há uma entrada enorme de capitais, pode se remunerar a burguesia com tudo que ela quer, e sobrar umas migalhas para soltar para o povo. As Casas Bahia estão vendendo, tem lan house em tudo quanto é lugar da periferia, o pobre está começando a ter automóvel porque há uma produção brutal da indústria automobilística e os usados caem na mão dos mais pobres por um preço razoável. Mas o ritmo da melhoria é tão lento que não sei quando vamos deixar de ter pobre na rua. E, dados os processos que acontecem embaixo, provavelmente essa melhoria acaba logo adiante. O primeiro problema econômico que tiver, essa melhoria vai para o buraco.
O que está acontecendo embaixo é grave, porque o preço dessa aparente abonança superficial é a entrega do país, o aprofundamento de processos gravíssimos, como a educação, que está sucateada, a escola que não ensina, a saúde está uma desgraça. O quadro social está ficando impossível. Há zonas do Rio de Janeiro em que não há mais soberania do Estado brasileiro, é o bandido que manda lá. Na periferia daqui de São Paulo é a mesma coisa. Há um processo perverso embaixo, que afeta a moral do povo, essa ideia de que não tem solução. É preciso que isso venha à tona. A campanha é exatamente para isso, para denunciar essa farsa e propor soluções reais. Essa é uma campanha socialista na medida em que aponta as soluções reais, com um programa anti-capitalista. São questões que geram indagações sobre a viabilidade do capitalismo e colocam concretamente a questão do socialismo.

E quais seriam as consequências para o partido caso o Psol apoiasse a Marina Silva?

Seria a negação do Psol, porque esse é um partido socialista e a Marina não é socialista. O PV é um partido do governo. A Marina cria uma dificuldade enorme de palanque para a nossa gente. Como é que você sobe num palanque junto com um cidadão que apoia um governo que nós combatemos dia e noite? O problema da Marina é o seguinte: ela levantou uma questão muito importante, tornou-se um símbolo disso, mas ela perdeu o timing da demissão. O político precisa saber assumir um cargo e se demitir desse cargo. Ela demorou demais e teve que engolir coisas que não são aceitáveis: ela assinou o decreto dos transgênicos, assinou o decreto que libera as florestas, ela foi contra o Dom Cappio, ela apoia a transposição do São Francisco. A contrariedade à transposição do rio São Francisco é ponto do nosso programa. Como é que nós podemos ter uma candidata que tem pontos contrários ao nosso programa? Por isso há uma reação muito forte na base do partido contra a candidatura Marina. E nessas alturas, dificilmente ela passará.

E por que o senhor é o nome ideal para candidato do partido?

Não sou eu quem acha, acharam. Vários grupos vieram me procurar, sobretudo por algumas características: eu tenho uma linha de coerência há muito tempo sobre essas coisas todas. Segundo, eu tenho uma possibilidade de unidade da esquerda muito grande porque tenho um diálogo muito bom com as outras forças socialistas. Aí eu fui procurado por pessoas do Psol e autorizei a usar o meu nome. Eu tenho uma história em todos esses campos, como na reforma agrária. Eu posso, tenho condições objetivas para fazer essa campanha de denúncia da farsa e de proposição do avanço. É uma campanha para o futuro. Não é uma campanha saudosista nem moralista. É uma campanha ideológica no sentido bom da palavra, de que ela se funda em valores do socialismo, mas é concreta para colocar os problemas e as soluções de hoje. Por exemplo, o nosso programa diz “reforma agrária anti-latifundiária”. É uma formulação genérica. O que eu penso que deveríamos fazer na nossa campanha é pegar essa formulação genérica e ir falar com o MST. “Como é que vocês estão vendo a questão agrária, e qual é a solução que vocês vêm?”. São várias, tem que melhorar o crédito, aumentar o programa de compras antecipadas, melhorar assistência técnica e dar uma forte radicalizada, o movimento social, não nós. O MST junto com a CNBB e vários movimentos do campo estão fazendo uma campanha para que ninguém possa ter mais do que 1500 hectares de terra no Brasil. Isso é revolucionário, mas não tem nada de socialista, isso é capitalismo. Só que é anti-capitalista no sentido de que o capitalismo não suporta isso. Esse é o tipo de trabalho que temos que fazer para apresentar o programa do partido.

Como tem sido o apoio interno dentro do Psol à sua pré-candidatura?

O Psol tem umas três correntes majoritárias que são muito fortes e uma série de outras correntes pequenas. As menores praticamente estão todas comigo, e as maiores estão divididas. As cúpulas favorecem uma candidatura mais ampla e as bases querem uma candidatura mais nítida. Então, nesse momento, o grande problema é discutir qual é a tática. Acho até que eles tem certa razão, sem dúvida o partido precisa eleger deputados para que o povo tenha uma voz no Congresso e para ter um mínimo de representação institucional necessária para existir. É legítima a preocupação, mas é equivocada no seguinte sentido: este é um valor, mas há outro valor, que é a imagem do partido. Que é a esperança que o partido traz. Se ele se coliga com figuras que o povo está rejeitando, vão perguntar: “mas então, que partido é esse?”. Eu acho que esse é o primeiro equívoco. O segundo é: esta ideia de que uma campanha mais nítida não traz votos é equivocada. Você pode ter uma campanha nítida e eleger representantes, e essa é uma das minhas preocupações. Eu organizarei a a campanha não só para dar esse recado maior, mais amplo, mas também para favorecer a eleição de deputados, mas sem abrir mão da nitidez da imagem do partido, da nitidez do programa.

Se o Psol se diluir agora não haverá nenhuma força socialista na disputa?

Nada, além do que isso provocará uma dispersão da esquerda e aí três candidatinhos com muito pouco voto não resolvem nada.

Quais seriam as alianças que estariam dentro desse campo e que permitiriam uma disputa sem essa perda de imagem?

Esse é um ponto a favor da minha pré candidatura. É a unidade das esquerdas. Se eu for candidato, é quase certo que marcharemos unidos os três, Psol, PCB e PSTU. Eles já lançaram candidatos, mas isso é normal e também não é uma coisa final. Uma vez acertada a minha candidatura, vamos fazer a unidade da esquerda. Se dirá que os três são fracos, mas dispersos são mais fracos, e juntos têm uma certa sinergia. E depois tem os movimentos populares, que também estão divididos. A divisão é um traço da época, que é de incerteza muito forte. Todo mundo está inseguro, o pobre, a classe média e o rico. Na era de incerteza é normal que um grupo vá para cá e o outro vá para lá...É normal que MST, CPT, MAB, MPA estejam divididos. Mas eu tenho a impressão que se tivermos uma candidatura unitária da esquerda, no primeiro turno esse grupo estará fechado conosco. No segundo turno, provavelmente tomarão posições eventualmente distintas. Isso se não formos para o segundo turno, o que é bem provável.

O discurso do PT dessa ampla frente que está no governo é o da luta contra o retrocesso, representado pelo PSDB, pelo DEM, o grupo que já esteve no governo e já demonstrou ser pior do que esse. Como entrar no contraponto desse discurso, que é muito forte?

É o discurso do mau menor, que é um discurso circular. Você não vai adiante de jeito nenhum com esse discurso, apenas reduz a perda, coisa que também tem um fundamento sociológico profundo. Toda vez que uma nação sofre um golpe muito grande, para a geração seguinte é terrível. Na primeira guerra na França, a geração que se seguiu não tinha filhos. Ela se fechou, não procriava de medo do filho ir para a guerra. A geração espanhola que viveu a guerra da Espanha, enquanto o Franco não morria, morria de medo, não fazia nada. É preciso apontar um futuro, trazer ânimo. Por isso que a campanha nítida é importante. Ela é uma campanha que pode ser feita com vistas a uma afirmação muito forte de coragem, coerência e de apontar um futuro mesmo, dizer: “não fiquem com essa coisinha de reduzir o prejuízo. Pensa grande, vai para a frente”. É uma campanha que pode atingir muito a juventude, pela sua própria idade, configuração, ela vê o futuro. Essa é a estratégia que eu pretendo usar se for candidato.

E quais seriam as principais diferenças da política programática do Psol com uma candidatura única e do Psol apoiando a Marina?

Como é que nós vamos falar no transgênico, como é que vamos falar na transposição? Ela assinou tudo. Tudo que nós contestamos ela assinou. Então é uma dificuldade enorme e por isso que a base do partido está dizendo “não, isso não é possível”. Somos um partido socialista. A base do partido quer a afirmação do nosso projeto. E essa seria uma campanha de um outro projeto, que não é o nosso.

Como o senhor avalia o Psol hoje, depois de sete anos de existência?

O Psol é uma força. Há no país uma porcentagem relativamente pequena de pessoas que não aceitam o que está acontecendo, com valores distintos, mas de maneira geral, com valores sociais, coletivos, visão de nação, de coesão nacional. Em várias camadas sociais. Esse pessoal é naturalmente Psol. Porque os outros dois partidos à esquerda tem uma penetração, mas uma forma de atuar muito mais estrita, de modo que caminham mais lentamente. O Psol é um pouco o desaguadouro, naturalmente. Mas o Psol precisa –e essa campanha é importantíssima para isso – nuclear e organizar esses setores dispersos para começar uma caminhada. Ninguém tem grandes ilusões de que nós temos condições de muito sucesso a curto prazo. Isso é uma ilusão. A derrota sofrida pelo povo foi imensa. Nós estamos juntando os cacos para recomeçar.

Um apoio à candidatura da Marina, que está num partido que não é de esquerda não seria uma derrota para um partido que se afirma socialista?

É isso que eu estou dizendo para o pessoal. Isso não é uma avanço, é uma acomodação. E o partido socialista não se acomoda. A característica do socialista é a não acomodação a qualquer coisa.

É pegar o ônibus errado...

Exatamente, vai para outro bairro. A ideia é essa, fundamentalmente. Chegar, ouvir os movimentos populares, fazer um programa sólido, é um programa ainda com base na sociedade de produção de mercadorias, porém esticando essa realidade e criando uma dinâmica de transformação social.

Qual é o seu calendário para os próximos meses?

Eu vou correr o país, é uma pré candidatura. O país todo está me chamando para fazer reuniões, pequenos núcleos que nós temos. Segundo, estou montando um forte esquema de internet porque nessa campanha a Internet vai dar um grande passo.

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Marina Silva

A Verde
por Daniela Pinheiro
Fonte: Revista Piauí

Na manhã de um domingo de muito calor, um Range Rover blindado se dirigia à Zona Oeste de São Paulo, para a festa de comemoração do aniversário do parque da Água Branca, na qual seria servido um café da manhã preparado com produtos orgânicos. Passava das dez e a dona do carro, a grã-fina Ana Paula Junqueira - cujo marido, um milionário sueco, diz ser dono de uma área na Amazônia equivalente a 200 mil campos de futebol -, conversava com sua carona, a senadora Marina Silva, candidata à Presidência da República pelo Partido Verde.

"Marina, você vai passar por Londres depois de Copenhague?", perguntou Ana Paula, falando da conferência internacional sobre o clima. A senadora respondeu que deveria ir a Londres e Paris, onde o professor José Eli da Veiga, da Universidade de São Paulo, tentava organizar encontros com eleitores brasileiros. "É que eu queria saber se você gostaria de se encontrar com o Gordon Brown", disse a socialite. "Ele é muito amigo do meu marido, seria muito fácil arranjar isso aí."

Antes que a senadora pudesse responder, a outra carona, Patrícia Penna, mulher do presidente do PV José Luiz Penna, começou a falar da Semana de Moda do Design Sustentável, evento que ela inventou e que o marido sustentou, inclusive propondo um projeto de lei, na Câmara de Vereadores, instituindo o Dia do Design Sustentável.

"Marina, seria uma honra muito grande você aparecer lá", ela disse. "Vai ter muita gente ligada ao desenvolvimento sustentável, acho que seria uma oportunidade incrível." Ensanduichada entre as duas mulheres, a senadora olhava impassível para a frente. Ainda que não tivesse obtido resposta, Patrícia Penna emendou outro pedido. Queria que Ana Paula Junqueira convencesse a estilista Stella McCartney, sua amiga, a participar da Semana Sustentável no próximo ano. "Ela é vegetariana, sempre trabalhou com material sustentável", argumentou. "E estou vendo o Al Gore também. Vocês acreditam que ele cobra 200 mil dólares?" Marina Silva continuava imperturbável.

Desde que havia se declarado candidata ao Planalto, em agosto, sua agenda de compromissos quadruplicara. Além do trabalho no Senado, que a obrigava a passar no mínimo três dias em Brasília, o resto da semana era dedicado a viagens pelo Brasil, participando de almoços, jantares, palestras, conferências, mesas-redondas e entrevistas a estações de rádio e televisão.

Segundo as pesquisas eleitorais, Marina Silva entrou no páreo com 12% das intenções de voto, o que a colocava em um possível terceiro lugar. No começo de dezembro, caíra para 6%, com uma surpreendente rejeição: 40% dos eleitores diziam não votar nela "de jeito nenhum". Ainda assim, sua candidatura continuava a produzir uma aglutinação exótica de grupos de interesses distintos.

À sua volta, passaram a orbitar os até então desconhecidos caciques do PV, os ricos com consciência ecológica, os desgarrados do PT e os radicais anônimos do Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, de olho na vaga de vice. Se as visitas de pastores evangélicos ao seu gabinete no Senado eram usuais, elas se tornaram uma romaria. O assédio dos jornalistas estrangeiros explodiu: em uma semana, ela recebeu oito pedidos de entrevistas de órgãos de imprensa internacionais.

Naquela manhã, Marina cumpria seu nono compromisso desde que chegara a São Paulo, na antevéspera. Teria ainda outros dois até o final do dia. No parque da Água Branca, uma turba de pessoas de camiseta e sandálias de dedo beliscava biscoitinhos de farinha integral, tomava café de grãos orgânicos, provava castanhas, granolas e afins quando ela passou reto pela mesa e foi cercada por desconhecidos que a abraçavam e tiravam fotos no celular.

"Senadora, estamos com você! Vamos mudar o Brasil, você é única!", disse uma senhora de chapéu, segurando-a pelo braço. A senadora sorriu, agradeceu e foi novamente interrompida por um simpatizante. "Só você para moralizar essa baderna", disse o homem barbudo. Ela retribuiu com um sorriso tímido. "Marina já", ouviu-se.

A senadora pegou o microfone e fez um rápido pronunciamento. Exaltou a necessidade de se construir uma "nação de baixo carbono" e comemorou o fato de, na véspera, ter sido divulgado o menor índice de desmatamento da Amazônia. Concluiu dizendo que "é por isso que a derrota e a vitória só se medem na História".

Aos 51 anos, Marina Silva tem o mesmo peso da juventude, 53 quilos, mantidos por uma dieta compulsória, devido a um histórico de doenças contraídas quando morava num seringal, no Acre. Ela não pode comer, usar, cheirar, encostar em uma lista infindável de coisas: frutos do mar, condimentos, lactose, carne vermelha, álcool, bebidas gasosas, qualquer cosmético, perfume, tinta de impressora, carpete, poeira. O contato com qualquer um deles lhe causa imediata coceira, falta de ar e, às vezes, taquicardia.

Ela é naturalmente elegante, e quase sempre usa vestidos longos, arrematados por um xale. Tem quase cinquenta deles. O cabelo anelado é amarrado em um coque, circundado por uma fina trança. No dedo anular esquerdo, usa uma aliança dourada, com a inscrição "Jesus", e carrega uma bolsa preta quadrada, na qual não há espaço para quase nada além de uma grande Bíblia de capa de couro preta, toda grifada a lápis.

Em uma manhã de novembro, em seu gabinete em Brasília, ela usava um vestido longo de estampa tie-dye em matizes amarelo, verde e azul, que deixava seus braços finos e firmes à mostra. De meia-calça cor da pele, equilibrava-se com destreza em altíssimo salto de verniz preto. Havia trazido um xale cinza, mas pediu que o motorista voltasse em sua casa e buscasse um lilás "que era o certo" para aquela roupa.

"Eu faço tudo com muita discrição e cuidado. Não sou do tipo que vai produzir frases de efeito ou falar coisas bombásticas", disse-me, com um tom maternal. "Não vou falar mal dos outros. Tudo meu é feito com muita calma."

O telefone tocou. Um de seus assessores lhe disse que um projeto de lei de sua autoria seria novamente tirado da pauta de votações. "Isso está há oito anos tramitando e agora vão pedir vistas falando que o governo não fez parecer técnico? Me poupe!", brandiu.

Nos quatorze anos como senadora, Marina apresentou quase sessenta projetos de lei, quatro propostas de emenda à Constituição e dois decretos legislativos. Um dos que considera mais importante - que institui um repasse orçamentário para estados que possuam unidades de conservação, reservas ou terras indígenas demarcadas - está há três anos esperando ser votado pelo plenário da Câmara.

De sua autoria, viraram lei o projeto que concedia anistia aos marinheiros da revolta da Chibata, o que torna mais rigorosa a punição de quem divulga pornografia infantil pela internet, o que criou o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária e o que incluiu Chico Mendes no Livro de Aço dos Heróis da Pátria.

"Sempre houve má vontade", ela explicou. "Mesmo quando eu estava no governo e queria aprovar alguma coisa, eles me diziam: 'Se você conseguir convencer o PFL, o PMDB, tudo bem.' Só para ter uma ideia, quem fez a defesa do meu projeto de subsídio para a borracha foi o Serra. Porque se fosse eu, não aprovavam."

Ao mesmo tempo em que conversava, ela lia o clipping dos jornais, despachava com assessores e checava mensagens pelo celular. "Tem muita gente que quis fazer do meu mandato algo folclórico como fizeram com o do Juruna", disse. "Como se eu fosse algo regional ou segmentado. Quando o que eu sempre me propus a fazer foi ter uma proposta ampla."

Ela perguntou a uma assessora se havia lido os jornais. Na véspera, o ex-ministro José Dirceu havia escrito em seu blog que as alianças pretendidas por Marina revelavam "o caráter não programático de sua candidatura". Sem tirar os olhos do clipping, ela disse com sarcasmo: "Ele já falou que viajo por conta do Senado, quando nunca viajei. Quis que eu devolvesse meu mandato...." E calou-se.

Assim que foi eleito, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi aos Estados Unidos, onde revelou os primeiros integrantes do seu ministério: Antonio Palocci, na Fazenda, e Marina Silva, no Meio Ambiente. Sua indicação foi comemorada pelos jornais New York Times e pelo Financial Times.

"Marina talvez seja a personalidade política brasileira mais conhecida fora do Brasil depois do Lula", lembrou o ex-deputado Fábio Feldmann, do PV. "Ela entrou no governo representando o avanço, sinalizando que haveria uma discussão ética e de futuro sobre o desenvolvimento sustentável. Ela era um cartão de visitas para o governo Lula nessa área."

No primeiro mandato do presidente, Marina Silva parecia ter autonomia. Conseguiu feitos inéditos, como colocar na cadeia mais de 700 pessoas por crimes ambientais e bater o recorde na delimitação de terras preservadas. Também aprimorou o sistema de licenciamento ambiental e diminuiu o ritmo de desmatamento da Amazônia.

Mas logo houve problemas. Ainda em 2002, em uma carta a entidades ambientais, ela se comprometeu com a decretação de uma moratória do comércio e da importação de produtos e sementes geneticamente modificados. No Ministério, tentou manter a promessa. "Mas o Planalto se empenhava a todo custo em aprovar a liberação dos transgênicos, e não chamavam a Marina para os debates, ela telefonava e eles se faziam de mortos", contou a ambientalista Marijane Lisboa, integrante da equipe de Marina no Ministério.

Marijane lembrou-se de um episódio no qual a ministra estava no Xingu, incomunicável. "Abrimos o jornal e vimos que o Zé Dirceu tinha mandado buscar de avião o governador gaúcho Germano Rigotto, ligado ao agrobusiness, para fazer lobby para os transgênicos", contou. "Tentamos falar com eles e nem sequer atendiam. Fizeram de propósito porque sabiam que ela estava no cafundó do Judas."

Marina insistia que, antes da autorização para o plantio, fossem feitos estudos preliminares sobre o impacto ambiental do cultivo. Os ruralistas contra-argumentavam com generalidades: a ministra atrapalhava o desenvolvimento, e o agronegócio era responsável por mais de 20% do Produto Interno Bruto.

Da parte do governo, quem melhor resumiu o pensamento do presidente Lula sobre o assunto foi seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, em uma entrevista à revista Veja, em 2008. Segundo Carvalho, o presidente "acha importante a preservação, mas, entre um cerradinho e a soja, ele é soja. O ambiente é uma questão importante, mas não é decisiva. O que é decisivo é a economia".

Pouco tempo depois, por meio de uma medida provisória, o governo legalizou a primeira safra de soja transgênica. Foi a primeira vez que Marina Silva cogitou pedir demissão. "Depois, aprovaram a Lei da Biossegurança, que possibilitou o plantio comercial das sementes, e ficou claro que a coisa iria desandar em algum momento", disse Marijane Lisboa.

No segundo mandato, os atritos se intensificaram. Um deles dizia respeito ao asfaltamento da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, e ficou conhecida como "a estrada Blairo Maggi", uma referência ao governador do Mato Grosso, o maior plantador de soja do Brasil.

A obra, que corta uma das regiões mais ricas em recursos naturais do país, barateia o escoamento da produção do norte do Mato Grosso em direção ao rio Amazonas. Marina se opunha, exigindo estudos de impacto ambiental. O mesmo ocorreu em relação à construção de duas hidrelétricas no rio Madeira, em Rondônia. Lula reclamou que as licenças ambientais estavam demorando muito e criticou a ministra.

"Ela se revoltava porque não são obras para levar luz a famílias do interior, mas sim para alimentar indústrias energointensivas que irão vender aço, celulose, alumínio e cimento fora do Brasil", afirmou a ex-assessora.

Marina Silva ainda teve que ceder na Lei de Gestão de Florestas Públicas, perdeu no debate sobre a retomada do programa nuclear e nunca foi ouvida sobre o etanol. Ainda teve que enfrentar uma greve, também criticada por Lula, de dois meses no Ibama, o Instituto do Meio Ambiente, depois da reestruturação do órgão.

Quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais anunciou um aumento significativo no desmatamento da Amazônia, que vinha diminuindo nos últimos três anos, houve novo constrangimento. Blairo Maggi contestava os números e Marina Silva solicitou uma audiência ao presidente. "Ela pediu para falar antes do Blairo Maggi", contou Maristela Bernardo, outra ex-assessora da ministra. "Ficou esperando na antessala e, quando foi chamada, Lula já estava conversando com o governador." Novamente, pensou em se afastar do cargo, mas acabou ficando.

Internamente, funcionários de carreira acusavam Marina Silva de ter loteado os cargos do Ministério entre os representantes de organizações não governamentais e evangélicos. A senadora se irrita com a acusação. "O meu erro foi colocar gente que entende do assunto no Ministério? Alguém já criticou um ministro da Fazenda por botar economistas na equipe dele?", ela me disse. "Quanto aos grupos religiosos, havia de tudo: católicos, protestantes, evangélicos, budistas, como em toda sociedade há."

Entre os ambientalistas, também havia divisão em relação à ministra. "Está provado que energia nuclear é limpa e segura", disse o consultor ambiental Fábio Olmos. "Transgênicos, pesquisa com célula-tronco, isso você testa, vê o impacto e autoriza ou veta. Ela é do time dos que não querem nem testar."

Marina ameaçou novamente sair quando o governo ventilou a possibilidade de anistiar os grandes desmatadores da Amazônia. Mas só se decidiu ao ser surpreendida, no meio de uma cerimônia pública, com a notícia de que o Plano Amazônia Sustentável, do qual foi uma das principais articuladoras, ficaria a cargo do então ministro Mangabeira Unger. E saiu sem romper com Lula.

Com menos de dois minutos de propaganda gratuita na tevê durante a campanha eleitoral do segundo semestre, o PV tentava se coligar com o PSOL - o que dobraria seu tempo. "O PSOL não quer que a Marina elogie o FHC ou o Lula", disse o presidente do partido, José Luiz Penna. "Eles também querem barrar uns apoios, estão interessados no lugar de vice. E tem essa coisa do MST, que eles acham que temos que ficar ao lado a qualquer custo. Não é fácil, não."

Aos 64 anos, o potiguar Penna é alto, magro, usa rabo de cavalo e barba grisalhos. Sua trajetória política de militante da causa indígena se confunde com a artística: atuou no musical Hair, no final dos anos 60, e tocou na banda Papa Poluição. Marina Silva se filiou ao PV com a promessa de encabeçar uma reestruturação no partido, que tem como líder na Câmara o deputado Zequinha Sarney.

Em outubro, encontrei o jornalista Toinho Alves, amigo de Marina há trinta anos, no aeroporto de Rio Branco. Ele estava preocupado com os rumos da candidatura. Mostrava-se aborrecido com o fato de Marina parecer estar sendo engolida por uma agenda de compromissos extensa e muitas vezes improdutiva. Estava amolado também com os factoides lançados por políticos e empresários que queriam pegar carona na sua candidatura. Até o ex-governador Luiz Antonio Fleury Filho apareceu como alternativa verde ao governo paulista.

No cerne de suas preocupações estava o PV. "É um partido complicado. Eles são palanque do Serra no Rio, estão coligados com o DEM em alguns estados do Nordeste, tipo Maranhão", falou enquanto esperava na fila de embarque. "O ministro Juca Ferreira, da Cultura, disse que o PV não estava preparado para receber a Marina. E ele está certo."

Uma jornalista francesa entrou no gabinete de Marina Silva, onde todos os presentes suavam em bicas, já que a senadora não pode com ar-condicionado. Em algumas entrevistas, ela dá a impressão de se entediar com as perguntas, que parece já ter respondido milhares de vezes: por que saiu do PT, o choque com Dilma Rousseff, se ela não se acha quixotesca, se está magoada com Lula, se as metas de redução de emissões de carbono do governo são satisfatórias, o que ela acha do pré-sal ou se a Amazônia tem saída.

Quando é assim, ela toma fôlego e emenda frases de muitas, muitas palavras, com uma dicção mecânica, mas educada. Sempre menciona que o aquecimento global é uma bomba a ser desmontada nos próximos cinquenta anos; que o Brasil tem a matriz energética mais limpa do mundo e por isso deveria dar exemplo; que pesquisas mostram que os brasileiros preferem pagar mais caro por alguns produtos, em troca de preservar a Amazônia. Quando fala, seu olhar se desvia para a diagonal, dando a impressão ao interlocutor de que ele conversa com um cego.

Outra característica de Marina é não fazer ataques diretos. Na sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, quando quer criticar o governo, costuma usar imagens cifradas ou parábolas. O padrão se repete nas conversas pessoais. Uma pergunta simples, como "Se perder a eleição, vai se dedicar a um papel como o do ex-vice-presidente americano Al Gore?", se transforma em uma digressão de cinco minutos, cujo resumo seria "não".

Não é possível dizer que ela tergiversa de propósito, se é prolixa ou tem dificuldade de sintetizar seu pensamento. O fato é que ela nunca dirá: "O Lula quer faturar como o pai dos pobres." Numa palestra recente ela disse: "A nossa sociedade é patriarcal. As pessoas querem um líder que ocupe o lugar de pai. Na democracia, você não pode oferecer um destino. Você oferece a possibilidade de um mundo melhor. E não um salvador da pátria."

Marina Silva estava atrasada para a Comissão de Constituição e Justiça, na qual um projeto de sua autoria - que cria um índice brasileiro de responsabilidade social -, apresentado em 2001, seria apreciado. Caminhando pelos corredores do Senado, ela cumprimentou copeiras, secretárias de outros gabinetes e parou para conversar com quem a interpelasse.

Sentou-se na primeira fileira da sala, ganhou um beijo na testa do senador Tasso Jereissati e depois um tapinha no ombro do senador pelo Maranhão Edinho Lobão, que todos chamam de Lobinho por ser filho do ministro Edison Lobão. Seus assessores entravam e saíam da sala com papéis e resumos para que ela se inteirasse das demais votações. Diferente da maioria dos senadores, Marina prestou atenção na sessão e não conversou com ninguém.

Duas horas e meia depois, quando o projeto foi aprovado, voltou para sua sala para almoçar. Na marmita, preparada em casa, havia frango cozido, arroz, feijão, rúcula, tomate e farinha. Ela comia devagar, em garfadas mínimas, arrematadas com goles de água em temperatura ambiente (não tolera bebidas geladas).

Perguntei se a candidatura do empresário Guilherme Leal - fortuna de 1,2 bilhão de dólares estimada pela revista Forbes - como seu vice não traria mais benefícios para a empresa dele, a Natura, do que para a candidatura dela. "No Brasil, estamos acostumados com oligarquias", ela respondeu. "Mas não se pode confundir elite com oligarquia. O José Alencar, o Oded Grajew, o Israel Klabin, o Guilherme Leal, eles são elite. É gente que pensa o Brasil como nação, têm ideias, estão verdadeiramente empenhados e são bem-intencionados. Esse é um interesse legítimo. Por incrível que pareça", afirmou.

Sobre seu plano de governo, ela disse que uma comissão de intelectuais e políticos debateria as propostas. "Ainda temos tempo. Como te falei, faço as coisas devagar." Para que não se ficasse sem exemplo, ela disse que, na sua Presidência, quem produzir com vistas ao desenvolvimento sustentável será beneficiado. "Se precisar mudar a Lei de Licitações, para desonerar as exportações e atrair desenvolvimento tecnológico, vamos fazer", afirmou. "Não vamos ignorar quem fez direito, quem certificou o seu etanol, a sua madeira, quem respeita a área de preservação legal. Essa pessoa, que hoje vê o governo perdoando quem faz errado, se sente uma tola."

Sua filha mais velha, Shalon, uma pedagoga de 28 anos, lhe telefonou. Disse a Marina Silva quanto custava a passagem para Israel, onde faria um curso de três meses. A senadora concordou em dividir o bilhete em quatro vezes, mas antes checou a possibilidade de usar milhagem.

Em seguida, ela contou que nas horas livres gosta de costurar, fazer bijuterias étnicas (que ela mesma usa) e escrever poesia. Duas delas já foram musicadas por artistas de Brasília e do Rio. Ela costuma escrever sobre temas cotidianos, ou então sobre fatos marcantes da sua vida. Prefere enfoques de viés feminino, como em "De Marias, de Amélias e de Madalenas":

No sofrimento somos Maria/Mãe de um Deus assassinado/Marias sem alegria/Dor sem futuro ou passado/Na renúncia somos Amélia/De uma triste verdade/Amélias sem sonho/Desejo ou vontade/No preconceito, Madalena/Nas praças apedrejada/Madalenas: ao pecado/E à culpa predestinadas/Só no amor temos os nomes/E as formas de nossa estima:/Velha mãe, jovem formosa/E, eternamente, menina.

No meio da tarde, a entrada de seu gabinete estava lotada. Um senhor bronzeado saiu da sala de Marina Silva e se dirigiu, com forte sotaque carioca, a uma mulher bem penteada e maquiada, vestida de terninho creme com colar e brincos de pérola: "Oi, pastora! Você está nas minhas orações, hein?" Cinco pastores evangélicos esperavam ser recebidos.

A senadora parecia cansada, mas ainda havia um encontro com uma repórter do jornal argentino Clarín. Durante meia hora, ela deu as mesmas respostas às mesmas perguntas.

Eram quase nove da noite quando Marina Silva saiu para casa. Ao cruzar a ala dos elevadores no Senado rumo à garagem, avistou a apresentadora Sabrina Sato, do programa Pânico na TV. Seus assessores sugeriram mudar de rota, mas ela prosseguiu.

Usando um microvestido azul e salto doze, Sabrina pediu que a senadora falasse sobre políticas para tratar usuários de drogas. Quando as câmeras foram ligadas, a senadora pareceu murchar. Seus ombros se arquearam, ela se cobriu com o xale como se usasse um cobertor nas costas e sua voz ficou quase inaudível.

Talvez a senadora quisesse demonstrar gestualmente a sua seriedade, já que falava a um programa de humor escrachado. Mas, numa entrevista num estúdio de televisão, a impressão foi a mesma: o vídeo diminui sua presença. Ao se afastar de Sabrina Sato, comentou: "Essa menina é inteligente. Foi entrevistar o senador Lobinho e ele foi dizendo que a mulher dele também trabalhava em televisão. E ela disse: 'Na sua é fácil, né?'"

Aos 19 anos, o cearense Pedro Augustinho da Silva desembarcou no Acre com a promessa de melhorar de vida cortando seringa. Tinha um parente que já estava estabelecido no seringal Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco, onde passou a trabalhar dezesseis horas por dia. Tirava três latas de leite de látex diariamente. Do que ganhava, tinha que dar metade ao dono do seringal e outros 20% ao gerente.

Oito anos depois, mandou buscar a mãe e a noiva, Maria Augusta. Casaram-se e tiveram onze filhos; oito deles sobreviveram - sete mulheres e um homem. A única a ter frequentado a escola foi Osmarina, nome de batismo da senadora Marina Silva.

Em uma manhã de outubro, no escritório político da senadora em Rio Branco - uma casa simples sem ar-condicionado mesmo à temperatura média de 39 graus -, Pedro Augustinho da Silva usava camisa verde, calça jeans, chinelo de dedo e um boné vermelho. Aos 82 anos, aparenta 60. "Ela aprendeu matemática em uma noite", disse o pai. "Começamos às sete e terminamos às duas da madrugada, com aquela fumaceira da vela, os olhos pingando. Mas ela aprendeu, não sei nem dizer como." Marina só se alfabetizou aos 16 anos.

Seus parentes são agricultores, motoristas de ônibus, instrutores de autoescola e donas de casa. O pai vive com uma aposentadoria do INSS, já que não tinha documentos quando instituíram a pensão aos chamados "soldados da borracha". Em caso de doença e para a formação dos sobrinhos, a senadora é o arrimo da família. A única propriedade dela é uma casa, em Rio Branco.

Usando um coque e vestindo saia comprida, blusa de gola de babado e um casaquinho, a filha Lúcia lembrou-se da infância. Acordavam cedo e caminhavam 7 quilômetros com o pai até o seringal. Quando a rodovia BR-364 rasgou a selva, trouxe consigo um rastro de malária e sarampo. Tios, primos e a avó de Marina sucumbiram.

Dentre os filhos, Marina foi a que mais adoeceu. Aos 6 anos, teve o sangue contaminado por mercúrio, o que seria a origem de todos os seus problemas de saúde. Teve cinco malárias, uma leishmaniose e três hepatites.

"Ela não conseguia mais ir para o mato", lembrou o pai. "Ia devagar, arrastando os chinelos. Um dia, quando estava construindo um chiqueiro, a Marina falou que queria ir aprender em Rio Branco. E eu falei: 'E tu lá vai aprender alguma coisa?'"

A irmã falou que Marina era a mais curiosa da casa. A mãe, que morreu quando a senadora ainda era menina, brincava dizendo que ela era "metida" porque tentava falar como os locutores da rádio. Em vez de cuié, ela insistia em dizer "colher".

Aos 16 anos, foi morar no convento das Servas de Maria. A vontade de ser freira veio da avó, que contava as histórias da Bíblia à neta. Matriculou-se no Mobral e aprendeu a ler. Segundo o pai, pouco depois, Marina desistiu do convento porque era obrigada a deixar com as freiras o pouco dinheiro que recebia.

Foi trabalhar como empregada doméstica na casa de Teresinha da Rocha Lopes, hoje com 76 anos. Em uma tarde, ela me recebeu na garagem de sua casa, uma construção escura, com móveis comprados na década de 70 e sofás com paninhos de crochê no apoio dos braços. "Ela era doentinha, magrinha", comentou. "Não ganhava salário, só morava aqui. Dormia no quarto com minha filha."

Teresinha recordou que Marina lamentava ter que lavar à mão a roupa cheia de lama de seu filho mais velho, que trabalhava no Instituto Nacional de Reforma Agrária. "Mas nunca reclamou ou disse que não ia fazer." Também contou que recentemente a família discutira em quem votariam na próxima eleição. Um dos filhos achava que Marina não tinha chances, então cogitava outro candidato. "Mas nós votaremos nela sempre", disse olhando para o marido, um senhor de quase 90 anos.

Dois meses depois, na volta de um compromisso, relatei o encontro à senadora. "Eu gostava deles, sempre me trataram muito bem", disse. Em seguida, contou vários episódios de sua vida como doméstica, rindo de algumas situações. Eu comentei estar surpreendida por ela ainda se lembrar de tantas coisas. "Os empregados sempre se lembram da vida dos patrões, o oposto é que é raro ocorrer", falou.

Quando era empregada, a saúde frágil a incomodava. Com a ajuda do bispo de Rio Branco na época, dom Moacyr Grechi, conseguiu hospedagem e tratamento médico em São Paulo. As passagens foram providenciadas pela família, que vendeu uma égua e um filhote de outro animal cujo nome não consta no dicionário.

Na volta, ela conheceu Raimundo Souza, técnico em eletrônica, que frequentava sua igreja. Foi seu primeiro namorado. Casaram-se e foram morar num barraco na periferia. A essa altura, havia concluído o supletivo de 1º e 2º graus e, logo depois, foi aprovada no vestibular de história da Universidade Federal do Acre. Marina continua a estudar. É aluna de pós-graduação em psicopedagogia, em Brasília.

"Na casa dela as paredes eram de lona preta", lembrou o governador do Acre, Binho Marques, amigo de Marina Silva desde o movimento estudantil. "Você não tem noção do que era. O chão tinha tábuas soltas. Um cômodo com uma cama de casal e nada mais", disse.

Na faculdade, Marina entrou para um grupo de teatro, o Semente, que reunia estudantes trotskistas. Aproximou-se da política se candidatando ao Centro Acadêmico de História (perdeu) e depois se filiando ao Partido Revolucionário Comunista, organização clandestina na qual militaram José Genoíno e Tarso Genro.

Foi numa entrevista para um trabalho da faculdade que Marina Silva conheceu Chico Mendes. "A sintonia foi total", lembrou o governador Binho Marques. Ela já dava aulas de história e passou a frequentar as reuniões do movimento sindical. Seus filhos mais velhos - Shalon e Danilo, que é publicitário em Brasília - já haviam nascido.

"Ela tinha uma oratória incrível e era aquela figura exótica, morena, com aquele cabelão solto, uns brincões, sem parecer ter medo de nada", disse Binho. O grupo, que incluía o futuro governador do Acre Jorge Viana, decidiu que deveriam se filiar ao Partido dos Trabalhadores para ajudar Chico Mendes a ser eleito deputado estadual.

Nessa época, seu casamento se desfez. Sozinha com os dois filhos, Marina passou a receber a visita de um colega da faculdade que lhe levava legumes e verduras orgânicas por saber que ela tinha alergia a qualquer produto cultivado com agrotóxicos. "Eram umas alfacinhas murchas", ela brincou.

Era Fábio Vaz de Lima, com quem está casada há 23 anos, pai de suas outras duas filhas: Moara e Mayara. Alto, loiro e corpulento, Lima deixou Santos, onde cursou uma escola agrícola, para morar no Acre, em uma comunidade alternativa. Filiado ao PT e com um cargo no governo estadual, ele é discreto e deixa os holofotes para a mulher. Quando pedi para encontrá-lo, ele disse que estava no sul do Acre. No fim do dia, avistei-o no prédio do gabinete do governador, em Rio Branco. Com o ex-marido, que é funcionário da Embratel, Marina tem pouco contato, mas a mãe dele mora com ela em Brasília.

Naquela eleição, o PT não alcançou o quociente eleitoral, mas, dois anos depois, em 1988, Marina foi a vereadora mais votada de Rio Branco. Durante seu mandato, os acreanos ficaram sabendo pela primeira vez de que se compunha o contracheque de um vereador. Marina devolveu o dinheiro de gratificações, auxílio-moradia, auxílio-paletó e outras mordomias. Em 1990, foi eleita deputada estadual e liderou um movimento para acabar com a aposentadoria de ex-governadores.

Chegou ao Senado em 1994. No final do primeiro ano de mandato, ela passou mal depois de uma viagem. Foi internada às pressas e desenganada, devido à contaminação por mercúrio. Passou um ano e oito meses morando na casa da sogra, em Santos, onde lhe davam comida na boca. "Eu só dormia no colo do meu marido para que ele ouvisse o meu coração, de tanto medo que eu tinha de morrer", falou.

Em dezembro de 2004, Marina se tornou evangélica da Assembleia de Deus, surpreendendo até mesmo seus amigos mais próximos. Segundo me disse sua irmã Lúcia, que é da mesma igreja, "Marina foi curada graças a Deus. Os irmãos da Assembleia oraram muito por ela."

Dom Moacyr Grechi, hoje arcebispo de Porto Velho, conheceu Marina aos 17 anos. Quando decidiu sair do PT, ela foi encontrá-lo, para se aconselhar. "Eu não concebia a Marina como evangélica pentecostal", ele comentou. "Porque os evangélicos luteranos, anglicanos, têm uma profunda tradição ideológica e política a favor da luta dos pobres. Mas esses pentecostais, não", disse.

O governador Binho Marques tem outra opinião sobre a conversão. "Conheci a Marina católica, meio comunista, afastada da religião, e protestante, mas ela sempre foi a mesma pessoa", afirmou. "Acho que Marina procura achar uma representação externa, para definir o que ela é. Hoje ela acha que isso é ser evangélica, mas esses rótulos nada influenciam o que ela foi e é realmente", concluiu.

Segundo Marina, uma conversão não acontece de uma hora para outra. Nem é algo que se possa explicar racionalmente. "Não é que você sente falta de alguma coisa e vai buscar outra religião", ela disse. "Você só se dá conta do que faltava quando experimentou a outra coisa, e aí vê o quanto agora está completa."

Ela disse que uma das diferenças entre a doutrina evangélica e o catolicismo diz respeito à culpa. "Como em Jeremias, a linha de medir estender-se-á para diante", afirmou. Pedi que explicasse melhor. "O que passou ficou para trás. Se você aceitou Jesus, não há por que haver culpa", falou.

Eram quatro da manhã quando Marina Silva e um assessor chegaram ao aeroporto de Brasília. Às seis, desembarcariam em Guarulhos, onde um carro os levaria para compromissos em São José dos Campos e Campinas. A agenda era pesada: um congresso de direitos dos trabalhadores rurais, uma conferência da Câmara Americana de Comércio, duas palestras na Pontifícia Universidade Católica, três entrevistas em canais de televisão e um almoço com professores da Unicamp.

Em Campinas, Marina foi escoltada pelo ex-deputado Luciano Zica, que, como ela, saiu do PT depois de três décadas e se filiou aos verdes. A caminho do restaurante, Zica recebeu um telefonema avisando-o de que o ministro Marco Aurélio Garcia estava no local. "Mas ele já está indo embora", disse à Marina. "Por mim, tudo bem. Até queria dar um abraço nele", ela respondeu.

Sobre sua saída do PT, ela explicou: "Eu poderia falar que foi pelo apoio ao Sarney, pelo Collor ou porque minha saúde não me permitia mais. Mas não é isso. As minhas ideias não cabiam mais naquela configuração. Aquela cena deles se abraçando quando conquistaram a Comissão de Infraestrutura. Aquilo não é fácil de ver."

A senadora contou que, na época do mensalão, sua filha de 14 anos foi chamada de "mensalinha" na escola. "Essa coisa do mensalão foi muito, muito difícil de superar", disse. "Os erros têm que ser pagos. E não pode vir com justificativa que era algo que todo mundo fez."

O carro estacionou em frente ao restaurante, onde cerca de trinta pessoas a esperavam. Ela continuou a falar sobre o PT: "Pela minha fé, eu sempre espero o melhor das pessoas. Não me regozijo com a dor dos outros. Eu ficava incomodada com aquela reação dos meus ex-companheiros, como quando o Serjão ou o cara do Banco Central foram pegos cometendo irregularidades, ou quando o ministro Ricupero caiu. Aí, eles comemoravam. Eu não sou assim. Não vou deixar de me lembrar de uma coisa boa do Zé Dirceu porque ele me deu uma sacaneada."

O último compromisso em Campinas seria uma palestra em homenagem aos 30 anos da faculdade de biologia da PUC. O auditório para 250 pessoas estava lotado. Em menos de uma hora, Marina Silva falou sobre sua vida, sobre política, sobre ecologia e sobre o futuro. Citou G. K. Chesterton, Nadia Bossa, Santo Agostinho, Ricardo Goldenberg, Shakespeare, Adelmo Genro Filho, Hannah Arendt, Donald Winnicott e Edgar Laurent.

Se em entrevistas pode parecer prolixa, e se retrai diante das câmaras de televisão, ao vivo ela é imbatível. Mesmo usando expressões como "transversalidade", "internalização do tema", "questão intergeracional", "inflexão civilizatória", "processo negocial" e "Armageddon ambiental", conseguiu hipnotizar a plateia.

Quando fala de improviso, com ou sem microfone, mesclando histórias próprias com exemplos cotidianos, ela comove os assistentes. As citações parecem combinar com o contexto, seu tom de voz ganha um crescendo que envolve os ouvintes e sua figura frágil adquire firmeza.

Ao final, o auditório explodiu em aplausos e gritos. Uma das professoras abraçou Marina: "Obrigada por você existir!" Houve quem chorasse. "Meu Deus, estou toda arrepiada. Valeu demais! Ela é muito inspiradora", comentava uma jovem com a amiga. Depois de dezenove horas ininterruptas de compromissos, ela ainda jantaria na casa de Zica. "É sempre assim, já estou até acostumada", falou.

No dia seguinte, às dez da manhã, estava a postos para mais uma palestra. N'O Globo, o jornalista Arthur Dapieve escrevera uma coluna que, no início, parecia um elogio. Mas no fim criticava a mistura que a senadora faz entre religião e política. "Esse negócio de religião vai ser o calcanhar de Aquiles da Marina", comentou Zica. "Eu já falei que ela tem que tomar uma posição científica, não pode falar esse absurdo de criacionismo", completou ele, referindo-se à interpretação literal da Bíblia.

Mais tarde, Zica se lembrou da palestra do dia anterior, quando ela disse que a natureza gastara milhões de anos para formar a savana. "Tá vendo?", perguntou. "Essa afirmação dela é incompatível com o criacionismo."

Há um ano e meio, a jornalista Marília de Camargo César, do jornal Valor, escreve a biografia de Marina Silva. Há outros dois livros publicados sobre a vida dela, ambos de 2001: Marina Silva, da Editora Salesiana, e Marina Silva: Defending Rainforest Communities in Brazil, que ela diz não ter gostado porque teve a impressão de que a autora americana a colocou como uma heroína.

A senadora só aceitou que Marília de Camargo César fizesse a sua biografia porque tanto a jornalista quanto a editora são evangélicas. "Ela considerou que assim poderia alcançar uma abordagem mais ampla do que foi a sua conversão, da experiência espiritual de chegar perto da morte e da força interior da superação", disse-me Marília, em São Paulo.

A ideia do livro é "também falar para os leigos", o que a autora acredita ser um desafio devido ao "preconceito" em relação à orientação religiosa da senadora. Marília César citou o programa Roda Viva, da TV Cultura, no qual Marina foi entrevistada em setembro. "O que se viu foi constrangedor: os jornalistas faziam perguntas como se fossem pegadinhas e ficavam com um ar de sarcasmo enquanto ela respondia sobre sua fé", disse.

Recentemente, durante um simpósio sobre criacionismo, em uma universidade adventista de São Paulo, Marina Silva foi entrevistada por um jornalista evangélico sobre o assunto. Ela disse acreditar que "Deus é o criador de todas as coisas" e que "esse Criador tem um projeto e as coisas não acontecem por acaso". Em seguida, o rapaz perguntou o que ela achava do ensino do criacionismo em escolas confessionais que também ensinavam o evolucionismo. Ela respondeu: "A ciência se faz pela multiplicidade de olhares. Mesmo que você tenha uma visão criacionista, se você coloca claramente para as pessoas que há outra visão, a do evolucionismo, para que as pessoas tenham liberdade de escolha, não vejo demérito." E continuou: "O errado é se não formos capazes de ter uma educação plural, que seja capaz de mostrar os diferentes pontos de vista, para que as pessoas possam fazer suas escolhas."

Nos dias seguintes, blogs, jornais e revistas replicaram a notícia de que Marina Silva defendia o ensino do criacionismo. Não adiantou ela repetir à exaustão que havia sido mal interpretada.

Quando voltávamos de uma viagem de carro, perguntei por que ela não dizia claramente que era contra o ensino do criacionismo nas escolas públicas e, se fosse eleita presidente, não defenderia uma mudança nesse sentido. "Eu não vou cair nessa armadilha", ela disse. "O Serra, o Lula, o Collor, o Fernando Henrique, ninguém teve que falar isso. Vai ser a primeira vez na história desse país que alguém vai ter que falar isso. O ensino religioso é optativo, e está previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. É preciso treinar professores para ensinar o que é o budismo, o cristianismo, todas as crenças. É isso o que eu quero dizer", afirmou.

Ela sentiu câimbras na perna direita e disse que passariam se ela comesse banana. Em seguida, retomou seu raciocínio: "As pessoas que falam ou temem que eu faça alguma coisa antidemocrática não me conhecem. E se o meu defeito é esse, se o meu defeito é a minha crença, que fez eu ser o que sou, então, paciência."

No carro, ela fazia anotações em uma pilha de papéis. Só escreve com lapiseira e costuma apagar as palavras e reescrevê-las muitas vezes. Em geral, usa letra de forma.

Chegando a São Paulo, chovia e a Marginal Tietê estava parada. Motoboys passavam ao lado do carro em alta velocidade. Falou-se que dois motoqueiros morrem por dia, vítimas do trânsito. "Meu Deus", ela exclamou. "O mundo é cruel", disse em um tom de consternação.

Perguntei se ela não achava que Deus seria cruel por permitir que tragédias assim acontecessem, como arriscava o escritor português José Saramago, em seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Ela disse não conhecer a obra, mas afirmou que exercícios de literatura eram muito interessantes.

Depois de um tempo em silêncio, ela comentou: "Isso não é responsabilidade de Deus. Deus não é cruel e a maioria das pessoas também não. O que há é o livre-arbítrio." Para ela, não se pode culpar Deus pelas tragédias ou pela miséria, pois elas são fruto, em alguma medida, do livre-arbítrio do ser humano.

"Estou muito pálida?", perguntou Marina Silva, de bom humor, no caminho para um jantar organizado por Ana Paula Junqueira para um grupo da elite paulistana se interar das propostas da candidata. A senadora vestia uma elegante saia longa de shantung cinza e um casaco trespassado no mesmo tecido, comprados em uma loja na quadra em que mora, em Brasília.

Chovia muito e Marina fixava o olhar na janela. "Ô meu Deus, está chovendo e as pessoas na chuva...", comentou, virando a cabeça, enquanto o carro deixava para trás a cena de mendigos que dormiam sob marquises no centro da cidade.

Quando ela entrou na casa, decorada de maneira sóbria em tons de creme e cinza, com paredes cobertas por obras de artistas de vanguarda, a sala estava lotada de homens engravatados que falavam baixo e mulheres com vestidos de parar a Uniban. Esperavam por ela herdeiros de sobrenomes como Diniz, Feffer, Nigri, Nabuco, mas também as ex-modelos Daniela Cicarelli e Alexia Deschamps, a apresentadora Márcia Goldschmidt, o publicitário Nizan Guanaes e o costureiro Reinaldo Lourenço.

A anfitriã, de microfone na mão, apresentou a convidada, disse que era sua fã havia anos e que aquela era uma oportunidade única para que todos a conhecessem. Sugeriu que se começassem as perguntas. Um rapaz quis saber o que Marina achava da visita do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil.

"Obviamente as relações bilaterais são mais complexas do que podemos falar quando estamos de fora", ela respondeu. Falou cinco minutos e terminou dizendo que o Brasil deveria refletir sobre "essas ampliações tão amplas" em suas relações.

Ana Paula Junqueira recuperou o microfone e incitou a segunda pergunta. Fez-se um silêncio. Os convivas olhavam para o lado, esperando o vizinho se manifestar, e não houve mais perguntas. Rapidamente, a anfitriã agradeceu e encerrou a conversa sob o olhar aturdido da senadora.

Nas rodinhas de convidados que tomavam Veuve Clicquot, o comentário era que faltava algo à candidata. "É séria, mas não empolga", disse um. "Mas ela é tão chique, não é?", respondeu sua acompanhante. "Mas deve defender esses bandidos do MSTt", disse um terceiro.

Guilherme Leal circulava pelo salão com um lenço de papel para conter o suor. Ele dizia que Marina talvez tivesse que começar a esclarecer melhor algumas posições, como a política econômica. "Mas não tem que ficar espezinhando, entrando em detalhe de quem vai ser presidente do Banco Central, o que fazer com juros", disse o dono da Natura. "A diferença dela é que falará do futuro. Então, se for falar de juros ou câmbio, o que pensamos é o mesmo consenso como se reuníssemos dez economistas hoje: dá para baixar um pouquinho, ajeitar aqui e ali, mas o resumo é que, do jeito que está, é mais ou menos isso aí."

Cicarelli se aninhou ao lado da senadora e parecia interessada. "Marina, Copenhague vai ajudar na sua candidatura, né?", perguntou. A resposta vinha devagar como se, decididamente, a senadora quisesse tergiversar. No resto da sala, os grupinhos de velhos amigos pareciam colocar o assunto em dia. A senadora foi convidada para ir ao jardim tirar uma foto. Ao descer um degrau, sentiu o nervo ciático. Foi embora à francesa.