terça-feira, 17 de abril de 2018

A VERDADE VENCERÁ

Costumo dizer que Lula foi o segundo melhor presidente da História do Brasil. Juscelino, que costuma ocupar este posto, a meu ver seria o terceiro - tenho sérias críticas ao modelo de desenvolvimento por ele implantado, principalmente no que toca à priorização do transporte rodoviário em detrimento do ferroviário, e também à construção de Brasilia, uma idéia megalomaniaca e despropositada.

O primeiro seria Getulio, mas confesso que ando revendo meus conceitos. A favor de Vargas temos o fato dele ter institucionalizado as conquistas populares - a Petrobras até hoje se tenta mas ainda não conseguiram privatizar, e a CLT só com o golpe de 2016 foi desmontada. Já o “legado” do PT desmoronou quase que completamente assim que o partido foi apeado do poder. Lula, no entanto, conseguiu o que conseguiu - e não foi pouco - num ambiente democrático, ao contrário de Vargas, que governou na maior parte do tempo com mão de ferro, usando e abusando de poderes ditatoriais. É uma disputa acirrada, portanto. Mas uma coisa é certa: o metalúrgico que se tornou presidente entrará para a História pela porta da frente, ao contrário da maioria de seus atuais algozes.

Ivana Jinkins, filha de um livreiro comunista, tem feito um belíssimo trabalho com sua editora Boitempo, que acaba de lançar um livro para ficar na história: "A Verdade vencerá". Trata-se da transcrição de uma longa entrevista com Lula conduzida por ela mesma e por Gilberto Maringoni, Juca Kfouri e Maria Inês Nassif, com textos adicionais de Luis Fernando Veríssimo, Luis Felipe Miguel, Eric Nepomuceno e Camilo Vanuchi. A edição, feita a toque de caixa e no calor de momentos dramáticos(quando todos esperavam o resultado do julgamento do habeas Corpus no STF), é pra lá de caprichada e recheada de notas explicativas que serão de grande utilidade em leituras futuras, além de ricamente ilustrada com fotos de arquivo e de Ricardo Stuckert.

Na entrevista temos um Lula em grande forma falando com sinceridade raramente vista de temas espinhosos, como sua relação com Dilma Roussef e as acusações que levaram à sua condenação. Sobre estas últimas, diz que se fossem verdadeiras ele seria “o chefe de quadrilha mais burro da face da terra”, por se contentar com um apartamento no Guarujá e reformas num sítio em Atibaia enquanto seus subordinados se locupletavam com rios de dinheiro. Faz sentido. Sobre Dilma, fala o que todo mundo já sabia mas nunca tinha ouvido - pelo menos não eu - saindo de sua boca: que não tem paciência para o jogo político e cometeu equívocos mortais na condução da economia. Ressalta, no entanto, sua lealdade. Critica duramente, mas demonstra sempre, também, imenso respeito.

A linguagem, como de praxe, é pra lá de informal - vários "porras" são ditos durante as falas, que revelam curiosidades que eu, particularmente, não conhecia, como o fato de que seu irmão, Frei Chico, nunca foi frei. A alcunha é apenas um apelido de infância. Ou de seu radicalismo (melhor seria chamar de sectarismo) nos primórdios da militância sindical, quando achava que o dono de um boteco era patrão e que a sogra, que apenas gostava de se vestir bem, era burguesa. Destaque para a saborosa história do dia em que Brizola o levou para visitar o túmulo de Getúlio - na verdade o líder trabalhista o havia conduzido até lá para apresentá-lo ao defunto, com quem ficou conversando por um bom tempo.

A vida de Lula foi muito dura. Seu pai, por exemplo, proibia os filhos de estudar. Ele só conseguiu entrar para a escola escondido, "acoitado" pela mãe, Dona Lindu, por quem tem uma devoção comovente. As enormes dificuldades que enfrentou, no entanto, não o endureceram nem fizeram com que perdesse a ternura: trata a todos como "meu querido", até as altas autoridades internacionais. É curiosa, por exemplo, a forma como ele conta o episódio do pagamento da dívida externa com o FMI, como se fosse uma negociação no balcão de uma mercearia de bairro: diz que chamou o presidente do fundo e perguntou: "meu querido, quanto eu te devo? Quero pagar". Vale dizer que o "eu", no caso, não é um termo muito apropriado e revela um certo personalismo, sempre apontado como um dos calcanhares de aquiles do lulismo. É preciso que se diga, também, que o pagamento da dívida foi muito mais um brilhante golpe de marketing que um triunfo verdaeiro, pois na verdade o que se fez foi uma substituição da dívida externa pela interna, regada a juros pra lá de generosos para o mercado financeiro.

Lula é um personagem complexo e cheio de contradições: critica o excesso de partidos mas quando vai elogiar a candidatura de Boulos lamenta que ele tenha escolhido o PSOL e diz que esperava que ele fundasse uma nova agremiação. Num dado momento, diz que Jader Barbalho era "de esquerda" ! Nunca foi! Era do MDB e militava na oposição à ditadura na época por ele referida, mas dizer que era de esquerda, é um pouco demais. Ele também dilui o charmoso termo “companheiro” que o PT adotou em seus primórdios para emular o “camarada” dos comunistas, ao se referir assim até a personalidades como o do ex-presidente norteamericana George W. Bush ...

Questionado sobre o desleixo com a formação de quadros e as mobilizações populares de massa, diz que nem sempre isso resolve, e dá como exemplo a campanha pelas diretas já, que levou milhões às ruas mas não conseguiu a aprovação da emenda Dante de Oliveira no congresso. Justifica, na sequencia, a opção pelos acordos de gabinete, que implicam em concessões de alto custo. Sobre isso, vale a pena a transcrição literal de sua fala:

"Fiz as concessões que o momento exigia. Fui eleito presidente com 10 senadores e 91 deputados, num colégio de 513. E, mesmo com esse balanço desfavorável, promovi a ascensão social dos mais humildes. Tirei 36 milhões de brasileiros da miséria, disponibilizei 47 milhões de hectares para assentamento de pequenos produtores (quase 50% do que foi feito em quinhentos anos de história deste país), levei outros 40 milhões a um padrão de vida de classe média baixa, instalei luz elétrica para mais de 15 milhões de pessoas, dei início à transposição do rio São Francisco, coisa que dom Pedro tentou fazer nos tempos em que era imperador ... Conciliação é quando você pode e não faz. Se eu tivesse a força que teve o PMDB em 1988, com 23 governadores e 306 constituintes, teria concedido menos e realizado muito mais. Nós demos um padrão de vida para o povo que muitas revoluções armadas não conseguiram - e em apenas oito anos."

Lula é um gênio político. A forma como ele transformou sua prisão num ato que ficará para a história foi brilhante. Prisão injusta, uma infâmia que põe em cheque o futuro deste nosso colosso sulamericano. Mas precisamos seguir em frente! Uma vitória da direita nas eleições de outubro seria uma tragédia, a consolidação final do golpe. A esquerda precisa urgentemente se unir em torno de uma candidatura viável, e o único nome que vejo como capaz de tal proeza, na atual conjuntura, é o de Ciro Gomes. Apoiado por Lula e com Haddad como vice acredito que formaria uma chapa fortíssima. Mas a marcha da insensatez segue firme nos dois lados do front, infelizmente, e o mais provável é que esta união não aconteça. Fragmentada, a esquerda corre o sério risco de ficar de fora e ter que assistir horrorizada a uma disputa entre Alckimin e Bolsonaro no segundo turno. Isso tem que ser evitado, a qualquer custo. 

A.

#



segunda-feira, 2 de abril de 2018

O PUNK NÃO MORREU

Adolfo Sá no Viva La Brasa: Luiz Moraes Santos chegou em Aracaju vindo de Garanhus nos anos 90 e virou uma das figuras mais emblemáticas da cena punk local. Cabelo de espeto e jaqueta com patches, o vocalista da Cessar Fogo morreu em fevereiro durante o carnaval mais combativo dos últimos tempos.

Blocos de rua e palavras de ordem, vampiro neoliberal e intervenção federal, que tiro foi esse. Enquanto o mundo frevia, Luiz era preso e morria em condições nada festivas. Até hoje não conhecemos os culpados, autorizados, máquinas de matar. Indefesos, os amigos se mobilizaram para liberar seu corpo no IML e chegaram junto no enterro.

Kakuseisha Punx viveu na contramão, fez seus corres e mandou o recado nos 2 álbuns da sua banda. Convidei uns camaradas pra contar algumas das suas melhores histórias, começando pelo baixista Lauro Francis, que gravou com ele o disco ‘Conflitos Mundanos’ e hoje toca na Cidade Dormitório:

“Luiz teve uma vida difícil, veio com a mãe e o irmão porque tinha um tio aqui que poderia ajudar eles – o pai, que já era idoso, morreu quando ele era pequeno. Nessa de vir pra Aracaju ele foi ajudar o tio, tipo aquelas coisas que rolam de pegar jovens do interior pra trabalhar/morar em troca de comida e casa. Rola muito com meninas, né, trabalhar como empregadas em casa. No caso ele trabalhava na empresa, que é no centro, onde teve contato com os primeiros punks da cidade quando era garotão. E foi nessa época que começou a trampar como locutor de porta de loja. E depois que saiu da casa dos tios continuou trampando pelo centro, vendendo óculos pirata e como locutor. Locutor que foi seu trampo a vida toda. Ele era bom nisso.

Existem várias histórias engraçadas com Luiz, quando o conheci na adolescência lá no Marcos Freire/João Alves o apelido dele era Nirvana. Haha. Ele tinha um lance de quando tava com uma pessoa e tinha que ir embora, ia se despedindo andando pra trás e acenando por uns 2, 3 metros como se não quisesse dar as costas, saca?

Tem uma que eu acho foda: Um conhecido o encontrou trabalhando como locutor no Extra, todo arrumado, de farda da empresa, cabelinho penteado e tal. Viu ele lá no trampo todo almofadinha, falou: - Porra, nem tinha reconhecido! Quando acaba o horário de serviço você coloca a fantasia punk, né? Ele respondeu: - Não, na verdade eu tô fantasiado agora.”
Maicon Rodrigues, guitarrista da Psicosônicos e Dr. Garage Experience, já produziu uma festa punk com a Cessar Fogo em Itabaiana:

“Eu vivia meus dias de aventura como organizador de um projeto cultural quando Luiz veio com a banda tocar. Foi tudo muito tranquilo, desde os primeiros contatos até o dia do show, quando os conheci pessoalmente. Todos muito simpáticos, pareciam músicos empolgados, porém contidos, mas Luiz se destacava pelo visual punk levado ao extremo, sempre com um sorriso no rosto e atento a tudo ao seu redor. Parecia estar pronto pra tudo que pudesse acontecer. Lembro de sua jaqueta recheada de patches, bottons e uma crosta de sujeira acumulada ... 

O show foi foda como tinha que ser, após a gig foram todos jogar seus esqueletos maltrapilhos na residência dos meus pais como era costume com todas as bandas que eu recebia no projeto, e logo cedo se picaram pra casa após um café. Até aí tudo bem, ‘falou valeu, até a próxima’...

Dias depois eu percebo um trapo estranho e vermelho entre os panos de chão da minha mãe e saquei que era a jaqueta do Luiz. Fiz contato com o bicho e marquei de entregá-la em Aracaju. Ao encontrá-lo ele parecia aliviado pois nem lembrava onde tinha deixado. Parece que tinha muito apreço pela velha jaqueta de guerra, ficou muito feliz por tê-la encontrado, mas vi que ficou também um pouco contrariado, meio puto, e quando eu perguntei ‘qual foi man’ ele me responde:

- Pô, velho, sua mãe lavou a jaqueta...”

Rás de Sá é uma criatura das noites undegrounds aracajuanas e conheceu Luiz quando o punk cantava numa banda thrash metal chamada Epidemic:

“Vivemos em um país que juízes falam que não dá pra viver sem auxílio-moradia, pessoas tomam antidepressivo porque não podem trocar o carro 2017 por um 2018 e outros tratam mal os amigos quando falta grana pra cerveja ou o celular novo. O meu amigo Luiz dormiu na rua muitas vezes e era sempre simpático e amigável, por mais problemas que tivesse. Sempre aparecia sorrindo e falava: - Eu dormi debaixo daquele toldo, almocei no Padre Pedro e mais tarde vou a um evento underground. Tá massa! Protestou a vida inteira contra as Injustiças dessa merda de país e ao mesmo tempo foi um exemplo pelo que escrevi acima.”

E por fim Adelvan Kenobi, testemunha ocular da escória:

“Os frequentadores habituais da praça Roosevelt, conhecida como ‘praça da mini ramp’ do Bairro América, periferia de Aracaju, se depararam no domingo 11 de março último com uma movimentação diferente e inesperada: um grupo de punks, skatistas e aficionados da cena rock da cidade se reuniram por lá para celebrar a vida de Luiz.

Foi uma noite bacana, com apresentações ao ar livre, na quadra, de bandas como Casca Grossa, Iconoclastia e Putrefação Humana. Bem “rueiro”, do jeito que Luiz curtia. Não fosse ele próprio o homenageado póstumo, certamente estaria lá liderando alguma nova formação da Cessar Fogo, banda que ele se recusava a deixar morrer ...

Era um cara boa praça, sempre gentil com todos, e também um punk de corpo e alma, daqueles que simplesmente não conseguem se adaptar às vicissitudes do sistema. Por conta disso, passou os últimos dias de sua vida à deriva, morando nas ruas. Somente com a notícia da sua morte os amigos souberam que morreu na cadeia, para onde provavelmente foi levado por conta de um furto banal – foi portanto mais uma vítima do encarceramento em massa que nosso país reserva como destino aos “perdedores”, os que não se enquadram nos moldes do conformismo e da subserviência exigidos pelos donos das casas grandes. Corria o risco, inclusive, de ser sepultado como indigente. Não foi o caso, felizmente: uma galera se mobilizou e conseguiu providenciar uma despedida decente.

Luiz morreu como viveu: como um punk.

Crucificado pelo sistema.

#