quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O Mestre Perguntador morre desencantado com o jornalismo

por Luiz Cláudio Cunha, jornalista, autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. L&PM, 2008). Do Blog do Juca Kfouri

O jornalismo brasileiro ficou mais obtuso, medíocre, raso, frio, casmurro e sem respostas nesta segunda-feira, 22 do agosto sempre aziago.

Com você sabe quem.
Perdemos o Geneton.

Geneton Moraes Neto morreu no Rio de Janeiro aos 60 anos, vencido pelas complicações de um aneurisma na aorta sofrido três meses antes. Na autoapresentação de seu blog, criado em 2004, ele já avisava: “Nasci numa sexta-feira 13, num beco sem saída, numa cidade pobre da América do Sul: Recife. Tinha tudo para fracassar. Fracassei”.

Bela mentira. Em quatro décadas de jornalismo, o Geneton do beco e da sexta-feira 13 tornou-se, para sorte de todos nós, um exemplo de sucesso e uma referência para todos os repórteres que tentam ser fiéis ao compromisso irrevogável de uma imprensa dedicada à verdade, à memória, à história e ao dever de consolar os aflitos e afligir os consolados.

Ele começou como repórter em sua terra, no Diário de Pernambuco e na sucursal local de O Estado de S.Paulo¸ nos duros anos do Governo Geisel, em plena ditadura. Foi estudar no exterior. Em Paris, trabalhou como camareiro do Hotel Mônaco e motorista de uma família rica enquanto estudava Cinema na Sorbonne.

Voltou ao jornalismo, e ao Brasil, para trabalhar no Grupo Globo a partir de 1985. Ali, o repórter que se dizia fracassado foi chefe e mestre nos principais postos de jornalismo da casa: editor-executivo do Jornal da Globo e do Jornal Nacional, correspondente em Londres da GloboNews e do jornal O Globo, repórter e editor-chefe do Fantástico.

Nenhuma mesa poderosa da burocracia da redação, porém, deslumbrou o ex-fracassado do beco: “Não troco por nada o exercício da reportagem — a única função realmente importante no jornalismo”, definia Geneton no seu blog. E foi na função seminal de repórter, não como executivo de redação, que Geneton imprimiu sua marca indelével na imprensa brasileira. As provas estão guardadas para sempre no seu blog, geneton.com.br, que devia ser tombado como patrimônio cultural e leitura obrigatória para estudantes, repórteres, jornalistas e todos aqueles que respeitam a inteligência e o conhecimento. Ali, Geneton passeia sua intimidade, seu talento e seu ofício de repórter exemplar e humilde diante da notícia e de gente que, como ele, fez História. Presidentes e ex-governantes, generais e guerrilheiros, escritores e cineastas, atletas e poetas, astronautas e políticos, cantores e compositores, jornalistas e repórteres, grandes repórteres como ele, passaram pelo crivo de sua inteligência e argúcia.

Os bastardos

As duas sobreviventes do Titanic, o copiloto da bomba de Hiroshima, o assassino de Martin Luther King, o produtor dos Beatles, o promotor britânico do tribunal de Nuremberg, o agente secreto que tentou matar Hitler, os três astronautas que pisaram na Lula, o confessor de Bin Laden nas montanhas de Bora-Bora, o professor do líder dos terroristas do 11 de Setembro, o homem que encarou o ‘Setembro Negro’ nas Olimpíadas de Munique, o filho do carrasco nazista de Auschwitz que ataca o próprio pai, o guerrilheiro brasileiro que recrutou a mãe para a luta armada, o repórter de Watergate que derrubou o presidente da Casa Branca, o relato dos 11 jogadores brasileiros da derrota na final da Copa de 1950 num Maracanã estufado com 10% da população do Rio de Janeiro na época, mais de 200 mil torcedores.

Todos fazem parte deste universo mágico que Geneton esquadrinhou e trouxe para perto de nós, para nos recontar, com detalhes inéditos, a saga da espécie humana, nos seus bons e maus momentos. “Que se faça a louvação da reportagem. O papel de todo repórter é produzir informação a curto prazo. E memória, a longo prazo – de preferência, nas páginas de um livro, hoje transformado em espaço nobre a reportagem no Brasil”, escreveu Geneton na orelha do penúltimo de seus onze livros, Dossiê História (2007).

Ali, Geneton se define modestamente como um “pequeno tarefeiro da memória porque, em última instância, a memória é a grande matéria-prima do jornalismo”. Nessa tarefa, ele seguia com devoção o mandamento de um velho jornalista do inglês The Times, que ensinava:

Toda vez que estiver entrevistando alguém, anônimo ou famoso, rico ou pobre, o repórter deve sempre fazer a si mesmo, intimamente, a seguinte pergunta:

‘Por que será que estes bastardos estão mentindo para mim?’

O blog de Geneton se define como ‘jornal de um repórter’ e tem até uma padroeira, uma tal de ‘Nossa Senhora do Perpétuo Espanto’. Ele explicava:

Para que possam contribuir com esse ‘mundo real’, os jornalistas têm que ter uma atitude de permanente espanto. Precisam ser ‘levantadores’, não ‘derrubadores’ de matéria.

É aí que entra em cena, gloriosamente, a Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. Quando criou esta ‘entidade’, Kurt Vonnegut [1922-2007, escritor, EUA] não estava se referindo ao jornalismo, mas essa ‘santa’ deveria ser proclamada padroeira plenipotenciária da nossa profissão.

O jornalista precisa manter, em algum ponto de suas florestas interiores, aquela chama, aquela faísca, aquele espanto que se vê no brilho dos olhos de um estagiário – ou de uma criança.

Quando você se guia pelo entusiasmo das pessoas que estão fora da redação, o resultado do trabalho é melhor do que se você se guiasse pelo tédio dos que estão dentro.

Geneton ensinava que o mundo real é mais interessante do que o mundo dos jornalistas: “Cansei de ver, ouvir e encontrar leitores e telespectadores mais interessados pelos fatos do que jornalistas. Não estou falando de algo abstrato, mas de uma situação real, palpável, comprovável no dia a dia dos jornais. Cansei de ver em redações um clima de tédio total entre os jornalistas. Se você atravessar a rua, for à padaria e comentar que entrevistou uma velhinha que foi passageira do Titanic, provavelmente os ‘ouvintes’ farão perguntas e se interessarão pelo assunto, enquanto muitos jornalistas dirão, com os olhos semicerrados de tédio: ‘Ah, mas já faz 100 anos que o Titanic afundou…’.”

Esse diagnóstico levou Geneton à descoberta de uma terrível doença que ataca as principais redações brasileiras: a SFG, a ‘Síndrome da Frigidez Editorial’, que ele batizou e, com ar divertido, ameaçava registrar na Organização Mundial da Saúde. Definição da síndrome, segundo Geneton: “É a doença do jornalista que, depois de anos de profissão, perde a capacidade de se espantar diante da realidade. Se perde esse fogo, o jornalista deve mudar de profissão”.

E jornalista que não se espanta, é claro, nem pergunta mais.

O crédito do general

Perguntar é o que Geneton sabia fazer como ninguém na imprensa brasileira. Como já se disse, “o jornalismo é a atividade humana que depende essencialmente da pergunta, não da resposta. O bom jornalismo se faz e se constrói com boas perguntas”.

Inimigo juramentado do terno e gravata, fiel ao seu negro blusão de gola rolê que fazia contraste com o branco da barba branca e dos cabelos desgrenhados e cada vez mais ralos no alto da cabeça, Geneton não se intimidava diante das luzes e câmeras da GloboNews, muito menos diante de seus entrevistados. Preocupado menos com a forma, o penteado ou o traje, ele não descuidava nunca do conteúdo, a partir da pauta que ele mesmo escrevinhava, em letras grandes, em folhas de papel almaço que brandia e consultava sem constrangimentos em suas entrevistas. Com sua fala mansa e firme, no doce sotaque recifense que preservou até o fim, Geneton encarava as respostas enganosas com mais perguntas — rápidas, incisivas, cirúrgicas —, repelindo as mentiras com outras perguntas que conduziam à verdade.

Quando o notório Paulo Maluf negou ser sua a assinatura de uma conta no exterior, mesmo diante do documento exibido pelo entrevistador, Geneton disparou:

— O sr. nega então que este Paulo Maluf, aqui, seja o senhor?

— Nego.

— Mesmo com a assinatura de Paulo Maluf?

— Nego.

— Então, existe outro Paulo Maluf?

O Maluf à sua frente ficou em silêncio.

Como todo bom repórter, Geneton era teimoso. Tentou uma, duas, três vezes, até convencer o general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015), ministro do Exército do Governo Sarney, a lhe dar uma histórica entrevista em 2010. Nos créditos da telinha, supreendentemente, o general não aparece identificado como o primeiro ministro militar da democracia, mas como o chefe da repressão da finada ditadura, a quem Leônidas serviu com espartana e rígida fidelidade. Por isso, na entrevista da GloboNews, o general é creditado apenas como ‘chefe do DOI-CODI, 1974-1977′.

O general falou com uma fluência inédita e uma sinceridade desconcertante, levantando temas que beiravam a fantasia, a leviandade e a arrogância. Ironizou as denúncias (“Hoje todo mundo diz que foi torturado para receber a bolsa-ditadura”) e duvidou até do assassinato do jornalista Vladimir Herzog sob torturas no DOI-CODI de São Paulo, em 1975: “Eu não tenho convicção de que Herzog tenha sido morto… Um homem não preparado e assustado faz qualquer coisa. Até se mata”.

Leônidas desafiou qualquer um a dizer que foi torturado no DOI-CODI do I Exército, no Rio de Janeiro, que ele comandou como chefe do Estado-Maior durante quase três anos, na fase mais turbulenta do governo Geisel. ‘Não houve tortura na minha área’, garantiu Leônidas.

Devia ser uma bolha milagrosa, porque ali mesmo no I Exército, comandado pelo general Sylvio Frota entre julho de 1972 e março de 1974, o DOI-CODI carioca era um centro de morte, conforme apurou O Globo. Naquele espaço de 21 meses, contou o jornal, morreram 29 presos nas masmorras da afamada rua Barão de Mesquita, onde funcionava o centro de torturas do Exército, comandado pelo notório major Adyr Fiúza de Castro, um dos radicais mais temidos da ditadura. Bastou chegar ali e assumir o DOI-CODI carioca, fantasiava o general Leônidas, e a paz dos anjos se instalou.

Sem arrogância, Geneton enfrentou o general Leônidas com perguntas precisas, enxutas, minimalistas, que iluminaram a história e conseguiram arrancar o melhor (e o pior) do chefe da repressão política que se orgulhava de seu trabalho na ditadura. Preocupado com a edição do programa na TV, Leônidas se apressou em ensinar jornalismo a Geneton:

— Que minhas ideias não sejam suprimidas na edição. Se houver um corte, você me deixa mal — avisou o general, esquecido de que o regime de força que ele defendeu se esmerava em cortes sistemáticos pela censura burra que suprimia ideias e fatos que sempre deixam mal as ditaduras. Geneton não cortou, e ainda assim o general Leônidas ficou muito mal pelas ideias que exprimiu, livremente.

Sempre educado, mas incorrigivelmente firme, Geneton questionou a exótica versão do general de que líderes do regime deposto – como Arraes, Brizola, Jango, Prestes – saíram do Brasil, a partir de 1964, ‘porque quiseram’. Leônidas mirou no ex-governador Miguel Arraes, conterrâneo de Geneton, pregando:

– Ele [Arraes] podia ter ficado em casa…

– Deposto – emendou Geneton.

– E qual é o problema? – admirou-se o general.

– Todo – encerrou Geneton, com a sintética sabedoria que o general, já nos seus 90 anos, ainda não apreendera. – Não havia condições de exercer a política no Brasil, naquela época, general.

O ex-chefe do DOI-CODI desdenhou toda uma fase de arbítrio e violência, dizendo que o país não teve exilados pelo golpe de 1964, mas apenas ‘fugitivos’.

– Eles que ficassem aqui e enfrentassem a justiça – pregou Leônidas.

– General, num regime de exceção, a justiça não é confiável – replicou o repórter, com a altivez e a dignidade devidas.

Eu destaquei esse luminoso desempenho de Geneton x Leônidas num texto — A arte de perguntar —, publicado pelo site Observatório da Imprensa em 7 de abril de 2010, quatro dias após a exibição do programa pela GloboNews, num sábado.

Geneton, o mestre e amigo a quem eu tratava nos e-mails pelo carinhoso título de Master Asker (Mestre Perguntador), me agradeceu pelo texto com o bom humor de sempre:

Olá. Com um cabo eleitoral como você aí, considero-me eleito para o Comitê

Central do PPB, Partido dos Perguntadores do Brasil. Obrigado!

No dia seguinte, ainda mais feliz, Geneton me repassou uma mensagem do diretor da GloboNews, César Seabra, que redistribuiu pelo correio interno o meu texto do Observatório a toda a equipe da TV, com a seguinte determinação:



Caros,

o texto do link abaixo faz elogios merecidíssimos ao nosso Geneton.

Mas também nos faz um alerta precioso, sobre como conduzir uma entrevista.

É leitura obrigatória para todos – apresentadores, repórteres, editores, produtores, chefes… Aproveitem. Beijo e bom dia,

César



Bolt da garotada

O incansável Geneton não desistiu do general, que ficou satisfeito com o que viu no ar, com todas as suas ideias bizarras respeitadas, como cabe numa democracia. “Devo ter recebido uns 400 telefonemas…”, disse o eufórico Leônidas a Geneton, num encontro casual num final de manhã de junho de 2014 num shopping do Leblon. Em março de 2015 Geneton pensava num lance mais ousado. Colocar o general da repressão no estúdio diante de um guerrilheiro da luta armada. O general piscou. Perguntou quem seria seu oponente. Geneton pensava no ex-guerrilheiro Cid Benjamin, um dos integrantes do grupo que sequestrou o embaixador americano Burke Elbrick em 1969. “Vou dizer uma coisa que você não sabe: o Cid foi prisioneiro meu”. O encontro épico sonhado por Geneton nunca aconteceu: Leônidas morreu três meses depois, aos 94 anos, exatamente um ano depois do encontro dos dois no shopping.

Geneton esmerou-se na arte das perguntas por que esta é a missão central do repórter: “Não faça jornalismo para jornalista. Faça para o público”, repetia ele ao público, embevecido como eu, nas duas vezes em que nos encontramos, em 2011 e 2014, no tradicional SET Universitário promovido pela Famecos (Comunicação Social) da PUC de Porto Alegre. É o mais longevo (29 anos em 2016) evento de comunicação do sul do país, atraindo gente da Argentina, Uruguai e outros países. Geneton era o Usain Bolt da garotada, que ele conquistava com a rapidez e o brilho de um raio.

Mesmo diante da crise econômica que vive a indústria da comunicação e da crise existencial que abate os jornalistas atropelados pelo desafio da tecnologia, Geneton nunca abdicou de seus princípios. Fidelidade absoluta à reportagem e ao seu ídolo maior, Joel Silveira (1918-2007), “o maior repórter brasileiro”, um sergipano autodidata que Geneton frequentava todo dia, até a sua morte, com a reverência de um fã.

Joel foi correspondente de guerra na campanha da FEB na II Guerra Mundial, escalado para cobrir o conflito em 1944 pelo dono dos Diários Associados. Assis Chateaubriand lhe deu a ordem final:

— O senhor vai para a guerra! E vou lhe pedir um favor, senhor Silveira: não me morra! Repórter não é para morrer, repórter é para mandar notícia!

Joel embarcou e voltou. Mas, contrariando as ordens de Chateaubriand, morreu um pouco.

— Fui para a Itália com 27 anos, passei dez meses e voltei com 40 anos. A guerra me tirou 13 anos — confessou o ídolo Joel ao fã Geneton, que a partir desses 20 anos de convivência e confidências, juntando fitas K7 e imagens amadoras, acabaria produzindo um documentário fundamental de 90 minutos sobre o maior repórter brasileiro: Garrafas ao mar — A víbora manda lembranças, exibido pela GloboNews em 2013.

Geneton se divertia contando as relações de seu ídolo com os magnatas da mídia. De Chateaubriand, Joel ganhou o apelido de ‘víbora’. De Adolpho Bloch, dono da revista Manchete, onde Joel publicou suas últimas reportagens, ele ganhou um bilhete. Bloch aproveitou uma viagem de seu repórter a Jerusalém e lhe pediu que colocasse o bilhete, como manda a tradição judaica, numa das frestas do Muro das Lamentações, acompanhado de um pedido. Joel cumpriu a pauta do patrão, que lhe perguntou na volta:

— E aí, Joel, fez o pedido?

— Fiz, Adolpho. Pedi para você me dar um aumento de salário…

O porta-estandarte

Um dos mantras preferidos do sergipano Joel Silveira — “Jornalismo é ver a banda passar, não é fazer parte da banda” — reproduz bem a visão que seu fã pernambucano tinha de boa parte da mídia atual, em que o jornalismo cede espaço ao partidarismo, a razão é acuada pela paixão, a isenção é atropelada pela facção. Geneton também deplorava o engajamento até de jornalistas experientes em uma ou em outra banda partidária, no calor de uma luta político-eleitoral cada vez mais acesa que rebaixou parcela da imprensa ao jogo abrutalhado de um Fla-Flu de caneladas e mútuo xingamento, tão estridente que nem dava para ouvir a banda passar.

Geneton, com a serenidade que nunca lhe permitiu desfilar nessas bandas, definia:

— Fazer jornalismo é não praticar nunca, jamais, sob hipótese alguma, a patrulha ideológica.

Geneton via em Joel o seu ideal cada vez mais romântico do repórter que sobreviveu à ‘ditadura da objetividade’, imposta para combater pragas como subliteratura, beletrismo e academicismo, e sucumbiu à maldição dos tempos atuais, com textos áridos, chatos, anêmicos, soporíferos, iguais. “Lástima, lástima, lástima”, lamentava Geneton.

Geneton sonhava com alguém pichando os muros da cidade, proclamando: “Chega de objetividade! As notícias eu já vi na internet e na TV! Quero vivacidade, imaginação, arrebatamento, ousadia!”. No seu devaneio, Geneton achava que Joel poderia ser o porta-estandarte do resgate desse tipo de jornalismo, segundo ele exilado para a Sibéria.

— A luta por um jornalismo mais vívido, mais atraente, mais iluminado faz parte da luta por um Brasil menos medíocre. Por que não? — perguntava-se Geneton, mais uma vez.

Para sustentar sua teoria, ele usava a prática inigualável de Joel, dando como exemplo este texto em que o velho sergipano descrevia um menino morto no Bogotazo, uma revolta popular na Colômbia de 1948 que se seguiu ao assassinato de um candidato liberal da oposição, Jorge Gaitán, abatido na rua com três tiros. Os protestos, desordens e a repressão desatada em Bogotá, num único dia, deixaram um saldo de 500 mortos só na capital. Trecho do texto de Joel:

Estive no Cemitério Central de Bogotá, em afazer de repórter, para ter uma ideia aproximada do saldo de mortos deixado pela explosão popular. Nunca, em toda minha vida, nem mesmo nos meses de guerra, estive diante de mortos tão mortos. Somente aquele menino – não mais de oito anos – morrera cândido, de olhos abertos, um começo de sorriso nos lábios. Os olhos vazios fixavam o céu de chumbo. As mãos de unhas sujas e compridas pendiam sobre a laje dura – como os remos inertes de um pequeno barco. Um funcionário qualquer se aproximou, olhou por alguns segundos o menino morto, procurou sem achar alguma coisa que ele deveria trazer nos bolsos. Tentou em seguida fechar com os dedos os olhos abertos, mas não conseguiu. Abertos e limpos, os olhos do menino morto pareciam maravilhados com o que somente eles viam, com o que queriam ver para sempre.

Geneton fez a pergunta, que insinuava a resposta:

— Os jornais de hoje publicariam textos assim? O grande poeta Ferreira Gullar fez uma vez, num verso, uma pergunta que a gente bem que poderia repetir, contra o cinzento da mesmice: ‘Onde escondeste o verde clarão dos dias?’. Ah, Jornalismo: onde escondeste o clarão?

Geneton, sempre amigo e solidário, acompanhou solitário o final de vida dos últimos 20 anos da víbora da reportagem. Ninguém mais frequentava aquele apartamento deserto no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana, habitado apenas por livros, lembranças, história e Joel Silveira.

— Estou morrendo, Geneton, estou morrendo! — suspirava o velho repórter, que já não saía de casa e já não tinha amigos. Só Geneton. Joel desprezou o tratamento de um câncer na próstata para morrer em casa em 2007, na amarga mansidão de seus 88 anos. Na companhia fiel de seu último amigo.

Um dissidente

O fim melancólico de Joel Silveira, que Geneton definia como precursor do New Journalism que fez a fama de profissionais festejados como Gay Talese e Truman Capote, explica um pouco a visão cada vez mais pessimista que Geneton tinha do próprio jornalismo na atualidade.

Geneton criava, produzia, executava, editava e apresentava suas próprias reportagens na GloboNews, com a doída convicção de que, como Joel, ele se tornava uma avis rara do jornalismo, um exemplar de dinossauro condenado à extinção imposta pelo cometa brilhante da inevitável modernidade tecnológica. Geneton parecia, agora, uma víbora que já não confiava nem na peçonha de suas perguntas, por mais venenosas que fossem.

Aqui e ali, sem alarde, Geneton deixava fluir aos poucos sua melancolia, fazia vazar sua desilusão.

Na véspera do réveillon de 2010, ele publicou em seu blog uma nota sem destaque, quase escondida, sugerindo um ‘Teste para Seleção de Jornalistas’. Era uma azeda reflexão sobre o jornalismo:

Uma sugestão aos responsáveis pelos departamentos de pessoal das empresas jornalísticas: depois de pesquisas que se arrastaram por meses, os especialistas conseguiram montar um teste infalível para seleção de candidatos a vagas nas redações.

O candidato ao emprego deve ficar imóvel durante três minutos, diante de um fiscal da empresa.

Se, ao final deste prazo, o candidato não latir nem relinchar deve ser sumariamente eliminado, porque não serve para a profissão jornalística.

Se, no entanto, o candidato emitir latidos e relinchos terá provado que é jornalista legítimo. Deve ser imediatamente contratado.

Porque mostrou estar preparado para ingressar nas redações brasileiras e produzir os jornais, revistas e programas de TV mais chatos do mundo.

Cinco anos depois, em 24 de agosto de 2015, inspirado numa definição de Winston Churchill para a União Soviética de Stálin (“É uma charada envolvida num mistério dentro de um enigma”), Geneton voltou a filosofar com amargura em seu blog, numa nota impiedosa sob o título ‘Entrevista de Emprego’, que seria cômica, se não fosse trágica:

Se eu fosse enfrentar hoje uma entrevista de emprego e se me pedissem para dizer em trinta segundos o que penso do jornalismo, eu diria, com toda sinceridade:

‘Depois de décadas na estrada, tenho a nítida, nitidíssima sensação de que, no fim das contas, como escolha profissional, o jornalismo foi um equívoco envolvido num engano dentro de um grande erro. Mas agora é tarde para voltar atrás. Bola pra frente, então! Faz de conta que é a melhor profissão do mundo!

E é – para os que se descobrem tecnicamente incapazes de fazer alguma coisa que seja de fato útil ao avanço da humanidade!”.

Nem preciso dizer que eu seria imediatamente dispensado pelo burocrata do Departamento de Recursos Humanos encarregado de selecionar os candidatos.

Eu ouviria o aviso de dispensa sumária, me levantaria, cumprimentaria o dispensador e diria: ‘Parabéns! Você nunca tomou uma decisão tão acertada!’.

Cinco anos antes, na mesma mensagem de 8 de abril de 2010 em que me agradecia pela louvação à sua ‘arte de perguntar’, o e-mail privado de Geneton traía sua desilusão já na linha seguinte, com uma inesperada autodefinição em tom de confissão:

Pode parecer pretensão, mas acho que realmente o jornalismo se mediocrizou.

O exibicionismo toma o lugar da substância, especialmente na TV.

Modestamente, considero-me um dissidente.

O dissidente Geneton Moraes Neto, meu amigo Master Asker, nosso grande Mestre Perguntador, nos deixou de repente, envolto num manto diáfano de desencanto, deixando no ar uma última pergunta, que cabe a todos nós responder:

— Por quê?

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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

No sertão, em karne viva ...

JUVENTUDE DE SOUSA, PB
“Pessoas castigadas pelo sol e pela fome lamentam a dor de mais um ano que passou”, diziam eles em “Política da sêca” já no primeiro álbum, lançado em vinil em 1994. Karne Krua, apesar de ser uma banda originalmente urbana – nasceu no Conjunto Bugio, periferia de Aracaju, em 1985 – sempre cantou as mazelas do povo sofrido do sertão nordestino. Foi com muito gosto que recebeu, portanto, o convite do Centro Cultural Banco do Nordeste para que participasse da edição deste ano do projeto “Rock Cordel”, em juazeiro do Norte, Ceará, e Sousa, na Paraíba.

Precisavam de alguém que dirigisse para ajudar na empreitada – 644km de ida, 189 entre as duas cidades e 730 de volta – então me chamaram. De carro alugado, saímos de casa às 3 da manhã da sexta-feira, 23 de julho, e aportamos na terra do Padre Cícero depois do meio-dia. Cidade bonita, situada num vale circundada por montanhas. Crescendo, com cerca de 260.000 habitantes, já apresenta um embrião de “skyline” com arranha-céus impressionantes.

No centro, a praça Pe. Cícero (tinha que ser, né) já estava sendo preparada para o evento. A banda passou o som – instalado num palco em frente a uma estátua do ... padre Cícero! - e resolveu adiar o descanso da longa viagem diante da insistencia das simpáticas moças da produção para que visitassem os camarins, devidamente abastecidos com suquinhos e frutinhas, mas sem camas, que era do que precisávamos naquele momento. Em todo caso, nada a reclamar, tratamento impecável ...

O show (veja AQUI) começou cedo, por volta das 20H. Por ser numa praça pública e num dia de feriado na cidade, acabou atraindo um bom público, boa parte de curiosos “não iniciados”. Na linha de frente, a juventude “roqueira” ensandecida foi à loucura, agitando muito, circundada por uma miríade de rostos com os olhos fixos no palco, impressionados com a verdadeira catarse sonora que saia dos altos falantes. Silvio, o vocalista, estava doente, gripado e com a garganta inflamada, mas mesmo assim entregou uma perfomance avassaladora. Aos poucos foram conquistando a platéia com uma apresentação explosiva, emendando uma música atrás da outra, sem pausa para descanso. No final, depois de um bis insistentemente pedido, foram ovacionados e muito comprimentados.

O show terminou cedo e a noite do Cariri nos esperava:  comemoramos, eu e Alexandre Gandhi, os insones, o sucesso até ali da empreitada num simpático bar “roqueiro” chamado “Cangaço”, que ficava a três quadras da praça. Pra lá de simpático, eu diria: impressionante! Instalado numa ampla casa residencial adaptada, dispunha de vários ambientes muito bem decorados e aconchegantes, com música de excelente qualidade saindo dos auto-falantes. Nos fundos, no que seria originalmente um quintal, um “voz e violão” tocado por um musico competente, com excelente perfomance vocal. Animou o público – bastante despojado, aliás, na base da camiseta, bermuda e chinelo, bem diferente do povo hipster chique “empiriquitado” que tinha visto uma semana antes na Reciclaria de Aracaju – ao ponto de provocar uma cena inusitada, quando algumas garotas dançaram funk ao som de Legião Urbana(!!!), requebrando lascivamente até o chão ...

No dia seguinte, um sábado, demos um “rolê” pelo comércio e pudemos ver o impacto da apresentação: os caras foram reconhecidos, abordados e parabenizados várias vezes na rua. Impressionante, um verdadeiro dia de “rock star”. Visitamos uns sebos e uma loja especializada em rock, além de constatarmos que praticamente todos os estabelecimentos do centro comercial de Juazeiro ostentavam em suas portas uma estátua do padre Cícero, o onipresente. Nas ruas, um carro de som anunciava uma promoção da òtica Padre Cícero, que fica na Rua pe. Cícero, esquina com a Praça Pe. Cícero. Por volta do meio dia retomamos a estrada, passando antes pela Aveninda Padre Cícero e vendo ao longe a célebre estátua do Padre Cícero ...

O caminho até a próxima parada foi tranquilo, apesar de sinuoso nas imediações de Juazeiro. Sousa é menor – população estimada de 68.000 habitantes – e menos marcada pela religiosidade. Mas tem pegadas de dinossauros! Fica lá um dos mais importantes sitios paleontológicos existentes, com a maior incidência de pegadas de dinossauros do mundo! Mas infelizmente, por causa da passagem de som, não pudemos visitar o vale. Tivemos que nos contentar em tirar fotos com algumas das muitas estátuas dos dinos espalhadas pela cidade, além de comprar biscoitos no Supermercado Dinossauro, que fica ao lado da pousada Dinossauro – não ficamos lá, fomos gentilmente hospedados por um amigo. E lá os dinossauros, no caso, éramos nós, já que ele é novinho ...

O show, que começou por volta das 22H, aconteceu num calçadão que fica ao lado do Centro Cultural Banco do Nordeste, o promotor do evento – bem bacana, aliás, seria interessante ter um destes aqui em Aracaju. Tinha menos publico que em Juazeiro, mas foi igualmente devastador, com um set list conciso dividido em blocos temáticos, dentre eles um que reunia músicas que falavam do sertão nordestino, como “O vaqueiro e a boiada”, “O guerreiro”, “Terra Morte”, “Sêco” e “Inanição” – esta última uma obra-prima, provavelmente a melhor música da karne Krua. O público, especialmente a juventude sedenta por rock selvagem, agitou muito e ovacionou a banda.

Na volta pra casa, nos arredores de Campina Grande, um susto: paramos o carro numa ruela paralela á rodovia para ajustar o GPS. De cara já chamamos a atenção de um casal de transeuntes, que pareceu bastante assustado com a nossa presença. Normal, tempos de violência urbana  desenfreada, tem que ter medo mesmo. Enquanto Ivo mexia nas coordenadas notei que logo à frente, num descampado, se avistava um presídio. Ok. Os sinais de alerta mentais começaram a piscar quando uma viatura da polícia tenha passou por nós em marcha lenta, olhando fixamente para o interior do veículo. Voltou minutos depois com uma escolta impressionate, de mais uns três ou quatro veículos, de onde saltaram homens armados com fuzis de grosso calibre se dirigindo em nossa direção. Mantivemos a calma e saltamos do carro a pedido do comandante da operação, enquanto os que faziam a cobertura verificavam se havia alguém por trás do muro ao lado do qual estávamos estacionados. Mãos na parede, fomos revistados. Nada foi encontrado e o comandante pediu pediu para que abrissimos o porta-malas do carro. Ao constatar que se tratavam de musicos – Blitz! Documentos! “Só temos instrumentos” - explicou de maneira educada que estavam fazendo a segurança do presídio, já que era dia de visitas, e haviam nos abordado por estarmos no lugar errado na hora errada, em atitude suspeita. Desculpou-se pelo incômodo e ainda nos deu dicas de rotas.

E foi isso! Vida longa ao Rock Cordel, que proporciona a bandas independentes com trabalho autoral a circulação por cidades onde dificilmente chegariam por conta própria, com uma estrutura relativamente boa e um cachê relativamente decente. Que não sucumba aos tempos sombrios em que vivemos – ouvi relatos de que era o último projeto cultural ainda de pé dentre vários que o banco mantinha.

FORA TEMER!

A.

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quinta-feira, 11 de agosto de 2016

TUDO AO MESMO TEMPO AGORA

As Histórias em quadrinhos brasileiras seguem conquistando o mundo: os irmãos gêmeos paulistanos Fábio Moon e Gabriel Bá, de 40 anos, venceram pela segunda vez o prêmio Eisner, considerado por muitos o oscar dos quadrinhos. Agora na categoria “Melhor adaptação de outra mídia”, por Dois Irmãos (Quadrinhos na Cia., 2015), baseado no romance homônimo do manauara Milton Hatoum. A primeira foi em 2007, pela aclamada “Daytripper”, na categoria “série limitada”. “Dois irmãos”, que foi lançado nos Estados Unidos pela influente editora Dark Horse, a quarta maior do mercado – perde apenas pra Marvel, DC e Image - narra uma tumultuada relação de ódio entre dois irmãos gêmeos nascidos numa família de origem libanesa que vive em uma Manaus decadente, muito distante da efervescência econômica e cultural do ciclo da borracha, no início do século XX. O livro foi lançado no ano 2000 e se tornou uma espécie de clássico moderno da literatura brasileira. A adaptação para os quadrinhos segue o mesmo destino. ++++++++++++++++

Em se tratando de Histórias em quadrinhos, aqui em Aracaju temos o enorme talento de Eduardo Cardenas, que pode ser comprovado com a leitura de seu “Mórbido, maléfico e maldito gibi”. São contos curtos de horror decentemente roteirizados, magnificamente ilustrados e distribuídos em 32 páginas impressas aqui mesmo, no estado, com um resultado pra lá de satisfatório em termos de qualidade gráfica. Produção do autor, independente, pode ser adquirida no site http://lostcomics.com.br/ . Lá estão disponíveis para venda, também, “The Noir Samurai Tango – O Boêmio”, do professor e quadrinista sergipano Rodrigo Seixas; “Somner”, da baiana Dimítria Elefthérios, e “Boiuna – o guardião das esmeraldas”, uma HQ no estilo do horror clássico com temas tipicamente brasileiros - seu autor, o veterano Elmano Silva, é egresso da escola revelada nos anos 1970 e 80 pelas revistas Spektro, Calafrio e Mestres do Terror. //////

“O que é roubar um banco se comparado a fundar um?” Os personagens principais da HQ “Criminosos do sexo” parecem concordar com a tese de Bertold Brecht, pois é o que resolvem fazer assim que pensam numa função prática – e lucrativa - para o misterioso poder que descobrem ter: parar o tempo ao seu redor quando atingem um orgasmo. Escrita pelo premiado Matt Fraction e belamente ilustrada por Chip Zdarsky,”Criminosos do Sexo” está sendo publicada nos EUA pela Image Comics desde setembro de 2013 e é uma das séries em quadrinhos mais cultuadas da atualidade. Além de frequentar com assiduidade o primeiro lugar no ranking dos mais vendidos do New York Times, foi indicada a dois Eisner Awards em 2014, incluindo Melhor Série Contínua, e venceu na categoria de Melhor Nova Série. Em fevereiro do ano passado seu autor assinou contrato com a Universal TV para uma versão nas telinhas. No Brasil, já tem dois volumes belíssimamente encadernados em capa dura lançados pela Editora Devir. Fique de olho, também pra poder dizer, quando se tornar um estrondoso sucesso mundial a la “Walking Dead”, que já conhecia. E que nos quadrinhos é muito melhor. \\\\\\\\\\\\

Muhammad Ali morreu no dia 03 de junho de 2016 e eu finalmente peguei pra ler o gibizão de capa dura com miolo em papel couchê que a panini lançou faz algum tempo com uma história publicada originalmente pela DC Comics em 1978 em que ele enfrenta ninguém menos que o Superman! A idéia esdrúxula acabou rendendo uma HQ criativa e divertidíssima, desenhada pelo legendário Neal Adams. Vale uma conferida.  #############

Em 2015 o prêmio Nobel de literatura foi entregue a uma jornalista, a bielorussa Svetlana Aleksièvitch, de quem pouco ou nada se tinha ouvido falar, até aquele momento, por aqui. Por conta disso, sua obra singular, composta por depoimentos colhidos entre sobreviventes da guerra, do totalitarismo e de desastres nucleares e lapidados numa prosa que a Academia sueca qualificou de “Literatura polifônica” passou a ser , finalmente, publicada no Brasil. Já saíram até agora, pela Companhia das letras, Vozes de Tchernóbil – A história oral do desastre nuclear e A guerra não tem rosto de mulher. Este ano ela foi a grande atração da Flip, a Feira de Litaratura de Paraty, onde fez declarações como esta: “Prefiro o trabalho das mulheres ao dos homens. Quando morei na Suécia, a ministra da Defesa era uma mulher. Lembro uma foto dela grávida, passando em revista as tropas. Se todos os ministros da Defesa fossem mulheres, teríamos menos guerra no mundo. Trabalhei 30 anos sobre a história do comunismo russo e entrevistei centenas de homens e mulheres. Sempre as histórias delas eram mais interessantes. O mundo feminino é mais colorido, mais na base do emocional, mas ainda não chegamos ao ponto de igualdade entre gêneros no mercado de trabalho. Na minha terra há muito poucas mulheres na política e em outras áreas expressivas. Há também poucas autoras, que na opinião de muitos só deviam escrever sobre flores, amores e cozinha. Eu mesma quando comecei a escrever sofri questionamentos por abordar temas tão pesados.” ////

Quem também esteve na Flip, trazido talvez pelo anuncio da continuação do filme baseado em seu livro mais famoso, “Trainspotting”, foi o escocês Irvine Welsh. “Pornô”, a continuação de Trainspotting na literatura, servirá como ponto de partida, mas a nova história seguirá novos rumos, porque a indústria pornográfica mudou muito desde que o livro foi lançado, em 2002. Em todo caso, a volta do elenco original, inclusive de Ewan McGregor, que havia rompido com o diretor Danny Boyle ao ser preterido por ele em favor de Leonardo DiCaprio como protagonista de “A Praia”, tem causado frisson nos fãs – que não são poucos, e dentre os quais me incluo. Welsh escreveu ainda “Skagboys”, uma espécie de “prequel” de “Trainspotting”, em 2012, mas veio ao Brasil este ano para lançar seu novo livro, “A vida sexual das gêmeas siamesas”, que é ambientado em Miami Beach – bem longe da Escócia, portanto – e discorre sobre outro tipo de vício: o consumismo. Viciado ele mesmo em exercícios físicos, principalmente porque lhe permitem comer o que quiser, ele mora já há sete anos nos EUA, a maior parte do tempo em Chicago, cidade natal de sua mulher. Sobre as diferenças entre a América e sua terra natal, declarou: “Miami é muito diferente de onde eu venho. Na Escócia a cultura é mais verbal, em Miami as coisas são mais visuais. Lá as pessoas têm mais consciência do corpo e têm um vício no consumismo americano. É tudo mais físico, você fica mais preocupado com a forma do que em Edimburgo e até Chicago, em que as pessoas acabam ficando presas atrás de laptops. Você sai na rua e vê as modelos da Condé Nast e os artistas. Acho que o clima quente ajuda a criar esse comportamento de rua que não há em outras cidades. Há muitos brasileiros lá. E vocês gostam de festas.”

por Fernando Correia
No ano e mês da copa do mundo, em 2014, a Renegades of punk, banda sergipana de punk rock, decidiu aproveitar o refluxo e dar seu primeiro giro pela Europa. Consta que ninguém, além dos que já estão acostumados a circular na contramão, como eles, entendeu nada por lá: “Vocês são brasileiros, seu país está sediando a copa do mundo, o que estão fazendo aqui?” Rock, ora. Dos bons. Só agora, em 2016, o registro do feito apareceu na rede em um documentário de 41 minutos produzido com o capricho que é a marca registrada de tudo o que eles fazem. Chama-se “O som da selva” e pode ser visto no youtube. Veja! //// Quem também acaba de postar o registro de uma miniturnê pela “gringa”, no México, foi a The Baggios. Que está produzindo seu terceiro álbum, “Brutown”, com a ajuda dos fãs – R$ 31.340,00 captados via plataforma de financiamento coletivo “Catarse”. Um dos prêmios para quem colaborou foi o acesso a um show de pré-lançamento que aconteceu no dia 16/07/2016 na Reciclaria. Fui. Me senti um peixe fora dagua com minha bermuda surrada e camiseta do napalm death em meio a um público hipster e arrumadíssimo. “Empiriquitado”, como diz a minha mãe. No rigor do que ditam os blogs de moda. Mas curti. As músicas novas são, no mínimo, interessantes, e nem a participação insossa da chatíssima – e aclamadíssima - Sandy Alê conseguiu estragar a noite – que foi aberta por um combo montado com os novos nomes de uma nova cena independente que germina na cidade, numa “vibe” igualmente “hipster”, emulando a já não tão nova MPB indie das Tiês, Tulipas e Jenecis da vida, ou, pior ainda, aquele roquinho insosso que na verdade não é – e nem faz questão de ser, imagino – rock. O “supergrupo” era composta por Vitória Nogueira e Nicole Donato – não vi, cheguei atrasado; Lau e eu – interessante; Casco – muito ruim – e Cidade Dormitório – a mais promissora, com boas composições, apesar do vocal afetado, que me lembrou o irritante Helio Flanders, do Vanguart. Em todo caso, foi interessante ver amigos egressos das fileiras do Hard Core underground e periférico se aventurando por outras sonoridades – ficou na minha cabêça a imagem do guitarrista, Heder Nascimento – também da Cessar Fogo – dedilhando suavemente a guitarra com uma tatuagem gigante do Motorhead no braço. Adoro esses contrastes ...

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A vida é feita de escolhas. Tinha prometido a mim mesmo que assistiria a um show completo do Napalm Death assim que eles voltassem ao país depois da relativa frustração de vê-los como banda de abertura para o Hatebreed no Circo Voador, em 2014, mas decidi também que não poderia perder a apresentação do Suicidal Tendencies com Dave Lombardo na bateria, que aconteceria uma semana depois. Como tive que escolher, já que dinheiro não é capim nem dá em árvore, escolhi o segundo, que nunca tinha visto ao vivo ...

Comparecemos, eu e minha amiga Luana, do Rio, ao Audio Clube, na Barra Funda, a tempo de ver as bandas de abertura, Tolerancia Zero e Oitão. Chatos pra cacete, ambos. Hard Core “testosteronado” e cheio de “atitude”, com muita pose e pouco conteúdo. Fomos salvos pelos Ratos de Porão, que detonaram, como sempre, tocando na íntegra o pior disco de sua melhor fase, “Anarkophobia”. Mas o grande show foi mesmo do Suicidal, que fez uma entrada triunfal  após ser anunciado por uma garotinha de uns 4, 5 anos, trajada como fã - com direito à clássica bandana azul, evidentemente. Começaram com “You can´t bring me down” e emendaram um hit atrás do outro, sem piedade. Lombardo foi anunciado com pompa e aclamado pelo público, mas fez uma apresentação contida, sem nenhum estrelismo. Era penas um grande – e bote grande nisso – baterista dando uma força aos amigos, sem interferir nos arranjos e andamentos das músicas. Quem brilhou e se destacou mesmo foi Mike Muir, que ainda está em forma e segue sendo um grande frontman, conduzindo a platéia num frenesi insano que acabou em cima do palco, a seu convite.

Antológico! --------------------------------------------------

Antes tarde do que nunca, quero falar também do maravilhoso show de David Gilmour que vi, também em São Paulo, no final do ano passado. Foi no estádio do Palmeiras, reformado e tinindo. Fiquei na pista e muito pra trás, o que foi uma pena: pode-se dizer que vi Gilmour apenas pelo telão, pois de onde eu estava ele era apenas um ponto minúsculo no palco. Em todo caso, e apesar do blah blah blah sem noção do público coxinha que parecia estar ali apenas pelos velhos sucessos do Pink Floyd e pelo “status” conferido pelo preço exorbitante do ingresso, foi lindo poder ver  – na medida do possível, em meio ao mar de celulares posicionados à minha frente – finalmente ao vivo o legendário guitarrista interpretar pérolas do cancioneiro psicodélico circundado por uma banda pra lá de competente e pelo já tradicional show de luzes e feixes de raio laser. Um momento especialmente emocionante, pra mim, foi a volta do intervalo – sim, o show é tão longo que tem intervalo – com uma homenagem a Syd Barret, já que eu havia recebido um inesperado telefonema da namorada de Levi Marques, NOSSO diamente louco, que havia partido deste vale de lágrimas por livre e espontânea vontade alguns dias antes. SHINE ON, you crazy diamond!

Na saída, a platéia dá novo show de deselegancia, mandando em coro a presidenta tomar no cu. Bizarro. Contraste total com o clima intimista do evento.

Quero registrar também a extrema dificuldade que tive para conseguir um táxi depois do show. Foi tenso, pensei que ia ter que dormir na rua ... 

A.

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