sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

ZONS 2014, o festival.

Arte por toda parte.
O Zons é um projeto vitorioso! Está conseguindo, aos poucos, romper a velha lógica de que não seria possível viabilizar a produção de cultura alternativa, em nosso estado, de forma minimamente estruturada, com qualidade e “profissionalismo”, longe dos esquemas viciados do mercado e do setor público/estatal. Ano passado conseguiu o feito de ser o primeiro projeto sergipano a ser aprovado no sistema colaborativo, via “catarse”. Com isso viabilizou os recursos que precisava para a produção de um filme – primoroso, um belíssimo registro para a posteridade - e de um festival inteiramente dedicado à música sergipana que passa ao largo da grande mídia e dos grandes eventos do calendário cultural oficial. Este ano repetiu o feito, com um valor substancialmente maior. O filme ainda está em fase de produção, mas o festival aconteceu no último sábado, dia 13 de dezembro do ano da graça de 2014 – e foi um sucesso!

As apresentações começaram às 14H. Cheguei por volta das 16:30, a tempo de ver a Skabong fazer a festa do público, ainda em pequeno numero, presente. Clima bom, fim de tarde, sol se pondo entre os coqueiros. O local escolhido para abrigar o evento contribuía: espaçoso, aconchegante e bem decorado.  Um tanto quanto distante, para os padrões aracajuanos, mas nada que uma carona amiga não resolvesse.

Na sequencia tivemos o “tropical punk” nervoso da Renegades, sempre competente e energético. Ótima “pegada” em excelentes composições próprias intercaladas com alguns covers – do Husker Du e dos Ramones. O som estava ótimo e a banda afiadíssima – já são alguns bons anos de palco nas costas, inclusive com um giro pelo circuito de “squats” da Europa feito de forma 100% independente. Totalmente “Do it yourself”. Era o rock muito bem representado no zons, que se caracteriza, também, pela diversidade de ritmos ...

Diversidade que “deu as caras” logo na sequencia, com a MPB “ácida” de Alex Santanna – algo próximo ao que gente como Moacir Franco e Jards Macalé costumavam fazer nos anos 70. Bom show, com boas composições, ótimas letras e uma perfomance visceral, acompanhado de uma ótima banda. O que já explicitava outra característica da noite que deixava no ar uma exclamação que não saía de minha cabeça: COMO TEM GENTE TALENTOSA AQUI EM NOSSA TERRA. Creio em Deus pai! Talento pra todo lado, inclusive entre o público, com muita gente boa registrando tudo – as excelente fotos que ilustram esta matéria, por exemplo, são de Saulo Coelho Nunes.

A diversidade se manifestou não penas no aspecto musical, mas em todas as atividades - e foram muitas – que se desenvolveram ao longo do festival. Uma rápida volta pela chácara deixava você de cara com pessoas, literalmente, pintando e ... fazendo pole dance! Sim, no intervalo entre as apresentações musicais tivemos, dentre outras coisas, uma belíssima exibição de pole dance, outra de dança contemporânea e uma peça teatral do grupo Caixa Cênica. Havia também uma lanchonete servindo comida vegetariana, algo indispensável dada a distancia do local e o longo período de tempo que ficariam por ali os que se dispusessem a ver tudo que a noite teria a oferecer . Este foi, no entanto, o ponto fraco da estrutura: o pessoal não conseguia dar conta da demanda, nem parecia ter muita disposição e/ou paciência para explicar as dificuldades a quem estava esperando com fome. Já que estava de carro e a noite seria longa, preferi me deslocar até a Atalaia para comer, o que me fez perder pelo menos um show, da Coutto Orquestra.

Vi antes, no entanto, Polayne, com sua perfomance teatral super elaborada e seus trinados sofisticados com bem colocadas citações ao Cocteau Twins e ao Led Zeppelin, além de uma versão de um clássico do pós punk brasileiro safra década de 1980, “Armadilha”, da banda brasiliense Finis Africae. Bom show – saltando aos ouvidos, mais uma vez, a extrema competência dos músicos! Destaque para a participação especial do grupo de percussão Burundanga.

E cheguei a tempo de ver uma sensacional apresentação da Plástico Lunar, extremamente enriquecida por um show de malabares com fogo executado pela dançarina Monique Leal e pela presença, no palco, de dois grandes guitarristas convidados: Melcíades, da Máquina Blues, e Julico, da Baggios – que tocou na banda por um longo e produtivo período e de cuja falta eles, sejamos sinceros, ainda não se recuperaram. Não por falta de competência dos caras - é que Julico é acima da média, e é naturalmente difícil substituir um musico de sua envergadura. Plástico com Julico é outra coisa, e isso fica claro na nítida empolgação de todos, que não se cansavam de se derramar em rasgados elogios.

Finalizando a noite, o reggae roots classudo e tocado com um feeling sobrenatural da Reação.  Mais que um show, uma verdadeira celebração, comandada por dois caras que estão, certamente, entre os melhores compositores e “front men” do estilo. Assim como a Plástico é, com toda a certeza, uma das melhores bandas de rock atualmente em atividade no Brasil – e é uma pena que a grande maioria do restante do Brasil não saiba disso – o mesmo pode ser dito da Reação, na seara do reggae.

No entanto, não vi a apresentação deles até o fim devido ao adiantado da noite – já passavam das três da manhã e eu estava lá desde as quatro e meia da tarde! Quase 12 horas ininterruptas de arte sergipana de primeiríssima qualidade, apresentada numa estrutura impecável e com uma boa presença de público. Tudo produzido de forma independente e colaborativa. De lavar a alma!

Parabéns a todos os envolvidos – na produção e na viabilização do projeto.

Que venha o filme!

E os zons 2015 ...

A

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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Dilma chorou

(#)O CAPITÃO BENONI DE ARRUDA ALBERNAZ TINHA 37 ANOS, SOBRANCELHA ARQUEADA, RISO DE ESCÁRNIO E FAZIA JURAS DE AMOR À PÁTRIA ENQUANTO SOCAVA E QUEBRAVA OS DENTES DA FUTURA PRESIDENTE DO BRASIL DILMA VANA ROUSSEFF, NA ÉPOCA COM 23 ANOS

Ele era o chefe da equipe A de interrogatório preliminar da Operação Bandeirante (Oban) quando Dilma foi presa, em janeiro de 1970. Em novembro daquele ano, seria registrado o 43º entre os 58 elogios que Albernaz recebeu nos 27 anos de serviços prestados ao Exército.

“Oficial capaz, disciplinado e leal, sempre demonstrou perfeito sincronismo com a filosofia que rege o funcionamento do Comando do Exército: honestidade, trabalho e respeito ao homem”, escreveu seu comandante na Oban, o tenente-coronel Waldyr Coelho, chamado por Dilma e por colegas de cela de “major Linguinha”, por causa da língua presa que tinha.

Um torturador com diploma do Mérito Policial

Depois de 15 anos, os caminhos percorridos por Albernaz não o levaram à condição de herói nacional, como ele imaginava. Registro bem diferente foi associado a seu nome na sentença do Conselho de Justiça Militar em que foi condenado a um ano e seis meses de prisão por falsidade ideológica. “Ética, moral, prestígio, apreço, credibilidade e estima são valores que o militar deve desfrutar junto à sociedade e ao povo de seu país. A fé militar e o prestígio moral das instituições militares restaram danificadas pelo comportamento do réu”, concluiu o presidente do conselho, João Baptista Lopes.

A prensa nada tinha a ver com as sessões de tortura comandadas por Albernaz na Oban. Sua agressividade parecia se encaixar como luva na estrutura criada para exterminar opositores do regime. Apenas um ano depois de torturar Dilma e pelo menos outras três dezenas de opositores, ele recebeu das mãos do então governador de São Paulo, Abreu Sodré, o diploma da Cruz do Mérito Policial.

Filho de militar que representou o Brasil na 2ª Guerra Mundial, Albernaz nasceu em São Paulo e seguiu a carreira do pai. Classificou-se em 107º lugar na turma de 119 aspirantes a oficial de artilharia em 1956, mesmo ano em que se casou. Serviu no Mato Grosso do Sul antes de ser transferido para Barueri, em São Paulo, no início dos anos de 1960.

Tinha fixação pela organização de paradas de 7 de setembro. Estava na guarda do QG do Exército na capital paulista, em fevereiro de 1962, quando o comandante foi alvo de atentado à bala. Conseguiu correr atrás do autor e o espancou. Virou pupilo do general Nelson de Mello, que mais tarde viraria ministro da Guerra no governo de João Goulart.

Estava em férias na noite do golpe militar de 1964 e, ainda assim, apresentou-se espontaneamente para o serviço. Em 1969, representou o comando de sua unidade na posse do secretário de Segurança Pública de São Paulo, o general Olavo Viana Moog, um dos futuros comandantes do grupo que exterminou a Guerrilha do Araguaia.

Neste mesmo ano foi convocado pelo general Aloysio Guedes Pereira para servir na recém-criada Oban, centro de investigações montado pelo Exército para combater a esquerda armada. Foi lá que Dilma o conheceu.

“Quem mandava era o Albernaz, quem interrogava era o Albernaz. O Albernaz batia e dava soco. Começava a te interrogar; se não gostasse das respostas, ele te dava soco. Depois da palmatória, eu fui pro pau de arara”, disse a presidente em depoimento dado, no início dos anos 2000, para o livro Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf Carvalho.

Em 2001, em relato à Comissão de Direitos Humanos de Minas Gerais, Dilma afirmou que já tinha levado socos ao ser interrogada em Juiz de Fora (MG), em maio de 1970, e que seu dente “se deslocou e apodreceu”. No mesmo depoimento, ela explicou: “Mais tarde, quando voltei para São Paulo, Albernaz completou o serviço com socos, arrancando meu dente.”

Telefone de magneto era usado para choques elétricos

Albernaz era conhecido por se divertir dizendo aos presos que, por ser muito burro, precisava ouvir respostas claras. Tinha na sala um telefone de magneto que era usado para “falar com Fidel Castro”, metáfora para a aplicação de choques elétricos, segundo relato de Elio Gaspari no livro A ditadura escancarada.

“Quando venho para a Oban, deixo o coração em casa”, explicava às vítimas. Uma delas foi o coordenador do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, primeiro preso a desaparecer após a edição do AI5.

O mesmo general que convocara Albernaz para a Oban anos depois assinou relatório informando que Jonas “evadiu-se na ocasião em que foi conduzido para indicar um aparelho da ALN”. Depois de 30 anos, O Globo noticiaria a existência de um relatório em que militares admitem a morte do guerrilheiro em decorrência de “ferimentos recebidos”.

“Albernaz era um homem terrível, o torturador mais famoso da Oban naquela época”, confirmou ao Globo Carlos Araújo, ex-marido de Dilma, que foi preso alguns meses depois dela e submetido aos mesmos procedimentos da ex-mulher.

Renegado pelo Exército e atolado em dívidas

O trabalho na Operação Oban fez com que Benoni Albernaz caísse em desgraça na própria família. Aposentado e dono de uma fazenda em Catalão (GO), o pai se chateava ao saber do comportamento do filho: “Ele usava o poder que tinha para extorquir as pessoas, e o pai ficava triste. Sempre foi uma família esquisita, muito desunida”, conta a dona de casa Maria Lázara, de 60 anos, irmã de criação do capitão.

“Olha, acho que uma vez ele caiu do cavalo numa parada militar, antes da ditadura, e o cavalo pisou na nuca dele. A partir daí, ele não ficou bom da cabeça”, supõe a prima Noemia da Gama Albernaz, que hoje vive em Cuiabá.

Albernaz deixou a Oban em fevereiro de 1971, quando o aparelho já havia se transformado no DOI-Codi. Por três vezes tentou fazer o curso de operações na selva, mas teve a matrícula recusada. Foi transferido para o interior do Rio Grande do Sul, passando da caça a comunistas às operações de rotina em estradas de fronteira. O Exército tentava renegá-lo. Em março de 1974, foi internado em Porto Alegre, vítima de envenenamento.

Albernaz tinha problemas com dinheiro. Foi denunciado pelo menos cinco vezes por fazer dívidas com recrutas e não pagá-los, apesar das advertências de seus superiores. Estava lotado no setor medalhístico da Divisão de Finanças do Exército, em Brasília, quando foi declarado inabilitado para promoções, por não satisfazer a dois requisitos: “conceito profissional” e “conceito moral”. Em março de 1977, o presidente Ernesto Geisel o transferiu para a reserva.

Em um escritório no centro de São Paulo, passou a coagir clientes a comprar terrenos vestido com farda falsificada de coronel, embora tivesse sido transferido para a reserva como major, e dizendo-se integrante do SNI. “Você é uma estrela de nossa bandeira. Vamos investir juntos, ombro a ombro, peito aberto”, dizia aos clientes, segundo registros de reclamação levadas ao Exército, pistas que levariam a sua condenação por falsidade ideológica.

Em 1980, intermediou transações de ouro de baixa qualidade no Pará, vendendo como vantagem seu acesso aos garimpos. Nunca foi responsabilizado pelo espancamento, por encomenda, de um feirante de origem japonesa. “Se não pagar agora, vai preso para o Dops”, ameaçou, já em 1979, quando não mais pertencia ao Exército. O agredido foi à delegacia prestar queixa e, ao saber disso, Albernaz baixou no local. “Sou amigo íntimo do presidente da República, foi ele quem me deu isso”, falou ao delegado, mostrando a pistola Smith & Wesson. “Na lista de torturadores, sou o número 2.”

No fim dos anos de 1980, Albernaz estava atolado em dívidas. Não conseguiu pagar a hipoteca e foi acionado pelo menos quatro vezes em ações de execução extrajudicial. Sofreu um infarto quando estava no apartamento da namorada, nos Jardins, em São Paulo, em 1992. Chegou morto ao Hospital do Exército. Deixou três filhos e herança de R$8,4 mil para cada, resgatados 15 anos após sua morte, quando fizeram o inventário. Nenhum deles quis falar ao Globo.

“Siga em frente com seu trabalho, que a gente está seguindo em frente aqui também”, disse o filho Roberto, dentista, desligando o telefone.

“Isso é coisa do passado, gostaria que não me incomodasse, completou a também dentista Márcia Albernaz.

“Esquece nossa família, vai ser melhor para você”, disse Benoni Júnior, médico do Exército.


(*)Confissões inéditas de Dilma - "As marcas da tortura sou eu"

Em outubro de 2001, nove anos antes de ser eleita presidente, Dilma Rousseff revelou, em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais, detalhes do sofrimento vivido nos porões da ditadura em Juiz de Fora. Até então, nem os companheiros de luta sabiam que Esteia, seu codinome na militância, tinha sido torturada na cidade mineira, onde ficou encarcerada por dois meses, em 1972. Só era sabido o tempo de prisão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os documentos, só agora revelados, mofavam em uma sala do conselho e trazem revelações emocionantes da hoje chefe de Estado: "Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando. Daqui a pouco, eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura".

"Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu"

Sandra Kiefer

Belo Horizonte — Dilma chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Robson Sávio, que, ao lado de uma outra voluntária do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da então secretária de Minas e Energia daquele estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de durona, moradora do Bairro da Tristeza, Dilma tirou a máscara e voltou a ter 22 anos de idade. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fora foram acrescidas de ameaças de dano físico deformador: "Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face".

Não eram somente ameaças. Segundo fez constar no depoimento pessoal, Dilma revelou, pela primeira vez, ter levado socos no maxilar, que podem explicar o motivo de a presidente ter os dentes levemente projetados para fora. "Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu", disse. Para passar a dor de dente, ela tomava Novalgina em gotas, de vez em quando, na prisão. "Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz (o implacável capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo) completou o serviço com um soco, arrancando o dente", completou.

Mais tarde, durante a campanha presidencial, em 2009, Dilma faria pelo menos três correções de ordem estética para se candidatar, que incluíram uma plástica facial, a troca dos óculos por lentes de contato e a chance de, finalmente, realinhar a arcada dentária. Na mesma época, Dilma combateu e venceu um câncer no sistema linfático. Guerreira, a presidenta suavizou as marcas deixadas pelo passado na pele. Não tocou, porém, nas marcas impressas na alma. "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim", definiu Dilma, em 2001, no depoimento emocionado à comissão mineira, 11 anos antes de ser criada a Comissão Nacional da Verdade, em maio, 13 anos depois da Constituição Cidadã de 1988.

Fuga pela Rua Goiás - "Eu comecei a ser procurada em Minas Gerais nos dias seguintes à prisão de Angelo Pessuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no final de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do DOPS de Minas Gerais que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás".

Ligações com Angelo - "Fui interrogada dentro da Oban por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Angelo Pessuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 1969 e isso era no início de 1970. Desconhecia as tentativas de fuga de Angelo Pessuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira, talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata".

Local da tortura - "Acredito hoje ter sido por isto que fui levada no dia 18 de maio de 1970 para MG, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação de que ia prestar esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas, depois do depoimento, eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para SP), mas fui colocada num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições: ou era uma instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era do Exército, pois depois estive no QG do Exército e não era lá. Nesse lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente. Não era sobretudo sobre minha militância em MG. Supuseram que, tendo apreendido documentos do Ângelo (Pessuti) que integram o processo, achavam que nossa organização tinha contatos com a PM ou PC mineira que possibilitassem fugas de presos. Acredito ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente; não tinha "pontos" e "aparelhos" para entregar".

Dente podre - "Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para SP, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz) completou o serviço com um soco, arrancando o dente".

Pau-de-arara - "...Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: "em 1968 o que você estava fazendo?" e acabava no Angelo Pessuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau-de-arara, o que a gente não aguenta muito tempo".

Palmatória - "Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador "experiente", ele te bota no pau-de-arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em SP usaram pouco esse "método". No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito"

Tortura psicológica - "Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. Eles interrogavam assim: "me dá o contato da organização com a polícia?" Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura. Depois (vinham) as ameaças: "Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai saber que você está aqui. Você vai virar um "presunto" e ninguém vai saber". Em SP me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas não lembro, pois os lugares se confundem um pouco".

Sequelas - "Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos, o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato".

Sozinha na cela - "Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via ninguém. Havia um buraquinho, na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban, as mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em MG, sempre ficava sozinha, exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida e na vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que estavam presas: uma, por exemplo, Maria Celeste Martins, e Idoina de Souza Rangel, de São Paulo".

Visita da mãe - "Em MG, estava sozinha. Não via gente. (A solidão) Era parte integrante da tortura. Mas a minha mãe me visitava às vezes, porém, não nos piores momentos. Minha mãe sabia que estava presa, mas eles não a deixavam me ver. Mas a doutora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, me viu em SP, logo após a minha chegada de Minas. Hoje ela mora no Rio e posso contatá-la".

Cena da bomba - "Em MG, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada na nossa cela. Voltei em janeiro de 1972 para Juiz de Fora (nunca me levaram para BH). Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia. de Polícia do Exército, 4ª RM, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro".

Frio de cão - "Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o "prazer" de conhecer o Comandante General Sylvio Frota, que posteriormente, me colocará na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego".

Motivos - "Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (...) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em MG, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas".

Morte e solidão - "Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida"

Marcas da tortura - "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim"

Num primeiro momento, Dilma se recusou a entrar com pedido de reparação. Só depois, com a insistência de antigos companheiros, decidiu falar sobre a tortura. O depoimento de Dilma Rousseff é parte do processo aberto em março de 2001 no Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), criado por determinação do então governador Itamar Franco para indenizar presos políticos mineiros. O nome de Dilma foi o 12º da primeira leva de 53 militantes a receber R$ 30 mil a título de reparação por torturas impostas por agentes do Estado. Na documentação, consta que o valor foi depositado na conta de Dilma em março de 2002, exatos 10 anos e dois meses antes da instalação da Comissão Nacional da Verdade. Recentemente, ainda foi paga a indenização pelo Conedh do Rio de Janeiro, reivindicada em 2004. A presidente divulgou que vai doar a importância de R$ 20 mil ao Tortura Nunca Mais.

O promotor de Justiça de Juiz de Fora (MG), Antônio Aurélio Silva, foi o relator do processo de Dilma por Minas. Avesso a entrevistas, diz apenas que o processo correu à revelia da presidente, que inicialmente resistiu a entrar com pedido de reparação por ter sofrido tortura. Sua inscrição foi feita sob pressão de representantes mineiros do grupo Tortura Nunca Mais. Eles conseguiram colher a assinatura da mãe dela, Dilma Jane. "No primeiro momento, Dilma foi contra, mas depois entendeu a importância histórica do ato e acabou colaborando no processo", afirma.

Até então, o episódio da tortura de Dilma em Minas permanecia desconhecido entre os próprios militantes estudantis de esquerda de Belo Horizonte, acusados de subversão na época da ditadura. "Não sabia que ela tinha sido torturada em Juiz de Fora", surpreende-se Gilberto Vasconcelos, o Ivo, presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito de Uberaba e principal contato da organização Colina na cidade. Em janeiro de 1972, Gilberto foi transferido de São Paulo para Juiz de Fora com Dilma, dentro do mesmo camburão. "Não posso testemunhar sobre a tortura de Dilma em Juiz de Fora, porque, chegando lá, fomos separados e não tive mais contato com ela. Só voltaria a vê-la no dia do julgamento", completa.

Aquele abraço

Gilberto é conterrâneo de Dilma. Na época, ela tinha 22 anos e ele, 23. Ambos militavam no setor estudantil da organização de luta armada Colina, batizada em homenagem às montanhas de Minas. Mais tarde, na clandestinidade, os dois se tornariam amigos de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, de codinome Breno, que chegaria a ser dirigente nacional da VAR-Palmares. "Não há melhor lugar para se esconder do que na praia. Ficávamos eu, ela e o Beto sentados na praia, cantando as músicas da revolução. Um dia, chegou o Beto cantando "Aquele abraço", do Gilberto Gil, que eu nunca tinha ouvido. Dilma cantou junto. Ela gostava de cantar e isso nos unia além das convicções ideológicas", lembra.

Em fevereiro de 1971, Beto seria morto em combate, assassinado com três tiros na Casa da Morte de Petrópolis, no Rio, segundo consta no livro "A vida quer é coragem", lançado em janeiro por Ricardo Amaral, ex-assessor de imprensa de Dilma, que trabalhou em Belo Horizonte como repórter do antigo Diário do Comércio. Em homenagem ao amigo de lutas, Gilberto batizou seus filhos como Beto e Breno.

Duas perguntas para//Gilberto Vasconcelos

Como foi sua passagem por São Paulo? "Eu já estava no presídio Tiradentes. Uns seis meses depois, chegou o Max, codinome do Carlos Franklin Paixão Araújo, pai da filha de Dilma. Nós ficamos presos na mesma cela, no mesmo beliche durante um ano e meio. O Max se comunicava com ela através de bilhetinhos escritos com caneta Bic de ponta fina e enrolados no durex, escondidos na obturação do dente. O dentista era um preso político e fazia a troca dos papeizinhos entre a ala feminina e a masculina. Ele era apaixonado pela Dilma e os dois se gostavam mesmo."

E quanto à jovem militante Dilma? "Não estou cometendo nenhuma inconfidência, pois os dois são grandes amigos até hoje, isso é notório. Max sempre foi um cara extraordinário, de raciocínio rápido. Engraçado como as pessoas mudam pouco com o tempo. Estive com Max no casamento da Paula (filha de Dilma), em Porto Alegre, e ele continua do mesmo jeito. Dilma também. Ela estava cercada de amigos e me tirou para dançar na festa. Apesar de ter uma imagem que não reflete isso, é uma pessoa sensível, carinhosa, afável e uma das pessoas mais generosas que conheço. Muito antes de ela se tornar ministra, de ser presidente, sempre disse isso."

A tortura de Estela contada por Dilma

A presidente Dilma Vana Rousseff foi torturada nos porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava até agora. Em Minas, ela foi colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e socos que causaram problemas graves na sua arcada dentária. É o que revelam documentos obtidos com exclusividade pelo Estado de Minas , que até então mofavam na última sala do Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG). As instalações do conselho ocupam o quinto andar do Edifício Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Um tanto decadente, sujeito a incêndios e infiltrações, o velho Maletta foi reduto da militância estudantil nas décadas de 1960 e 70.

Perdido entre caixas-arquivo de papelão, empilhadas até o teto, repousa o depoimento pessoal de Dilma, o único que mereceu uma cópia xerox entre os mais de 700 processos de presos políticos mineiros analisados pelo Conedh-MG. Pela primeira vez na história, vem à tona o testemunho de Dilma relatando todo o sofrimento vivido em Minas na pele da militante política de codinomes Estela, Stela, Vanda, Luíza, Mariza e também Ana (menos conhecido, que ressurge neste processo mineiro). Ela contava então com 22 anos e militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional (Colina), que mais tarde se fundiria com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), dando origem à VAR-Palmares.

As terríveis sessões de tortura enfrentadas pela então jovem estudante subversiva já foram ditas e repisadas ao longo dos últimos anos, mas os relatos sempre se referiam ao eixo Rio-São Paulo, envolvendo a Operação Bandeirantes, a temida Oban de São Paulo, e a cargeragem na capital fluminense. Já o episódio da tortura sofrida por Dilma em Minas, onde, segundo ela própria, exerceu 90% de sua militância durante a ditadura, tinha ficado no esquecimento. Até agora.

Com a palavra, a presidente: "Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. Geralmente, o básico era o choque". Ela continua: "(...) se o interrogatório é de longa duração, com interrogador experiente, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes usava palmatória; usaram em mim muita palmatória. Em São Paulo, usaram pouco este "método".

Dilma foi transferida em janeiro de 1972 para Juiz de Fora, ficando presa possivelmente no quartel da Polícia do Exército, a 4ª Companhia da PE. Nesse ponto do depoimento, falham as memórias do cárcere de Dilma e ela crava apenas não ter sido levada ao Departamento de Ordem e Política Social (Dops) de BH. Como já era presa antiga, a militante deveria ter ido a Juiz de Fora somente para ser ouvida pela auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM). Dilma pensou que, como havia ocorrido das outras vezes, estava vindo de São Paulo a Minas para a nova fase do julgamento no processo mineiro. Chegando a Juiz de Fora, porém, ela afirma ter sido novamente torturada e submetida a péssimas condições carcerárias, possivelmente por dois meses.

Nesse período, foi mantida na clandestinidade e jogada em uma cela, onde permaneceu na maior parte do tempo sozinha e em outra na companhia de uma única presa, Terezinha, de identidade desconhecida. Dilma voltou a apanhar dos agentes da repressão em Minas porque havia a suspeita de que Estela teria organizado, no fim de 1969, um plano para dar fuga a Ângelo Pezzuti, ex-companheiro da organização Colina, que havia sido preso na ex-Colônia Magalhães Pinto, hoje Penitenciária de Neves. Os militares haviam conseguido interceptar bilhetinhos trocados entre Estela (Stela nos bilhetes, codinome de Dilma) e Cabral (Ângelo), contendo inclusive o croqui do mapa do presídio, desenhado à mão.

Seja por discrição ou por precaução, Dilma sempre evitou falar sobre a tortura. Não consta o depoimento dela nos arquivos do grupo Tortura Nunca Mais, nem no livro Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf, de 1998. Só mais tarde, em 2003, ele conseguiria que Dilma contasse detalhes sobre a tortura que sofrera nas prisões do Rio e de São Paulo. Em 2005, trechos da entrevista foram publicados. Naquela época, a então ministra acabava de ser indicada para ocupar a Casa Civil.

O relato pessoal de Dilma, que agora se torna público, é anterior a isso. Data de 25 de outubro de 2001, quando ela ainda era secretária das Minas e Energia no Rio Grande do Sul, filiada ao PDT e nem sonhava em ocupar a cadeira da Presidência da República. Diante do jovem filósofo Robson Sávio, que atuava na coordenação da Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura (Ceivt) do Conedh-MG, sem remuneração, Dilma revelou pormenores das sessões de humilhação sofridas em Minas. "O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida", disse.

Apesar de ser ainda apenas a secretária das Minas e Energia, a postura de Dilma impressionou Robson: "A secretária tinha fama de durona. Ela já chegou ao corredor com um jeito impositivo, firme, muito decidida. À medida que foi contando os fatos no seu depoimento, ela foi se emocionando. Nós interrompemos o depoimento e ela deixou a sala com uma postura diferente em relação ao momento em que entrou. Saiu cabisbaixa", conta ele, que teve três dias de prazo para colher sete depoimentos na capital gaúcha. Na avaliação de Robson, Dilma teve uma postura humilde para a época ao concordar em prestar depoimento perante a comissão. "Com ou sem o depoimento dela, a comissão iria aprovar a indenização de qualquer jeito, porque já tinha provas suficientes. Mas a gente insistia em colher os testemunhos, pois tinha a noção de estar fazendo algo histórico", afirma o filósofo.

(+)DISCURSO DE DILMA AO RECEBER O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO DA VERDADE

O relatório que a Comissão Nacional da Verdade apresenta para nós aqui hoje, torna público, é resultado, como eles disseram, de 2 anos e 7 meses de intenso trabalho. Eu, ao receber esse relatório, tenho certeza que ele encerra uma etapa e ao mesmo tempo começa uma nova etapa e demarca um novo tempo.

Sua apresentação simultânea ao governo federal e à sociedade brasileira evidencia a autonomia assegurada pela legislação à Comissão Nacional da Verdade, que atuou sem interferência governamental ou de qualquer outra espécie. A comissão nacional da verdade é uma iniciativa do estado brasileiro e não apenas um ato de governo. Por isso, os seus trabalhos têm de ser considerados por todas as entidades, não só do estado brasileiro, mas também pela sociedade.

Eu estou certa que os trabalhos produzidos pela comissão resultam do seu esforço para atingir seus três objetivos mais importantes: a procura da verdade factual, o respeito à memória histórica e o estímulo, por isso, a reconciliação do país consigo mesmo por meio da informação e do conhecimento. Nós, do governo federal, vamos nos debruçar sobre o relatório. Vamos olhar as recomendações e as propostas da Comissão e delas tirar todas as consequências necessárias.

Repito aqui o que disse quando do lançamento da Comissão da Verdade: nós reconquistamos a democracia a nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988. Assim como respeitamos e reverenciamos e sempre o faremos, todos os que lutaram pela democracia, todos que tombaram nessa luta de resistência enfrentando bravamente a truculência ilegal do estado, e nós jamais poderemos deixar de enaltecer esses lutadores e lutadoras, também reconhecemos e valorizamos os pactos políticos que nos levaram à redemocratização.

Nós que amamos tanto a democracia esperamos que a ampla divulgação deste relatório permita reafirmar a prioridade que devemos dar às liberdades democráticas, assim como a absoluta aversão que devemos manifestar sempre aos autoritarismos e às ditaduras de qualquer espécie.

Nós que acreditamos na verdade esperamos que este relatório contribua para que fantasmas de um passado doloroso e triste não possam mais se proteger nas sombras do silêncio e da omissão.

Na cerimônia de instalação da Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2012, eu disse que a ignorância sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantêm latentes mágoas e rancores. Disse que a desinformação não ajuda a apaziguar, apenas facilita o trânsito da intolerância.

Afirmei ainda que o Brasil merecia a verdade, que as novas gerações mereciam a verdade, e, sobretudo, mereciam a verdade aqueles que perderam familiares, parentes, amigos, companheiros e que continuam sofrendo… continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia.

Estou certa que vocês, integrantes da Comissão Nacional da Verdade, cumpriram ao longo destes 31 meses sua missão, pois se empenharam em pesquisar, em indagar, em ouvir e em conhecer a nossa história. Trouxeram à luz, sem medo, o tempo oculto pelo arbítrio e pela violência. O trabalho de vocês reforça os sentimentos que manifestei naquela ocasião: quem dá voz à história são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la.

Por isso, queria fazer aqui o agradecimento aos homens e mulheres livres que integraram a Comissão e que nos propiciam esse encontro com a verdade de uma nação inteira. Queria cumprimentar Pedro Dallari, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho e a dois ex-membros: Gilson Dipp e Cláudio Fonteles.

Queria também fazer o reconhecimento aos homens a às mulheres livres que relataram a verdade para a Comissão, contribuindo assim para que o Brasil se encontre consigo mesmo. Sobretudo, em nome do estado Brasileiro e em meu nome, presto homenagem e manifesto caloroso agradecimento aos familiares dos mortos e desaparecidos. Aqueles que, com determinação, com coragem e enorme generosidade, aceitaram testemunhar e contar suas histórias e as histórias dos parentes, amigos, companheiros que viveram tempos de morte, de dor, sofrimento, e por isso, grandes perdas.

Os membros da Comissão, bem como sua equipe, trabalharam com grande dedicação. Atuaram movidos pela consciência de que tinham um papel fundamental a cumprir para promover o nosso reencontro. Trazem vocês todos da Comissão, todos os que auxiliaram, todos aqueles que pelo Brasil inteiro os apoiaram, um grande benefício ao Brasil e ao nosso povo, ao nos assegurar a memória histórica.

O trabalho dessa Comissão faz crescer a possibilidade de o Brasil ter um futuro plenamente democrático e livre de ameaças autoritárias. São gestos como estes que constroem, sim, a democracia. O relatório que hoje se torna público, e a atuação das comissões estaduais, serão um ponto de partida para um país melhor.

A busca da verdade histórica é uma forma de construir a democracia e zelar pela sua preservação. Com a criação desta Comissão, o Brasil demonstrou a importância do conhecimento deste período para não mais deixá-lo se repetir. Nós devemos isso às gerações, como a minha, que sofreram suas terríveis consequências. Mas, sobretudo, devemos isso à maioria da população brasileira que, nascida após o final do último regime autoritário, não teve acesso integral à verdade histórica. É sobretudo a essas gerações e às gerações futuras que a Comissão Nacional da Verdade presta o inestimável serviço da verdade histórica. Conhecer a história é condição imprescindível para poder construí-la melhor.

A partir de agora, todos os brasileiros, terão acesso fácil, via internet, ao relatório desta comissão e às informações relevantes, sobre tudo que aconteceu naquele período. A verdade não significa revanchismo. A verdade não deve ser motivo para ódio ou acerto de contas. A verdade liberta todos nós do que ficou por dizer, por explicar, por saber. Liberta daquilo que permaneceu oculto, de lugares que nós não sabemos aonde foram depositados os corpos de muitas pessoas. Mas faz com que agora tudo possa ser dito, explicado e sabido. A verdade produz consciência, aprendizado, conhecimento e respeito. A verdade significa, acima de tudo, a oportunidade de fazer um encontro com nós mesmos, com a nossa história e do nosso povo com a sua história.

A verdade é uma homenagem a um Brasil que já trilha três décadas de um caminho democrático. E que empenharemos todas forças de todos nós para que assim persista.

Hoje, o mundo celebra o dia Internacional dos Direitos Humanos, em homenagem à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa 66 anos de existência. Tornar público este relatório nesta data é um tributo a todas as mulheres e homens do mundo que lutaram pela liberdade e pela democracia e, com essa luta, ajudaram a construir marcos civilizatórios e tornaram a humanidade melhor.

Parabéns à Comissão Nacional da Verdade. Parabéns a todos que contribuíram para a produção deste relatório. O Brasil, certamente, saberá reconhecer a importância deste trabalho que torna a nossa democracia ainda mais forte.

Muito obrigada.

# O GLOBO, via http://pocos10.com.br/?p=16948
* CORREIO BRAZILIENSE
+ Folha

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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A missa negra

Às dezessete horas da sexta-feira, 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva, com a pressão a 22 por 13, parou de brincar de palavras cruzadas (NOTA DO BLOG: num outro texto do livro é dito que o ditador se orgulhava de não mais “perder tempo” com livros: há 20 anos sua leitura se limitava à necessária para a resolução de palavras cruzadas) e desceu a escadaria de mármore do palácio para presidir o Conselho de Segurança Nacional, reunido à grande mesa de jantar. Começava uma missa negra. (...)

          O marechal deteve-se na porta do salão, conversando baixo com o vice-presidente Pedro Aleixo, que acabara de chegar de Belo Horizonte. Demoraram-se por quase meia hora. Quando Costa e Silva ocupou a cabeceira da mesa, cada ministro tinha uma cópia do Ato Institucional numero 5 em frente a seu lugar. Dois microfones, colocados ostensivamente sobre a mesa, gravariam a sessão. A sala estava tomada pelo barulho de sirenes de veículos que circulavam no pátio da mansão.

          O presidente abriu a sessão com um discurso em que se denominou “legítimo representante da Revolução de 31 de março de 1964” (NOTA DO BLOG: é bom sempre lembrar que a denominação e a data são apenas as mais convenientes para os golpistas. Na verdade o golpe – que nunca chegou nem perto de sequer lembrar verdadeiramente uma revolução – se consolidou no dia seguinte, primeiro de abril. O dia da mentira. Diz algo sobre o caráter do regime que lançou o país em trevas por 21 anos que a consolidação da ditadura tenha se dado numa data igualmente agourenta, uma sexta-feira 13) e lembrou que com “grande esforço [...] boa vontade e tolerância” conseguira chegar a “quase dois anos de governo presumidamente constitucional”. Ofereceu ao plenário “uma decisão optativa: ou a Revolução continua, ou a Revolução se desagrega”. Batendo na mesa, anunciou que “a decisão está tomada” e pediu que “cada membro diga o que pensa e o que sente”. Era o primeiro discurso desconexo daquela sessão presidida pela determinação de proclamar uma ditadura. O marechal suspendeu a reunião por vinte minutos, para que cada ministro lesse o texto, e desculpou-se pela pressa. Com um preâmbulo de seis parágrafos, o Ato tinha doze artigos e cabia em quatro folhas de papel. Sua leitura atenta exigia pouco mais que cinco minutos. Costa e Silva retirou-se debaixo de aplausos.

deu no "pravda" da ditadura
Em “A Ditadura Envergonhada”
Vol. 01 de “As ilusões Armadas”
por Elio Gaspari

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domingo, 16 de novembro de 2014

O que aconteceria se ...

... Gloria Perez resolvesse fazer um filme de ficção científica “cabeça”, tipo 2001 – Uma Odisséia no Espaço? Provavelmente levaria a proporções cósmicas a peculiar noção de geografia que usa em suas novelas e que faz o Rio de Janeiro parecer tão perto de Marrakesh ou nova Délhi que dá a impressão de que é possível trabalhar na Ásia e pegar um vôo tranquilamente no fim da tarde para tomar café numa padaria do Leblon.

Pois bem: baixou a Gloria Perez em Christopher Nolan. Em seu novo filme, “Interestelar”, pega-se um atalho através de um “buraco de minhoca” em Saturno para uma galáxia distante onde se sai precisamente próximo a três planetas potencialmente habitáveis pela vida da forma que conhecemos. Planetas que, diga-se de passagem - ATENÇÃO! SPOILERS - , meio que “orbitam” um buraco negro através do qual é possível se comunicar entre as dimensões pelo tempo e o espaço. E de onde se pode também, veja só, sair! E mais: ser resgatado a tempo de chegar para a despedida de sua filha, a esta altura idosa e moribunda, por conta da diferença na passagem do tempo!

ops, filme errado ...
Confuso? Não é pra menos. O filme de Nolan é, provavelmente, o mais inverossímel de toda a história do gênero – pelo menos entre os que aparentam se levar a sério, o que exclui produções assumidamente fantasiosas, como John Carter, Flash Gordon ou a série Guerra nas Estrelas. Fico até tentando imaginar a cara de pau dos roteiristas – ele e o irmão, no caso, – colocando estas idéias esdrúxulas no papel, olhando na cara um do outro e perguntando “será que cola?”

A boa notícia é que Christopher Nolan não é Gloria Perez, então o filme não é de todo ruim. Há algumas boas idéias, mesmo que recicladas – seria um pouco demais pedir também originalidade, não é? Gostei do design e da “atuação” dos robôs inteligentes, por exemplo. E ... só! Ok, não é pra tanto: todo resto é meio “qualquer nota”, mas nenhuma delas abaixo de cinco, a meu ver. Passa na média, apertado, mas passa. Nolan também não é, afinal, nenhum Stanley Kubrick. Não chega nem perto, pra dizer a verdade! Não chega a ser, no entanto, um fanfarrão do quilate de um Michael Bay ou do Joel Schumacher que cometeu o pior “blockbuster” de super heróis já feito, “Batman Forever”. Seu filme é, no mínimo, “assistível” – mesmo que seja como comédia involuntária. Não foi o meu caso, mas foi o de André Barcinski, como você pode constatar clicando aqui.

“Interestelar” (EUA/Reino Unido , 2014 - 169min) conta a história de um ex-astronauta que é recrutado pela NASA – operando na clandestinidade mas com um orçamento gigantesco, apesar do mundo em crise terminal - em um futuro pós-apocaliptico para pilotar uma nave que partirá em busca de um novo “habitat” para a raça humana. Está em cartaz nos cinemas de todo o mundo.

Não sei se recomendo ...

A.

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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

"DADA", do Discarga Violenta

Das cinzas do que restou do projeto “Cooperativa do caos”, que pretendia lançar uma coletânea mapeando a cena punk/HC do norte e nordeste do final da década de 80, surgiram pelo menos dois frutos memoráveis: a demo-tape “suicídio”, da Karne Krua, e o compacto “Cosmopolita”, da Discarga Violenta.

Discarga Violenta (com “i” mesmo, não me pergunte porque) era (é?) uma banda de Natal, RN, que fazia um som rápido, barulhento e inventivo. “Cosmopolita”, o EP 7 polegadas, vinha embalado num pôster que, ao ser dobrado, formava capa, contracapa e encarte. Orgulhava-se, em letras garrafais no folheto publicitário xerocado que vinha encartado no disco, de conter 19 sons em apenas 6 minutos.

Começa muito bem, com “liberte-se”, uma faixa cadenciada baseada num ótimo riff de guitarra e letra minimalista que, no final, descamba num “noise” densenfreado para então encerrar retomando o riff. E assim segue, alternando passagens mais “melódicas” – desleixadas, toscas, mas melódicas – com barulho puro e simples. E sempre com ótimas letras que transmitem grandes mensagens em poucas palavras. Pérolas da síntese punk.

Impressionou. O que não sabíamos é que o melhor ainda estava por vir: em 1993 eles lançaram um segundo EP, “DADA”, muito melhor pensado e acabado, em todos os sentidos – tanto gráfico quanto musical. Na parte gráfica, destaque para o charmoso selinho da bolacha, com uma foto da banda. Já quando digo “musical” falo na qualidade das composições, especificamente, pois a execução continuava tosca, com uma única e poderosa exceção: o baterista “Tampinha”, que conduz o disco com maestria combinando de forma perfeita batidas “blast beat” com passagens nitidamente “jazzísticas”. Uma evolução impressionante! Adriano Stevenson, ex-Devastação e depois Rotten Flies (onde está até hoje), havia saído para dar lugar a Derek, na guitarra, mas deixou como legado uma belíssima coleção de canções que merecem ser dissecadas num “faixa-a-faixa” ...

Começa num ritmo “nervoso”, porém preciso, no Hardcore rapidíssimo “Libera”, em que musica e letra se casam de forma perfeita. É seguida por “Raimundo”, um poema “desmusicado” de Carlos Drummond de Andrade. “Desmusicado” apenas em sua primeira parte, puro noise, porque em seguida a mesma faixa entrega a primeira e impressionante levada “jazzística” do disco. A essa altura, na primeira ouvida, já desconfiávamos que tinha algo de muito especial ali ...

Todas as demais faixas confirmam a “desconfiança”. A terceira tem uma letra que se resume a duas sentenças: “Ame seu ódio/e aja já”, mas ditas de forma brilhante num ritmo cadenciado e vigoroso. “Equilibrio bem/mal” tem o melhor momento “percussivo” do disco, enquanto “Expresso Liberdade” é a mais fraca - meio “feijão com arroz”. O lado A se encerra com “Não esqueça”, da Devastação, outra banda clássica e pioneira da primeira geração punk potiguar. Excelente composição.

O lado B começa lascivo, com “caralho dói”, e segue no mesmo ritmo de “vai e vem” com “Anjos da cidade” – “trepadas gozadas isso é que é bom”. Mas a mais original, em termos de arranjo, é a faixa seguinte, “povo sem vergonha”, que se desenrola através de um diálogo, quase um “repente”, com uma voz feminina – Gigi Melo - deliciosamente carregada de sotaque nordestino. Fechando tudo, “Um pássaro”, um belíssimo libelo libertário que nos faz ter vontade de jogar tudo pro ar e “nascer de novo”, “indo arriscar”. Periga ser a melhor do disco ...

E que disco! “DADA”, do Discarga Violenta, é uma obra-prima.

Tenho dito isso há mais de 20 anos, e nunca mudei de idéia ...

Vou tocar na íntegra, na próxima edição do programa de rock.

19H, sábado, 104,9 FM em Aracaju e região.

A.

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terça-feira, 11 de novembro de 2014

Vida e Destino

(#) O romance Vida e Destino, do dissidente soviético Vasily Grossman (1905-1964) é uma das maiores obras-primas do século 20. Grossman usa o cerco de Stalingrado durante a Segunda Guerra Mundial – talvez o momento histórico mais trágico e sanguinário, no qual os homens tiveram seus narizes esfregados na sua própria e mais fétida bestialidade – para tecer uma profunda e monumental ode de amor pela humanidade, pela vida e pela liberdade.

Em 1959, ao terminar de escrever o romance, Grossman submeteu o manuscrito aos censores da KGB. No dia seguinte seu apartamento foi invadido por agentes e sua máquina de escrever foi confiscada. O chefe da censura lhe disse que seu livro era uma ameaça ao comunismo pior do que as bombas atômicas americanas e que um livro assim subversivo não seria publicado nem em 200 anos. Foi só graças ao físico dissidente Andrey Sakharov, que contrabandeou para o ocidente um microfilme da obra, que o livro foi finalmente publicado na Suíça, em 1980. É incompreensível como até agora não tenha sido publicado do Brasil.

NOTA DO BLOG: Não mais! A Editora Alfaguara acaba de lançá-lo, em edição primorosa, com capa dura e traduzido diretamente do russo. Soube por um acaso, numa visita a uma livraria da cidade, semana passada. Na verdade, devo confessar que nunca, pelo menos que eu me lembre, havia ouvido falar deste livro! Estranho, levando-se em conta que sou meio "russófilo", como os leitores deste blog já devem ter percebido, mas de certo modo normal, já que mesmo a primeira versão em português só havia sido lançada em terras lusitanas no ano de 2011. A leitura da sinopse da contracapa muito me interessou e cá estou, procurando tudo a respeito na grande rede. Comprá-lo irei e lerei assim que for possivel.

Um trecho da obra

Como não sou crítico literário e não sou capaz de – com meus comentários – fazer jus à grandeza dessa obra, me limito aqui a traduzir (do inglês) uma de suas mais belas passagens, no afã de divulgar no Brasil esse livro fundamental e na esperança de que algum editor se decida a publicar essa obra definitiva.

“Quando uma pessoa morre, ela sai do reino da liberdade e entra no reino da escravidão. Vida é a liberdade e a morte é a negação gradual da liberdade. A consciência primeiro enfraquece e depois desaparece. Os processos da vida – respiração, metabolismo, circulação – continuam por algum tempo, mas foi feito um movimento irrevocável em direção à escravidão; a consciência e a chama da liberdade se extinguiram.

As estrelas desapareceram do céu noturno. A Via Láctea desvaneceu-se; o sol apagou; Vênus, Marte e Júpiter se extinguiram; milhões de folhas morreram; o vento e os oceanos se dissiparam; as flores perderam sua cores e seus perfumes; o pão sumiu; a água sumiu; até mesmo o próprio ar, o ar às vezes fresco e às vezes abafado sumiu. O universo dentro da pessoa parou de existir. Esse universo é surpreendentemente parecido com o universo que existe fora das pessoas. É surpreendentemente parecido com os universos que continuam a ser refletidos dentro dos crânios de milhões de outras pessoas viventes. Mas ainda mais surpreendente é o fato de que esse universo tinha algo em si que diferenciava o som de seu oceano, o cheiro de suas flores, o farfalhar de suas folhas, os tons de seu granito e a tristeza de seus campos no outono tanto daqueles (sons de oceanos, cheiro de flores, farfalhar de folhas, tons de granito e tristeza de campos de outono) que existem ou existiram dentro das pessoas, como daqueles (sons de oceanos, cheiro de flores, farfalhar de folhas, tons de granito e tristeza de campos de outono) do universo que existe externamente fora das pessoas. O que constitui a liberdade, a alma de uma vida individual, é o seu caráter único. O reflexo do universo na consciência de alguém é a base de seu poder, mas a vida só se transforma em felicidade, só é dotada de liberdade e sentido, quando alguém existe como um mundo inteiro que nunca foi repetido em toda a eternidade. Só então se pode experimentar o prazer da liberdade e da bondade, encontrando nos outros aquilo que já foi encontrado em si mesmo.”

(*) “Vida e Destino”, o magistral romance que condenou o judeu ucraniano Vassili Grossman à inexistência na União Soviética dos anos 60, tem finalmente uma tradução portuguesa. Recriámos a longa caminhada deste manuscrito

Moscovo, 1961

O Inverno chegara ao fim no calendário. Mas nevara ainda durante a noite. Uma mancha de luz matinal, que um rasgão no reposteiro deixava passar, abriu caminho na escuridão do quarto. Arrastou-se devagar pela madeira gasta do chão, subiu pelas cornucópias do papel de parede até ao vidro do mostrador do relógio de pêndulo - a luz pareceu aumentar de tamanho, e depois duplicou-se no espelho por cima da secretária, na outra parede do quarto. Como uma vela que se tivesse acendido.

Com os cobertores caídos para um dos lados da cama, Vassili dormia encolhido de frio.

... um inesperado vapor de água apodrecida subia da margem do Volga. Folhas de papel erguiam-se no ar. Os mortos jaziam na neve entre ervas secas, juncos partidos e ligaduras ensanguentadas. Havia fumo, e bolas de terra caíam sobre a neve suja sem fazerem barulho. Ao longe, sobre a colina que descia para o rio, o céu estava em fogo... Homens vestidos com sobretudos corriam por entre os corpos dos mortos para recolherem as folhas de papel manuscritas, juntavam-nas em braçados, olhavam uns para os outros sem falarem, e enfiavam-nas nas pastas pretas de couro que todos traziam penduradas das mãos. Eram todos iguais. Um silêncio divino pairava sobre a estepe. Não sabiam os berlinenses que nessa manhã passeavam pelo Tiergarten e pela Unter den Linden que chegara o momento, nunca planeado no gabinete do Reichsführer SS Himmler, de a Rússia reagrupar forças na neve das estepes e se aprestar para dar um passo em frente...

Vassili abriu os olhos. Procurou os cobertores no chão, puxou-os devagar, e tapou-se. Tornara a sonhar com Estalinegrado. Tinham passado quase 20 anos. Fixou o olhar na mancha de luz que dançava no espelho. Lembrou-se de que aquele era o seu dia. Olhou para o relógio e saiu da cama. Tinha uma reunião no Politburo, marcada a seu pedido (um favor que lhe fora concedido) pelo primeiro secretário do partido, Nikita Kruschev, que ele conhecera nos longos dias da batalha do Volga. Na cozinha, acendeu o lume no fogão e pôs um caldeirão de água a aquecer. Depois do banho na selha, escanhoou-se e vestiu o fato menos puído.

A neve começara a derreter nas ruas.

Vassili Grossman sacudiu os restos de neve das botas e entrou. Esperou em pé durante mais de uma hora que Mikhail Suslov, um dos ideólogos, o mandasse entrar. Suslov criticara no 20.º Congresso do Partido o culto da personalidade de Estaline. Grossman tinha esperanças, e pensava no que lhe iria dizer para defender a publicação do seu romance "Vida e Destino". Algumas semanas antes, o KGB apreendera todas as cópias do manuscrito na sede do jornal "Znamiya". As noites de Vassili eram assaltadas por pesadelos de que todas as páginas manuscritas já teriam sido destruídas. Ele só já tinha a vida para perder. Para quem acompanhara o Exército Vermelho desde Estalinegrado a Berlim, não era muito.

- Camarada Grossman, o seu livro compara o camarada Estaline a Hitler, por isso...

O judeu Vassili Grossman interrompeu-o. De pé, com o corpo inclinado para a frente e uma mão apoiada na secretária, disse:

- O camarada Suslov conheceu Lenine pessoalmente?, perguntou Vassili, e, sem dar tempo a que o outro respondesse, continuou: Ele foi o primeiro a compreender que apenas o partido e o seu líder exprimem o impulso da nação, e pôs fim à Assembleia Constituinte. Como o físico Maxwell que, destruindo a mecânica de Newton, pensava que estava a consolidá-la, assim Lenine, criando o grande nacionalismo do século XX, também se considerava o criador da Internacional, o que é um paradoxo. Depois, Estaline ensinou-nos também muita coisa, camarada Suslov. Para o Socialismo vencer num país, é preciso acabar com a liberdade camponesa de semear e vender, e o camarada Estaline não hesitou: exterminou milhões de camponeses. Também Hitler viu que havia um grande obstáculo para o movimento alemão nacional-socialista: o judaísmo. E resolveu exterminar milhões de judeus...

- O camarada fala como um inimigo do partido, um inimigo do povo...

- Pense, camarada Suslov! Quem está nos nossos campos de concentração quando não há guerra, quando não há prisioneiros de guerra? Nos nossos campos de detenção, nos tempos de paz, estão os inimigos do partido, os inimigos do povo...

- Não vou perder tempo a refutar a sua tagarelice fedorenta, suja e provocatória!

- Lembra-se, camarada Suslov, dos comunistas alemães que metemos no campo de concentração? Foram os mesmos que o Reichsführer SS Himmler encarcerou no ano de 37! É disso que conto no meu romance. Digo que somos uma forma da mesma essência: o Estado partidário. Quando os olhávamos na cara, aos alemães, olhávamos não só para uma cara odiosa, mas também para um espelho. É nisto que consiste a tragédia da nossa época, Suslov!

Mikhail Suslov levantara-se entretanto, e dera três passos na direcção da porta. Nos seus olhos brilhava uma raiva rejubilante e vitoriosa.

- "Vida e Destino" não irá ser publicado nem daqui a 250 anos, Grossman! Convença-se disso.

- Porque se exalta como um galo?

- Saia!

Estalinegrado, 1943

1. Cerca de dois milhões de mortos. 199 dias de batalha.

Os buracos abertos no gelo sujo do rio Volga pareciam fumegar. Do lado alemão, os soldados de von Paulus, recentemente promovido por Hitler a marechal de campo, coziam a carne dos últimos cavalos, caçavam os poucos cães que sobravam nas ruínas da cidade, e um ou outro pássaro que se aventurava nas estepes. Depois esmagavam piolhos encolhidos nos "bunkers". Quase não tinham munições. O marechal von Paulus e Ritter, o ordenança, queimavam já no fogão os mapas e as pilhas de papel que se acumulavam pelo chão. A resistência era impossível. Faltava apenas o golpe de misericórdia no 6.º Exército alemão. Na rádio de Berlim: "requiem" solene pelos mortos de Estalinegrado.

Nessa noite, o céu sobre a cidade iria iluminar-se de novo. Mas, desta vez, seria pela capitulação do exército alemão. A "capital mundial da guerra" deixara de existir, como Atenas e Roma, passaria agora para as mãos dos guias dos museus, dos historiadores e dos seus aborrecidos estudantes. Uma cidade nova será erguida no lugar da que se chamara, até 1925, Tsaristsyn. (Mais tarde, a partir do ano 1961, terá o nome de Volgogrado. Mas o Presidente Putin tornará a nomeá-la Estalinegrado). Daqui a dez anos, milhares de presos virão para construir uma barragem no Volga, uma potente central hidroeléctrica.

Naquela manhã nebulosa, o Sol erguia-se quase a medo na estepe para lá da cidade. Juncos rangiam no gelo das margens. O vento invernal, que soprava baixo, fazia voar a neve mais seca, que girava formando colunas que se moviam por entre as hastes das ervas espinhosas. Habitantes de uma cidade próxima caminharam na poeira de neve dos caminhos que levavam até Estalinegrado. Traziam repolho fermentado, pão, vodca e tabaco para os poucos civis sobreviventes que se moviam ainda por entre as ruínas mudas e frias dos prédios e das caves.

Vassili Grossman estava lá, e dali acompanharia, como repórter, o Exército Vermelho na sua marcha vitoriosa até Berlim. Demorará dois anos.

Um sentimento absurdo: o vazio. Sentiu-o o soldado Gluchkov, o miliciano Poliakov, o sargento Zadnepruk (ferido por um soldado alemão que não sabia da rendição), sentiu-o o jornalista Grossman. Talvez o tenham sentido todos, mas não o souberam dizer. Tinham saído das profundezas da terra abençoados pela alegria da liberdade.

2. Poderiam chamar-lhe "Berlinweg". Caminho de Berlim. Demorou mais de dois anos para ser percorrido. É espantoso o optimismo das pessoas à beira da morte. Uma esperança louca, impura, até ignóbil.

Os tanques iam enfeitados com ramos de árvores, ramagens de abetos e de bétulas nasciam na blindagem. Alegres vão os soldados que pensam na casa materna, os que cantam, os que comem os últimos restos de pão e toucinho oferecido por camponeses de uma aldeia de que expulsaram os alemães. É o avanço do Exército Vermelho, e não passa um dia em que as metralhadoras alemãs não se façam ouvir. Na neve das florestas polacas, cães perdidos farejam os soldados na sua primeira noite do eterno descanso.

Grossman sabe da morte da mãe, acontecida há dois anos no "pogrom" de Berdichev, a sua cidade natal, na Ucrânia. Genocídio a tiro: 20 mil judeus executados.

No campo de extermínio de Treblinka só há restos: de casas, de corpos, despojos de vidas. Vassili Grossman é o primeiro repórter a chegar a Treblinka. Uma estação ferroviária abandonada no meio de uma floresta deserta. O cheiro a morte. Treblinka I. Treblinka II. "O Inferno de Treblinka", uma reportagem escrita por Vassili Grossman que circulará nos julgamentos de Nuremberga.

Os alemães tinham abandonado e destruído o campo ao som da artilharia russa que se aproximava.

A violência do estado totalitário tornou-se tão grande que deixou de ser um meio, transformou-se num objecto de veneração mística, religiosa, de admiração. A submissão revelada neste período mostrou-se como uma das mais surpreendentes particularidades da natureza humana. A violência extrema dos sistemas sociais totalitários fora capaz de paralisar o espírito humano.

Moscovo, 1974

Vassili Grossman morrera havia dez anos. Cancro do estômago, disseram os médicos.

"Vida e Destino" desapareceu nas mãos sem fundo do KGB. Em tempos de realismo socialista, o Estado sem defeitos despreza tudo o que não tem semelhanças com ele. O realismo socialista é uma espécie de espelho mágico da bruxa má, que à pergunta do partido e do Estado, "Quem é o mais belo e maravilhoso de todos?", responde: "Tu, partido, tu, Governo, tu, Estado, és o mais belo e maravilhoso!" O realismo socialista afirma a exclusividade estatal. Os outros, a exclusividade individual.

- É então por isso que Dostoiévski foi esquecido? As editoras não o reeditam, nem as bibliotecas gostam de o emprestar - disse Semyon Lipkin (que fora o melhor amigo de Vassili Grossman) entre duas baforadas no cachimbo.

- Dostoiévski não cabe na nossa ideologia, é tão simples como isso. É um reaccionário - disse Madiárov. E prosseguiu: - Dostoiévski, mesmo nos seus princípios de Estado, é todo humanismo.

- Mas porque trazem então o Tolstói nas palminhas das mãos, para aqui e para ali, como se fosse membro do partido? Por essa lógica, toda a literatura russa do século XIX não tem qualquer cabimento na ideologia do aparelho do Estado.

- Por uma razão simples: Tolstói tornou poética a ideia de guerra popular, que é o que o nosso Estado neste momento lidera, uma guerra justa contra o capitalismo, os inimigos do povo e do partido.

- Por uma porra de uma coincidência! Mas o Tchékhov é amplamente reconhecido, tanto antes como agora! O resultado de mais um outro mal-entendido!

Enquanto este diálogo acontecia na sala do apartamento nos arredores de Moscovo de Semyon Lipkin, o microfilme do magistral romance "Vida e Destino" - que Lipkin fizera a partir de duas cópias que escaparam à polícia secreta - esperava no fundo falso de uma caixa de biscoitos de gengibre que Vladimir Voinovich o viesse buscar. Mais tarde entregá-lo-ia a uma rede de dissidentes, que incluía o físico Andrei Sakharov, para o passarem para o Ocidente. O que aconteceu ainda nesse ano de 1974. No entanto, o livro só viria a ser publicado seis anos depois, em França.

Os leitores russos teriam de esperar por 1988 e pela Glasnost para o poderem ler em liberdade.

# Revista Trip - por Henrique Goldman
* P - Sem crédito do autor

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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

TUDO AO MESMO TEMPO AGORA

"Uma multidão de estudantes se dirigiu à Praça do parlamento Britânico em dezembro de 2010 para pressionar contra uma lei que triplicava o custo das mensalidades escolares. Lá, uma manifestante que parecia jovem demais para já ser nascida quando os Smiths - cuja imagem estampava a camiseta que ela usava - estavam na ativa, escalou as barricadas, com seu cabelo curto tingido de louro, num corte estilo anos 1980, suas botas Dr. Martens e uma calça jeans cargo, como tinha sido a moda naquela época para certo segmento do público feminino. Um fotógrafo na linha de frente a registrou naquele instante, se agigantando sobre uma fila de policiais nervosos do batalhão de choque, o símbolo fálico do Big Ben instantaneamente reconhecível e enorme ao fundo; o escritor Jon Savage mais tarde comparou a imagem à pintura "A liberdade guiando o povo", de Delacroix.”

O trecho acima é uma passagem do livro “The Smiths: A Light that never goes out - a Biografia”, que narra a história dos Smiths – a banda que salvou nossas vidas. Escrito por Tony Fletcher e lançada no Brasil pela editora Best Seller, o calhamaço de mais de 600 páginas conta em detalhes a vida dos quatro rapazes de Manchester desde os primórdios – com direito, inclusive, a uma brilhante dissertação sobre a imigração irlandesa na cidade industrial britânica. Disseca o comportamento excêntrico do vocalista Morrissey e os problemas de relacionamento entre os integrantes e com o “staff” que os circundava; as turnês, sempre conturbadas e prejudicadas pelos caprichos de uma banda que se recusava a “jogar o jogo” e tinha uma verdadeira obsessão por manter sua integridade, apesar de algumas concessões pontuais – das quais, na maioria das vezes, se arrependeram -; as experimentações e técnicas de gravação em estúdio, assim como a criação e o lançamento de singles e álbuns históricos, com os devidos significados por trás das letras, sempre brilhantes; e o fim, que deixou órfã toda uma geração.

O autor contou, em sua empreitada, com a colaboração de Andy Rourke e Johnny Marr, que lhes concedeu entrevistas. Morrissey e Mick Joyce se abstiveram - a atitude deste último, ao contrário do primeiro, ele estranhou, pois deixa claro que, até aquele momento, se considerava amigo do ex-baterista, pivô dos piores conflitos envolvendo a "cozinha" e a dupla de compositores. A trajetória de Morrissey, no entanto, é perfeitamente reconstituída a partir de uma pesquisa exaustiva em arquivos, desde o que saiu na imprensa até depoimentos e correspondências com amigos e desafetos. Temos também os depoimentos de seus companheiros de banda, testemunhas oculares e principais vítimas de suas esquisitices - são incontáveis as vezes em que ele simplesmente não aparece em compromissos profissionais, sem maiores explicações, ou sua dificuldade de comunicação - Andy conta que pegava o mesmo ônibus que Morrissey ao final dos primeiros ensaios da banda e teve que aprender a contar os postes pelo caminho, já que o vocalista não lhe dirigia a palavra durante todo o percurso.  

Por tudo isso, e também pela análise refinada do contexto histórico e do que significou a passagem meteórica dos Smiths pelo mundo da música pop, "The Smiths - A Biografia" se converte num excelente “aperitivo” enquanto não sai, finalmente, a versão traduzida da comercialmente muito bem sucedida autobiografia do “maior inglês vivo”, prometida para um futuro indefinido pela editora Globo. Na verdade, a julgar pelo que já li a respeito, o “aperitivo”, especialmente se for lido junto com a fantástica “Mozipédia” – que também já tem versão nacional – parece ser melhor que o prato principal ... 

Em tempo: recomendo a leitura junto ao computador, para conferir na rede alguns vídeos e músicas mencionadas no livro. Enriquece muito a experiência ...

////// O fotógrafo Victor Balde tem se revelado uma figura de suma importância para o registro da música independente feita em Sergipe. É dele e de seu parceiro Arthur Soares, da Snapic, o livro “musica para ouvir”, primeiro e, por enquanto, único a enfocar a “cena” local em belíssimas fotografias. Ano passado ele esteve à frente do projeto “zons”, que se propõe a continuar por esta senda, agora no campo do audiovisual: além de diversas atividades e de um festival com o line up inteiramente composto de músicos sergipanos, foi produzido um belíssimo DVD em que 5 bandas (Maquina Blues, The Baggios, Elvis Boamorte e Os Boavidas, Ato Libertário e A Banda dos Corações Partidos) executaram, num cenário muito bem montado e fotografado, duas composições próprias cada.

O projeto prossegue agora em 2014 no mesmo esquema, com capitalização coletiva via Catarse com vistas à produção de um novo festival e filme dos quais participarão as bandas Reação, Plástico Lunar, Coutto Orquestra e The Renegades of punk , além dos cantores e compositores Alex Santanna e Patricia Polayne. Participe! Já está acontecendo: dia 12 de outubro tivemos o zons kids, evento comemorativo ao dia das crianças, e ontem um belíssimo show da Plástico Lunar aberto pela cantora Sandy Ale – ambos os eventos aconteceram na CASA DO CHICO, um aconchegante espaço arborizado localizado na Atalaia, próximo ao “finado” Tequila Café.  Para maiores informações acesse facebook.com/zonsprojeto /////// Ouvindo MC Guimê e seu “funk ostentação”, com letras que falam de camarotes fechados e mansões no Guarujá, é impossível não pensar que algo deu errado num projeto de inclusão social desenvolvido unicamente pela via do consumo, sem que fosse acompanhado de uma ampla difusão de noções de cidadania, tão necessária à defesa da manutenção e ampliação dos avanços conseguidos até aqui. O resultado é o impasse que vivemos hoje, com o debate político embotado pelo avanço do pensamento político reacionário. “A ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”, ensinava o grande Karl. E a classe dominante ainda é aquela mesma, desde os tempos da Casa-Grande.

////// Em “Memórias do esquecimento” Flávio Tavares, jornalista e ex-militante do Movimento Nacionalista Revolucionário, liderado por Leonel Brizola com apoio logístico de Cuba no início da ditadura militar, conta sua experiência pessoal nos chamados “anos de chumbo”. Ele foi um dos presos políticos libertados em troca do embaixador norte-americano Charles Elbrick – episódio célebre retratado no cinema pelos filmes “Que é isso, companheiro?” e “Hércules 56” – e conta em detalhes não apenas esta, mas diversos outras histórias que, de tão intensas e dramáticas, quando não aventurescas, parecem obra de uma imaginação fértil. Não se furta, inclusive, de relatar em detalhes o que passou nas mãos dos carrascos em longas sessões de tortura, além de fazer interessantes análises conjunturais beneficiadas pelo distanciamento histórico dos fatos que viu e viveu, no olho do furacão. Leitura indispensável em tempos de tentativas farsescas de revisionismo histórico. Recomendo fortemente.  /////  “O Inescrito” é mais uma brilhante série em quadrinhos produzida pelo selo “Vertigo”, sinônimo de qualidade no universo da chamada “nona arte”. Partindo de uma interessante referência ao fenômeno pop Harry Potter, homenageia a literatura em geral ao contar as aventuras e desventuras do filho de um autor de sucesso às voltas com uma intriga sobrenatural comandada por uma organização secreta que pretende comandar o mundo através do domínio das narrativas. Funciona como uma aventura eletrizante e movimentada ao mesmo tempo em que presta um tributo à imaginação humana. Fascinante!

/////// “Com os olhos protegidos, os observadores no centro de comando, a mais oito quilômetros de distância, viram um clarão vindo do leste. O brilho da atmosfera queimando como o filamento de uma lâmpada. A bola de fogo reluziu mais intensamente do que três sóis num dia claro. Tão intensamente que, a 80 quilômetros dali, uma garota cega virou a cabeça e perguntou: “O que é isso?” Esta é a descrição do primeiro teste da bomba atômica contida em “Trinity: a História em quadrinhos da primeira bomba atômica”, de Jonathan Fetter-Vorm, lançado agora no Brasil pela editora Três Estrelas. Obra de excelente qualidade gráfica que conta de forma brilhante e didática, porém sem simplificações reducionistas, a saga dos cientistas que ajudaram a por fim à maior de todas as guerras mas que, na seqüência, deram inicio a uma nova e aterradora fase na história da humanidade: a Era atômica! De quebra, me tira uma grande dúvida: porque, afinal, eles não pouparam as populações de Hiroshima e Nagasaki, fazendo uma demonstração de advertência em alguma área deserta? É descrita, na obra, uma reunião em que esta possibilidade é discutida, mas recusada diante da possibilidade de que a bomba falhasse e pusesse em xeque a credibilidade do ultimato dados pelos americanos. Terrível, mas faz sentido, do ponto de vista estratégico.

////// Custo a acreditar que um diretor do quilate de David Fincher, que tem em seu currículo verdadeiras pepitas cinematográficas como “seven” e “O Clube da luta”, tenha cometido o desatino travestido de “grande arte” que atende por “Garota exemplar”. Baseado em romance de  grande sucesso, o filme se propõe a discutir os descaminhos das ilusões amorosas e a falência da instituição do matrimônio através de um thriller cheio de reviravoltas espetaculares, mas entrega um pastiche misógino carregado de clichês e com mais furos no roteiro do que um queijo suíço. Algumas situações absolutamente inverossímeis que a trama tenta nos enfiar goela abaixo chegam a ser involuntariamente cômicas de tão ridículas! Exemplos (ATENÇÃO: SPOILERS! SE NÃO ASSISTIU AINDA E PRETENDE VER, PARE DE LER AQUI E PULE PARA O PRÓXIMO TÓPICO): a protagonista consegue esconder uma verdadeira fortuna em compras de luxo numa garagem anexa à casa de sua cunhada sem que ela tome conhecimento; seu marido pretende manter em segredo um relacionamento adultero mas não hesita em beijar a amante na rua, na saída do trabalho – cena que foi, obviamente, flagrada pela esposa traída – e o hospital que a acolhe depois de uma espetacular fuga forjada do cativeiro em que era mantida por um suposto seqüestrador/estuprador não se dá ao trabalho nem de limpar o sangue seco no qual seu corpo está banhado, muito provavelmente para não tirar o impacto da cena seguinte, em que ela revela a tramóia ao marido num banho quente, com o caldo grosso escorrendo de seu corpo. Isso pra ficar apenas nos absurdos mais evidentes. O tom geral é farsesco e nitidamente exagerado. Tudo bem, relacionamentos costumam ser complicados mesmo, mas também não é pra tanto! Fincher parece querer pintar os homens como seres patéticos incapazes de conter seus impulsos mais primários e as mulheres como megeras psicopatas e dominadoras capazes de tudo para manter ao seu lado o objeto de sua obsessão. Lamentável!

/////// Por outro lado, foi muito bom ver que a Marvel foi capaz de produzir para o cinema algo além das já cansadas produções baseadas em quadrinhos recheadas de clichês e cenas de ação espetaculares mas acompanhadas de enfadonhas tramas pseudo-rebuscadas com o intuito de adquirir uma falsa profundidade. “Guardiões da Galáxia” diverte sem ofender a inteligência do expectador. É uma comédia de ficção científica recheada de ótimas “gags” e sustentada em excelentes personagens, como Rocket Raccoon e Groot. Não é perfeito – o vilão, Ronan - O Acusador, por exemplo, é ridículo, altamente canastrão – mas está muito acima da média das pra lá de manjadas superproduções estreladas por super-heróis que eu, sinceramente, não agüento mais ver – e olha que eu sou um fã de quadrinhos de longa data! Desde antes de aprender a ler, quando ficava fascinado olhando as figurinhas das revistinhas de Tex, da Tumba de Drácula e de Morbius, O Vampiro Vivo. Além, é claro, das clássicas Superaventuras Marvel e Heróis da TV, que eu já lia – e colecionava. Em tempo: muito bom, também, ver pela primeira vez na tela, em personificações decentes, mesmo que com rápidas aparições, um personagem icônico como Thanos e outro “cult” como Howard, o pato – o mais improvável dos heróis.  ////////  Também gostei bastante da cinebiografia de Tim Maia – ainda em cartaz – e do novo filme da franquia “Planeta dos Macacos”, que deve estar sendo lançado no mercado de Home vídeo. O segundo dá prosseguimento a uma saga que começou ainda nos anos 1960, com o clássico estrelado por Charlton Heston, e foi brilhantemente reabilitada recentemente - para não falarmos da interessante reinvenção produzida por Tim Burton em 2001. Já o primeiro conta uma história que há tempos implorava por vir ao mundo de forma mais ampla - primeiro na forma do livro escrito por Nelson Motta, e agora no cinema, onde uma quantidade bem maior de pessoas certamente entrará em contato e se encantará com as desventuras do garoto pobre de temperamento irascível cujo gênio supera todas as dificuldade e aflora, dando à música e à cultura popular do Brasil um de seus mais brilhantes intérpretes. Os relacionamentos conturbados - com o amigo Roberto Carlos, com os músicos que o acompanhavam, com o público e com as mulheres que passaram por sua vida -, as idas e vindas - com direito inclusive a uma fase de pregação religiosa que coincidiu com seu auge criativo e resultou num dos mais interessantes e cultuados produtos da rica história de nossa música popular - e a consagração final, depois de uma descida ao inferno do consumo desregrado de substancias entorpecentes de todo o tipo, formam um painel fascinante de uma vida intensa que deixou um legado imortal.

///// Bom também saber que podemos contar, sempre, com o talento de Woody Allen para nos brindar, todos os anos, com mais uma obra, no mínimo, divertida – é o caso de “Magia ao luar”, comédia romantica de trama leve e despretensiosa que narra o embate entre uma vidente picareta e um autoproclamado desmascarador de charlatões. É previsível, eu sei, todos sabemos de antemão que os dois vão se apaixonar e ficar juntos no final, mas nas mãos de um diretor como Allen, a diversão é garantida, mesmo que você não tenha ido ao cinema apenas para namorar e comer pipoca. //// Melhor ainda é ter a oportunidade de ver finalmente na  tela grande, no escurinho do cinema, grandes clássicos como “A Laranja Mecânica”, “Quanto mais quente melhor”, “Nascido para matar”, “A Felicidade não se compra” e “Taxi Driver”. É a Sessão Clássicos Cinemark, que já está na quarta temporada com grande sucesso de público. Até agora, uma única frustração: a sessão que fui ver de “O poderoso chefão” foi exibida sem legendas, o que não seria necessariamente um problema já que, apesar de não dominar o idioma, sei as falas praticamente de cor. Só que, no afã de solucionar o problema, o responsável pela projeção tirou a imagem do foco e ela assim ficou até o momento em que eu não agüentei e me retirei da sala. Coisas do cinemark. Por outro lado, não tem preço poder ver finalmente da forma como deve ser visto uma obra prima como “Lawrence da Arábia”. Tudo isso em imagens cristalinas, graças às novas tecnologias de exibição digital. Há quem não goste, como Quentim Tarantino, purista absolutamente fiel á película que diz que ver filme digital no cinema é como reunir amigos para assistir DVD – pode até ser divertido, mas não é cinema. Realmente, começo a sentir um certo saudosismo daquelas manchas de arranhões causadas pelo desgaste dos filmes, mas por mim tudo bem, uma experiência não necessariamente desqualifica a outra. Deveria haver as duas opções, mas as questões de mercado, infelizmente, não nos permitem este luxo, pelo menos por aqui, na periferia do mundo. Em todo o caso, continuarei freqüentando as salas escuras. Cinema, pra mim, ainda é a maior diversão.

////// Lembrando ainda que há na cidade (Aracaju, é onde eu vivo) uma sala inteiramente dedicada à exibição de filmes alternativos, que passam ao largo do esquemão dos blockbusters e dos multiplexes. É o Cinema Vitória, da Rua do Turista. Vou lá sempre que posso. Vá você também, antes que feche devido à baixa freqüência. ////// O regime do grupo maoísta/terrorista Khmer vermelho, que dominou o Camboja entre os anos de 1975 e 1979, foi provavelmente a mais terrível personificação do que a obsessão por uma utopia transformada em dogma pode significar em termos de opressão. Praticamente toda a população urbana do país foi expulsa das cidades para ser “reeducada” nos campos. Num dos maiores crimes políticos já cometidos, o período de quatro anos viu a morte de cerca de 2 milhões de pessoas através do resultado combinado de execuções políticas, fome e trabalho forçado. Devido ao grande número, as mortes durante o regime de Pol Poth são frequentemente consideradas parte de um processo de genocídio. No premiado documentário “A Imagem que falta” o diretor Rithy Panh, ele mesmo uma vítima da insanidade, tenta compensar a falta de imagens de arquivo do período através de representações com bonecos de argila. O resultado é, além de muito original, comovente, pois dá um tom lúdico e rústico a uma história particularmente terrível, porque real. Vale, no entanto, lembrar aos incautos, já salivando por apontar este como mais um exemplo de que as ideologias marxistas são inerentemente criminosas e genocidas, que o regime do khmer foi derrubado por outro regime marxista, do Vietnã.

/////// No início do século passado um grupo de revolucionários marxistas chegou ao poder na Russia e deu início a uma fascinante epopéia em que uma parte da humanidade resolveu tomar o destino em suas mãos e experimentar um novo caminho, livre da exploração do homem pelo homem. Faltou, no entanto, combinar com o adversário, como diria Garrincha: isolada pelo bloqueio do mundo capitalista e pelo fracasso da revolução na Europa, com a qual os bolcheviques contavam para livrá-los do atraso econômico da pátria da revolução, a experiência soviética deu no que deu: uma sociedade totalitária, doente, marcada pela violência e pela absoluta ausência de transparência. Praticamente igual, em certos aspectos, ao seu nêmesis de direita, a Alemanha nazista. A Versátil, dona de um impressionante acervo de lançamentos de filmes “Cult” e clássicos em DVD, acaba de lançar em grande estilo, no Brasil, duas excelentes minisséries francesas que destrincham essa história: “Adeus, Camaradas” e “Uma História do Comunismo: a fé do século XX”. Na primeira assistimos ao fim de tudo, o processo de decadência do império soviético que culminou na queda do muro de Berlim, sob dois pontos de vista antagônicos: o do diretor, russo exilado em Paris que tem uma evidente memória afetiva sobre os eventos retratados, e o de sua filha, que não consegue – mas tenta – entender os sentimentos do pai diante de um regime que ela não consegue enxergar como nada além de opressor.

Já no segundo acompanhamos em preciosas imagens de época todo o processo que culminou no embalsamento em vida das múmias do Kremlim, através das idas e vindas e contradições do movimento comunista internacional. Num tom correto, sem maniqueísmos, mostrando como o comunismo foi, ao mesmo tempo, uma promessa utópica generosa que legou ao mundo avanços consideráveis no campo da justiça social – a implantação do estado de bem estar social na Europa, por exemplo, é conseqüência direta da guerra fria e da tentativa de apaziguar a luta de classes com o objetivo de deter o avanço  da chamada “cortina de ferro” – e uma aterradora realidade opressora baseada, em grande parte, na mentira, principalmente a partir da ascensão de Stalin. Ambas as séries estão disponíveis em DVDs duplos emoldurados por belíssimas embalagens com capas envernizadas, nas melhores lojas do ramo. Vale muito a pena, especialmente pelas preciosas imagens de arquivo, como a que mostra um comício do Partido Comunista Italiano apresentado de forma hilária pelo comediante Roberto Begnini – ele chega a carregar no colo o líder Enrico Berlinguer - ou os participantes dos encontros da Internacional Comunista se confraternizando e entoando hinos revolucionários, para longo em seguida se jogarem numa luta fraticida entre si, proferindo, antes dos fuzilamentos e execuções sumárias, as piores ofensas que um ser humano pode reservar a outro.

por Adelvan

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