quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A febre do rato - e outras histórias ...

Num(a) Recife decadente, libertina e libidinosa, belíssimamente fotografada em preto e branco e filmada com enquadramentos inusitados, um poeta libertário espalha mensagens subversivas em forma de versos através de um jornal artesanal chamado “Febre do rato” – referência aos sintomas da leptospirose que virou gíria em Pernambuco. O próprio Claudio Assis, o diretor, em pessoa, nos explicou que a tal gíria significa algo como um desassossego, um fogo no rabo, pica dura em xoxota molhada e “piscando” – isso ou algo parecido, não sem antes indagar ao público da sessão do Festival Curta-se onde eu assistí à película (ainda é película? Nem sei) se havia alguma criança no recinto para que ele pudesse falar palavrões.

Em volta de Zizo, o tal poeta, magnificamente interpretado por Irandhir Santos (o deputado inspirado em Marcelo Freixo de Tropa de Elite), gravita uma fauna de maconheiros e vagabundos de todos os sexos e idades. Os mais jovens costumam passar o dia fumando, bebendo e fazendo surubas (ou “ménages”), as mais velhas são devidamente comidas por Zizo, que “não tem fastio”, numa espécie de banheira improvisada em um tanque de madeira. Seus amigos suspeitam que ele coma até sua mãe, uma senhora simpática e pra lá de liberal que costuma ceder o quintal de sua casa para as farras do filho e seus amigos. Lá eles ficam totalmente à vontade para exercitar os prazeres da carne em meio ao delicioso linguajar popular pernambucano, “visse”? Todos “com a febre do rato”, evidentemente.

Só ele, Zizo, parece ter a real noção do significado de sua pregação solitária. Os outros, no entanto, admiram-no e se comportam como se fossem seus discípulos, mesmo que não consigam absorver por completo a sua mensagem – muito embora sua essência libertária seja não apenas captada como amplamente posta em prática, especialmente no clímax do filme, que acontece durante e logo após uma parada militar de 7 de setembro, às margens do Rio Capiberibe.

A narrativa fragmentada, apesar de linear, ganha muito com a excelente atuação do elenco e com a profundidade psicológica dos personagens, especialmente o de Eneida, moça mais sossegada e menos sugestionável que se torna objeto de desejo mas resiste às investidas do poeta. Comê-la parece se tornar uma obsessão para ele, que acaba esquecendo de suas velhinhas, coitadas. Eneida (Nanda Costa), ao resistir, demonstra personalidade e com isso acaba conquistando, aos poucos, não apenas o tesão, mas a admiração de Zizo, que fica totalmente envolvido em suas provocações – como na excelente cena em que ela xeroca partes de seu corpo e as deixa para servir como matéria-prima para uma obra de arte.

Críticos babacas e público bunda-mole que pensa que cinema é lugar pra comer pipoca e assistir televisão travestida de grande arte em comédias globais torceram o nariz para a nudez despudorada e a sacanagem quase explícita, anticonvencional até (convenhamos que não é nada comum vermos na tela grande cenas de sexo com senhoras de idade, por exemplo) e, supostamente, gratuita. Mas de graça é melhor, porra! Não entenderam nada. Até aí tudo bem, em também não entendi muita coisa. Mas entrei totalmente no “clima”. E gostei. Muito.

Claudio Assis é foda! Sou fã desse filho da puta ...

Febre do rato (2011), de Claudio Assis.

Muito bom.

Raul - O Início, o Fim e o Meio (2011), de Walter Carvalho, Leonardo Gudel e Evaldo Mocarzel – Corajosa e emocionante cinebiografia (em forma de documentário) sobre Raul Seixas, maior e mais popular expoente do rock brasileiro. Corajosa porque sincera ao extremo: não foge de nenhuma polêmica, da já batida sobre se ele haveria sido ajudado ou explorado por Marcelo Nova no fim da vida a uma suposta paixão secreta nutrida por sua secretária particular, passando por sua inconstância amorosa e pelo relacionamento sempre conturbado com o egocêntrico parceiro de composição Paulo Coelho. Algumas passagens são muito engraçadas, como a do depoimento de militantes de uma suposta sociedade secreta que reivindica Coelho como ainda integrante de suas fileiras, para a surpresa do hoje famosíssimo escritor (“pensei que a simples desistência tivesse sido suficiente, não sabia que tinha que dar baixa em nenhuma carteirinha não”). As cenas (algumas raras) de perfomances ao vivo são ainda, no entanto, o ponto alto do filme. Raul Seixas no palco, no auge de sua forma física e mental, era nada menos que arrebatador.

Já a decadência e a morte solitária foram tristes, muito embora fique claro que aquele foi um caminho que ele mesmo escolheu. Em todo caso, não deixa de ser irônico notar que o “maluco beleza” entrou em contradição com uma de suas melhores letras e ficou, no ocaso da vida, “sentado no trono de um apartamento (a não ser quando Marcelo nova o arrastava para algum show) com a boca escancarada cheia de dentes (ele os havia perdido, mas um dentista admirador fez questão de restaurá-los) esperando a morte chegar”.

A lamentar, apenas, a desnecessária presença constante na tela do xarope do Pedro Bial ...

Excelente.

Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2012), de Helena Ignez e Ícaro Martins – Helena Ignez tenta aqui emular, com relativo sucesso, o estilo de seu falecido companheiro, Rogério Sganzerla, diretor do clássico filme original, de 1968. Na pele do bandido, agora, está Ney Matogrosso, que não é ator e deixa isso bem claro na tela ao declamar, e não interpretar, suas falas. A fotografia é bonita, colorida e saturada, e a narrativa, como não poderia deixar de ser, é fragmentada e não linear, mas o roteiro é confuso (ok, o original também era) e a maioria dos personagens é caricata. No final das contas, a impressão que fica é a de que perdemos tempo vendo um pastiche modernizado do cinema novo. Valeu a intenção de colocar em prática um projeto inacabado do ex-marido, mas de boas intenções, todos sabemos, o inferno está cheio.

Fraco.

O Ditador (2012), de Sacha Baron Cohen – Ele conseguiu de novo: “O Ditador” é bem superior a Bruno e disputa pau a pau com “Borat” o título de “filme mais engraçado que eu já vi em toda a minha vida” (que me perdoe o Monty Python e seus fenomenais “A vida de Brian”, “O Cálice Sagrado” e “O Sentido da vida”, que me fizeram literalmente passar mal de tanto rir nos anos 80). Além de ser divertidíssimo, “O Ditador” faz também críticas certeiras às diferenças culurais, à frivolidade da sociedade de consumo de massas e à política externa norte-americana – o discurso final, supostamente “exaltando” a democracia do tipo ocidental (que não passa, na maioria das vezes, de desculpa para a exploração econômica dos países “libertados”), me lembrou o clássico de Chaplin, “O Grande ditador”.

Coisa de gênio.

Excelente.

Batman - O Cavaleiro das trevas ressurge (2012), de Christopher Nolan -  Não faço parte do time dos detratores do diretor Christopher Nolan, mas reconheço que ele é, frequentemente, pretensioso. Algumas vezes sua pretensão se justifica, como em “Amnésia” e “A Origem” - muito embora neste último a insistência em tentar explicar a trama durante o decorrer da projeção irrite. Noutros, não. É o caso de “Insônia”, “thriller” morno estrelado por Al Pacino, e de sua suposta “trilogia” do Batman. Aqui, fica claro que Nolan foi convocado para dar credibilidade a mais um blockbuster acerebrado feito para distrair o público consumidor entre uma e outra postagem em redes sociais via celular acompanhadas de doses cavalares de pipoca e refrigerante – com embalagens personalizadas, evidentemente.

Na primeira metade do filme a história se arrasta sonolentamente para quem não está a fim de tentar entender a trama artificialmente rebuscada que os roteiristas tentam nos vender até que a ação comece pra valer quando Bane, o vilão – que foi retratado de forma bem mais assustadora e convincente que nos quadrinhos, admitamos - finalmente coloca seu plano em prática: uma espécie de “rebelião popular” confusa que não se decide entre a justiça social e a vilania pura e simples.  Com esta premissa, o filme poderia resvalar numa apologia conservadora à ordem (que ordem?) vigente, mas na verdade fica em cima do muro: em certos momentos dá a entender que os autores entendem e concordam com as motivações dos “rebeldes’, mesmo que não aprovem seus métodos, mas ao mesmo tempo precisam demonstrar simpatia pelo “mocinho”, um playboy bilionário semi-fascistóide e meio esquizofrênico que aplaca a raiva pelo assassinato de seus pais com uma cruzada contra o crime que, convenhamos, na “vida real” (ou num mundo sem “supervilões”) teria poucos resultados práticos.

Dito isto, resta dizer que a mulher gato é realmente uma gata e fica um tesão quando uniformizada e pilotando a moto emprestada pelo Batman. Os veículos, por sinal, têm designs bonitos e estilosos, mas sua aerodinâmica é um tanto quanto inverossímel – o que é um problema, já que a idéia é produzir uma versão realista das Histórias em quadrinhos.

E, por fim, Gothan City ficou muito sem graça sem a arquitetura gótica.

Chato.

O vingador do Futuro (2012), de Len Wiseman – Visualmente bem cuidada refilmagem do clássico de 1990 que peca por apostar numa abordagem superficial excessivamente centrada na ação ininterrupta. Algumas das principais premissas do original são mantidas e servem como ponto de partida para uma nova aventura com algumas boas novas idéias, como a do gigantesco elevador que transporta as pessoas de um ponto ao outro do planeta através do centro da terra. Já o visual “retrô” do mundo futurista, embora impressione, é demasiadamente decalcado de Blade Runner, e as interpretações são fracas, seja por incompetência do elenco (no caso feminino), seja pela pouca profundidade dos personagens, caso dos protagonistas masculinos. Bryan Cranston, excepcional ator que estrela a cultuada série Breaking Bad, está particularmente irreconhecível, desperdiçando talento como um vilão caricato.

Há duas homenagens à obra original: uma bem sacada, que faz referência ao disfarce que Schwarzenneger usa para viajar para Marte, e outra desnecessária e sem sentido, já que nesta nova versão não existem mutantes.

Em todo caso, funciona bem como diversão escapista, sem maiores pretensões.

“Márromeno”

O vingador do Futuro (1990), de Paul Verhoeven – Devo admitir que nunca fui exatamente fã deste filme, muito embora o considere bastante divertido. A estética “kitsch” do figurino e da maquiagem e as péssimas atuações de Schwarzenneger e Sharon Stone incomodam, mas são compensadas pelas boas perfomances dos atores que interpretam os vilões – especialmente o mutante que se revela um traidor. Além disso, tem um bom ritmo, é bem dirigido e cheio de boas idéias (nem todas originadas na mente do genial Phillip K. Dick, já que o filme é apenas parcialmente inspirado em um de seus contos). Os efeitos especiais e a imaginação do futuro são em geral caprichados, muito embora algumas idéias estejam ultrapassadas e, aos olhos de hoje, acostumados à tecnologia digital, pareçam um tanto quanto canhestas. Isto não é, no entanto, necessariamente um defeito, muito pelo contrário: é sempre curioso notar como os produtores acertam ou erram em algumas de suas previsões para o desenvolvimento da tecnologia.

Bom.

Sombras da noite (2012), de Tim Burton – Primeiro filme realmente ruim que eu vejo de Tim Burton – antes deste, só não havia me divertido com “peixe grande”, que achei bem chatinho. É uma adaptação de uma novela de TV com um Johnny Depp pouco inspirado fazendo o papel de um vampiro deslocado no tempo e no espaço às voltas com o “progresso” capitalista e uma família disfuncional. Nada funciona: os diálogos não ajudam, os atores não rendem, a maioria das piadas não têm graça, o argumento é fraco, o ritmo é lento e o roteiro é “truncado”. Mantenha distância, mesmo que você seja fã .

Ruim.

Ed Wood (1994), de Tim Burton – Para compensar a decepção com a nova produção, revi esta que talvez seja sua obra-prima. Nem lembrava mais o quanto é divertida esta cinebiografia de Edward D. Wood, Jr., considerado por muitos o pior diretor de cinema de todos os tempos. Aqui, tudo funciona: a reconstituição dos cenários das produções originais é primorosa, Depp está perfeito e a premiada interpretação de Bela Lugosi por Martin Landau não é nada menos que fenomenal. Até o elenco de apoio é soberbo, valorizado pela inusitada “fauna” que gravitava em torno do sempre entusiasmado realizador.

Obrigatório.

Prometheus  (2012), de Ridley Scott – A trajetória do diretor Ridley Scott sempre foi cheia de altos e baixos – mas seus altos são bem mais altos que os baixos:  não esqueçamos que se trata, aqui, do homem que trouxe ao mundo Blade Runner, uma das maiores obras-primas da história da sétima arte. Seu passado o credencia, especialmente, para a ficção científica, por isso foi grande a expectativa em torno deste “prequel” da série Alien – ainda mais porque H.R. Giger estava de volta à equipe criativa.

Não me decepcionei, muito embora não tenha vibrado a cada frame. Me diverti com esta estilosa “sci-fi de horror sobre violações e fecundações” (Marcelo Hessel, no Omelete), apesar das idéias recicladas – caso do robô que todos pensam ser humano - e do visual derivativo - neste caso, previsível, já que o filme se insere dentro de uma franquia.

Bom.

Na Estrada (2012), de Walter Salles – Poucas vezes vi um filme vir à luz cercado de tanta expectativa negativa quanto esta produção do brasileiro Walter Salles baseada no clássico beat de Jack Kerouac. Era de se esperar, já que se trata da adaptação de uma obra cultuada há décadas e tida como de difícil transposição.

Esperava pouco (ou nada), mas fui conferir. Talvez justamente por esperar tão pouco, até que gostei. Não comecei gostando, mas fui prazerosamente recordando dos trechos do livro representados na tela ao longo da projeção, e isso foi bom. O fato de eu ter gostado mais de lembrar do livro do que do filme em si, no entanto, diz muito sobre o resultado final: burocrático. Mas não chato – pelo menos não da metade para o final – e até aí, na verdade, a película foi fiel à escrita, já que acho os trechos da obra que se passam entre os intelectuais de classe média de Denver chatíssimos. Mais importante: gostei do cara que interpretou Dean Moriarty, o verdadeiro protagonista e fio condutor da história. Não é nenhum Dennis Hopper (que eu acredito que teria sido perfeito para o papel), mas deu para o gasto, digamos assim.

  Marilou (Kirsten Dunst, “safadénha”)apenas faz cara de paisagem e trepa com Dean e com o Sal Paradise de Sam Riley, que é meio “banana”; mas Marilou, no livro, também passava o tempo todo trepando  - ou masturbando – seus companheiros de viagem e Jack (os nomes são fictícios, mas baseados nos personagens reais) ficava realmente meio apalermado diante da presença magnética de Dean/Neal Cassady. Ele e quase todos os que “comiam na mão” do adorável cafajeste, com uma notável exceção para o irrascível Old Bull Lee (William S. Burroughs), muito bem incorporado por Viggo Mortensen.

Vale notar, também, que o filme é mais baseado nos manuscritos originais do que na redação final, o que o torna bem mais explícito e libidinoso quando assunto são sexo e drogas, escancarando o fato de que o comportamento daqueles caras era certamente “avançadinho” demais para os anos 50 pré-revolução sexual e comportamental. Estavam, sem sombra de dúvidas, à frente do seu tempo – não por acaso influenciaram boa parte da cultura “pop” que explodiria em sons e cores e sensações nas décadas seguintes.

Bom.

Valente (2012), de Mark Andrews e Brenda Chapman – com “Valente”, infelizmente, a Pixar, genial produtora de animação que renovou o gênero na década de 90 com ousadia e inovação, se rendeu aos ditames de sua atual proprietária, a toda-poderosa Disney. Não que seja ruim, é divertido, mas muito, muito convencional. De impressionante, mesmo, só o resultado que os caras conseguiram com os cabelos vermelhos cacheados da protagonista – todos sabem que a animação dos fios de cabelos era (parece que não é mais) um dos principais desafios das equipes de produção das animações digitais ...

Bom (pendendo para o razoável)

A Invenção de Hugo Cabret (2012), de Martin Scorcese – Perdi de ver no cinema e em 3D esta nova produção do mestre Scorcese. Me arrependi amargamente ao ver a reprodução das filmagens dos clássicos de Georges Meliés – na sala escura, com a nova tecnologia, aquilo ali deve ter sido de encher os olhos! Para além deste aspecto visual, no entanto, o filme em si também é bom. Conta a história de um garoto que perde os pais e fica sujeito à tirania de um tio bebum que o força a trabalhar acertando os relógios de uma estação de trem. Sacha Baron Cohen está no elenco como um personagem careteiro e caricato, mas se sai bem assim mesmo.

Bom.

Iron Sky (2012), de Timo Vuorensola – Conheci esta interessante película que trata de uma invasão futurista da terra por nazistas alojados desde o final da segunda grande guerra no lado escuro da lua através do Facebook da bandas eslovena Laibach, responsável pela trilha sonora. Que eu saiba, não foi lançada nem tem previsão de lançamento no Brasil, mas existe uma coisa maravilhosa chamada internet na qual pessoas com inteligência e paciência suficiente para decifrar seus caminhos encontra praticamente tudo aquilo que quiser. Tenho uma pessoa assim morando lá em minha casa, por isso pude assistir, em boa qualidade, legendado e no conforto do meu lar, esta co-produção finlandesa, alemã e australiana.

Confesso que me decepcionei. Começa muito bem, com astronautas norteamericanos a serviço da reeleição da presidente Sarah Palin (???!!!) sendo atacados pelos chucrutes do espaço em pleno satélite terrestre, mas evolui para um pastelão digno das mais fanfarronas produções hollywoodianas. Nem a trilha sonora do Laibach, do qual sou fã, impressiona.

Razoável.

Contra o tempo (2011), de Duncan Jones – Segundo filme do talentoso diretor que muito provavelmente será conhecido para sempre como “o filho de David Bowie”. Não é tão bom quanto “Lunar”, seu projeto anterior, mas é bastante divertido – e movimentado. Para além de alguns problemas de coerência um tanto quanto primários (que a mim, no entanto, muito pouco incomodaram), é muito bem dirigido e mantém o suspense até o final, mesmo que se passe basicamente em apenas três ambientes. Acompanha as idas e vindas de um soldado que faz parte de um programa experimental do governo para investigar um atentado terrorista, numa trama complexa envolvendo viagens no tempo e incorporações em mentes mantidas em animação suspensa.

Bom.

Lena (2011), de Christophe Van Rompaey – Lena é uma adolescente gordinha e solitária que, surpreendentemente, passa a se relacionar amorosamente com um rapaz bonito e popular – mas de comportamento suspeito. Para fugir de sua mãe neurótica e repressora, ela vai morar com o namorado, que divide a casa com seu pai, um homem de meia-idade recluso e apático. Aos poucos, ela consegue inclusive corrigir os desvios de caráter de seu jovem amante, mas a vida é injusta: algo de muito errado vai acontecer naquela casa! Suas tentativas desesperadas de contornar o problema só fazem piorar a situação, num efeito “bola-de-neve” que vai passar por cima de todos feito um moedor de carne e culminar num final surpreendente e devastador.

Dramático, apesar da narrativa um tanto quanto fria e distante.

Bom.
Eu Matei a minha mãe (2009), de Xavier Dolan – Como eu disse lá atrás, tenho em casa uma pessoa que, quando dá na telha, vasculha a internet em busca de filmes e sempre encontra algo diferente e interessante pra gente assistir. É o caso desta produção canadense cometida pelo jovem e talentoso Xavier Dolan, de quem eu, confesso, nunca havia ouvido falar! Mostra os conflitos de um adolescente gay histérico com sua mãe que, ora bolas, é apenas uma mãe convencional, nada demais – não é, no entanto, como a mãe de seu namorado, liberal ao ponto de trazer namorados da idade do filho para casa, além de deixá-los se trancar no quarto sozinhos e fumar maconha à vontade. Não é nenhum supra-sumo da sétima arte, mas é estiloso, engraçado e dramático – neste último caso, às vezes, até demais ...

Bom.

O Homem incomodado (2006), de Jens Lien – Excelente produção norueguesa que conta a kafkiana história de Andreas (Trond Fausa Aurvaag), (Faço minhas, a partir daqui, as palavras de Pedro Cotta, do Blog Cineopinativo. Tenho apenas uma observação a acrescentar: a expressão facial do ator que interpreta o protagonista, sempre visivelmente incomodado, até quando está transando, é ótima!) “um homem por volta dos 40 anos de idade que é levado até uma cidade estranha sem saber como ou porque chegou lá. O encarregado de levá-lo lhe apresenta a sua nova casa (simples, sem luxos) e seu novo emprego (contador de uma grande empresa). Apesar da estranha situação, tudo à sua volta parece estar perfeito: todos são cordiais, ele é bem remunerado, tem um chefe que dá ajuda de custo no primeiro dia de trabalho e, em pouquíssimo tempo, encontra uma mulher com quem irá dividir apartamento. Mas esta visualmente perfeita situação começa a despertar um incômodo em um órgão específico de seu corpo: o coração. Este parece carente de sentimentos, algo que Andreas percebe ser escasso em sua nova morada.”

“Com um enredo simples, o diretor Jens Lien consegue fazer uma feroz crítica à nossa sociedade consumista e desalmada. As normas sociais seguem padrões que devem ser seguidas por todos. Quem tentar uma abordagem diferente, andar com suas próprias pernas e segundo suas próprias crenças, é instantaneamente deletado da comunidade. (...) Vivemos numa época de aparências, do falso-sentir, muito bem demonstrado em diversas cenas, inclusive a que abre o filme, excelente e impactante. É a geração Micareta-Facebook. “

“A fotografia, escura e banhada com tons de cinza e azul, trabalha em conjunto com a falta de expressão das faces dos moradores da cidade para mostrar o quão triste e sem sentido pode ser uma existência como esta. Impossível, nem que seja por um minuto, repensar suas atitudes e sua forma de levar a vida. Será que vale a pena ser neurótico com a decoração de sua casa, assim como a mulher de Andreas? Será que os sorrisos forçados do dia-a-dia são realmente necessários? Até que ponto você está sendo feliz apenas para os outros?”

Excelente

Garotas do ABC (2003), de Carlos Reichenbach – “samba do crioulo doido” pessimamente dirigido pela lenda do cinema marginal brasileiro Carlos Reichenbach, recentemente falecido. Nunca tinha visto nenhum filme dele e tentei começar a tirar este atraso no calor da emoção por seu passamento, mas parece que comecei com o pé esquerdo ...

O filme conta a história de operárias de uma indústria têxtil do ABC paulista, dentre elas uma mulata pra lá de gostosa (que aparece fazendo um streap tease logo na cena inicial, muito bem filmada, diga-se de passagem) que se envolve com um neonazista retardado (olha a redundância) que se dedica a praticar atentados contra negros e nordestinos. As interpretações são péssimas, os personagens psicologicamente vazios e/ou confusos e o filme se perde em cenas que retratam situações ora ridículas, ora com algum potencial inovador que, no entanto, não se concretiza (por aparente incompetência do diretor, muito preso a maneirismos ultrapassados), como as que mostram uma das trabalhadoras da fábrica que parece sentir prazer com os pequenos acidentes de trabalho que sofre e deixam marcas em seu corpo, pois estes, além de garantir um bom dinheiro a título de indenização, a deixam mais próxima do patrão, por quem é secretamente apaixonada.

Bom mesmo, como sempre, só Selton Melo, que tenta - sem sucesso - tirar leite de pedra na pele do mentor intelectual da gangue neonazista.

Curiosamente, é bem mais interessante assistir ao filme com o áudio de comentários do diretor, no qual ele esmiúça alguns detalhes técnicos e conceituais que dão uma boa idéia de sua erudição e gênio criativo – claro, não gostei nem um pouco deste “Garotas do ABC”, mas boto fé que esta é uma obra menor do Carlão, tido por muitos como mestre do “cinema de autor” da Boca do lixo. Preciso ver seus outros filmes, urgentemente ...

Ruim.

Reino de fogo (2002), de Rob Bowman – Curioso como nossa percepção das coisas depende, em grande parte, de nosso estado de espírito no momento: lembro que me diverti bastante ao ver este filme no cinema na época do lançamento, tanto que, ao ver o DVD a um preço camarada numa loja de departamento, o adquiri para tê-lo em casa. Demorou 10 anos até que eu finalmente “descabaçasse” o disquinho, e eis que a tão empolgante aventura futurista que mostra o mundo dominado por dragões cuspidores de fogo se revela não mais que uma boa sessão da tarde. Os efeitos especiais são bons, a premissa é interessante e os monstros são convincentes, mas o roteiro, as interpretações e o desenvolvimento psicológico dos personagens deixam muito a desejar. Boa, mesmo, só a cena que mostra “Star Wars” como um mitológico conto de fadas encenado de forma mambembe num teatro improvisado e, ainda assim, deixa a garotada fascinada.

Fraco.

Um Plano simples (1998), de Sam Raimi – Pequena obra-prima magnificamente dirigida por Sam Raimi antes de seu mergulho no mundo das adaptações arrasa-quarteirão hollywoodianas de quadrinhos de super-heróis. Conta a história de três caipiras norte-americanos que se deparam com 4 milhões de dólares num avião caído no meio de uma floresta congelada cheia de corvos. A discórdia, evidentemente, se instala, já que entre os 3 não há uma idéia clara do que fazer com o dinheiro, a princípio, ou de como se apoderar da fortuna sem levantar suspeitas, posteriormente. O personagem de Bill Paxton é o mais “certinho” e o que mais tem a perder (tem um emprego estável e sua mulher está grávida do primeiro filho),  mas aos poucos vai cedendo a uma espiral de ambição que o levará a tomar atitudes drásticas impensáveis para um pacato cidadão de uma pequena cidade do Minnesota.

Excelente.

A

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Para além do frenesi do consumo ...


Eduardo Viveiros de Castro dispara: iludido por noção ultrapasada de progresso, Brasil pode desperdiçar oportunidade única de propor novo modelo civilizatório
Entrevista a Júlia Magalhães
Fonte: Outras palavras
É preciso insistir no fato de que é possível ser feliz sem o frenesi de consumo que a mídia nos impõe”, reafirma o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, à jornalista Júlia Magalhães. Para ele, assim como para Fernando Meirelles e Ricardo Abramovay – primeiros entrevistados da sério Outra Política – a felicidade pode ter outros caminhos. O novo diálogo é parte da série que o Instituto Ideafix produziu por encomenda do IDS(Instuto Democracia e Sustentabilidade), e que o site publica na seção especial “Outra Política“.
Pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) e sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA), Viveiros insiste em que só pela educação avançaremos rumo a uma sociedade mais democrática. “A falta de educação é o nó cego responsável por esse conservadorismo reacionário de boa parte da população”, diz ele. Vai além: arrisca dizer que haveria uma conspiração para impedir os brasileiros de ter acesso a educação ou conexão de à internet de qualidade – conquistas que permitiriam ampliar o acesso a produtos e bens culturais.
Ainda como Meirelles e Abramovay, Viveiros insiste em políticas que reduzam adesigualdade e favoreçam novos padrões de consumo. “É um absurdo afirmar que produzir mais carros é sinal de pujança, utilizar esse dado como indicador de melhoria econômica.”
Para o antropólogo, a mobilização pelas causas ambientais é importante, mas ainda está longe de corresponder à gravidade do problema. É preciso ampliar o universo dos que se preocupam, lembrar “que saneamento básico, dengue e lixo são problemas ambientais”. Viveiros está alarmado: “as pessoas fingem não saber o que está acontecendo, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior”. O raciocínio é semelhante ao de Fernando Meirelles, diretor de Ensaio sobre a Cegueira: “Apenas cegos, cínicos ou oportunistas recusam-se a enxergar”.
Diferentemente de Abramovay – que vê germinar um trabalho sério nas empresas e acredita que a sociedade terá força e atitude para impor limites à iniciativa privada –, Viveiros de Castro considera que as corporações não são capazes de ir além do “capitalismo verde”, fingindo responsabilidade social e ambiental. Os dois se alinham, contudo, na esperança depositada nas redes sociais como canais de expressão, opinião, colaboração e mobilização.
Não existe um rumo Brasil”, alerta Viveiros de Castro, ao falar sobre a fratura que marca a sociedade brasileira contrapondo as forças vivas do autoritarismo e do racismo aos setores que buscam a inovação. “O Brasil é um país escravocrata, racista, que não fez reforma agrária, e precisa fazê-la”, diz.
Não por coincidência, dissse o mesmo, há pouco, Mano Brown, em vídeo gravado na Ocupação Mauá, centro de São Paulo. “O Brasil está em transição, não sabe se é um país moderno ou se está ainda em 1964. Tem uma geração de direita ainda viva – Kassab é de direita, Alckmin é de direita – que tem um modus operandi dos caras da antiga, de usar a força, o poder.” A seguir, a entrevista (Inês Castilho).
Qual é sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma desgeneralização: vejo a sociedade brasileira como profundamente dividida no que concerne à sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe um Brasil, no sentido não-trivial das ideias de unidade e de brasilidade, parece-me uma ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os dominantes) mas antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois, e, a meu ver, bem mais Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação unificado não é descritivo, mas prescritivo. Há fraturas profunda na sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação conservadora imensa; eles não integram necessariamente uma classe específica, embora as chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria muito satisfeita sob um regime autoritário, sobretudo se conduzido mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas isso é uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país, ou mesmo uma certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um silêncio embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo brasileiro é democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade – o que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”: fraturada, dividida, polarizada, uma polarização que não está necessariamente em harmonia com as divisões politicas oficiais (partidos etc.). O Brasil permanece uma sociedade visceralmente escravocrata, renitentemente racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas com esse inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro, soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre os mais pobres, ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima, inspiram modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a historia colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.
O que é preciso para mudar isso?
Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar. Mas não “educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e devêssemos (e pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim criar as condições para que o povo se eduque e acabe educando a elite, quem sabe até livrando-se dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um deserto. E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar esse deserto. Pelo contrário: chego a ter pesadelos conspiratórios de que não interessa ao projeto de poder em curso modificar realmente a paisagem educacional do Brasil: domesticar a força de trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente tentando (ou planejando), não é de forma alguma a mesma coisa que educar.
Isto é só um pesadelo, decerto: não é assim, não pode ser assim, espero que não seja assim. Mas fato é que não se vê uma iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a inauguração bombástica de dezenas de universidades sem a mínima infra-estrutura física (para não falar de boas bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil), enquanto o ensino fundamental e médio permanecem grotescamente inadequados, com seus professores recebendo uma miséria, com as greves de docentes universitários reprimidas como se eles fossem bandidos. A “falta” de instrução — que é uma forma muito particular e perversa de instrução imposta de cima para baixo — é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade brasileira. Em suma, é urgente uma reforma radical na educação brasileira.
“A floresta e a escola”, sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente, parece que deixaremos de ter uma e ainda não teremos a outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta mesmo.
Por onde começaria a reforma na educação?
Começaria por baixo, é lógico, no ensino fundamental – que continua entregue às moscas. O ensino público teria de ter uma política unificada, voltada para uma – com perdão da expressão – “revolução cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor, aumentar a quantidade de migalhas que caem da mesa cada vez mais farta dos ricos) apenas para comprar televisão e ficar vendo o BBB e porcarias do mesmo quilate, se não redistribuímos cultura, educação, ciência e sabedoria; se não damos ao povo condições de criar cultura em lugar de apenas consumir aquela produzida “para” ele. Está havendo uma melhora do nível de vida dos mais pobres, e talvez também da velha classe média – melhora que vai durar o tempo que a China continuar comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a África. Apesar dessa melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na qualidade efetiva de vida, da vida cultural ou espiritual, se me permitem a palavra arcaica. Ao contrário. Mas será que é preciso mesmo destruir as forças vivas, naturais e culturais, do povo, ou melhor, dos povos brasileiros para construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Nesse cenário, quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo a “sociedade brasileira” imantada, pelo menos no plano de sua auto-representação normativa por via da midia, por um ufanismo oco, um orgulho besta, como se o mundo (desta vez, enfim) se curvasse ao Brasil. Copa, Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas urgentíssimos, como esses da educação e da redefinição de nossa relação com a terra, isto é, com aquilo que está por baixo do território. Natureza e Cultura, em suma, que hoje não apenas se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado, mas mediocrizadas por ele. O Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza e contra a Cultura.
Esses temas ainda não mobilizam?
Existe alguma preocupação da opinião pública com a questão ambiental, um pouco maior do que com a educacional – o que não deixa de ser para se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me parece “too little, too late”: muito pouco, e muito tarde. Está demorando tempo demais para se espalhar a consciência ambiental, o sentido de urgência absoluta que a situação do planeta impõe a todos nós. Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre os governos, as corporações, as empresas – estas investindo cada vez mais na historia da carochinha do “capitalismo verde”. E pouca pressão sobre a grande imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e incompetente quando se trata da questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que tem o apoio desinformado (é o que se infere) de porções significativas da população do Sul e Sudeste, para onde irá boa parte da energia que não for vendida a preço de banana paras as multinacionais do alumínio fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas, para o mercado asiático. Faz falta um discurso politico mais agressivo em relação à questão ambiental. É preciso sobretudo falar aos povos, chamar a atenção de que saneamento básico é um problema ambiental, dengue é problema ambiental, lixão é problema ambiental. Não é possível separar desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso convencer a população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é garantir as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional, como se está comprovando, mostra-se completamente despreparada para articular um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças mais pensantes falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo atrás”, tentando desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo, um problema muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico. Isso quando ela, a esquerda, não se alinha com o insustentável projeto ecocida do capitalismo, revelando assim sua comum origem com este último, lá nas brumas e trevas da metafísica antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que melhorar a vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma televisão, em vez de melhorar o saneamento, o abastecimento de água, a saúde e a educação fundamental, não vai dar. Você ouve o governo falando que a solução é consumir mais, mas não vê qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições dominantes no presente século.
Não se diga, por suposto, que os mais favorecidos pensem melhor e vejam mais longe que os mais pobres. Nada mais idiota do que esses Land Rovers que a gente vê a torto e a direito em São Paulo ou no Rio, rodando com plásticos do Greenpeace e slogans “ecológicos” colados nos pára-brisas. Gente refestelada nessas banheiras 4×4 que atravancam as ruas e bebem o venenoso óleo diesel, gente que acha que “contato com a natureza” é fazer rally no Pantanal…
É uma situação difícil: falta instrução básica, falta compromisso da midia, falta agressividade política no tratar da questão do ambiente — isso quando se acha que há uma questão ambiental, o que está longe de ser o caso de nossos atuais Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por exemplo, preocupação em formar jovens que dirijam com segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm sua aposta firme no futuro do transporte por carro individual numa cidade como São Paulo, em que não cabe nem mais uma agulha. Um governo que não se cansa de arrotar grandeza sobre a quantidade de veiculos produzidos por ano. É um absurdo utilizar os números da produção de veiculos como indicador de prosperidade econômica. Isso é uma proposta podre, uma visão tacanha, um projeto burro de país.
Você está dizendo que muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo. Mas também há um apelo muito grande que vem do mercado. Como você avalia isso?
O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro é considerado por quase todo mundo hoje como uma evidência necessária, o modo incontornável de um sistema social sobreviver no mundo de hoje. Entendo, ao contrário de alguns companheiros de viagem, que o capitalismo sustentável é uma contradição em termos, e que se nossa presente forma de vida econômica é realmente necessária, então logo nossa forma de vida biológica, isto é, a espécie humana, vai-se mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras alternativas.
A ideia de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, a ética da suficiência são contraditórias com a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia manutenção de um determinado patamar de equilíbrio na relação de troca energética com a natureza não cabe na matriz econômica do capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou não, vai ser “solucionado” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que imaginávamos. As pessoas fingem não saber o que está acontecendo, preferem não pensar no assunto, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário, está sempre se preparando para o melhor. O otimismo nacional diante de uma situação planetária para lá de inquietante é extremamente perigoso, e a aposta de que vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo ingênua, se é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um país periférico, uma plantation relativamentehigh tech que abastece de produtos primários o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne, para os países industrializados – e são eles que dão as cartas, controlam o mercado. Estamos bem nesse momento, mas de forma alguma em posição de controlar a economia mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil pode simplesmente perder esse lugar à janela onde está sentado hoje. Sem falar, é claro, no fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008 e está longe de acabar; ninguém sabe onde ela vai parar. O Brasil, nesse momento da crise, está em uma espécie de contrafluxo do tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Essas coisas têm de ser ditas.
E como você avalia a relação dessa realidade macropolítica, macroeconômica, com as realidades do Brasil rural, dos ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto de Brasil que tem a presente coalizão governamental sob o comando do PT é um no qual ribeirinhos, índios, camponeses, quilombolas são vistos como gente atrasada, retardados socioculturais que devem ser conduzidos para um outro estágio. Isso é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista, seu projeto é uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior do país numa fantasiacountry: muita festa do peão boiadeiro, muito carro de tração nas quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu, rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E do outro lado cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo. O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se rentabilizar, a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta de vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre as geopolítica da ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições políticas formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia bem dialética, o governo comandado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura realizando um projeto de sociedade encampado e implementado por essa mesma ditadura: destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e agrotoxificação da “lavoura”, migração induzida para as cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia de Brasil que o vê, no início do século XXI, como se ele devesse ser o que os Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, sob vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita geladeira, muita televisão, todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso éramos, entre outros, nós. (Quem nos pagará, agora? A África, mais uma vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem falarmos na massa de infelicidade bruta gerada por esse modo de vida para seus beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma tristeza: cinco séculos de abominação continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios. O nosso governo dito de esquerda governa com a permissão da oligarquia e dos jagunços destas para governar, ou seja, pode fazer várias coisas desde que a parte do leão continue com ela. Toda vez que o governo ensaia alguma medida que ameace isso,o congresso, eleito sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB sabota.
Há uma série de impasses para os quais não vejo saída, não vejo como sair por dentro do jogo político tradicional, com as presentes regras – vejo mais como sendo possível pelo lado do movimento social. Este está desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é que ele está. Mas se não for por via do movimento social, vamos continuar vivendo nesse paraíso subjuntivo, aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo. O Brasil é um país dominado politicamente por grandes proprietários e grandes empreiteiros, que não só nunca fez sua reforma agrária, como onde se diz que já não é mais preciso fazê-la.
Você acha que as coisas vão começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise econômica mundial vai provavelmente pegar o Brasil no contrapé em algum momento próximo. Mas o que vai acontecer com certeza é que o mundo todo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa nos próximos 50 anos, com epidemias, fomes, secas, desastres, guerras, invasões. Estamos vendo as condições climáticas mudarem muito mais aceleradamente do que imaginávamos, e é grande a possibilidade de catástrofes, de quebras de safras, de crises de alimentos. Por ora, hoje, isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a conta vai chegar. Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos estão profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências da transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje a vida da espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso insistir que é possível ser feliz sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a mídia nos impõe. Não sou contra o crescimento econômico no Brasil, não sou idiota a ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a grana do Eike Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando os subsídios aos clãs político-mafiosos que governam o país. Não que isso não fosse uma boa ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da “economia” mundial, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. Sou também obviamente a favor de que todos possam comprar uma geladeira, e, por que não, uma televisão — mas sou a favor de que isso envolva a máxima implementação das tecnologias solar e eólica. E teria imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos trocar esse meio absurdo de transporte por soluções mais inteligentes.
E como você vê o jovem nesse contexto?
É muito difícil falar de uma geração à qual não se pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas ideais claros, achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?
No Brasil, a aceleração da difusão do que podemos chamar de cultura agro-sulista, tanto à direita como à esquerda, pelo interior do país. Vejo isso como a consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, esse modo muito peculiar da elite dominante acertar suas contas com o próprio passado (passado?) escravista.
Outra mudança importante foi a consolidação de uma cultura popular ligada ao movimento evangélico. O evangelismo das igrejas universais do reino de Deus e congêneres está evidentemente associado à religião do consumo, aliás.
E como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Isso é uma das poucas coisas com que estou bastante otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total das mídias por cinco ou seis grandes grupos. Esse enfraquecimento está acontecendo com a proliferação das redes sociais, que são a grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para fazer circular um tipo de informação que não tinha trânsito na imprensa oficial, e permitindo formas de mobilização antes impossíveis. Há movimentos inteiramente produzidos dentro das redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada” em Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas. As redes são nossa saída de emergência para a aliança mortal entre governo e mídia. São um fator de desestabilização, no melhor sentido da palavra, do arranjo de poder dominante. Se alguma grande mudança no cenário político brasileiro vier a acontecer, creio que vai passar por essa mobilização das redes.
Por isso se intensificam as tentativas de controlar essas redes por parte dos poderes constituídos – isso no mundo inteiro. Pelo controle ao acesso ou por instrumentos vergonhosos, como o “projeto” brasileiro de banda larga, que começa pelo reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade. Uma decisão tecnolotica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para impedir que os brasileiros tenham uma educação boa e acesso de qualidade à internet. Essas coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social, algo que, pelo jeito, é preciso controlar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no ministério do Meio Ambiente na época de Marina Silva me criticava dizendo que essa minha conversa de ficar longe do Estado era romântica e absurda, que tínhamos que tomar o poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder, era preciso saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho um desenho político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é melhor para o povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar minhas preocupações e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm 5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas elite políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV. Temos de mudar completamente, para começar, a relação secularmente predatória da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora de iniciarmos uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais realista diante da situação de crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Nadejda Tolokonnikova, da prisão ...

Uma das integrantes da banda de rock russa Pussy Riot afirmou amar a Rússia, mas odiar o presidente Vladimir Putin, em entrevista publicada nesta segunda-feira pela revista alemã "Der Spiegel".

Nadejda Tolokonnikova, 22, foi condenada a dois anos de prisão após a banda fazer um show não autorizado em uma igreja de Moscou. No concerto, o grupo tocou uma música que dizia "Virgem, mãe de Deus, livrai-nos de Putin"."Amo a Rússia, mas odeio Putin. A Pussy Riot quer uma revolução na Rússia", disse Tolokonnikova.

Considerada a líder do grupo, Tolokonnikova respondeu por escrito às perguntas da revista, que as recebeu através de um dos advogados da jovem. O semanário mostrou uma foto das respostas manuscritas da cantora. "O sistema de Putin não pertence ao século 21, lembra muito as sociedades primitivas ou os regimes ditatoriais do passado", afirma.

Ela diz que não se arrepende do ato, que foi considerado pela Justiça vandalismo com agravante de ódio religioso. "Não me arrependo de nada. No fim das contas, acho que o julgamento contra nós era importante, pois mostrou o verdadeiro rosto do sistema Putin". "Este sistema proferiu uma sentença contra si mesmo, ao nos condenar a dois anos de prisão sem que tivéssemos cometido crime algum. Isto certamente me alegra", afirma a jovem.

NO PASARÁN

No julgamento, realizado em 17 de agosto, a jovem vestia uma camiseta com o lema "No pasarán!" (Não passarão), usado pelos comunistas contra os fascistas durante a Guerra Civil Espanola. "Luto para que minha filha (de 4 anos) cresça em um país livre", reforça, avaliando que o julgamento foi "a vingança de Putin". Além de Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich, 30, Maria Alejina, de 24 anos, foram condenadas por um tribunal de Moscou a dois anos de prisão cada uma.

A uma pergunta sobre as condições na prisão, a cantora afirma que são suportáveis. "Apesar de tudo, é uma prisão russa com todo o seu encanto soviético. Não houve muito progresso: a prisão é uma mistura de quartel e de hospital". "Somos acordados às seis da manhã, em seguida tomo o café da manhã, depois é a hora do passeio no pátio. No resto do dia, escrevo ou leio, por exemplo, nestes dias, a Bíblia e as obras do filósofo marxista esloveno Slavoj Zizek", descreve. "A falta de liberdade de movimento não restringe a liberdade de pensar", conclui.

Nadezhda Tolokonnikova, além de uma das fundadoras do Pussy Riot, é antiga participante do Voina, grupo russo de protesto de artistas absurdistas e anarquistas. Ela declarou ao jornal Britânico Guardian que “arte é política.” Quando foi perguntada se as integrantes da banda se consideravam manifestantes ou artistas, ela respondeu: “Nós não poderíamos nos imaginar sem uma coisa nem a outra. Nós não entendemos como um artista pode pensar sobre a sociedade e dizer que é apolítico.”

Em 2008, Tolokonnikova se deixou gravar e fotografar simulando uma relação sexual em público com o marido, Piotr Verzilov, quando estava grávida. A rebeldia foi encenada com outros casais no Museu do Zoológico de Moscou e concebida como um protesto provocativo do Voina contra a eleição de Dmitry Medvedev à Presidência.