terça-feira, 23 de junho de 2009

Cine Cult - “Aracaju com jeito de cidade grande”



por Adelvan Kenobi

“Aracaju com jeito de cidade grande”. Por conta da inauguração de um viaduto na cidade a prefeitura nos brindou com essa pérola de provincianismo em forma de slogan publicitário. Sim, com o novo viaduto do DIA Aracaju fica, realmente, com cara de cidade grande, pois começa a apresentar os problemas que as cidades costumam apresentar quando crescem, a saber, no caso, o transito caótico, conseqüência de uma mentalidade insana que privilegia a posse do carro de passeio individual em detrimento do transporte publico de massas. O resultado da equação é fácil de entender, não é preciso ser matemático: mesmo que todas as pessoas pudessem possuir um carro de passeio, o que parece ser o ápice do sonho de consumo estimulado diariamente pela publicidade, não haveria espaço. Em nenhuma cidade do mundo. Simples assim. Mas aos olhos de todos parece mais adequado adaptar a realidade ao sonho, o que gera distorções como o dispêndio de enormes somas de recursos públicos que poderiam estar sendo direcionadas para áreas fundamentais como a saúde e educação e mesmo para meios de transporte público mais eficientes e de qualidade, como o metrô, para a construção de viadutos, para que o transito possa fluir por mais algum tempo até que a incessante entrada de novos veículos em circulação provoque novos engarrafamentos onde eles, supostamente, não deveriam existir.

Esta é uma das conseqüências ruins do crescimento urbano. Aparece de mãos dadas com o aumento da violência e a deterioração da qualidade de vida (mal que, pelo menos por enquanto, graças a algumas ações acertadas do poder publico nos últimos anos, inclusive no transito, com a implantação de ampla rede de ciclovias, ainda não sofremos). Mas há também o fator positivo: o aumento das opções de entretenimento e cultura, propiciado por uma concentração maior de pessoas dispostas a bancar espetáculos e eventos de qualidade. Há dois anos nasceu em Aracaju uma idéia que, por ter frutificado de forma surpreendente, demonstra um salto qualitativo no aspecto cultural da cidade: A Sessão “Cine Cult”, exibida diariamente no cinemark, atualmente detentor das únicas salas de exibição de cinema em Aracaju. O sucesso do Cine cult demonstra que havia uma demanda reprimida por uma programação diferenciada entre os amantes da sétima arte, para além dos simples consumidores de pipoca e adeptos do bate-papo dos Blockbusters (impressionante como tem gente que parece que considera o cinema o lugar ideal para se ir para ... conversar!). O projeto já existia há alguns anos nos cinemas do Shopping Riomar, mas nessa nova fase tornou-se diári0, com uma sessão a preços populares às 15:00 e uma sessão extra na quarta à noite. Uma avanço considerável, tendo em vista que antes acontecia apenas nos finais de semana, às 11:00 da manhã.

Para comemorar 1 Ano do Cine Cult foi promovida uma Virada Cinematográfica: uma única sessão com 3 filmes, ao preço de uma sessão normal, começando à 0:00 do sábado e terminando às 6:30 da manhã do domingo, 15 de junho de 2008, com direito a intervalos de meia hora regados a refrigerantes, salgadinhos e bolo de aniversário, e um café da manhã reforçado ao final da maratona. O publico, mais uma vez, compareceu em massa ao evento, que contou com a presença do produtor e da protagonista do filme que abriu a sessão, “Deserto Feliz”, de Paulo Caldas. O segundo filme era surpresa, foi revelado apenas no momento da exibição: “Minha vida não cabe num opala”. Ambos ainda inéditos no circuito comercial nacional. Para encerrar, “Beijo Roubado”, do coreano Wong Kar Wai. A Virada também foi um sucesso e teve mais três edições, sendo que a última, a quarta, acontecida no dia 13 de junho de 2009, serviu também para marcar os dois anos do Cine Cult, cujo sucesso levou o Cinemark a estender o projeto ao país inteiro. Hoje, o Cine Cult atua nos complexos do Cinemark nas seguintes cidades: Aracaju, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Florianópolis, Jacareí, Manaus, Natal, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro (Downtown e Carioca), Salvador, São José dos Campos (Colinas e Center Vale), São Paulo (Santa Cruz, Villa Lobos e Metrô Tatuapé) e Vitória.

O Sucesso da Virada Cinematográfica deu origem, inclusive, a uma nova sessão, a NOTÍVAGOS, bastante inovadora e também de bastante sucesso – pelo menos em sua primeira edição (a segunda foi prejudicada por uma greve no transporte publico). Trata-se de uma sessão de cinema seguida de uma apresentação musical no Hall do multiplex. Na primeira edição foi exibido o filme “Repulsa ao sexo”, de Roman Polanski, estrelado por Catherine Deneuve, seguido de uma apresentação da banda sergipana The Baggios. O publico compareceu em bom número – mas infelizmente se comportou muito mal durante a exibição do filme, com muito barulho e gargalhadas absolutamente inconvenientes. Já o show da The Baggios foi impecável – destilaram seu blues rock minimalista com a competência e o entusiasmo de sempre, só que desta vez num ambiente inusitado – foi a primeira vez que eu assisti a um show no hall de um cinema. Para Aracaju, pelo menos, foi um fato inédito. Na segunda Sessão Notívagos foi exibido o filme "O Fim da Picada" (Sinopse: Macário, personagem principal, participa de uma orgia satanista numa praia brasileira no ano de 1850. Na manhã seguinte, inicia sua difícil viagem subindo a serra em direção à cidade de São Paulo, montado em seu burro. No trajeto encontra Exú-Lebara, versão feminina da entidade fantástica de origem afro-brasileira. Decidem seguir juntos a viagem para São Paulo. No entanto, Exú engana Macário durante a viagem, fazendo-o acordar em São Paulo, mas no ano de 2008, na mega-metrópole com quase 20 milhões de habitantes. Macário fica atordoado e torna-se um mendigo, vítima da cruel e desumana realidade em que passa a viver). Era pra ter havido, na sequencia, um debate com o cineasta, crítico e professor da UFF Daniel Caetano, mas o que se ouviu na realidade foi um profundo silêncio, fruto provavelmente do impacto provocado pela fita, extremamente experimental, com uma narrativa fragmentada e imagens fortes, metafóricas e/ou alegóricas, na cabeça dos expectadores (para que se tenha uma idéia, a primeira imagem da fita é um close numa vagina tatuada com o “numero da besta”, 666, sendo masturbada). Além disso, o publico foi bastante reduzido, fato devido, muito provavelmente, à greve dos transportes públicos já citada. A banda que se apresentou na noite foi a Daysleepers, revelação do cenário local, com seu folk rock sofisticado e muito bem executado.

A seguir, puxarei um pouco pela memória e exporei minhas impressões sobre alguns dos filmes que assisti nestes dois anos de Cine Cult (não vi todos, longe disso), a começar pelos exibidos durante a última Virada:

VALSA COM BASHIR – Excelente. Gosto muito de animação, e esta aqui é primorosa, tanto em termos de realização quanto na temática, que resgata um dos acontecimentos mais infames da recente historia humana, o massacre dos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano, ocorrido nos anos 80. O traço é muito bom, e a animação combina muito bem o estilo tradicional com a tecnologia digital. Destaque para a trilha sonora, que recria o clima da época (numa das cenas os jovens tentam esquecer os horrores da guerra numa boate ao som de “this is not a Love song” do PIL), e para a combinação de realismo com imagens oníricas para representar o estado de espírito dos personagens. No final, cenas reais do massacre garantem um soco no estômago da platéia.

CONTOS DE CANTEMBURY: O “filme surpresa” da última Virada foi este clássico de Píer Paolo Pasolini, parte de sua chamada “trilogia da vida” e baseado nas obscenas histórias de Geoffrey Chaucer do século XIV. Perversão sexual e libertinagem até dizer chega, com um forte teor anti-clerical que culmina numa imagem do inferno de dar inveja ao célebre pintor Hieronymos Bosch, onde os monges habitam o ânus do demônio. Adorei.

GOMORRA: Foi o ultimo filme da noite, exibido pro volta das 4 da manhã. Não tinha como ver direito, por causa do sono, mas do que vi, gostei muito. Hiper-realista, seco e violentíssimo, como o próprio tema representado – a temida camorra, a máfia napolitana. É baseado num livro best-seller na Europa que transformou seu autor, Roberto Saviano, num alvo da Máfia, que prometeu matá-lo até o fim do ano.Um filme sujo, feio e malvado, exatamente igual ao tema retratado – me impressionou especialmente o fato de que os bandidos fazem negócio até com lixo tóxico, sem dar a mínima para as conseqüências (e elas são terríveis) de seus atos. “O cenário é pobre, de uma feiúra perturbadora, os protagonistas, com exceção de um ou outro personagem, inspiram repulsa por serem justamente a antítese daquele ideal mafioso forjado no cinema hollywoodiano. Ninguém aqui é bonito, bem-vestido ou ligeiramente sedutor. A máfia de Gomorra é tão imunda, e parece tão real, quanto as ruas de Nápoles, que até há pouco tempo estavam entupidas de montes de lixo por conta da paralisação da coleta municipal” (Omelete). Preciso urgentemente ver direito, sem cochilos.

ESTÔMAGO: É uma pena que os filmes nacionais que fazem realmente sucesso, em sua maioria, são os pastiches globais comandados por Daniel Filho. Este filme, “Estômago”, merecia muito ser visto por um grande público. Excelente atuação de João Miguel na pele do cozinheiro de boteco Raimundo Nonato, cujo talento o leva a galgar novos horizontes, para logo a seguir ser puxado de volta à lama e rumo ao cárcere por sua índole destemperada e sua ignorância. Mas, como diz a sinopse, “Na vida há os que devoram e os que são devorados”, e Raimundo Nonato está, definitivamente, na primeira categoria, pois aprende a conquistar status fazendo o que faz melhor, cozinhar. Seduzidos por seus dotes culinários, seus companheiros de cela e prováveis algozes acabam “presos pelo estômago.”. Não deixe de ver. E clique AQUI para baixar o livro de receitas.

BEIJO ROUBADO: Entre um cochilo e outro, na primeira Virada, deu pra notar que é mais interessante que o outro filme que tinha assistido do mesmo diretor, 2046, também na sessão Cinecult da época do Shopping Riomar. Ainda estiloso, porém menos confuso. Um pouco ingênuo, talvez vazio de conteúdo, mas interessante. Boa atuação de Natalie Portman como uma jogadora profissional, boa estréia de Norah Jones, cantora consagrada, como atriz.

PARANOID PARK – Curioso e competentíssimo exercício estilístico de Gus Van Sant. Belas imagens e pouquíssimos diálogos para ilustrar a vida vazia e alienada de uma certa parcela da juventude atual, tudo centrado no universo do skate e girando em torno do acobertamento de um acidente fatal. O resultado reflete bem o universo retratado: muito estilo e pouco conteúdo.

UMA JUVENTUDE COMO NENHUMA OUTRA – (alguns) dia(s) na vida de Mirit e Smadar, duas jovens israelenses recrutadas para o serviço militar obrigatório de seu país. Passam o dia patrulhando as ruas e recolhendo informações sobre os palestinos que cruzam o seu caminho. Smadar despreza totalmente seu trabalho, preocupando-se apenas em não ser pega pela sua supervisora ao negligenciá-lo, enquanto Mirit, tímida e retraída, procura apenas cumprir suas obrigações da melhor maneira possível. “Enxergar a realidade de Jerusalém, uma realidade difícil de assimilar, através do olhar naturalmente incerto de uma garota a caminho da vida adulta é o grande achado do filme. Se de um lado Mirit tem as suas aspirações, do outro o mundo continua a lhe dizer para não sonhar alto demais” (omelete). Um pequeno grande filme.

A CRIANÇA – Co-produção belgo-francesa ganhadora da palma de ouro de Cannes em 2005. Drama existencial focado nas dificuldades de relacionamento de um casal diante do nascimento de um filho. Ela quer cuidar da criança, mas o pai quer apenas continuar sua vida medíocre sustentada em pequenos furtos, e enxerga no pequeno rebento apenas mais uma oportunidade de negócios – excusos, evidentemente. Bom filme.

PERSÉPOLIS – Sensacional animação baseada na auto-biografia em quadrinhos da iraniana Marjane Satrapi, indicada ao Oscar. Conta sua vida, passada em grande parte no Irã dos aiatolás, sob o signo da repressão e da intolerância religiosa. Uma situação, por sinal, por si só intolerável para a autora, um espírito livre e rebelde, que não conseguia ficar calada diante dos absurdos que via a seu redor a todo instante e, por conta disso, se metia em uma confusão atrás da outra, até ser mandada definitivamente ao exílio por sua família, zelosa por sua segurança. Vivendo exilada em paris, com o sucesso de seu filme, se tornou, hoje, uma voz respeitada em assuntos relacionados à terra dos antigos persas, como pode-se notar por esta entrevista na qual discorre sobre os recentes acontecimentos de sua terra natal. Mesmo que tivesse trazido apenas este filme à tela grande em Aracaju, o Cine Cult já poderia dar como cumprida sua missão.

SICKO – Virou meio que moda falar mal de Michael Moore depois dele ter ganho o Oscar. É insistentemente chamado de Panfletário, maniqueísta e manipulador. E pode até ser que seja (panfletário é, sem sombra de dúvidas), mas qual político não acaba sendo também um manipulador ? – e o que Michael Moore faz em seus filmes é política. Ele mira num alvo e, a partir daí, faz o possível para tentar nos convencer de que está certo. No mínimo, levanta questionamentos inquestionavelmente relevantes e incômodos que, de outra forma, seriam irremediavelmente varridos para baixo do tapete pelo “status quo”. Se ele omite alguns fatos com a intenção deliberada de nos manipular é dever de seus críticos apontá-los e denunciá-los, coisa que, particularmente, não vi até agora. Vejo apenas acusações vazias, sem que se aponte onde está, afinal, toda essa manipulação. A acusação de maniqueísmo também é, a meu ver, injusta, tendo em vista que ele não hesita em descer seu tacape também no lombo de figurões do Partido Democrata - quando eles “agem como republicanos”, evidentemente, porque Michael Moore tem lado e não esconde isso. O que, no Brasil, a terra da dissimulação, longe de ser um mérito, parece mais um defeito, e dos mais graves. Neste filme, que trata da falta de um sistema de saúde universal e gratuito nos Estados Unidos (e só por considerar isso uma obrigação do estado ele já marca posição contra republicanos e neo-liberais), por exemplo, ele não perdoa a Senadora Hilary Clinton, rendida ao lobby empresarial. Mais um tiro certeiro do gordinho impertinente. Mais um convite á reflexão. Um Michael Moore incomoda muita gente.

LADY VINGANÇA – já tinha ficado impressionado com “old boy”, a segunda parte desta trilogia, e este aqui não deixa a peteca cair. Mais uma parábola sobre vingança contada de forma vigorosa e original pelo diretor Park Chan-Wook, desta vez sob o ponto de vista feminino, o de Geum-Ja, que passou 13 anos de sua vida planejando uma vingança contra seu namorado, o verdadeiro culpado pelo crime pelo qual foi presa, o assassinato de um garoto de 7 anos de idade. Excelente fotografia contrastando branco e vermelho.

O HOSPEDEIRO – Foi o primeiro filme a ser exibido no Cine Cult, o que significa que o projeto começou com o pé direito. Trafega por vários gêneros, indo da comédia ao suspense, do horror à critica social com um ritmo ágil e maestria impressionante, mas no final das contas é um “filme de monstro” ao estilo coreano - e que monstro! A criatura é impressionante, feia como o diabo e muito ágil. Tem cenas assustadoras, como as que se passam no porão onde a garota protagonista fica presa junto a uma pilha de cadáveres. Cult.

PRINCESAS – Drama realista sobre a vida de prostitutas estrangeiras na Espanha. A discriminação e as conseqüências psicológicas da banalização do sexo permeiam a historia, que é comovente e contada de modo acessível e fluente, de forma dura, “pero sin perder la ternura jamás”

INFÂNCIA ROUBADA – Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, esta película sul-africana tem lá suas qualidades, mas meio que se perde numa pieguice açucarada sem fim, especialmente do meio para o final, com uma solução dramática das mais pueris. Vale mais pelo aspecto antropológico, no sentido de ficar conhecendo o dia-a-dia da periferia de Johannesburgo, que se tem muito em comum com as periferias de qualquer parte do mundo, goza também de algumas peculiaridades, como o curioso dialeto local.

A CASA DE ALICE – Um drama naturalista. Um daqueles filmes que muitos detestam por, supostamente, apenas mostrar o cotidiano aparentemente sem nenhum interesse especial de pessoas comuns. Mas, como dizia Shakespeare, há sempre “mais coisas entre o céu e a terra do que supões a nossa vã filosofia”. Aqui temos uma mulher aprisionada por suas escolhas, presa a um marido dissimulado que tem um caso com a vizinha adolescente, aos filhos que “escondem segredos auto-destrutivos” e à mãe, que é vista pelo marido como um fardo. “Não é nada que outras famílias também não sofram, e Teixeira toma a casa de Alice justamente como amostragem desse estrato social que se limita a sobreviver e, o tempo inteiro, a sufocar eventuais ambições de vida. Alice é bela, honesta, tem suas paixões e os seus anseios. Mas o mundo ao seu redor lhe impede de praticá-los. A questão central do filme é saber até quando Alice aguenta.” (omelete). Magnífica interpretação de Carla Ribas no papel da protagonista. Gostei muito, e recomendo.

A VIA-LÁCTEA – O contrário de “A Casa de Alice”. Pretensioso e chato – mas devo admitir que bem realizado. A montagem é primorosa.

BATISMO DE SANGUE – De boas intenções o inferno está cheio, já dizia (muito bem) o ditado popular. Este aqui é mais um daqueles filmes com ótimas intenções mas que derrapa num academicismo exagerado em sua realização. Baseado num livro de Frei Beto, conta a historia dele e dos demais frades dominicanos que se envolveram com o combate á ditadura nos anos 70, com especial destaque na figura trágica do Frei Tito, que não conseguiu se desvencilhar dos traumas da tortura e acabou se suicidando no exílio, na França. Não chega a ser de todo ruim, mas é dispensável – a não ser que você tenha um interesse muito específico pelo tema e não queira ler direto da fonte de onde foi tirado.

O QUE EU FIZ PARA MERECER ISSO – Almodóvar em grande forma. Excelente.

CÃO SEM DONO – Drama pesado, arrastado e existencialista dirigido com maestria por Beto Brant. Nas mãos de um diretor pretensioso porém sem talento seria insuportável, mas aqui é comovente. Não há pano de fundo social, há apenas o beco sem saída de um personagem que parece não se adaptar á sua própria condição miserável de ser humano, mesmo tendo em seus braços uma namorada belíssima, fato que, por si só, já seria, presumivelmente, de levantar o astral de qualquer ser devidamente provido de testosterona. Testosterona não falta a Ciro, vivido por Júlio Andrade, que até que dá uma assistência legal á sua namorada Marcela (Tainá Muller). Falta-lhe o resto. Um rumo na vida. O personagem parece viver encalhado em uma eterna crise existencial, mergulhado numa vida medíocre sobrevivendo como tradutor de textos em russo. Um torpor do qual só desperta quando seu “quase-namoro” é interrompido de súbito por um acontecimento trágico. Um filme maduro, de um cineasta que domina de forma magistral sua arte.

HERCULES 56 – Excelente documentário sobre o destino dos prisioneiros libertos em troca do embaixador americano seqüestrado no episodio já anteriormente explorado pelo polêmico “que é isso companheiro”, de Bruno Barreto. O diretor teve a excelente idéia de colocar 5 dos envolvidos numa mesa de bar (aparentemente sem a presença de bebida alcoólica ) e entrevistá-los todos de uma vez, de forma a evitar algumas armadilhas bastante comuns em depoimentos históricos, como a tendência a se moldar os fatos de forma favorável ao entrevistado. De quebra, a memória de um compensa os lapsos da memória do outro, e um painel bem mais claro e amplo acaba se configurando – auxiliado por ricas e até então inéditas imagens da época. Fato curioso: um dos presos políticos libertados é Sergipano e vive até hoje em Aracaju, Agonalto Pacheco, velho militante comunista. Fato lamentável: o péssimo hábito de confabular no cinema enquanto o filme é projetado não é privilegio de sessões de blockbusters americanos povoados de adolescentes, como pude comprovar por um grupo de pessoas atrás de mim que pareciam estar promovendo um verdadeiro debate com o filme em pleno andamento. O fato se agravava toda vez que aparecia na tela a figura do ex-ministro José Dirceu (vivíamos o auge do escândalo do “mensalão”), quando os “debatedores” não conseguiam se conter e irrompiam em xingamentos exaltados de baixo calão.

PARIS, TE AMO – curiosa declaração de amor à cidade de Paris realizada com a costura de pequenos contos dirigidos por nomes como Alfonso Cuarón, Walter Salles, Wes Craven e Gerard Depardieu, tendo como resultado um amplo painel do cinema contemporâneo. Como não poderia deixar de ser, o resultado final é irregular mas, a meu ver, bastante satisfatório.

BUBBLE – Um filme israelense que versa sobre o amor homo-erótico entre um judeu e um palestino. Mais polêmico, impossível. O próprio título deixa claro que os protagonistas vivem numa “bolha”, no caso, a cidade de Tel-Aviv, mais cosmopolita e aberta que o restante de Israel, eternamente atolado numa guerra sem-fim contra seus vizinhos indesejados. As confusões decorrentes do choque cultural são bastante previsíveis, mas no final das contas resulta num bom filme, surpreendentemente leve e otimista até, apesar da premissa original prenunciar um apocalipse regado a intolerância.

2H37 – filme australiano com uma premissa bem parecida à de “Elefante”, de Gus Van Sant – uma tragédia anunciada num ambiente escolar repleto de adolescentes desajustados. O final surpreende, pois o desfecho trágico não decorre dos conflitos com maior destaque na trama.

A MORTE DO BOOKMAKER CHINÊS – Um filme cru, que dá a impressão de ter sido feito de improviso, num esquema “qualquer nota”. Lendo a respeito, soube que não foi, já que o diretor John Cassavetes era famoso por ensaiar exaustivamente cada cena antes de registrá-la. Certamente um belo exercício de estilo, mas um tanto quanto cansativo para uma tarde de domingo modorrenta. Confesso que “morguei” e, com isso, perdi a oportunidade única de ver na tela grande a obra de um grande diretor. É a vida.

CONCEIÇÃO – AUTOR BOM É AUTOR MORTO – Longa experimental que conta a revolta de um grupo de personagens contra seus próprios criadores. O filme foi realizado com recursos da UFF e tem sua direção assinada por cinco alunos daquela instituição. Os argumentos sugeridos numa mesa de bar, entre copos de cerveja e cigarros de maconha sorvidos um atrás do outro, vão se materializando na tela de forma divertida e aparentemente descompromissada. Uma prova concreta de que uma obra experimental não precisa ser, necessariamente, uma obra chata.

TRANSYLVANIA – O contrário de “conceição”. Chato. Chato pra caralho. Nem um pouco descontraído ou descompromissado. Vale pela beleza e exotismo de Ásia Argento e das paisagens romenas.

ATRAVESSANDO A PONTE – O SOM DE ISTAMBUL - Uma bela surpresa, especialmente para mim, que não sabia que o filme é obra, em grande parte, do baixista da legendária banda de rock industrial alemã Einsturzende Neubaten, que aqui assume o papel principal como “alter ego” do diretor Fatih Akin, também alemão mas descendente de turcos. Mostra a música feita em Istambul, uma mistura de referencias orientais e ocidentais, reflexo do que é a própria Turquia, diga-se de passagem.

MUTUM – Outro “drama naturalista”. Baseado em “campo geral”, de Guimarães Rosa, mostra, sob o ponto de vista de uma criança, o nebuloso mundo dos adultos, repleto de mentiras, traições, silêncios e reações violentas. Me identifiquei bastante. Me lembrei de quando era criança e assistia, meio sem querer, aos filmes de Nelson Rodrigues na televisão. Não entendia e, o pouco que entendia, me causava repugnância. Então era isso, o tal “mundo dos adultos” ? Por pouco não sofro da “síndrome de Peter pan” e me recuso a crescer – ou não, tendo em vista que tenho 38 anos e ainda visto basicamente o mesmo tipo de roupa de quando era adolescente, não sou casado, não tenho filhos, vou a shows de rock pesado e barulhento e adoro ficar em casa no sábado à noite lendo revistas em quadrinhos. E tenho sérias duvidas se quero mudar de comportamento, daqui pra frente .

terça-feira, 2 de junho de 2009

DOSSIÊ ROCK SERGIPANO - versão compacta

NOTA: O texto reproduzido abaixo é antigo, foi publicado numa edição da Revista Laboratório Pop há aproximadamente 5 anos. Por isso não são citados nomes como The Baggios, The Renegades of Punk, Daysleepers, Nautilus, Sign of Hate, Litania Ater, Berzerkers, Impact, Finitide, AliquiD, Urublues, Psicosônicos, Dr. Garage Experience e Karranca, entre outros que surgiram ou passaram a se tornar mais ativos no cenário posteriormente. Algumas informaçẽs desatualizadas foram corrigidas em notas ao longo do texto.

snooze
O rock sergipano como um movimento, uma entidade oriunda da existência de um grupo de bandas com origens em comum que tocam juntas e dão suporte umas às outras, começou a se formar aos olhos do publico (pequeno, porém sempre fiel) no inicio dos anos 80, de carona na grande onda do rock nacional, que por sua vez pegou carona na onda new wave que tomava conta do mundo. Por essa época, começavam a se formar bandas de garagem que tinham na precariedade de recursos compensada por uma vontade de criar e se comunicar através de uma musicalidade marginal, assumidamente “underground”, sua principal característica. Capitaneadas pelas figuras de verdadeiros agitadores culturais dos subterrâneos roqueiros da cidade, como Sylvio “Suburbano” e Vicente “Coda”, surgiram nomes como SEM FREIO NA LINGUA, FOME AFRICANA E THE MERDAS. Esta ultima contava em suas fileiras, então como baterista, com o hoje internacionalmente conhecido DJ Dolores, que na época se assumia como punk e atendia pela alcunha de Helder “podre”. Ficaram célebres as chamadas “rockadas”, festas regadas a muito álcool, rock e algum sexo, algumas inclusive realizadas nas residências dos organizadores e animadas por bandas ao vivo. Consta inclusive que Vicente Coda, então guitarrista e membro-fundador da banda KARNE KRUA (a mais antiga em atividade na cidade), chegou a organizar um festival em sua casa, com a cozinha servindo de palco, o quintal de camarim e o restante do ambiente tomado pelo publico.

Na esteira desses verdadeiros pioneiros, outros grupos foram nascendo, e de diversas matrizes, como a new wave propriamente dita, com CROVE HORRORSHOW, LULU VIÇOSA E ALICE, o punk rock/hardcore, com MANICÔMIO, FORCAS ARMADAS, CONDENADOS, LOGORRÉIA e a já citada Karne Krua, entre outros, e correndo por fora, numa cena à parte, o mundo do metal, cujo maior nome era o já lendário GUILHOTINA. Algumas dessas bandas, como o Crove Horrorshow, tiveram uma certa longevidade, chegando a se apresentar regularmente até meados dos anos noventa, mas a esmagadora maioria teve vida breve. A grande exceção é a Karne Krua, que este ano (2005) completa 20 anos de atividades ininterruptas. Foram inclusive a primeira banda de rock do estado a ter sua musica prensada em um álbum de vinil, no que viria a ser seu primeiro disco “oficial”, auto-intitulado e precedido por inúmeras fitas-demo em k7 como as já clássicas "As Merdas do sistema", “Labor operário” e “suicídio”. Sua discografia conta ainda com um cd, “Em carne viva”, no qual repassam toda a sua carreira, a essa altura emoldurada por uma notável influência da musica regional.

Os espaços para apresentações na cidade sempre foram precários, ainda mais nos idos da década de 80. Mas as tribos tinham seus pontos de encontro, notadamente as lojas especializadas DISTURBIOS SONOROS e LOKAOS, e inclusive contaram, durante um certo período, com o apoio de um programa especializado no estilo em uma radio de grande audiência, o ROCK REVOLUTION. A mesma radio, já por volta do ano 2000, voltou a abrir suas portas por um curto período ao segmento alternativo com outro programa, PLAYGROUND, capitaneado por Rafael Jr., da banda SNOOZE.

Década de 1990
O Snooze pertence a uma segunda geração do rock sergipano, por assim dizer, aquela que surgiu na primeira metade dos anos 90 trilhando o caminho pavimentado pelos bravos desbravadores da década anterior. É um dos grupos locais de maior repercussão nacional. Fazem uma musica que remete à melhor sonoridade alternativa “indie”, chegando inclusive a lançar dois CDs por selos respeitados e de projeção nacional, Short Records e Monstro Discos. E sempre se caracterizou por uma notável preocupação em sair do estado, levar seu som ao maior publico possível país afora, se apresentando em festivais renomados como o Goiânia Noise, de Goiânia, e o Circadélica, em São Paulo, entre outros. Apesar de desfalcado de todos os seus integrantes originais, com exceção do baterista Rafael Jr., segue firme, a caminho do terceiro cd. (Nota: atualmente a banda conta novamente com outro membro fundador, Fabinho, no baixo e vocal, e já lançou há algum tempo o tão esperado terceiro CD).

Junto ao snooze, na mesma época, surgiu, desta vez no interior, aquela que talvez seja a mais peculiar, improvável e experimental formação do rock sergipano, o LACERTAE. Oriundos de Lagarto, região centro-sul do estado, começaram fazendo um som que remetia ao Pantera e demais ícones trash do momento. Contudo, após uma temporada parados, absorveram novas influencias, notadamente do emergente movimento mangue-beat, e ressurgiram como um trio com uma sonoridade própria e instigante, ao ponto de chamarem a atenção, através de sua demo “100km com um sapato”, da gravadora Rock it, do Rio de Janeiro, então capitaneada pelo guitarrista da Legião Urbana Dado Villa-Lobos, que os lançou em sua célebre coletânea “Brasil Compacto”, com o que de melhor era feito no rock brasileiro àquela altura. Depois reduzido a um duo minimalista, apenas guitarra e bateria, o grupo, com sua musica hipnótica, angariou o respeito e foi tema de matérias em publicações especializadas de todo o Brasil, o que os levou a se apresentar em alguns dos melhores palcos nacionais, como os do Abril pro rock, em Recife, e o do Sesc Pompéia, em São Paulo. Lançaram dois discos independentes e continuam firmes em atividade. (Nota: atualmente andam sumidos)

Mas o rock sergipano dos anos 90 não se resumia a esses dois nomes de maior projeção. O “underground” estava mais fervilhante do que nunca, e novos nomes surgiam a todo momento, especialmente nas searas do metal e do punk/hardcore. Nomes ainda hoje (2005) em atividade, como SUBLEVAÇÃO, WARLORD e ANAL PUTREFACTION, e outros que marcaram época mas se foram, como CLEPTOMANIA, OLHO POR OLHO, LECTOSPINOISE, LIPROFENIA, REFUGOS DE BELSEN, EXPLICIT SEX, DEUTERONOMIO, MUCOUS SECRETION, DEVILRY, de Itabaiana, e CAMBOJA. Esta última, uma “one man band”, personificada na figura de Jamson Madureira, tinha também uma sonoridade única, porém, ao contrário do Lacertae, mais calcada no rock industrial de nine inch nails, ministry e afins, o que se fazia refletir em seus riffs minimalistas e repetitivos e letras intimistas que se resumiam à repetição “ad nausea” de uma única frase.

Camboja, Jamson Madureira
Vale ressaltar que também por essa época, numa fase pré-popularização da internet, era grande a produção de fanzines no estado. Alguns ainda oriundos dos anos 80, como o BURACAJU, o CENTAURO SEM CABÊÇA e o ESCARRO NAPALM, e outros nascidos já na década de 90, como o SINAGOGAS BUTTERFLY e especialmente o CABRUNCO, que é considerado por muitos como um dos melhores zines já produzidos no Brasil, vindo a ser resenhado com grande destaque na imprensa nacional.

Os shows se multiplicavam, ainda de forma precária, mas já contavam com o apoio decisivo de alguns abnegados proprietários de bares e casas noturnas, como Jajá, do MAHALO DISCO CLUB, onde ocorreram as mais memoráveis apresentações daquele período, inclusive de grupos de fora do estado, alguns até com uma certa projeção nacional, como o Concreteness, brincando de deus, Living In the Shit, Inkoma (da hoje rockstar Pitty) e Discarga Violenta.

A precariedade das produções só seria superada (pelo menos em parte) no final de 1998, quando aconteceu o festival ROCK-SE, um verdadeiro divisor de águas. Nele, as bandas locais tiveram pela primeira vez, em larga escala, a oportunidade de se apresentar ao lado de grandes nomes do rock nacional, algumas inclusive suas assumidas influências, como O Rappa, Marcelo D2, Eddie, Dois Sapos e Meio, Mechanics e Pin Ups. Uma pena que o futuro atestou que a cidade ainda não estava preparada para eventos desse porte, o que deixou o Rock-se restrito a duas edições.

Mas o cenário não seria mais o mesmo depois daquele festival. Uma nova geração foi tomada de assalto pela sedução dos acordes de guitarra. Uma nova cena nasceu ali, ancorada pela difusão de mídias alternativas atravésa da internet e das TVs por assinatura. Uma nova geração que não demorou a gerar seus frutos em novos nomes como FLUSTER, GEE-O-DIE, MERDA DE MENDIGO, LLLY JUNKIE (primeira banda integralmente formada por meninas a tocar regularmente) , EXPRESSO SUBURBANO, ANTI-SOCIAL, MAQUINA DE ÓDIO, SILVER TAPE, ELOQUENTES (depois ROCKASSETES) e SONNET, entre muitos outros, todos compostos por adolescentes com os hormônios à flor da pele e bastante dispostos a se fazer ouvir.

A cena foi crescendo e se diversificando. Havia o reggae, personificado na REAÇÃO, com seu som de protesto com forte apelo popular e ampla penetração na programação das rádios locais, o regionalismo das bandas NAURÊA e MARIA SCOMBONA, e o metal, sempre o metal., cujos nomes de maior destaque atualmete, além do WARLORD, incansável, são SCARLET PEACE, com um som que oscila entre o gótico/doom e o death metal – primeira banda do segmento do estado a ter um disco oficial lançado – e a TCHANDALA, esta guardiã do que há de mais tradicional no estilo. Há também uma cena Black metal ultraradical cujo maior nome é a MYSTICAL FIRE, com seu show regado a cusparadas de fogo, cabeças de porco apodrecidas e imprecações blasfêmicas.

Houve, por esta época, um novo festival de renome, o PUNKA, que conseguiu a façanha de superar o rock-se não apenas em numero de edições, mas na quantidade e qualidade de grupos de projeção nacional apresentados. Por seus palcos passaram nomes como Los Hermanos, Autoramas, Street Bulldogs, jason, Retrofoguetes, brincando de deus, Bosta Rala, The Honkers, Torture Squad e muitos outros, sempre ao lado do que de melhor podia oferecer a produção local.

E passando ao largo de tudo isso, impassível, segue sua saga o incansável Silvio Campos, outrora autodenominado “suburbano”, que além da Karne krua é membro fundador de muitas outras bandas importantes para a cena, como A CASCA GROSSA, ETC, 120 DIAS DE SODOMA, TEMPESTUOUS, MAQUINA BLUES, LOGORREIA e WORD GUERRILLA.

Mas a banda que a meu ver sintetiza toda essa terceira geração do rock sergipano, por sua excelência técnica e talento para compor somente comparável ao que de melhor o rock brasileiro já produziu, é o PLASTICO LUNAR. São jovens (com exceção do já não tão jovem baterista, Marcos Odara, veterano dos anos 80), mas foram buscar suas influências nos anos 60 e 70, e com isso se inserem naturalmente num ambiente povoado por temas psicodélicos, viagens instumentais intermináveis e rock de primeira qualidade. A projeçao nacional (seja no mainstream ou num circuito mais alternativo porém já bastante amplo) de nomes como Cachorro Grande e Mopho, de Maceió, que rezam mais ou menos na mesma cartilha, dá a eles a oportunidade de se destacarem nacionalmente, fazendo a diferença nos futuros anais do rock brasileiro. Qualidade não lhes falta. É certamente a mais promissora das bandas sergipanas.

A sorte está lançada! Quem viver verá - mas em todo em caso adianto, desde já, que não foi em vão.

por Adelvan Kenobi

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