segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Distopia: eu não queria uma pra viver ...

Comecei a me interessar por distopias no início da década de 1980, quando só se falava da data fatídica que se aproximava: 1984. Fui atrás, claro, do livro, escrito por George Orwell em 1948(para o título ele apenas trocou os números das datas) e foi amor à primeira leitura.

 

“1984” é objeto de controvérsias até hoje, por ser claramente inspirado na ditadura de Stalin  e ter, obviamente, servido como poderosa arma de propaganda anticomunista durante todo o período da guerra fria. O que nem todo mundo sabe, no entanto, é que ele também é diretamente inspirado em outro romance distópico mais antigo, “Nós”, do russo Ievgeny Zamiátin.

 

O livro de Zamiátin foi escrito entre 1920 e 1921, antes, portanto, da ascensão do “grande irmão” propriamente dito – Stalin só tomou as rédeas do destino dos soviéticos após a morte de Lenin, em 1924 -, o que torna ainda mais impressionante seu dom premonitório.  A história é narrada em primeira pessoa por um dos cientistas encarregados da construção do “Integral”, uma nave espacial destinada a espalhar a ideologia do Estado Unificado, no qual vive, pelo cosmos. Uma sociedade guiada pelo “Benfeitor” a partir de regras rígidas de conduta matematicamente programadas onde a abolição da individualidade, necessária ao perfeito funcionamento das engrenagens, é garantida por artifícios como a adoção de números no lugar dos nomes próprios e a construção de casas de vidro transparente. D-503, o protagonista, passa a questionar o sistema a partir de seu envolvimento amoroso com uma misteriosa mulher que faz parte de uma organização subversiva, obviamente clandestina. Como se vê, as similaridades com a obra máxima de Orwell são muitas, mas isso não tira do inglês o mérito de ter pensado em conceitos originais e brilhantes, como o “duplipensar”(2+2 pode ser igual a 5, caso o partido queira que assim seja) e a “novalingua”, resultado de uma simplificação radical e progressiva da linguagem destinada a ajudar na supressão do pensamento crítico e criativo – pensou no twitter e nos memes da internet de hoje em dia? Pensou certo.

 

Se “1984” foi inspirado nos regimes totalitários, notadamente o soviético, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, é basicamente uma crítica à alienação pelo consumo – inclusive de drogas entorpecentes – típica dos regimes capitalistas. Nele Ford(ele mesmo, Henry) é tratado como uma espécie de Deus, ou messias, por ser o fundador das bases nas quais a sociedade é estruturada, a partir de linhas de produção.

 

Já “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que forma uma espécie de “santíssima trindade distópica” com os livros de Orwell e Huxley, é uma declaração de amor à literatura e seu poder transformador, criador de espíritos livres. Foi adaptado com maestria para o cinema por François Truffaut em 1966.

 

De Philip K. Dick já li “Andróides sonham com ovelhas elétricas?”, que foi adaptado para o cinema como “Blade Runner”, e “O Homem do castelo alto”, que recentemente virou uma série da Amazon prime. Como já se tornou praxe com as obras de Dick, as adaptações têm pouco a ver com os originais, muito embora a do “Castelo Alto” esteja entre as mais fiéis, limitando-se basicamente a fazer algumas adaptações e criar novos personagens, além de expandir consideravelmente o universo alternativo imaginado pelo escritor, no qual os países do eixo venceram a segunda guerra mundial e ocuparam os Estados Unidos. Há um ponto em comum entre os dois livros: à medida que vão se aproximando do final a narrativa vai se tornando cada vez mais hermética ao explorar uma das obsessões do autor, a confusão entre fantasia e realidade. “O Homem do castelo alto” venceu o prestigiado prêmio Hugo no ano de 1963.

 

Outra obra aclamada e vencedora do Hugo mas pouco conhecida por aqui, “Um Cântico para Leibowitz”, do norte-americano Walter M. Miller Jr, foi resgatada recentemente do limbo pela editora Aleph. Publicada originalmente em 1959, no auge da guerra-fria, nos transporta para um futuro pós-apocalíptico onde a humanidade passa a rejeitar o progresso científico que supostamente a levou à autodestruição. Rejeição que a faz regredir a uma nova idade das trevas, mas que não impede o renascimento – porque o novo sempre vem, já dizia Belchior. O renascimento, no entanto, nos conduz, novamente, à beira da aniquilação, num círculo vicioso ilustrativo do ditame segundo o qual aqueles que falham em aprender com a história estão condenados a repeti-la.

 

“Um Cântico para Leibowitz” entrou numa lista dos dez melhores livros do gênero que a mundialmente prestigiada revista Time publicou em 2010. Graças, em grande parte, à originalidade de sua trama, que tem início seiscentos anos depois do chamado Dilúvio de Fogo, no qual a maior parte da população mundial foi dizimada. São, na verdade, três histórias distintas que giram em torno de uma abadia na qual monges se dedicam a preservar a “memorabília”, o que restou da devastação nuclear e da “simplificação”, a caça às bruxas que veio a seguir. “Bruxas” encarnadas, no caso, nos doutores detentores do saber, como professores e cientistas. A ordem que ocupa a abadia é, por sinal, consagrada a um destes “doutores”, um tal Leibowitz, que se tornou um mártir – e santo da igreja católica! – ao dar sua vida pela preservação do conhecimento.

 

Foi o único livro publicado em vida por Walter M. Miller Jr. Reflete sua visão de mundo, marcada por um forte componente religioso – converteu-se ao catolicismo em 1947, aos 25 anos de idade, depois de uma passagem traumática pelo exército durante a Segunda guerra mundial na qual esteve presente em cerca de 53 bombardeios sobre a Itália e os Bálcãs. Num desses ataques foi destruído o Mosteiro Beneditino de Monte Cassino, o mais antigo do mundo ocidental.


Recentemente uma autora até então desconhecida por mim, a canadense Margareth Atwood, ganhou notoriedade ao ter um de seus romances distópicos, “O Conto da Aia”, adaptado para uma série de TV de grande sucesso. Fui conferir e virei fã! Trata-se de um libelo feminista e antifascista que se passa em Gilead, uma país imaginário que é, na verdade, uma parte dos Estados Unidos dominada por um governo cristão fundamentalista e totalitário que usou uma crise de fertilidade provocado por um colapso climático para impor uma interpretação da Bilblia relativamente semelhante à que os Talebans fazem do Alcorão.

 

Em Giléad as mulheres férteis têm que se tornar, obrigatoriamente, “aias”, numa nova ordem em que não são mais preceptoras encarregadas da educação doméstica das crianças de famílias nobres ou ricas, mas verdadeiras escravas sexuais a serviço não do prazer, mas da reprodução. Para isso são obrigadas a participar, no período fértil, de um ritual de estupro em que são colocadas no colo das esposas estéreis dos “comandantes” para serem inseminadas por estes. São cenas fortes, que uma amiga, em particular, me disse que não conseguiu assistir – também porque lhe pareceu, a meu ver acertadamente, que aquela distopia estava especial e perturbadoramente próxima de nossa realidade, A adaptação do livro se limita à primeira temporada, mas a série segue adiante, desdobrando a trama de modo bastante satisfatório.

 

O que pouca gente sabe – eu, pelo menos, não sabia – é que “The Handmaids Tale” já havia sido adaptado anteriormente para o cinema num filme de 1990 dirigido pelo alemão Volker Schlöndorff, ganhador de uma Palma de Ouro e um Oscar de filme estrangeiro por sua adaptação do romance O Tambor, do também alemão Gunter Grass. Apesar de contar com uma trilha sonora assinada por Ryuichi Sakamoto e de ter no elenco nomes como os de Robert Duvall e Faye Dunaway, fazendo o casal encarregado de inseminar a personagem principal, rebatizada Offred  (no filme ela se chama Kate, na série virou June e no livro a sua identidade pregressa não existe), fracassou nas bilheterias, em parte pelo tom equivocado, excessivamente erotizado, a meu ver. No Brasil atende por “A Decadência de uma Espécie” e está disponível em DVD como parte da sensacional coleção de películas Sci-fi da Versátil Home vídeo. Recomendo, no mínimo como curiosidade.

 

Meu interesse pela obra de Atwood, como era de se esperar, se estendeu para sua literatura, mas como se trata de alguém com uma vasta bibliografia a ser explorada – tem 81 anos de idade, 52 de carreira e 18 romances publicadas, além de obras poéticas, infantis e de não-ficção – resolvi não começar pelo mais óbvio e, seguindo uma recomendação de Bruno Torturra num de seus “boletins do fim do mundo”, li a trilogia composta por “Oryx e Crake”, “O Ano do dilúvio” e “Maddadão”.

 

No primeiro livro somos apresentados ao “Homem das neves”, o provável último sobrevivente de uma catástrofe provocada por uma pandemia(!!!!). Ele convive com os “Filhos de Crake”, humanóides de uma nova espécie criados artificialmente no mesmo laboratório de onde saiu o vírus letal. Aos poucos vamos entendendo o que aconteceu a partir de suas reminiscências, enquanto acompanhamos sua luta pela sobrevivência em um mundo devastado e povoado por assustadoras criaturas hibridas. O livro termina num momento crucial, o que me fez ter até pena de quem leu na época do lançamento e teve que esperar quatro anos pela continuação ...

 

... que nem é exatamente uma continuação: “O Ano do dilúvio” começa uma nova história, com novos personagens, mas que se passa no mesmo universo de “Oryx e Crake” e vai aos poucos estabelecendo as devidas conexões com a primeira narrativa até terminar no mesmo ponto onde paramos no primeiro volume, só que sob um ponto de vista diferente. É brilhante! “Maddadão”, a parte final, retoma finalmente o fio condutor e conclui essa impressionante epopéia distópica repleta de reflexões sobre a destruição ambiental provocada pela superexploração capitalista. Há boatos de que será, também, adaptada para a televisão. Essa eu poderei dizer que já conhecia.

 

Resumindo: acho que já deu pra entender que eu gosto muito de fantasias distópicas. Na literatura, no cinema – veja “Metropolis”, “Planeta dos macacos”(toda a série, incluindo os mais novos, sou fã), “soylent Green”, “Logan´s run”, “Rollerball”, “Laranja Mecânica” (li o livro também, mas prefiro o filme), “THX-1138” de George Lucas, “Brazil” de Terry Gillian – esse é genial -,“Terminator”, “Total Recall”, “Bacurau”, “Mad Max”, “Matrix”, “Her”, “Ensaio sobre a cegueira”, “Filhos da esperança”, até de “Jogos vorazes”, o primeiro, eu gosto.

 

Na vida real não. Não queria e não estou curtindo. Não pensei que fosse viver pra isso.


A

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sábado, 24 de julho de 2021

"Suicídio", da Karne Krua

Karne Krua é uma banda pioneira do punk rock hard core do nordeste do Brasil. Surgiu em Aracaju, capital de Sergipe, o menor estado da região , em 1985. Depois de um breve período inicial instável estabilizou-se com Silvio “suburbano” no vocal, Marcelo “Inseto” na guitarra, Marlio no baixo e Antonio “Almada” na bateria - uma formação considerada “clássica” por ter composto e gravado musicas que definiram sua identidade sonora e são tocadas até hoje em shows. Essa primeira fase está registrada nas três primeiras demo-tapes, todas gravadas de forma tosca e absolutamente improvisada: “As merdas do sistema”, de 1987, “Cenas de ódio e revolta”, de 1988 e “Labor operário”, de 1990.

 

Na virada da década bateu um cansaço e dois integrantes, Marcelo e Almada, resolveram sair, mas a banda acabou se renovando com a entrada de Fabio na guitarra e Valdeleno na bateria. Por essa época Silvio, um incansável agitador cultural “underground”, estava às voltas com o projeto “Cooperativa do caos”, que visava à produção de uma LP em vinil reunindo algumas das principais bandas do estilo das regiões norte e nordeste: Discarga Violenta, de Natal(RN);  Delinquentes, de Belém do Pará; C.U.S.P.E, de Campina Grande(PB) e Devotos do ódio, de Recife – além da própria Karne Krua. O projeto, infelizmente, acabou não vingando, mas o que foi gravado acabou sendo aproveitado no clássico primeiro EP/compacto em vinil de 7 polegadas “Cosmopolita”, da Discarga Violenta, e na primeira demo-tape com gravação profissional da Karne Krua, “suicídio”.  

 

“Suicidio” foi gravada em janeiro de 1991 no Estudio DB-3, de Recife, com mixagem dos amigos Nino e Pesado, da banda pernambucana Câmbio Negro HC. O repertório é composto basicamente de musicas já lançadas anteriormente, como “Rumores de guerra” e “America Latina now”(aqui com a participação de Pesado no refrão), ou já conhecidas de quem freqüentava os shows. A grande novidade, que surpreendeu a todos, foi a faixa título, que fugia um pouco da ortodoxia punk anarquista então em voga com uma letra de temática mais intimista e arranjos com solos de guitarra melódicos e minimalistas. Com suas 8 faixas distribuídas em menos de 10 minutos, na demo a banda ainda soava punk, mas com uma nítida preocupação em expandir seus horizontes. Este material está sendo agora, 30 anos depois de seu lançamento original, relançado em vinil, num EP/Compacto de 7 polegadas, pela No Gods No Masters Distro.

 

Essa nova fase se consolidou com o lançamento, em 1994, do primeiro LP, auto intitulado, já com Marcelo e Almada de volta a seus postos. A semente lançada em “Suicidio” frutificou num repertório impecável, que incluía dois poemas musicados de autoria do poeta, fanzineiro e capoeirista Nagir Macaô, “O vinho da história” e “A noite do deus morto”, e letras enigmáticas, beirando a abstração, como “Mancha de sangue”, além de uma notável evolução lírica e musical mesmo em faixas mais panfletárias, como “Hienas na carcaça”, “Brasil Heróico”(com seu tom épico), “Filhos do medo” e “Política da seca” – que tem frases dignas da melhor literatura, a meu ver (“pessoas castigadas pelo sol e pela fome lamentam a dor de mais um ano que passou”).

 

Karne Krua passou por várias outras fases, com trocas de integrantes e influências as mais diversas, do hard Core novaiorquino à musica regional do sertão nordestino, mas sempre preservando sua identidade, capitaneada pela figura de Silvio, único membro fundador remanescente. Segue viva e ativa até hoje! São 35 anos de atividade ininterrupta, fazendo shows e lançando novas demos, EPs e álbuns nos mais diversos formatos, em CD, k7, vinil e streaming, sempre fazendo musica radical e independente em um ambiente inóspito, periférico. Um feito e tanto!

 

por Adelvan Kenobi

 

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sábado, 10 de julho de 2021

Algumas dicas de quadrinhos produzidos por mulheres

Aproveito a pandemia para colocar a leitura em dia e tenho algumas dicas de quadrinhos escritos, desenhados e publicados por mulheres para apresentar aos poucos e bons leitores deste humilde blog que se recusa a deixar de existir ...

Começo com Alisson Bechdel e seu Fun Home: uma tragicomédia em família. Obra-prima! Sucesso de público e crítica. Ficou duas semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Um livro de memórias centrado numa controvertida figura paterna e em questões de identidade e repressão sexual. Ao contar a história de sua infância e adolescência, vivida na zona rural da Pensilvânia da década de 1970, marcada pelo mistério que ronda a verdadeira natureza da personalidade complexa e contraditória de seu pai, ela fala também do momento de transição entre o final de um período marcado pela revolução sexual e pela liberalização dos costumes e o revés provocado pelo surgimento da AIDS. A narrativa é fluida, sem tropeços, ilustrada por um traço elegante e rebuscado, todo desenhado a partir do estudo de fotos de referencia tiradas por ela mesmo. Brilhante.

Dela, li também Você é minha mãe?, uma espécie de continuação de Fun Home que avança por sua idade adulta e discute, de forma bastante profunda e analítica, sua relação com a mãe, ao mesmo tempo em que vai narrando o desabrochar de sua sexualidade. É uma leitura bem mais densa e auto centrada que a anterior. Tive bastante dificuldade com alguns trechos longos que discorrem detalhadamente sobre questões teóricas ligadas à psicologia, mas recomendo a leitura mesmo assim.

Rosa Luxemburgo é uma das personagens mais fascinantes da história do movimento socialista. Teórica brilhante e contestadora, mulher à frente de seu tempo, inclusive na vida pessoal e amorosa, além de pensadora independente e ousada. Teve embates antológicos com verdadeiros ícones do marxismo, como Lenin e Kautski. Sua vida é contada de forma poética e vibrante pela cartunista e ativista britânica Kate Evans em Rosa Vermelha,  lançado aqui pela editora Martins Fontes.

Apesar de ter sido produzida a convite da Fundação Rosa Luxemburgo, essa biografia quadrinizada passa longe do chapabranquismo e oferece um panorama bastante amplo de sua obra e de seu tempo a partir da escolha acertada de reproduzir integralmente diversos trechos de seus livros e cartas, sem descuidar do ritmo narrativo. Dá ao leitor menos apressado, inclusive, a oportunidade de se aprofundar ainda mais sobre o assunto ao disponibilizar um rico apêndice, em que diversas situações são melhor explicadas e contextualizadas e os trechos reproduzidos na história são novamente apresentados de forma ampliada.

De Kate Evans li também Refugiados: a última fronteira, editado com o capricho típico da editora Darkside – com direito a um marcador de páginas de tecido feito de renda, referência ao principal produto fabricado na cidade de Calais, na França, onde se passa a trama. Uma trama real e dramática, reproduzida a partir da experiência pessoal da autora com as ONGS que se dedicam a tentar aliviar a via crucis dos que ficam ilhados por lá, à espera de uma oportunidade de cruzar o canal da mancha. É uma história dura e revoltante, repleta de injustiça, que nos faz lembrar, inevitavelmente, os relatos de Joe Sacco sobre a Palestina e a guerra na Bósnia. O traço aqui é mais rabiscado e cartunesco, bem diferente do da biografia de Rosa, mas igualmente competente.

Por fim, recomendo Hoje é o último dia do resto de sua vida, um calhamaço de 464 páginas também lançado pela Martins Fontes e escrito pela austríaca Ulli Lust a partir das memórias que guardou de uma viagem punk e clandestina que fez à Itália na adolescência, na década de 1980. Literalmente punk, já que a autora freqüentava o submundo do movimento na época e foi com aquele espírito radical, arrojado e libertário que encarou a empreitada, acompanhada de uma nova melhor amiga que encontrou pelo caminho. Edi, a amiga, é uma daquelas figuras perigosamente sem noção que todo mundo que não se fecha no casulo falsamente protetor de uma vida regrada e careta acaba conhecendo, e que pode te meter em algumas roubadas caso você não esteja atento às armadilhas que fatalmente se armarão pelo caminho. Principalmente se for desenvolvido entre vocês o tipo de fidelidade e camaradagem que só a vida na estrada, sem eira nem beira, sem lenço e sem documento, pode proporcionar.

É o que acontece com Ulli, que é levada por Edi a enfrentar situações dignas de um filme de máfia dirigido por Martin Scorcese ou Quentin Tarantino. Máfia, aqui, também no sentido literal: elas vão parar na Sicilia, terra da organização “cujo nome você não deve mencionar”, e sentem na pele o preço pago por garotas que não conseguem se por no seu lugar: são repetidamente abusadas e violentadas. Edi, porra louca ao extremo, não tem muita noção disso, mas Ulli passa a ter, principalmente, a partir de um evento pra lá de traumático. A obra adquire, então, um tom mais sombrio, retratando uma certa perda de inocência da autora. Na verdade, uma ingenuidade bruta, inconseqüente, típica de quem está amadurecendo e não sabe ainda o preço que terá que pagar pela liberdade que já pensa ter, mas que na verdade precisa ser conquistada. O evento, divisor de águas da trama, a faz repensar suas atitudes frente a um mundo que é, com muito mais frequência e intensidade do que ela parecia pensar, hostil e implacável com quem não se enquadra nos moldes desejados por sociedades quase sempre são, em maior ou menor grau, machistas, violentas e castradoras. Ela, enfim, amadurece. Mas da melhor forma, a meu ver: sem se render aos que querem domar seu espírito.

Ao contrário do que se possa imaginar, no entanto, a narrativa passa longe do panfletarismo. É apenas a história honesta – de uma honestidade muitas vezes desconcertante, aliás – de uma viagem com momentos tensos e tragicômicos, mas também cheia de diversão regada a muito sexo, muita droga e algum rock and roll – há o registro de um megashow do The Clash ao qual elas têm acesso de forma clandestina, evidentemente. Uma história que valeu a pena ser vivida, com certeza. Tanto que rendeu um delicioso relato para ser degustado tanto tempo depois.

A

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sexta-feira, 25 de junho de 2021

DESDE 1985

Em 1988 fui ao meu primeiro show de rock underground, a segunda edição do Festcore de Aracaju, um encontro de bandas punk do norte e nordeste promovido por Silvio, vocalista da Karne Krua. Foi lá que os vi ao vivo pela primeira vez. Lembro de ter pensado “caralho, essa banda é tão boa quanto o cólera” – a minha principal referencia quando se fala em punk rock brasileiro.

Dizem que a primeira impressão é a que fica. Essa ficou. Até hoje, acho que se bandas como a Karne Krua, o Câmbio Negro HC, de Recife, ou a Dever de Classe, de Salvador, não tivessem surgido “longe demais das capitais” seriam tão lembradas e incensadas quanto seus pares paulistanos da década de 1980.

A primeira gravação de estúdio da Karne Krua só foi acontecer em 1991, com a demo tape Suicídio. Antes, a banda lançou apenas fitas demo caseiras, a partir gravações pra lá de precárias, como a primeira, As merdas do sistema, e a já clássica Labor Operário. Boa parte do repertório desses primeiros espasmos de vida foi regravado nos discos e demos posteriores, mas haviam lacunas a serem preenchidas.

Não há mais. Neste ano da desgraça de 2021, ano 2 da pandemia, veio à luz, em meio às trevas, um projeto ao qual a banda se dedicava há pelo menos 5 anos: Primitiva 1985, um disco de regravações com algumas das composições mais obscuras da banda, boa parte delas composta nos primeiros anos de atividade e que nunca haviam sido registradas com uma qualidade minimamente decente. É um verdadeiro testamento para a posteridade, evidenciando mais uma vez o talento de Silvio “Suburbano” e sua trupe de desajustados. 

Há desde crônicas urbanas locais – como Cirurgia, sobre o então principal hospital público do estado; Cidade Asilo, sobre o marasmo de Aracaju na década de 1980; e Fábrica de doenças, sobre uma fábrica de cimento que havia no bairro Siqueira Campos, à época –, até libelos revolucionários de apelo universal como Dia A  e seu refrão pegajoso, que pede morte aos opressores, patrões e senhores.

Uma de minhas favoritas desde sempre é Punk rock, que faz uma pertinente ligação entre aquela música rebelde e barulhenta surgida em meados de 1976, 77, e os primórdios do rock and roll, cuja fúria primal havia se transformado, diz a letra, em “protesto dos conscientes”. “Consciente” era um jargão bastante utilizado pelos punks para se destacar da malta imbecilizada e lobotomizada pelos veículos de comunicação de massa, mesmo que a formação política da maioria deles se restringisse a alguns panfletos anarquistas toscos recebidos em cópias apagadas pelo correio. Algo parecido com os memes de Whataspp de hoje. 

Algumas composições, como Vote nulo, soam realmente pueris em seu panfletarismo raso anarquista, mas já nos primórdios se notava um certo esforço intelectual e poético mais profundo, especialmente quando vislumbravam possibilidades utópicas para um futuro que não se imaginava, então, tão distante – 35 anos depois, o que temos é uma distopia, com essa pandemia sem fim e um candidato patético a fuhrer tupiniquim alojado no palácio do planalto. É o caso da já citada Dia A, de Projeto futuro e das clássicas Auge revolucionário e Revolta social futura, que provavelmente não estão aqui porque já haviam sido regravadas no álbum Em carne viva (2002).

Primitiva 1985 se beneficiou do fato de ter sido gravado por uma das melhores formações da banda, infelizmente já desfeita: Silvio no vocal, Alexandre Gandhi na guitarra, Ivo Delmondes no baixo e Oitchi, discípulo de Babalu, na bateria. Isso reflete nos arranjos, em geral fiéis aos originais, mas com um molho a mais, e na execução precisa, afiada. Além da qualidade técnica oriunda do natural avanço tecnológico, evidentemente.

Periga ser o melhor disco da banda. A lamentar, somente, a ausência da frase antológica que havia na gravação original de PMs espancadores: “vão espancar o cu das suas mães”.

A..

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quarta-feira, 23 de junho de 2021

PODRÃO ANIQUILAÇÃO

Pablo Carranza nasceu em Aracaju em 1986, portanto não tinha idade para viver o tempo do auge das videolocadoras. Seu “gibizão” PODRÃO ANIQUILAÇÃO, no entanto, reproduz com perfeição o espírito das sessões de filmes “trash” compartilhadas com os amigos em finais de semana modorrentos da década de 1980, cujas fitas eram invariavelmente alugadas na locadora do bairro usando o cadastro dos pais.  

 

O próprio formato do livro foi pensado para reproduzir o de uma fita VHS, inclusive no volume: são 288 páginas de ação, violência, escatologia e até sexo explícito! Uma delícia! É sério: esse quadrinho é uma obra-prima do gênero. A narrativa, fluida, descomplicada e enxuta, a despeito do volume de páginas, gira em torno dos perrengues vividos pelos quiosques de lanches populares com a concorrência das hamburguerias “gourmet”, que têm se reproduzido feito mosca pela cidade e abocanham uma boa fatia da clientela, aquela mais afeita a modismos.

 

A cidade, no caso, é Aracaju mesmo! Os sergipanos têm vários motivos a mais para degustar essa iguaria, pois reconhecerão  diversos personagens, lugares e situações, como o delegado Bareta e seu assistente Torroio, sempre às voltas com as confusões envolvendo uma maionese radioativa que se tornou um sucesso absoluto de vendas no Galego´s lanches e cuja fórmula, depois de roubada, acaba  servindo de base também para a fritura dos pastéis “shing ling” da concorrência – a essa altura ninguém nem lembra mais da hamburgueria hypada, cujo dono acaba se tornando vítima e principal suspeito, ao mesmo tempo, de misteriosos desaparecimentos. Só lendo pra crer. Leia! PODRÃO ANIQUILAÇÃO é um lançamento em parceria da MAU GOSTO PRODUÇÕES, do autor, com a ESCÓRIA COMIX, e está a venda nas piores lojas do ramo. Na loja do autor, http://maugosto.iluria.com , você encontra também diversos outros produtos personalizados, como camisetas, posters, adesivos, bonés, chaveiros , carteiras de despachante (!!!!!)  e as sensacionais figurihnas dos “xingamentos literais”.

 

XINGAMENTOS LITERAIS é uma das melhores publicações do Pablo, um livrinho minúsculo com representações iconográficas de impropérios como “casa do caralho”, “gordo escroto”, “puta merda”, “putaria da porra” e outras do mesmo “naipe”. De novo: Só vendo pra crer. Tempo desses encontrei vários espalhados entre os exemplares de publicações, digamos, convencionais, expostas nas prateleiras de uma respeitável cadeia de livrarias da cidade, num evidente ato de sabotagem cometido por algum guerrilheiro underground. Essa rede costuma vender as publicações do Pablo: “podrão aniquilação” está lá, na mesma prateleira dos mangás e publicações juvenis da Marcel e dc comics. Garanta o seu enquanto o gerente não resolve dar uma folheada e toma um susto com o conteúdo.

 

Pablo Carranza começou a desenhar sob a influência do que lia quando era criança, que era o que toda criança lia: Turma da Mônica, Disney, Marvel e DC. Até que, aos 20 anos, conheceu Marcatti, Harvey Pekar, Robert Crumb e Chiclete com Banana. Descobriu ali que nunca mais iria ganhar dinheiro fazendo quadrinhos, mas iria fazer os tipos de quadrinhos que passou a gostar de ler.

 

Apesar dessa opção radical ele tem uma carreira relativamente bem sucedida como ilustrador: publicou por mais de um ano num conhecido jornal semanal de classificados local e chegou a ficar em segundo lugar no tradicional e conceituado salão de humor  de Piracicaba – os apresentadores tomaram um susto ao vê-lo subir ao palco para pegar o troféu pois não imaginavam que ele estaria presente, já que era de Aracaju. Mas foi morar em São Paulo, onde publicou, com financiamento do PROAC, programa de ação cultural do governo do estado , o divertido livro  “Se a vida fosse como a internet”.

 

“Se a vida fosse como a internet” era divertido mas light, inofensivo. Não fosse assim não teria sido publicado com o apoio de uma lei de incentivo à cultura. Serviu para projetá-lo, pois ganhou o troféu “HQ Mix”, o mais conceituado dos quadrinhos brasileiros, na categoria “melhor publicação de humor gráfico”. Muito provavelmente por isso apareceu em matérias da grande imprensa e nas prateleiras da rede de livrarias local já citada, onde eu o conheci.

 

Serviu também para que ele entrasse no “cast” da Editora “Beleléu”, do Rio de Janeiro, para onde ele se mudou e onde pôde publicar com muito mais independência e sem amarras “morais”, digamos assim. Foi lá que criou a revista SMEGMA, onde pôde por pra fora todo o seu arsenal de infâmias em personagens antológicos como Rivalino e o “Playboy de Nazaré” – uma versão mimada e bombada de quem você está pensando mesmo. Publicou também sátiras implacáveis de sucessos do cinema, como Mad Max 2, e de alguns de seus pares mais bem sucedidos, como Fabio Moon e Gabriel Bá, Mauricio de Souza, Vitor Caffagi, Armandinho e Laerte que, curiosamente, foi a única a reclamar, via e-mail.

 

Carranza voltou a morar em Aracaju. Sua intenção era fugir do alto custo de vida da metrópole, para onde viajaria apenas para exposições em convenções e feiras de quadrinhos. Acabou ficando ilhado pela pandemia, como todos nós – os que têm bom senso, pelo menos. Mas como há males que vêm para o bem – ou não – isso deve ter ajudado na finalização de sua obra prima, o “podrão aniquilação”. Perguntei aqui a ele se foi isso mesmo, via whatsapp, mas ele ainda não me respondeu – provavelmente porque tem coisa melhor pra fazer do que ficar vendo mensagens desse aplicativo maldito. Fala aí você com ele, o número é +55 21 96900-6688 – não estou cometendo nenhuma indiscrição, o contato é publico, ta lá no site da loja. Só não coloque ele em nenhum grupo, por favor. Ele não quer. Faz muito bem. Fale somente o necessário e deixe o cara quieto pra ver se ele comete outra insanidade do mesmo calibre do “podrão”.


A.

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