segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Distopia: eu não queria uma pra viver ...

Comecei a me interessar por distopias no início da década de 1980, quando só se falava da data fatídica que se aproximava: 1984. Fui atrás, claro, do livro, escrito por George Orwell em 1948(para o título ele apenas trocou os números das datas) e foi amor à primeira leitura.

 

“1984” é objeto de controvérsias até hoje, por ser claramente inspirado na ditadura de Stalin  e ter, obviamente, servido como poderosa arma de propaganda anticomunista durante todo o período da guerra fria. O que nem todo mundo sabe, no entanto, é que ele também é diretamente inspirado em outro romance distópico mais antigo, “Nós”, do russo Ievgeny Zamiátin.

 

O livro de Zamiátin foi escrito entre 1920 e 1921, antes, portanto, da ascensão do “grande irmão” propriamente dito – Stalin só tomou as rédeas do destino dos soviéticos após a morte de Lenin, em 1924 -, o que torna ainda mais impressionante seu dom premonitório.  A história é narrada em primeira pessoa por um dos cientistas encarregados da construção do “Integral”, uma nave espacial destinada a espalhar a ideologia do Estado Unificado, no qual vive, pelo cosmos. Uma sociedade guiada pelo “Benfeitor” a partir de regras rígidas de conduta matematicamente programadas onde a abolição da individualidade, necessária ao perfeito funcionamento das engrenagens, é garantida por artifícios como a adoção de números no lugar dos nomes próprios e a construção de casas de vidro transparente. D-503, o protagonista, passa a questionar o sistema a partir de seu envolvimento amoroso com uma misteriosa mulher que faz parte de uma organização subversiva, obviamente clandestina. Como se vê, as similaridades com a obra máxima de Orwell são muitas, mas isso não tira do inglês o mérito de ter pensado em conceitos originais e brilhantes, como o “duplipensar”(2+2 pode ser igual a 5, caso o partido queira que assim seja) e a “novalingua”, resultado de uma simplificação radical e progressiva da linguagem destinada a ajudar na supressão do pensamento crítico e criativo – pensou no twitter e nos memes da internet de hoje em dia? Pensou certo.

 

Se “1984” foi inspirado nos regimes totalitários, notadamente o soviético, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, é basicamente uma crítica à alienação pelo consumo – inclusive de drogas entorpecentes – típica dos regimes capitalistas. Nele Ford(ele mesmo, Henry) é tratado como uma espécie de Deus, ou messias, por ser o fundador das bases nas quais a sociedade é estruturada, a partir de linhas de produção.

 

Já “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que forma uma espécie de “santíssima trindade distópica” com os livros de Orwell e Huxley, é uma declaração de amor à literatura e seu poder transformador, criador de espíritos livres. Foi adaptado com maestria para o cinema por François Truffaut em 1966.

 

De Philip K. Dick já li “Andróides sonham com ovelhas elétricas?”, que foi adaptado para o cinema como “Blade Runner”, e “O Homem do castelo alto”, que recentemente virou uma série da Amazon prime. Como já se tornou praxe com as obras de Dick, as adaptações têm pouco a ver com os originais, muito embora a do “Castelo Alto” esteja entre as mais fiéis, limitando-se basicamente a fazer algumas adaptações e criar novos personagens, além de expandir consideravelmente o universo alternativo imaginado pelo escritor, no qual os países do eixo venceram a segunda guerra mundial e ocuparam os Estados Unidos. Há um ponto em comum entre os dois livros: à medida que vão se aproximando do final a narrativa vai se tornando cada vez mais hermética ao explorar uma das obsessões do autor, a confusão entre fantasia e realidade. “O Homem do castelo alto” venceu o prestigiado prêmio Hugo no ano de 1963.

 

Outra obra aclamada e vencedora do Hugo mas pouco conhecida por aqui, “Um Cântico para Leibowitz”, do norte-americano Walter M. Miller Jr, foi resgatada recentemente do limbo pela editora Aleph. Publicada originalmente em 1959, no auge da guerra-fria, nos transporta para um futuro pós-apocalíptico onde a humanidade passa a rejeitar o progresso científico que supostamente a levou à autodestruição. Rejeição que a faz regredir a uma nova idade das trevas, mas que não impede o renascimento – porque o novo sempre vem, já dizia Belchior. O renascimento, no entanto, nos conduz, novamente, à beira da aniquilação, num círculo vicioso ilustrativo do ditame segundo o qual aqueles que falham em aprender com a história estão condenados a repeti-la.

 

“Um Cântico para Leibowitz” entrou numa lista dos dez melhores livros do gênero que a mundialmente prestigiada revista Time publicou em 2010. Graças, em grande parte, à originalidade de sua trama, que tem início seiscentos anos depois do chamado Dilúvio de Fogo, no qual a maior parte da população mundial foi dizimada. São, na verdade, três histórias distintas que giram em torno de uma abadia na qual monges se dedicam a preservar a “memorabília”, o que restou da devastação nuclear e da “simplificação”, a caça às bruxas que veio a seguir. “Bruxas” encarnadas, no caso, nos doutores detentores do saber, como professores e cientistas. A ordem que ocupa a abadia é, por sinal, consagrada a um destes “doutores”, um tal Leibowitz, que se tornou um mártir – e santo da igreja católica! – ao dar sua vida pela preservação do conhecimento.

 

Foi o único livro publicado em vida por Walter M. Miller Jr. Reflete sua visão de mundo, marcada por um forte componente religioso – converteu-se ao catolicismo em 1947, aos 25 anos de idade, depois de uma passagem traumática pelo exército durante a Segunda guerra mundial na qual esteve presente em cerca de 53 bombardeios sobre a Itália e os Bálcãs. Num desses ataques foi destruído o Mosteiro Beneditino de Monte Cassino, o mais antigo do mundo ocidental.


Recentemente uma autora até então desconhecida por mim, a canadense Margareth Atwood, ganhou notoriedade ao ter um de seus romances distópicos, “O Conto da Aia”, adaptado para uma série de TV de grande sucesso. Fui conferir e virei fã! Trata-se de um libelo feminista e antifascista que se passa em Gilead, uma país imaginário que é, na verdade, uma parte dos Estados Unidos dominada por um governo cristão fundamentalista e totalitário que usou uma crise de fertilidade provocado por um colapso climático para impor uma interpretação da Bilblia relativamente semelhante à que os Talebans fazem do Alcorão.

 

Em Giléad as mulheres férteis têm que se tornar, obrigatoriamente, “aias”, numa nova ordem em que não são mais preceptoras encarregadas da educação doméstica das crianças de famílias nobres ou ricas, mas verdadeiras escravas sexuais a serviço não do prazer, mas da reprodução. Para isso são obrigadas a participar, no período fértil, de um ritual de estupro em que são colocadas no colo das esposas estéreis dos “comandantes” para serem inseminadas por estes. São cenas fortes, que uma amiga, em particular, me disse que não conseguiu assistir – também porque lhe pareceu, a meu ver acertadamente, que aquela distopia estava especial e perturbadoramente próxima de nossa realidade, A adaptação do livro se limita à primeira temporada, mas a série segue adiante, desdobrando a trama de modo bastante satisfatório.

 

O que pouca gente sabe – eu, pelo menos, não sabia – é que “The Handmaids Tale” já havia sido adaptado anteriormente para o cinema num filme de 1990 dirigido pelo alemão Volker Schlöndorff, ganhador de uma Palma de Ouro e um Oscar de filme estrangeiro por sua adaptação do romance O Tambor, do também alemão Gunter Grass. Apesar de contar com uma trilha sonora assinada por Ryuichi Sakamoto e de ter no elenco nomes como os de Robert Duvall e Faye Dunaway, fazendo o casal encarregado de inseminar a personagem principal, rebatizada Offred  (no filme ela se chama Kate, na série virou June e no livro a sua identidade pregressa não existe), fracassou nas bilheterias, em parte pelo tom equivocado, excessivamente erotizado, a meu ver. No Brasil atende por “A Decadência de uma Espécie” e está disponível em DVD como parte da sensacional coleção de películas Sci-fi da Versátil Home vídeo. Recomendo, no mínimo como curiosidade.

 

Meu interesse pela obra de Atwood, como era de se esperar, se estendeu para sua literatura, mas como se trata de alguém com uma vasta bibliografia a ser explorada – tem 81 anos de idade, 52 de carreira e 18 romances publicadas, além de obras poéticas, infantis e de não-ficção – resolvi não começar pelo mais óbvio e, seguindo uma recomendação de Bruno Torturra num de seus “boletins do fim do mundo”, li a trilogia composta por “Oryx e Crake”, “O Ano do dilúvio” e “Maddadão”.

 

No primeiro livro somos apresentados ao “Homem das neves”, o provável último sobrevivente de uma catástrofe provocada por uma pandemia(!!!!). Ele convive com os “Filhos de Crake”, humanóides de uma nova espécie criados artificialmente no mesmo laboratório de onde saiu o vírus letal. Aos poucos vamos entendendo o que aconteceu a partir de suas reminiscências, enquanto acompanhamos sua luta pela sobrevivência em um mundo devastado e povoado por assustadoras criaturas hibridas. O livro termina num momento crucial, o que me fez ter até pena de quem leu na época do lançamento e teve que esperar quatro anos pela continuação ...

 

... que nem é exatamente uma continuação: “O Ano do dilúvio” começa uma nova história, com novos personagens, mas que se passa no mesmo universo de “Oryx e Crake” e vai aos poucos estabelecendo as devidas conexões com a primeira narrativa até terminar no mesmo ponto onde paramos no primeiro volume, só que sob um ponto de vista diferente. É brilhante! “Maddadão”, a parte final, retoma finalmente o fio condutor e conclui essa impressionante epopéia distópica repleta de reflexões sobre a destruição ambiental provocada pela superexploração capitalista. Há boatos de que será, também, adaptada para a televisão. Essa eu poderei dizer que já conhecia.

 

Resumindo: acho que já deu pra entender que eu gosto muito de fantasias distópicas. Na literatura, no cinema – veja “Metropolis”, “Planeta dos macacos”(toda a série, incluindo os mais novos, sou fã), “soylent Green”, “Logan´s run”, “Rollerball”, “Laranja Mecânica” (li o livro também, mas prefiro o filme), “THX-1138” de George Lucas, “Brazil” de Terry Gillian – esse é genial -,“Terminator”, “Total Recall”, “Bacurau”, “Mad Max”, “Matrix”, “Her”, “Ensaio sobre a cegueira”, “Filhos da esperança”, até de “Jogos vorazes”, o primeiro, eu gosto.

 

Na vida real não. Não queria e não estou curtindo. Não pensei que fosse viver pra isso.


A

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Um comentário:

Larissa Oliveira disse...

Uma vez eu trabalhei vários contos distopicos com um aluno. Acho que era febre no século XX com os grandes avanços tecnológicos e temores, era terreno fértil para ficção desse estilo. Algumas já antecediam as vídeo chamadas, robôs (que usamos como outra ferramentas como computador e celular) e a dominação delas sobre a gente.