sábado, 24 de janeiro de 2015

Tirem as crianças da sala ...

Adofo Sá - Jornalismo é vocação. Uma vocação de merda, por sinal, que não dá grana e ainda pode levar a uma decapitação pelas mãos de um Estado Islâmico da vida. Veja o caso recente do Charlie Hebdo e contextualize a profissão em Sergipe e o Nordeste, onde ainda reina o coronelismo e os meios de comunicação pertencem a duas ou três famílias. Mesmo que eu tivesse juntado todo dinheiro que ganhei publicando matérias ao longo de 20 anos, não daria nem pra pagar a impressão do livro.

JD - Você pegou a contramão da história, concorda comigo? Justamente quando meio mundo se apressa em decretar o fim dos suportes analógicos e a morte do impresso, em plena era do streaming, o cara me aparece com um livro "de carne e osso". Ainda dá pra botar fé nessa entidade misteriosa, o leitor?

Adofo Sá - Não tenho um pingo de fé na humanidade, e boto menos fé ainda no leitor. Mas discordo, em termos.  Hoje em dia se publicam mais livros do que nunca, a tecnologia barateou os custos de produção e até fanzines são feitos em gráfica. A internet quebrou as pernas dos grandes mercados culturais estabelecidos em alicerces corporativos, mas acabou ajudando muito a produção independente ao facilitar o acesso à informação e à divulgação do trabalho. Comecei com o blog como uma alternativa barata à autopublicação, processo que eu abracei nos anos 90 com os zines. Ao longo dos anos 2000, blogs perderam espaço pra redes sociais e a informação imediata se sobrepôs ao texto, à pesquisa e até mesmo à credibilidade - a notícia que você lê no Facebook muitas vezes não é verdadeira. Mas o incômodo só existe pros jornais, revistas e TVs, da mesma forma que as gravadoras se foderam com o livre compartilhamento de MP3. No underground a coisa vai muito bem, obrigado.

120 Dias de Sodoma, quinze anos depois ...
O leitor sempre existirá. Mesmo que role uma guerra atômica e não haja mais fornecimento de água, eletricidade e internet, os livros que não forem queimados nas explosões continuarão aí, prontos para ser lidos. Não precisa ligar em nenhuma tomada, nem ter senha de conexão wi-fi.

Agora, é verdade que as pessoas lêem cada vez menos, estão aí os zeros na redação do Enem pra comprovar. Ler é poder, quem não lê tem mais é que se foder.

JD - O Viva La Brasa se detém sobre um universo muito específico, habitado por tudo quanto é tipo de freak. Os papocos do underground interessam a quem, além de seus próprios habitantes?

Adofo Sá - O livro não foi feito pra agradar. Não tenho a ilusão de falar a todas as pessoas, até porque eu conheço muita gente com quem não quero nem falar. O público-alvo são pessoas que entendem a viagem e curtem o universo retratado ali: cena independente, histórias em quadrinhos e estados alterados da mente. Não é pra toda a família. Se quiserem usar como livro de mesa, tirem as crianças da sala.

JD - O lançamento do Viva La Brasa tem tudo para se transformar numa grande congregação de malucos e afins. O livro leva a sua assinatura, naturalmente, mas as quase 300 páginas do volume celebram os feitos de uma geração inteira. O barato é coletivo?

Adofo Sá - O barato é louco, o sistema é bruto e o projeto é coletivo como um ônibus lotado. Banquei todo o livro com grana do próprio bolso, quanta gente você conhece que faz isso? Vivemos num estado onde grande parte da arte é subsidiada com verba pública, nisso eu tô indo na contramão. Sempre gostei de trabalhar com colaboradores, desde os zines nos anos 90. Ganho a vida com audiovisual e sei da importância do trabalho em conjunto. Por isso, fiz questão de assinar o livro "Adolfo Sá & amigos".

Uma renegada ...
A grande congregação de malucos e afins aconteceu ontem - com direito, inclusive, a presenças ilustres, como as de Anastácio "Tchescobody Happy Blusk Thogheter´s night", vulgo "Tacinho", da Sublevação, e Gabbirin Nagal Gibborin AKA Villas Parakas, vulgo "Bilal, o rei do metal" - que achou tudo uma porralouquice e na real nem sabia o que estava acontecendo. Mas o fato é que a rua de Lagarto, no centro, onde fica a Caverna do Jimmy Lennon, quase ficou interditada, de tanta gente que se aglomerou na porta. A todo momento Chapolin (apelido do proprietário do estabelecimento) passava com seus asseclas com mais levas de cerveja e gelo. Lá dentro, no inferninho - literalmente falando, já que os ventiladores e ar-condicionados da casa não dão conta da refrigeração - algumas das melhores bandas da cidade se revezavam no palco. Karne Krua fez um ótimo show, como sempre, a despeito do publico ainda um tanto quanto morno. Idem para a Renegades. O público só começou a se animar pra valer na terceira apresentação, de Ferdinando Blues Trio. Deve ter sido o álcool fazendo efeito. Foi nessa hora, também, que aconteceu o pole dance da musa da noite, Inês, a modelo que estampa o material publicitário do livro. E que eu, veja só, perdi! Vi apenas nas fotos que Gil, mulher de Adolfo, me mostrou no celular. Mas foi bom, pelo que vi ...

Já tá aqui em casa ...
O capeta parece ter despertado de vez e incorporado na massa que se acotovelava para ver os Mamutes, que fez uma apresentação sensacional. Hard rock "setentista" de primeira, cheio de suingue e malemolência, feito pra chacoalhar o esqueleto, só que no ritmo do rock and roll. Que, em sua origem, era musica pra dançar, lembremos sempre disso. A noite foi encerrada com outra paulada, desta vez por conta da melhor banda de rock em atividade no Brasil - pena que o Brasil ainda não saiba disso -, a Plástico Lunar. Não sei se foi impressão minha, mas parece que está se configurando o que eu já botava fé que iria acontecer: eles estão, finalmente, superando a falta que a saída de Julico, da The Baggios, fez. Me pareceram mais entrosados. Acima de tudo Leo Airplane, este verdadeiro monstro de talento a toda prova que tanto enriquece a nossa pequena mas orgulhosa cena, e que foi escalado para substituir o insubstituivel na outra guitarra, me pareceu bem mais à vontade em seu novo papel, sem esquecer o que já fazia, que era fornecer a cama de teclados psicodelicos com timbragens "vintage" tão característicos do som da banda. Digo mais: Daniel, por algum motivo que eu não sei precisar qual é, estava sem sua guitarra, o que a principio significaria mais um desfalque na formação. Mas que eles tiraram de letra. Foi a primeira vez, também, que eu ouvi "Banquete dos gafanhotos" sem Odara nos vocais, só que essa foi fácil, já que a Plástico (ou melhor, a prástico, como dizia o saudoso Roberto Nunes) sempre teve bons vocalistas de sobra. O publico respondeu à altura e, apesar do avançado da hora, já perto das 4 da manhã, praticamente os obrigou a finalizar com uma sequencia de clássicos. Sensacional!

Dito isto, não poderia encerrar este relato sem comentar o motivo primário da noite: O livro de Adolfo Sá, "Viva La Brasa", que estava finalmente sendo lançado, depois de mais de dois anos de "maturação". Está belíssimo! Mais um impecável trabalho de diagramação comandado por Gabi Ettinger. Uma verdadeira obra de arte, impressionante. A curadoria ficou por conta do Calango doido Rian Santos e, numa primeira olhada, me pareceu perfeita. Tem, inclusive, um texto meu sobre a Karne Krua, deliciosamente pomposo e dramático, do qual eu nem me lembrava mais, já que havia sido originalmente publicado na edição xerocada de meu fanzine, o Escarro Napalm, há exatos 20 anos!

Um grande registro não apenas do trabalho de Adolfo, do qual sempre fui fã, mas de todos nós, "fanzineiros" e demais militantes do "underground" alternativo de uma geração que começou a produzir em tempos ainda pré-digitais, por volta da segunda metade da década de oitenta e primeira da de noventa do século passado, e não parou mais. Nem vai parar.

"Viva La Brasa" me representa! Tenho orgulho de fazer parte dessa história.

Relato da festa de lançamento por Adelvan "Kenobi"

Entrevista por Ria Santos

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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

je suis Charlie, pero no mucho

O  mundo ainda está em choque com o massacre na redação da Charlie Hebdo e o assassinato de quatro pessoas em um mercado kosher em Paris, pelo mesmo grupo terrorista. O choque talvez seja não pelo número de mortos ou por ter sido na Europa, como querem alguns, mas por ter se operado muito mais como um assassinato em massa, objetivo e frio, do que como um atentado terrorista “aleatório”, como o que matou 191 pessoas em Madrid em 2004. E, também, justamente por mirar diretamente membros da imprensa, este atentado tenha chocado mais do que outros e foi imediatamente considerado um ataque a um valor “fundamental do ocidente”, como a maior parte da imprensa coloca.

Independentemente da razão do choque, por conta dele quase quatro milhões de pessoas foram às ruas francesas em “protesto contra o terrorismo”, número semelhante ao dos que comemoraram a derrota dos nazistas e a desocupação da mesma França em 1944. É de se esperar, já que este foi o maior ataque terrorista contra civis naquele país desde que o governo francês matou pelo menos 70 manifestantes pacíficos pró-Argélia em outubro de 1961, crime desumano apenas reconhecido em 1999. E é um dos maiores ataques diretos a jornais desde que os nazistas fecharam sistematicamente todos os jornais opositores nos anos 1930.

Por essas e outras razões, o massacre na Charlie acirrou um debate muito complexo que envolve questões que vão desde o colonialismo europeu e a liberdade de expressão, até a causa Palestina, o ISIS, a exclusão social e a imigração. Como em qualquer debate complexo, a busca por soluções rápidas e respostas fáceis, resumíveis em infográficos de telejornais diários, não encontrará nada além de arbitrariedades e complicações para as questões que tenta solucionar. Assim, se faz necessário observar e pensar nos principais argumentos que norteiam o debate, para tentar buscar respostas sem cair nas armadilhas da xenofobia belicosa ou do multiculturalismo apaziguador.

Por um lado, a extrema direita, como se imagina, procura demonizar o Islão e, fazendo uso de todo tipo de generalização barata, procura argumentar que o fanatismo remonta à essência do Islamismo, que seus seguidores são “incivilizados” e outros tantos predicados preconceituosos. Este argumento tão comum desde o 11 de setembro e tão identificável com os mais radicais entre a extrema direita é tão torpe que se torna praticamente desnecessário aprofundar uma crítica neste sentido que já não tenha sido feita.

O mundo islâmico é tão ou mais variado que o próprio mundo cristão, e tomar o islamismo como um todo homogêneo, unificado e coeso é tão equivocado quanto fazer o mesmo com o cristianismo. Ainda mais se o ponto de vista de terroristas radicais for tomado como ponto de referência nesta análise. Seria como tomar a Klu Klux Klan como uma amostra relevante do cristianismo ocidental, por mais que essa organização agisse de forma terrorista na primeira metade do século XX e ainda arregimente simpatizantes radicais até os dias atuais (como Frazier Glenn, que matou três pessoas numa comunidade judaica em 2014). Ou como se Anders Breivik, cristão radical e neonazista, que matou 72 pessoas da esquerda norueguesa em 2011, fosse, também, um paradigma sério para analisar o cristianismo ocidental como um todo. Tentar traçar um perfil generalizante de islâmicos a partir da ação de terroristas seria, pois, igualmente forçado. Há mais de um bilhão de islâmicos do mundo e eles não podem ser demonizados pela ação de minoritários grupos radicais. Essa generalização surge muito mais como um argumento que busca encaixar a realidade em uma narrativa pré-concebida, etnocêntrica e simplista de “Oriente atrasado versus Ocidente avançado”, usada apenas como meio de deslegitimação do inimigo, para justificar sua dominação.

Por sua vez, surgem argumentos – em geral à esquerda – que apontam a hipocrisia das potencias ocidentais: pela manhã matam, saqueiam e patrocinam ditadores no Terceiro Mundo, mas à noite choram inconformados quando lunáticos revidam matando e vilipendiando em nome de seus próprios ditadores. Tentam, nesta corrente, classificar como islamofóbica toda a crítica que se faz ao terrorismo e ao islamismo, como se uma crítica ao extremismo violento, exceção da exceção, que mais vitimiza muçulmanos do que membros de qualquer outra religião, fosse uma generalizada crítica à religião islâmica. Ou, pior, como se a separação entre o Estado e a Igreja, inexistente em partes relevantes do mundo islâmico (Arábia Saudita e Irã, por exemplo), não fosse uma luta antiquíssima da esquerda mundial e criticar esse excesso de religiosidade no Estado fosse algo preconceituoso, islamofóbico e “supremacista ocidental”.

Há, de fato, uma hipocrisia latente em certa parcela das lideranças e proeminentes jornais ocidentais. Como se não fosse o cúmulo da cretinice ver lideranças mundiais, alguns campeões da perseguição a jornalistas e minorias, como os líderes da Turquia, EUA, Argélia, Egito, Rússia, Israel e Espanha, entre outros, desfilando pela “liberdade de expressão” e “contra o terrorismo” nas ruas de Paris no dia 11 de janeiro. Em alguns casos a hipocrisia é realmente incrível.


Não tem nem dois meses que a Espanha proibiu protestos “não autorizados”, na chamada Lei da Mordaça; a própria França, em 2014, proibiu protestos pró-Palestina, como se “ameaçassem a ordem pública”, e é o único país europeu – por enquanto – a adotar tal medida; a Inglaterra mantém, há quase quatro anos, o fundador da Wikileaks preso na embaixada do Equador. Os EUA mantém preso por traição máxima Chelsea Manning justamente por denunciar terrorismo de Estado praticado pelo governo. Israel, além dos muitas-vezes-condenados crimes pela ONU, acabou de propor que não-judeus – 20% de sua população – sejam cidadãos de segunda classe e tem perseguido jornalistas pró-Palestina incessantemente. Outras fontes da mídia apontaram que talvez por isso Netanyahu não fora convidado para a marcha dos líderes, mas que, ao saber que ele iria, o presidente francês convidou também o líder Palestino. Além disso, entre as lideranças hipócritas, havia “surpresas” como o líder da Turquia, campeã de prisões de jornalistas e perseguição a manifestantes; o do Egito, que figura em 160° lugar de 180 países com liberdade para jornalistas, que executou em massa religiosos opositores do regime e , pior, que absolveu o ditador derrubado Mubarak de seus crimes. Já o líder palestino Abbas, convidado de última hora, prendeu alguns jornalistas que supostamente o ofenderam em caso recente. No entanto, por alguma razão, todos se acharam dignos de marchar pela liberdade de expressão e contra o terrorismo nesta semana que passou, escondendo seus próprios problemas numa nova marcha contra o terrorismo que só não remonta a escalada do 11 de setembro porque nenhum país foi invadido ainda. Ainda.

Por sua vez, os jornais mainstream são acusados pela hipocrisia de suas narrativas. Wade Michael Page, que matou seis religiosos Sikh em Wisconsin em 2012; o citado Frazier Glenn, que matou três judeus em 2014 nos EUA; e, por fim, o também citado Anders Breivik, todos supremacistas brancos, anti-semitas e anti-islamicos, nas narrativas dos jornais mainstream são tratados como indivíduos, classificados como loucos e atiradores solitários e desajustados “perdedores”, enfim, outcasts do mundo ocidental. Já os igualmente lunáticos fundamentalistas islâmicos, que cometem crimes por motivos extremamente semelhantes, são terroristas natos, forjados pela “ideologia do Islã” e a generalização vexatória e xenófoba ganha ares de análise científica e “séria”.

Porém, por mais que seja evidente a hipocrisia dos jornais que seguem exatamente a agenda de seus governos e patrocinadores, o argumento de tentar amenizar os ataques por conta de um pano de fundo opressor, colonialista e “vingativo”, como se estes civis franceses ou qualquer outra vítima ocidental do terrorismo “fizessem por merecer”, é igualmente ridículo. Além de estabelecer uma relação desonesta entre as populações e as ações oficiais de seus governos em países estrangeiros, que estão longe de qualquer accountability popular, obscurece o fato de que a maior parte das vítimas do terrorismo são muçulmanos, que, tirando exatamente as lideranças fanáticas minoritárias que apoiam este tipo de ação, praticamente todo o resto dos mais de um bilhão de islâmicos condena esse tipo de ação e vive em medo muito maior do que qualquer cidadão ocidental médio: ora é o medo do terrorismo de seus compatriotas que os ameaça diariamente, ora é de alguma potência ocidental que se autoproclama sua defensora, bombardeando suas cabeças em nome da liberdade.

No mesmo dia do ataque à Charlie, por exemplo, 37 iemenitas morreram supostamente pela mesma facção da Al Qaeda que assumiu os ataques na França. Ao mesmo tempo, na Nigéria, o grupo terrorista fundamentalista islâmico Boko Haram dizimava a população inteira de uma vila, cristãos e muçulmanos: dois mil mortos. Justificar a morte dos franceses ou de qualquer ocidental seria também justificar a morte dos milhares de pessoas (muçulmanos inclusos) mortas aleatoriamente em mercados, praças e vilarejos isolados, em ataques terroristas em qualquer parte do mundo por terem ofendido os radicais de alguma forma. É igualmente desonesto e ignorante, um ataque contra as próprias vítimas.


A Charlie Hebdo era uma revista que se assumia abertamente “irresponsável”, na velha tradição iconoclasta da esquerda francesa. É verdade que ela “atirava para todos os lados”, especialmente, na extrema-direita francesa (os Le Pen e Frente Nacional). E, em geral, era uma revista pró-Palestina, com inúmeras capas contra a política racista de Israel. Porém, é verdade também que a distribuição dos insultos “para todos os lados” de fato não era exatamente proporcional, especialmente no caso da religião, e feita uma breve análise do histórico recente da revista, torna-se compreensível que parte de seus críticos a considerassem islamofóbica muito antes dos ataques terroristas.

Depois de vencer uma série de processos por ofensa a comunidades islâmicas francesas e ser alvo de uma bomba incendiária em 2011, a Charlie visivelmente passou a pegar mais no pé dos islâmicos do que nos adeptos de outras religiões (vide a maior proporção de capas ofensivas ao profeta Maomé), especialmente dado o número de islâmicos no país. O rancor destas minorias ainda se agrava ao constatar que as leis que regulamentam a mídia em casos de injúrias e “perigos a ordem pública”, foram efetivamente usadas e defendidas em tribunais, apenas no caso do comediante antissemita Dieudonne M’bala e para proibir manifestações pró-Palestina, nada de relevante foi feito para este tipo de ofensa as crenças islâmicas.

A assimetria é grande – não tão grande quanto revidar cartuns com assassinatos, mas relevante. Em caso emblemático envolvendo a própria Charlie Hebdo, um dos mais antigos cartunistas da revista foi demitido por se recusar a pedir desculpas por uma piada antissemita contra Sarkozy, então presidente francês que se casava com uma judia. Nada é sagrado, mas algumas coisas são menos não-sagradas do que outras.


A capa com as meninas estupradas grávidas, violentadas pelos lunáticos do Boko Haram, exigindo seguro social do governo francês, é altamente cretina, e distancia-se de qualquer militância sincera da esquerda ou do ateísmo, que a revista alega ser. O pior, reforça o estereótipo que a extrema-direita narra das francesas muçulmanas imigrantes argelinas: “parasitas da previdência social”. A charge parece muito mais algo saído de um panfleto racista do que qualquer outra coisa. É absolutamente desnecessário e improdutivo para a questão, muito menos para exaltar os valores republicanos fraternos franceses, libertar ou diminuir a opressão das minorias islâmicas na França. Como apontou Tariq Ali em recente coluna na Folha:

A secularidade francesa de hoje significa, essencialmente, qualquer coisa que não seja islâmica. Defender o direito de publicarem o que quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa, sacralizar um jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já são vítimas de uma islamofobia desenfreada nos EUA e na Europa é quase tão tolo quanto justificar os atos de terror contra a publicação. (Tariq Ali, 15/1/15)

Teria sido “libertador”, “republicano” ou irreverente e, ao menos, produtivo para a causa ateia e anti-religiosa, se, nos anos 1930, uma série de piadas e charges antissemitas fossem sistematicamente impressas na Europa? A resposta é óbvia. Aliás, há exemplo histórico semelhante.

Durante os anos 1920, a recém-formada URSS patrocinou uma revista chamada Bezbozhnik (Sem-Deus), um jornal ateu de propaganda anti-religiosa, com capas bastante agressivas contra cristãos, judeus e muçulmanos. Quando a direita anti-comunista tomou para si o discurso antissemita no meio da década seguinte, a “Sem-Deus” mudou o seu discurso, justamente por que os inimigos soviéticos haviam capitalizado o antissemitismo para o seu lado e não era “produtivo” alimentá-lo, focando a crítica na Igreja Ortodoxa da Rússia e em temas políticos mais gerais. O bom senso imperou, mesmo na cabeça de radicais iconoclastas como as ligas atéias da URSS.

Portanto, o objetivo é fugir das armadilhas e dicotomias simplistas que a questão traz.

Já está claro que, “em nome da segurança”, está se impondo gradativamente a agenda obscura da extrema-direita em toda a sociedade: vigilância estatal, restrições das liberdades civis, mais assédio policial, arbitrariedades legais, fechamento de fronteiras e perseguições a minorias (racial profiling). Além, é claro, de intervenções militares “democráticas” no mundo islâmico.

No entanto, é fato que a questão do terrorismo não pode simplesmente ficar em aberto, caindo num relativismo multicultural rasteiro “quem somos nós para julgar a cultura do outro” ou, pior, “eles fizeram por merecer”. Há um padrão que precisa ser debatido a serio.

Não se pode retirar da religião radicalizada, no caso a islâmica, o pano de fundo para a proliferação de fanáticos agressivos. Foi assim com o cristianismo até o século XVIII (com grupos como a KKK vindo até o meio do século XX) ou o judaísmo nacionalista e seus atentados no século XIX. Há radicais budistas sanguinários em alguns países da Indochina! Com o islão não seria diferente.

O contexto social temerário, a completa falta de representação social secular e a exclusão galopante dos pobres formam o terreno ideal para que as mais espúrias lideranças recrutem os seus seguidores. Como apontou Zizek: “A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças”. Depois que as forças ocidentais passaram 60 anos a sabotar toda a esquerda progressista no mundo islãmico, com medo – real ou imaginário – da sovietização, é realmente surpreendente que os projetos políticos e o modus operandi que emerjam no mundo islâmico, sejam retrógrados, extremistas e islamo-fascistas?!

Por fim, é fundamental fugir da armadilha da censura prévia. É preciso honestamente observar quando a liberdade de expressão alimenta o discurso de ódio e opressão de minorias e quando ela realmente é valente, republicana e libertadora. Até hoje a propaganda nazista é proibida na França como em boa parte da Europa e há diversos aparatos legais para proteger quem é vítima de racismo e antissemitismo. A liberdade de expressão irresponsável, indiferente ao contexto e ao momento, isto é, sem o reconhecimento de que quem fala pode sofrer condenações judiciais a posteriori, é extremamente perigosa e já combatida nos casos que já sabemos a consequência (antissemitismo e racismo). É preciso caminhar entre a idiota relativização do terrorismo e a igualmente idiota sacralização do discurso opressor, apenas por ser discurso. Temos de ser Charlie Hebdo, mas nem tanto. Se o timing é fundamental numa piada, o da Charlie tem sido um tanto descompassado e um puxão de orelha de vez em quando, após alguma besteira dita, pode fazer o humor da revista evoluir e realmente descontrair uma população tão oprimida que mal consegue rir de um desenho bobo. Será preciso outra limpeza étnica para que o anti-islamismo gratuito seja tão inaceitável quanto o anti-semitismo ou o racismo?

por Leandro Dias


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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

oui, #jesuischarlie

Não conhecia o Charlie Hebdo. Do material que tive contato, via internet, pelo menos uma das capas é realmente de muito mal gosto e merece, a meu ver, repudio - a que mostra um muçulmano sendo alvejado por balas mesmo usando o alcorão como escudo sob a inscrição "o alcorão é uma merda, não é à prova de balas". Especialmente por ter sido publicada na época de um massacre perpetrado pelo governo militar egipcio contra militantes da irmandade muçulmana. Já a igualmente polêmica charge que retrata a santissima trindade católica de forma, digamos, pouco usual, eu achei ótima. É forte, blasfema, mas mexe apenas com os dogmas, sem fazer brincadeira com a morte de ninguém. Pelo que vi até aqui a publicação às vezes ia realmente longe demais, apesar de, no contexto geral, não se enquadrar no que se poderia chamar de "islamofobia". Sua crítica era de esquerda e acima de tudo anticlerical - atingia todas as religiões. Há quem diga que resvalava o racismo, mas do que eu vi, não entendi assim ...

Mas esta é apenas a minha opinião. É difícil delimitar os limites para a liberdade de expressão, se é que deve existir limites. Tendo a crer que não, muito embora concorde que discursos de incitação ao ódio, como os que o tristemente célebre deputado Bolsonaro costuma defecar oralmente por aqui, devam ser encarados como exceção. Mas como definir, também, o que é um discurso de incitação ao ódio? O caso do Charlie Hebdo me parece exemplar, pois tenho visto opiniões bastante divididas a respeito. Complicado.

Mas uma coisa é clara e evidente: absolutamente NADA justifica a reação dos terroristas - com T Maiúsculo - que perpetraram essa barbaridade. Qualquer tentativa de tergiversação quanto a isso equivale ao equivocadíssimo argumento de que as mulheres são estupradas e/ou abusadas porque provocam a agressão. Digo o mesmo para os que tentam diminuir a tragédia com outro argumento já bastante conhecido, o de que o mundo não se comove na mesma intensidade quando a barbaridade acontece em recantos periféricos do planeta, como na Nigéria, onde o grupo terrorista Bokko Haran acabou de perpetrar um massacre abominável. É uma distorção perceptível e que deve ser corrigida, mas que não deve, a meu ver, ser usada como pretexto para desdenhar do que aconteceu na França. Não se trata de número de vítimas, de contagem de corpos. "A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade", já dizia John Donne.

É o que tenho a dizer para o momento. Em todo caso, seguem alguns bons textos com algumas opiniões divergentes e questionamentos pertinenentes sobre o assunto ...

« Sob a Quinta (República) autoritária, Charlie serviu de breviário à moçada de Maio (de 1968). Cada semana, era um sarcasmo lançado à cara dos poderosos, uma irreverência à pomposa seriedade (dos politicos), tudo isso em prol de uma sociedade diferente ; um pouco melhor, um pouco mais fraternal. Se hoje vivemos com menos preconceitos, menos censura, menos espartilhos e princípios fora de moda, com um pouco mais de autonomia, de livre arbítrio, de humor, é graças a esse bando de folgazões, estrondosos e calorosos, que sempre preferiram a palavra certa a uma renúncia , e que o pagaram com suas vidas. Ao longo da sua longa historia, nunca desviaram. Todos os autoritários, os solenes, os repressivos, os obscurantistas, os peixes-mortos e os importantes da França tiveram o que reclamar de Charlie. Estão vingados. Charlie foi censurado pelo "gaullismo", escândalo esquecido. Charlie é assassinado pelo islamismo. Mudamos de época. 

Teria sido por acaso ? Os terroristas não atacaram os islamofóbicos, inimigos dos muçulmanos, os que não cessam de acusar o lobo islamista. Visaram Charlie. Isto é, a tolerância, a recusa do fanatismo, o desafio ao dogma. Visaram essa esquerda aberta, tolerante, laica, excessivamente gentil, talvez, «direithumanista», pacífica, indignada com o mundo, mas que prefere fazer piada a impor o seu catecismo. Essa esquerda de que fazem troça Houellebecq, Finkielkraud e todos os identitários… Os fanáticos não defendem a religião, que pode ser acolhedora, não defendem os muçulmanos que na sua grande maioria revoltaram-se contra esses assassinatos abjectos. Eles atacam a liberdade."

de Laurent Joffrin, do Jornal LIBÉRATION


No rescaldo dos últimos dias descubro que é muito maior do que eu pensava a quantidade de pessoas que são a favor da liberdade de expressão, DESDE QUE NÃO SE DIGA O QUE ELAS NÃO QUEREM OUVIR. Assim é fácil, cara pálida! Até os maiores ditadores do mundo eram a favor da liberdade de expressão com esse porém. Cinco coisas:

1 - Atacar (ou ofender mesmo) ideologias e entidades não é igual a atacar pessoas diretamente por causa da sua etnia, orientação sexual, gênero ou mesmo crença. Imagine se não podemos atacar religiões, ideologias políticas...fodeu! Racismo é crime, blasfêmia não, ao menos nos países abertos e laicos. E o jornal Charlie Hebdo tem sede na França, que aliás foi o primeiro país laico do mundo.

2 - "Ah, mas não se deve ofender a religião dos outros" - interessante! Quem determina o limite da ofensa? É que para alguns basta dizer que Deus não existe que já se configura uma ofensa terrível. Experimentem fazer isto no meio de fanáticos, sejam de que religião forem.

3 - É verdade que os EUA têm uma política externa imperialista e que ao longo dos anos só fez merda no Oriente Médio por causa dos recursos naturais, que as minorias são discriminadas na Europa e que a extrema-direita adora tirar proveito dessa situação toda. Mas vamos parar de misturar tudo. Houve um atentado de fanáticos intolerantes contra o direito de se expressar livremente. Não existe um "mas". Ou se condena o ato veemente, ou se é conivente. Os outros temas podem vir à posteriori num debate mais aprofundado, sério e sem histeria.

4 - Já repararam na dinâmica das notícias no Facebook? Primeiro surge a notícia, depois as reações uniformes, depois as reações "contra-corrente" dos que querem ser "do contra" a todo custo, e depois, claro, aparecem as TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO. Entramos nesta última fase agora, porque as pessoas realmente acreditam em qualquer absurdo que elas querem que seja verdade.

5 - O Charlie Hebdo é muito mais de esquerda do que esse bando de gente de esquerda que, sem conhecer a sua história, o acusa de ser de direita e pega o embalo para atacar a liberdade de expressão em nome de uma agenda política contaminada por uma total falta de discernimento ou pelo mais fanático "bairrismo" ideológico.

Juliano Mattos, via facebook.


O mundo inteiro ganhou, em dois dias, milhões de especialistas instantâneos na história do Charlie Hebdo. Juntamente com o movimento “Je Suis Charlie”, veio a negação “Je Ne Suis Pas Charlie” (“Eu Não Sou Charlie”). No meio deste grupo, surgiu uma onda apressando-se em justificar, de alguma maneira, o massacre dos cartunistas com base no clássico “quem mandou?”



Os artistas seriam racistas. Para provar, ilustrações do DH estão sendo compartilhadas. Duas delas estão circulando intensamente entre os campeões desta tese. Uma mostra uma negra como uma macaca. A segunda, um negro com, perdoe meu francês, uma banana no rabo. Há outros desenhos, igualmente pinçados sem critério algum e sem contexto.



A negra é a ministra Christiane Taubira. Em 2013, ela foi chamada de macaca por uma política da direitista Frente Nacional. O Charlie Hebdo fez uma denúncia disso. A bandeirinha no canto esquerdo é uma referência à FN. Não é um endosso. Taubira ficou grata. Pouco depois da tragédia, Taubira deu uma entrevista a uma rádio, em frente ao CH, dizendo que era preciso que os franceses se organizassem para que a próxima edição saísse. “Nós não podemos admitir que o Charlie Hebdo desapareça”, afirmou.

O homem da outra charge é o comediante francês Dieudonné, autor do gesto da “quenelle”, uma espécie de “banana”, imitado por jogadores de futebol como Anelka. Dieudonné é amigo e aliado de Jean Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional, de extrema direita, fortemente antiimigração. O humorista tornou-se também revisionista do Holocausto.

A estranha necessidade de enxovalhar a reputação dos jornalistas nasce também da noção de que apenas vítimas perfeitas merecem justiça. O que não é o caso dos criadores do CH — um jornal feito para a polêmica, absolutamente anárquico, ultrajante e eventualmente de mau gosto. Uma leitora francesa deixou um comentário aqui no DCM. Publico alguns trechos:

“Não sei se devo rir ou chorar. Sou francesa e quando estou lendo que ‘tratar como heróis cartunistas alinhados à visão imperial de seu país é e sempre será um erro’ ou ‘será que ao retratar sempre os árabes com bombas e espadas a revista não estava também estimulando o que existe de pior em seu público?’ só quero dizer que vocês nunca entenderam as criticas que fazia Charlie Hebdo.Esse jornal, apoiando a visão imperialista da França na África? Apoiando essas políticas de exclusão dos jovens de origem árabe, que não encontram trabalho na França? Mas isso é tudo o que Charlie Hebdo estava denunciando. As caricaturas desrespeitosas tinham o objetivo de denunciar todos esses fenômenos de extremismo religioso, como o terrorismo, que não tem nada a ver com os muçulmanos. (…)

Se vocês não percebem a sátira dos desenhos, ou se vocês não gostam, tudo bem. Mas, por favor, nesse clima duro que a França está atravessando, seria de bom tom não pegar atalhos e espalhar desinformação, ou pior, bobagens, sobre as mensagens políticas do jornal.” 

Em 2013, Stephane Charbonnier, o Charb, falou das acusações de racismo. Charb foi um dos chacinados:

“O Charlie Hebdo está se sentindo decididamente doente. Porque uma mentira inacreditável está sendo dita: o Charlie Hebdo tornou-se um panfleto racista. Estamos quase com vergonha de lembrar que o anti-racismo e uma paixão pela igualdade entre todas as pessoas são e continuam a ser os princípios fundadores do Charlie Hebdo. (…)

Charlie Hebdo é filho de maio de 68, do espírito de liberdade e insolência. O Charlie Hebdo da década de 1970 ajudou a formar o espírito crítico de uma geração. Zombando dos poderes e dos poderosos. Por rir, às vezes escandalosamente, dos males do mundo. E sempre, sempre, sempre defendendo os valores universais do indivíduo.

Por que essa idéia ridícula se espalha como uma doença contagiosa? Somos islamofóbicos, afirmam aqueles que nos difamam. O que significa, em sua própria novilíngua, que somos racistas. Quarenta anos atrás, era considerado obrigatório zombar da religião. Qualquer um que começou a perceber para onde o mundo estava indo não poderia deixar de criticar o grande poder dos maiores organismos clericais. Mas de acordo com algumas pessoas, na verdade, mais e mais pessoas, atualmente você tem que calar a boca.

O Charlie ainda dedica muitas de suas capas a ilustrações papistas. Mas a religião muçulmana, imposta a inúmeras pessoas em todo o planeta, deve ser de alguma forma poupada. Por que diabos? Qual é a relação, a menos que seja apenas ideológica, entre o fato de ser árabe, por exemplo, e pertencer ao Islã? (…)

Nós nos recusamos a fugir de nossas responsabilidades. Mesmo que isso não seja tão fácil como em 1970, nós vamos continuar a rir dos padres, dos rabinos e dos imãs – quer isso os agrade ou não. Somos minoria nisso? Talvez, mas ainda assim estamos orgulhosos. E aqueles que pensam que o Charlie é racista deveriam, pelo menos, ter a coragem de dizer isso em alto e bom som. Nós saberemos como responder a eles.”

por Kiko Nogueira

DCM
 



 "Eu me lembro que quando o Fatwa foi declarado contra Salman Rushdie, muitos escritores e colunistas britânicos - que definitivamente deveriam saber disso - disseram que “Os Versos Satânicos” ‘realmente não era tão bom assim’, e a implicação disso era que, desta forma, seria então um grande esforço se posicionar contra a sentença de morte declarada contra o seu autor. Na verdade, (não que isso importe, claro) “Os Versos Satânicos” é um dos grandes romances cômicos do pós-guerra. Um horrível absurdo similar foi espirrado recentemente sobre o tema do filme “A Entrevista” da Sony: 'Oh, ele é realmente bastante pobre.’


    O escritor (agora em grande parte esquecido), radialista e apologista cristão Malcolm Muggeridge destruiu seu legado como um homem sério e interessante em quinze absurdos minutos na televisão, quando ele languidamente descreveu “A Vida de Brian” de Monty Python como 'de décima categoria' , como se isso fosse um motivo para parar de exibí-lo. Uma desonestidade absurda. Ele queria impedir sua exibição porque ele sentiu-se "ofendido" por sua "blasfêmia" e então ofereceu o mesmo não-argumento como aquele elaborado por sua companheira e fundadora do Festival da Luz Mary Whitehouse, de memória hilariante: "Oh, eu não estou chocada, oh não. Na verdade, eu achei um pouco chato”. É claro que você achou, querida, e portanto, temos certamente de censurar este filme de imediato. Bah! Hoje em dia “A Vida de Brian” é frequentemente situada no topo de das listas de melhores comédias de todos os tempos e Muggeridge só pode ser razoavelmente lembrado por ser o agente do MI5 que interrogou PG Wodehouse e sua esposa em Paris de forma amável após a sua libertação, em 1944.

    Então, que ninguém pense que, para defendermos qualquer obra de arte (ou filme, ou novela, ou desenho animado) contra a censura de qualquer tipo, quanto mais os horrores absurdos de quarta-feira 7 de janeiro, ele precise ser 'de primeira categoria” (seja lá o que isso signifique ).

    Não estamos todos cansados de ver aqueles que afirmam saber a resposta para a vida, a morte e a criação serem tão fudidamente emotivos sobre o seu conhecimento? Se eu soubesse a resposta para tudo, se eu acreditasse ter compreendido as vontades do autor do universo e tivesse o privilégio de entender o que acontece conosco depois da morte, a última coisa que eu seria é uma pessoa facilmente ofendida e na defensiva. 'Tirem sarro de mim o quanto quiserem’, eu berraria. "Vá em frente, riam até não poder mais, pode me pintar em borrões toscos, ou fazer filmes tirando sarro. ‘Eles passam por mim como o vento ocioso que eu não percebo’."
  

por Stephen Fry - tradução de Kemzo Miura

Trabalho Sujo


A questão Charlie Hebdo levantou muitas discussões, seja nos comentários do meu blog, seja em textos de outros autores ou nas redes sociais mundo afora. Por isso, quero discutir aqui alguns dos pontos principais que me foram trazidos por diversas pessoas. São muitos pontos importantes, que merecem uma atenção detalhada, então farei o meu melhor pra aborda-los em textos separados, uma vez que uma reclamação constante sobre o meu último texto (leia aqui) foi que ele ficou longo demais. Hoje faço uma rápida reflexão sobre a briga entre “Je suis Charlie” e “Je ne suis pas Charlie”.

1- “Se você não é Charlie, então você defende os terroristas” - ou a lógica do Quem não está conosco está contra nós.

Existe uma diferença enorme entre escrever “Eu não sou Charlie” e dizer “Eu sou a Al Qaeda”. Não vi nenhum texto que diga se posicione a favor do massacre contra os cartunistas (apesar de não duvidar da existência de textos assim). É verdade que vi muita gente dizendo em comentários de internet que os cartunistas mereceram o que lhes aconteceu por atacar a religião alheia, ou por saberem que “com fanático não se mexe”. Deixe-me esclarecer que quem diz isso está muito errado. Ninguém merece ser assassinado por emitir opiniões ou por qualquer outra razão que o valha. Questionar as razões da comoção internacional, contestar o conteúdo de certas charges ou falar sobre a islamofobia na França não é se posicionar à favor da Al Qaeda, simplesmente porque o mundo não é um jogo de mocinho e bandido.

Existem muitas boas razões pra que pessoas se declarem como não sendo Charlie. Acredito que a principal razão seja a indignação com o “luto seletivo”. Pessoas se indignam não porque é errado que a sociedade se choque com o que aconteceu com os cartunistas, mas sim porque a sociedade não se choca com todos os massacres que acontecem na África, no Oriente Médio e no Brasil. Afinal, o que essas pessoas estão perguntando é por que o assassinato de jornalistas brancos franceses é tão mais significativo do que o genocídio da população negra do Brasil, os estupros e assassinatos de mulheres e os ataques bárbaros contra gays, lésbicas e pessoas transexuais? Por que nenhum líder mundial se pronunciou contra o atentado do Boko Haram na Nigéria, que matou 2.000 pessoas? Quem questiona isso não está dizendo que você não tem o direito de estar chocado com o ocorrido na frança. O que essas pessoas se perguntam é: por que e de que modo a sociedade, a política e a mídia internacional escolhem quais mortes valem uma primeira página de jornal, um encontro de líderes mundiais andando de mãos dadas ou um slogan de solidariedade no seu facebook?

Assim, surgiram diversos slogans alternativos, questionando o luto seletivo, como “Je sui Amarildo”, “Je sui Ahmed” e “Je sui 83 negr@s mort@s por dia no Brasil”. São questionamentos que devem ser feitos, e que convidam as pessoas a refletir sobre o poder de controle ideológico da mídia e seus interesses políticos.

Trocando em miúdos: quando homens assassinam mulheres, a mídia não quer que você pense nisso. Quando crianças indígenas são assassinadas por madeireiros e latifundiários, os jornais não tentam te fazer chorar. Quando gays, lésbicas e transexuais são torturados em nome de um discurso religioso fundamentalista, os jornais não querem que vocês pensem em cristãos como terroristas (e de fato não se pode culpar todos os cristãos pelo fundamentalismo de alguns, como não se pode culpar todos os muçulmanos pelos grupos terroristas ou não se pode culpar todos os judeus pelos crimes de guerra de Israel).

O governo de São Paulo não quer as pessoas se solidarizem com as vítimas dos mais de dez mil assassinatos cometidos pela Policia Militar nos últimos 19 anos. Mas quando extremistas muçulmanos cometem um crime bárbaro contra jornalistas brancos europeus, então a mídia e os governos farão de tudo para que você saiba quem são as vítimas e quem são os inimigos.

A segunda razão principal, e a que tentei retratar no meu ultimo texto, é o carater racista das charges do CH e os efeitos dela na sociedade.

2- “Você não pode falar mal do Charles Hebdo porque ele falava mal de todo mundo”

É curioso como muitas pessoas defendem passionalmente o CH por ele ser considerado um jornal de esquerda que se dava a liberdade de falar mal de todo mundo, e isso faz com que ninguém possa falar mal dele. Afinal, por que um jornal pode apontar os problemas de uma religião e eu não posso apontar os problemas de um jornal?

O objetivo do meu ultimo texto é questionar a iconização da revista Charlie Hebdo como sendo um bastião da extrema esquerda e líbelo da liberdade de expressão. O objeto central da minha análise é o modo como representações e piadas racistas ajudam a inflamar o racismo da parcela racista de uma sociedade. No caso, o CH é um jornal que defendeu diversas pautas libertárias de um modo interessante ao longo da sua história, mas que infelizmente escorregou feio quando retratava o Islã, quando representava negros e em muitas charges machistas. Eles afirmam que estavam atacando os grupos extremistas islâmicos, e esse pode ser um objetivo muito nobre e bem intencionado, mas as imagens que eles espalhavam era de que o Islã e os muçulmanos são todos um grupo de selvagens, radicais, violentos e ignorantes. Quem lê esse jornal não são os membros da Al Qaeda, e sim a população francesa branca, européia de origem cristã. Assim, quando essas pessoas vêem essa imagem, elas cristalizam a ideia de que os muçulmanos são todos daquele jeito caricato. Isso desumaniza os muçulmanos, faz com que as pessoas de fora os vejam não como indivíduos pensantes com características, vontades e liberdades próprias, e sim como um grupo homogêneo e estagnado. Frantz Fanon e Edward Said analisam brilhantemente esse processo de desumanização do oprimido e o modo como isso é uma ferramenta vital para possibilitar a opressão sem que o opressor se sinta culpado. Em muitos casos, o opressor acredita que está ajudando esses “selvagens”, libertando-os do seus costumes bárbaros e religiões barulhentas, ensinando-lhes a serem civilizados, democráticos, comerem com garfo e faca e ouvir Mozart. É o tal “fardo do homem branco”, uma abominação retórica feita de arrogância, ignorância e às vezes até um pouco de boa intenção por parte de algumas pessoas que compram esse discurso.

Isso não significa que todos os franceses sejam xenófobos, não significa que os cartunistas mereceram morrer, não significa que terrorismo seja legal e nem significa que o Charlie Hebdo seja o único culpado da Islamofobia na França.

O jornal em questão pode ter publicado excelentes cartuns sobre marxismo e contra a direita, mas isso não o isenta de ter sido racista. Muitos escritores e militantes fazem um trabalho incrível falando sobre racismo e isso não impede que eles sejam machistas. Conheço grupos que fazem um trabalho exemplar sobre a luta do operariado, mas que acreditam que o fim do Capital trará o fim do racismo e machismo (o que, na melhor das hipóteses, é uma afirmação ingênua). Enquanto militante pró-palestina, perdi a conta de quantas vezes vi companheiros fazendo afirmações racistas contra judeus ao invés de atacar o sionismo. Se declarar “de esquerda” não faz com que você esteja isento de ser um opressor, e tentar defender uma pauta libertária é sempre louvável, mas as vezes pode ser que você esteja fazendo besteira e piorando a lambança. É por isso que quando se quer falar sobre opressão sofrida por negros nós devemos ouvir o que dizem militantes negros, e quando queremos defender os direitos das mulheres precisamos aprender a ouvir o que dizem militantes mulheres. Vi diversos muçulmanos falando sobre como as charges do CH eram ofensivas, e vi diversas mulheres negras falando sobre o racismo e machismo de outras charges desse jornal, e se essas pessoas se sentiram ultrajadas, então eu não tenho nenhum direito de, do alto da minha experiência de homem branco que nunca sofreu machismo ou racismo, contestar o sentimento e a crítica feita por quem sofre essas violências diariamente.

Eu tento fazer o meu melhor pra lutar contra meu próprio machismo e racismo, contra os preconceitos dentro dos quais fui criado e os sistemas dos quais sou um privilegiado, mas sei que escorreguei muitas vezes, e é possível que eu ainda venha a errar muitas vezes. O fato de eu me esforçar para desconstruir meus preconceitos não me isenta de ser criticado quando eu errar. Na verdade, eu fico muito grato quando alguém me explica que errei, porque aí posso evitar cometer o mesmo erro novamente.

Se você realmente respeita tanto o Charlie Hebdo pelo seu carater iconoclasta, então aprenda com ele a ser iconoclasta e entenda que idolatrar um jornal, um cartunista ou um slogan é estar cego para a crítica que você jura defender.

por Plínio Zúnica

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