quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Benazir Bhutto

               Estava eu dando a velha zapeada na minha humilde TV A Cabo pacote básico ontem à noite quando me deparo com o excelente documentário “Benazir Bhutto: Democracia é a Melhor Vingança”, que conta a história da primeira mulher a comandar um estado muçulmano moderno - o Paquistão. Com depoimentos de inúmeras figuras mundialmente conhecidas, como a ex-secretária de estado norteamericana Condoleeza Rice, o escritor e ativista paquistanês Tariq Ali e o ex-presidente Pervez Mussharraf, o filme não foge à polêmica: dá voz a defensores e desafetos, como sua sobrinha, Fatima Bhutto, que endossa as acusações contra seus governos. Traça também um fascinante panorama da vida da biografada através de imagens históricas impressionantes e emocionantes, como as de seu casamento, aberto à participação popular, ao qual compareceu uma verdadeira multidão; de sua posse como primeira-ministra, com o visivel desconforto dos generais ao lhe prestar continência; e dos antentados que sofreu, dentre eles o que causou a sua morte.
               Benazir era filha de Zulfikar Ali Bhutto, político de tendência socialista que assumiu a presidência em 1971 (ano do meu nascimento), dando início a um grande projeto de nacionalização e a uma ambiciosa reforma agrária. Conquistou a admiração do povo, mas desagradou setores poderosos, como o empresariado, o clero islâmico e as Forças Armadas. Foi deposto, condenado à morte e por fim executado pelo governo oriundo de um golpe de estado comandado pelo general Muhammad Zia-ul-Haq.
               Zia-ul-Haq era um daqueles “ditadores amigos” do “Grande Irmão do norte”, os Estados Unidos da América, país que posa de farol da democracia mas não hesita em apoiar regimes ditatoriaisa quando lhe é conveninte. Na ocasião, eles precisavam do Paquistão para deter o avanço dos soviéticos via Afeganistão. O novo amiguinho dos ianques aproveitou para fazer um governo corrupto, violento, repressor e “islamizante”. Também ajudou a armar, para os americanos, os “mujahedins”, como eram chamadas as milícias combatentes do país vizinho que posteriormente dariam origem ao Taleban e à Al Qaeda.
               O ditador tinha, no entanto, uma pedra encrustada em seu sapato: a filha mais velha de seu antigo desafeto, Benazir Bhutto, que havia jurado vingança pela morte do pai, só que por via democrática e pacífica – daí o título do documentário, extraído de um de seus discursos. Mas ele não sobreviveu para presenciar sua vitória: morreu no dia 17 de agosto de 1988, quando o avião em que viajava com o embaixador dos Estados Unidos e outras 28 pessoas foi sabotado e caiu minutos depois de decolar do aeroporto de Bahawalpur. A autoria do crime é, até hoje, um mistério.
               Benazir assumiu o cargo de primeira-ministra do Paquistão no mesmo ano, depois de uma longa trajetória de militância política na qual permaneceu presa por cerca de 7 anos, parte deles em condições subhumanas. Ficou tanto tempo confinada numa solitária que, por um período, teve que se comunicar através de bilhetes, já que havia perdido a capacidade de falar - sua mandíbula estava atrofiada. Mas falou, e muito, quando foi finalmente libertada e exilada, como fruto de uma forte pressão internacional. Percorreu o mundo denunciando os crimes da ditadura, até finalmente ascender ao poder.
               Seu primeiro governo foi conturbado e sofreu forte oposição dos setores conservadores, dentre eles os militares, que não se sentiam nem um pouco à vontade em ter que prestar continência a uma mulher. Chegaram, inclusive, a tentar convencer seu marido, Asif Ali Zardari – atual presidente do Paquistão - a ocupar seu lugar. Com pouca habilidade para se manter no comando da nação, foi deposta dois anos depois – mas voltou ao cargo em 19 de outubro de 1993, quando ganhou um novo mandato após mais uma vitoria eleitoral de deu partido, o PPP – Partido do Povo do Paquistão.
               Agora mais experiente, fez um governo melhor, mas voltou a ser deposta em 1996 sob denuncias de corrupção e improbidade administrativa. Foi também acusada de tramar a morte de seu irmão, com o qual tinha uma querela política desde que ela, e não ele, como era mais comum na tradição local, havia sido escolhida como herdeira por seu pai. Acuada, em 1999 se auto-exilou em Londres e Dubai, onde cuidava da família ao mesmo tempo em que continuava sua militância política – consta que, às 19H, fizesse o que estivesse fazendo, em alguma palestra ou encontro com Chefes de estado, pedia licença pois precisava voltar para casa para jantar com seus filhos. Só voltou ao Paquistão no dia 18 de outubro de 2007, sob forte comoção popular. Já na chegada, no entanto, sofreu um primeiro atentado, quando duas explosões ocorreram em meio à multidão de cerca de 100.000 pessoas, perto dos carros da sua comitiva, matando ao menos 140 e ferindo mais de 200. A ex-primeira ministra, entretanto, não foi atingida - e não fugiu! Morreu vítima de um novo ataque reivindicado pela Al Qaeda dois meses depois, há exatos 5 anos.
               Por sua vocação democrática e conciliadora, Benazir Bhutto pode ser comparada a outro grande líder carismático de esquerda, o nosso ex-presidente Lula, com o qual compartilhava algumas características, como a opção por uma política transformadora porém moderada e a grande empatia com o povo. Teve à sua frente, no entanto, uma conjuntura infinitamente mais adversa, devido à delicada situação geográfica de seu país, que o torna eternamente alvo dos interesses externos das grandes potências. Apesar disso, enfrentou com coragem e maestria situações extremas e conseguiu deixar sua marca. Seu partido, hoje, comanda o Paquistão, e seu marido está prestes a se tornar o primeiro civil a completar um mandato presidencial.
               Será lembrada para sempre.

para Joanne Mota

por Adelvan


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Muros

     Em 1989 eu era apenas um guri de sete anos desfrutando de uma feliz e divertida infância na terra das araras e dos cajus. Uma criança como qualquer outra, que passava a vida jogando futebol e pouco mais. Cheia de ilusões, borrifando-se para o mundo. O momento existencial de um indivíduo de tão tenra idade é curioso e invejável; sem grandes preocupações, as únicas coisas que me afligiam eram o gol perdido na pelada da tarde e a palmatória durante a tabuada obrigatória na escola. Pois é, palmatória! Tempos difíceis e obscuros, aqueles de 1989, o convulsivo ano da queda do famoso Muro de Berlim. Mas enquanto notícias demasiado confusas vinham lá de fora, de um mundo distante, as bases de um outro muro também tremiam perante a força libertadora da curiosidade e da imaginação.

     Vivia num condomínio fechado de classe média chamado Flamboyant, composto de dois prédios feios e robustos de doze andares, paralelos um ao outro, em sentido leste-oeste, como se medissem forças. O prédio sul era formado por dois blocos, o A e o B, e o norte pelos blocos C, D e E. Os dois gigantes de concreto eram separados por um espaço de vinte metros preenchido por uma generosa área de lazer; uma piscina – cuja entrada situava-se junto ao acesso ao bloco C - com três níveis de profundidade para adultos e crianças e uma quadra poliesportiva, com apenas uma porta próxima ao bloco B. Uma pequena pracinha com um enorme banco circular de cimento envernizado separava-os e também servia de via de ligação entre os dois prédios, que se erguiam sobre pilares de forma a que debaixo deles, ao nível do térreo, houvesse um espaço de locomoção, com alguns bancos geralmente frequentados por idosos; claro que as crianças não lhes davam paz. A quadra poliesportiva era controlada por adolescentes e adultos, o jeito era improvisar e bater a pelada por ali, quando o espaço não era utilizado como pista de corrida para as nossas queridas bicicletas.

     Embaixo do bloco E havia um enorme salão de jogos, com várias mesas de bilhar e tênis de mesa. Junto à entrada da piscina, embora mais próxima do bloco D, havia uma pequena venda que vivia de lanches e guloseimas e tinha um papagaio muito simpático que adorava repetir o que dizíamos - A venda era gerida pela dona Ana, que vivia no primeiro andar do bloco E e tinha três filhos chamados Júlio, Paulinho e Juliana. A minha relação com eles era simples: vivia levando porrada do primeiro e tentava me vingar no segundo enquanto mantinha um amor platônico pela minha xará. Enlouquecia-me sobretudo quando a via de fio dental na piscina. Assim como Júlio, ela era alguns anos mais velha que eu. Dela, tenho duas fortes recordações: o beijo que certo dia me dera na bochecha esquerda enquanto a direita era igualmente beijada por uma das suas amigas e os dedos de seus pés. Uma das minhas esquisitices sempre foi observar pés e mãos. Na verdade, o meu interesse sempre esteve nos dedos. Digamos que eu tenha um certo repúdio por dedos e unhas feias e durante a infância chegava mesmo a conceber o caráter de uma pessoa conforme a forma de ambos. Apesar de ser atraído pelas curvas do corpo semi desnudo de Juliana, seus pés me enojavam profundamente; eram absolutamente iguais aos de seus detestáveis irmãos. O segundo pododáctilo era exageradamente saliente, mais avantajado que o hálux e com o dobro de tamanho dos demais. Evitava ao máximo olhar abaixo de suas coxas para não estragar a fantasia, que era mais afetiva que erótica.

     A sudeste da piscina, entre o Bloco A e o estacionamento leste, um parquinho infantil - sem pavimento, totalmente de areia - era o local de predileção dos mais novos. Dentre escorregadores, cavalinhos e balanços, o meu favorito era o último; realmente incorporava o Ayrton Senna e quem estivesse no balanço ao lado sempre era o Alain Prost. Acreditava que um dia conseguiria dar uma volta de trezentos e sessenta graus no balanço! Além disso, a falta de impermeabilização do parquinho fazia-nos transformá-lo em praia e ali cavávamos buracos e erguíamos fortificações.

     Na parte exterior os dois prédios eram cercados por estacionamentos e estes por um muro que isolava todo o condomínio. A noroeste, perto do bloco C, estava a única saída – que também era entrada, mas para quem vivia cercado por uma muralha qualquer abertura só poderia ser uma saída –, embora algum tempo depois tivesse surgido uma segunda, a sudeste, que acabaria por substituir a antiga após o encerramento desta em meados dos anos noventa. Internamente, todos os prédios eram iguais. Possuíam escadas e dois elevadores. No térreo havia uma pequena salinha de estar, com uma mesinha e algumas cadeiras. O acesso era possível do exterior para quem vinha dos estacionamentos e do interior para quem vinha das áreas de lazer ou de outros blocos. Cada andar acomodava quatro apartamentos e cada um deles tinha duas portas localizadas nos ângulos de noventa graus do corredor retangular. Os corredores eram enormes para uma criança e serviam para a diversão noturna quando éramos proibidos por nossos pais de descermos às áreas de lazer. Como se já não bastasse vivermos numa fortaleza fechada com guarita e segurança, também éramos forçados a ver a noite apenas pela janela, muitas delas gradeadas devido ao perigo da altura. Do lado horizontal do retângulo que formava o corredor, à direita, havia dois elevadores e um pequeno espaço com não mais de dois metros para a deposição de lixo, com um vão interno, fechado por uma tampa, que levava o lixo até ao depósito no térreo para ser expelido do complexo. Do lado esquerdo, as escadas, que vinham de baixo e finalizavam no piso do corredor e dali continuavam, um pouco mais adiante, para os andares superiores.

     Eis o meu mundo dos cinco aos nove anos, entre o final de 1987 e início de 1992. Se a minha mente teimava em mostrar que o mundo não era só aquilo, devia-se às idas à escola e aos dois locais onde morara anteriormente; o primeiro, num prédio na avenida Bosque da Saúde, em São Paulo, minha cidade natal. O segundo, um casebre – de aspecto rural e com um grande quintal repleto de bananeiras, jabuticabeiras, goiabeiras, jaqueiras e mangueiras – em São Cristóvão, Sergipe, local histórico por ser a quarta cidade mais velha da Pindorama.

     Habitava o segundo andar do bloco E com meus pais, no apartamento 204. A varanda da sala era um camarote privilegiado da quadra poliesportiva. Todas as Sextas à noite - e somente às Sextas – os refletores eram acesos e havia jogo sério dos homens do condomínio. Só coroas e velhotes. Foi ali naquela varanda, assistindo a esses jogos enquanto tomava mamadeira, que aprendi os meus primeiros palavrões. “Caralho” foi sem dúvidas o primeiro e o mais intrigante, devido à falta de significado. “Vá tomar no cu”, já mais direto, também era constante. Passei muito tempo observando as partidas de futebol da varanda de casa. Como vivia no segundo andar, não havia qualquer possibilidade de avistar o mundo desconhecido existente fora do muro do condomínio. Mas nas alturas do décimo primeiro andar do bloco A, no apartamento 1104, vivia minha tia Mina com meus avós, todos parentes maternos. Foi no corredor daquele andar que joguei pela primeira vez “gol a gol”, um jogo de futebol entre dois indivíduos que se enfrentam entre si e são goleiros e artilheiros ao mesmo tempo. As noites no corredor eram divertidas. Na porta ao lado vivia um menino chamado Fábio. Ele tinha muitos brinquedos e uma irmãzinha de três anos, Rafaela. Seus pais eram gentis e me deixavam frequentar sua casa. Eu gostava de ir comer hambúrguer lá, porque a mãe de Fábio comprava aquele pão especial, macio e circular. Mas as melhores e mais claras lembranças da casa do Fábio não são tão inocentes. Era lá, longe dos olhos dos meus familiares, que eu podia assistir ao programa Cocktail, que apresentava mulheres semi nuas, com frutinhas de papel cobrindo seus mamilos. Não que minha família fosse conservadora, longe disso; eu é que morria de vergonha. Mas melhor que isso foi no dia em que vi pela primeira vez os seios de uma mulher. A mãe de Fábio era bondosa e um pouco descuidada. Costumava usar camisas largas e não era muito adepta do sutiã. Eu espiava mesmo, mas morria de medo dela perceber. Talvez até percebesse e se divertisse. Sabe-se lá! Depois de ter visto pela primeira vez, fazia de tudo para conseguir algum ângulo favorável - eu não pensava em meninas, não ligava para isso, mas às vezes lembrava que existiam. Se houvesse permanecido indiferente a elas, assexuado, não teria experimentado tantos problemas nem tido tantos atrasos e distrações na vida.

     Do outro lado do corredor vivia um menino de origem oriental a quem o chamávamos de Japona. Era um dos meus rivais do “gol a gol” e parceiro de “pogobol”. Ao seu lado vivia um casal sem filhos que pouco socializava, mas reclamava muito das boladas na porta. No andar de cima moravam alguns meninos que eram amigos e inimigos ao mesmo tempo. No apartamento acima do meu vivia o Rafael, que até era amigável e me convidava para assistir aos filmes de Mad Max. Mas sofria muita influência negativa dos dois gêmeos que habitavam seu andar. Eram mais velhos e maiores, faziam-me chorar muitas vezes. A minha vingança viria ao roubar alguns bonecos dos Comandos em Ação que haviam esquecido nas escadas de acesso entre o meu andar e o deles. Um dos bonecos era apelidado por mim e pelo meu irmão de Verde Cana, devido à sua cor. O Verde Cana foi um dos símbolos da minha infância!

     Mas havia algo muito mais apelativo para a minha mente em formação. Não era apenas o clima horrível que antecedera ao divórcio dos meus pais que me fazia gostar mais do apartamento no bloco A. O fato de ser lá nas alturas me possibilitava algo fascinante: ver o mundo lá fora. O mundo do outro lado do muro, para além da fortaleza. A perspectiva, de um nível superior, oferecia um leque de interesses muito mais amplo que o futebol que eu via do meu apartamento. A analogia está feita: quanto mais adiante conseguimos enxergar, mais imaginamos e preenchemos as lacunas da mente com interrogações que latejam por respostas. O futebol visto da varanda era divertido, mas a diversão como finalidade em si própria precisa ser equilibrada pelo ócio para não atentar contra o conhecimento. Era um mundo limitado e facilmente esgotável. A zona de conforto da maioria das pessoas está lá embaixo. Num prédio de doze andares, não se encorajam para além do segundo. Permanece cercada de muros e se desenvolve fisicamente sem desenvolver a mente. Mas lá de cima, dos níveis superiores, está a busca insaciável por novos horizontes. Para uma criança daquela idade isto tudo não faz qualquer sentido explicado desta forma, evidentemente. Mas algo me atraía lá de cima, algo que precisava de uma explicação. Afinal, o que havia lá fora?

     A descrição da paisagem carrega o mistério de todo um mundo novo e muito próximo, mas que o muro da fortaleza tornava tão distante. A jusante, o emaranhar de prédios que começava a configurar na avenida Treze de Julho, junto à marginal do Rio Sergipe. Na outra margem dele, separando-o do mar azul e soberano, a ensolarada Barra dos Coqueiros, já cercada de mistérios devido às alusões ao local nas composições musicais do meu pai – violonista, cantor, compositor e eterno nostálgico que transformava em canções as dolorosas saudades da infância em Aracaju. A oeste, a contemplação mais cheia de mistérios dos imponentes contornos da Serra de Itabaiana desenhados na demarcação do horizonte. Como desvendar algo tão distante e praticamente inalcançável? Era um futuro geógrafo observando o anticlinal de uma das mais belas atrações para turismo de natureza de Sergipe. O que, além da imponência, atraía-me naquele esboço geomorfológico? Configurar-se o limite visível do mundo na mente de uma criança curiosa? Por que não se limitar ao areal logo ali ao saltar o muro? Um morro de areia branca eviscerado pela exploração dos primeiros impulsos vorazes da especulação imobiliária de Aracaju. Uma das coisas que mais ferem a minha memória é a desconfiguração da paisagem que lhe dá imagem. O areal, na minha concepção, era um terreno plano ao nível do mar resultado da exploração da areia de um monte outrora existente, do qual só haviam restado dois desfiladeiros, um de cada lado. Ali, no meio deles, havia de tudo; vegetação – embora escassa e apenas nas extremidades -, uma via automóvel de terra que cortava suavemente o terreno e servia de ligação entre o lado de cá e o de lá, uma pequena lagoa formada pela acumulação de água da chuva, alguns cavalos usufruindo daquela mesma água enquanto pessoas ali se banhavam e um campo de futebol – com jogos diários - delimitado na areia por riscas feitas a pau. O areal tinha o seu quê de interesse, mas já era terreno explorado uma vez que meu pai costumava me levar até lá para soltar nossas pipas do alto do que havia restado do desfiladeiro norte. Dentro da fortaleza dizia-se que o areal era terra de ninguém habitada por lobisomens e criminosos de delito comum. Um pouco de elitismo na cabeça de crianças intelectualmente indefesas é injetado pelo medo do desconhecido e daquilo que é diferente do que temos no nosso mundinho.

     Apesar de estar do lado de fora, o areal revelava mais do mesmo: futebol e lazer aquático. Já havia uma quadra e uma piscina dentro da fortaleza. Mas mais que isto, ao areal faltava mistério, da mesma forma que ao monte faltava areia. Ou será que o espírito humano, nunca satisfeito, precisa desvendar o quanto consegue ver para perceber, após digerir o descoberto, que a realidade não lhe satisfaz?

     Mudar-me-ia em definitivo para o apartamento do bloco A após o divórcio dos meus pais. Passaríamos a ser seis pessoas vivendo juntos num apartamento de quatro quartos que poderia acomodar a todos. Meu pai regressara a São Paulo - dando por encerrada a tentativa de resgatar o sonho de infância na terra dourada. Eu dividia um quarto com meu irmão Ivan, enquanto mãe e tia e avô e avó, também o faziam, por suas vezes, entre eles. O quarto restante – nos fundos da área de serviço, sempre reservado à empregada doméstica, algo que nunca tivemos – servia como depósito para muita coisa, geralmente objetos antigos sem uso imediato, guardados apenas pela dificuldade em se livrar do passado.

     É interessante notar a planta totalitária dos blocos residenciais. O exemplo do Flamboyant é prolongado nos demais conjuntos habitacionais da cidade; além da arquitetura fria, funcional e engavetadora, separando os indivíduos uns dos outros e os empurrando para a televisão em detrimento da vida comunitária, também definia bem a hierarquia social do seio familiar; a empregada, caso houvesse, deveria permanecer limitada, quase entocada, ao refúgio que lhe fora reservado. A janela do quartinho dos fundos era abocanhada pela fachada interior do próprio prédio, que se dividia internamente em dois. Dali sua perspectiva só poderia ser a observação da vida alheia, provavelmente de outras empregadas. Qual horizonte misterioso? Por analogia, é subversivo dar asas à imaginação. Além de isoladas, reclusas da sua própria condição no nivelamento hierárquico social, deveriam produzir uma mente tacanha, servil e sem perspectivas. Para uma criança, nada disto poderia ser observado nem tinha a menor importância, mas olhando com distanciamento histórico, intriga-me o fato de saber que tal tipo de arquitetura habitacional me desperta tanto fascínio, única e exclusivamente devido à nostalgia. No entanto, para as crianças, sempre dispostas à exploração, o interior do prédio configurava uma aventura com mil possibilidades. Deveriam estar confinadas àquele mundo interior, mas sempre havia a fuga, a abertura para o exterior. Para mim, a varanda do apartamento era a saída de um ambiente pesado e esmagador para a contemplação de toda a leveza que tal cenário desconhecido conferia ao espírito. A paisagem urbana contínua, que tanto a nascente quando a poente acabava por dar vez à natural, tornara-se familiar com o passar do tempo, mas nem por isso diminuía a curiosidade. Era até tortura; observar tanto uma paisagem sem a poder explorar. A leste, a Barra dos Coqueiros, intocável - ainda virgem em boa parte -, era um mundo paralelo que estava ali, aos meus olhos, sempre convidativo. As canções do meu pai tocaram-me profundamente e criavam na minha mente um cenário onírico que não podia ser visto daquela distância, mas o mistério estava lançado. O que há, afinal, naquele lugar, além da maldita igreja do padre Arnóbio? Um dos mistérios da Barra dos Coqueiros era a igrejinha branca, pequenina, provavelmente barroca e aparentemente abandonada, onde residia, segundo meus pais, um tal padre chamado Arnóbio, que costumava castigar crianças desobedientes – nos dias atuais tal incitamento ao medo daria margem para outro tipo de interpretações. O nome do padre, que nunca existiu, permaneceria por muitos anos atormentando a minha mente. Mas o horror que sentia com a pronúncia daquele nome era abafado pela curiosidade que as canções praieiras do meu pai transmitiam. Canções que falavam de sonhos, do vento, da areia, das ondas, do mar, da sereia...Tudo estava ali ao alcance de alguns quilômetros e de onde estava eu não os podia ver. Mas via perfeitamente, ali embaixo, a piscina de água cristalina.

     A poente, a Serra de Itabaiana me intrigava ainda mais por uma simples razão: a vastidão do mundo, cujo fim era um horizonte alaranjado e esfumado - que separava, numa linha anticlinal irredutível, as edificações mais distantes e o céu inflamado. A cor do horizonte revela o período do dia em que costumava permanecer plantado na varanda; nos fins de tarde, após as sessões de lavagem cerebral e embrutecimento no Centro Educacional Primeira Infância, onde estudava, ali ao lado. Talvez o alaranjado do arrebol fosse o responsável pelas imagens que eu criava do local, como se alguma vez o tivesse visitado; era meio enlamaçado, argiloso, repleto de estradas de terra bem vermelha, com caminhos que se perdiam num terreno irregular. Tal cenário - substituto necessário das lacunas que a observação da serra criava na mente - era na verdade uma lembrança diluída das viagens a São Cristóvão, a sul e ainda distante da misteriosa montanha.

     Ter-me mudado para o décimo primeiro andar também transformou a minha visão da realidade que até então concebera. De fato, o único aspecto negativo de viver nas alturas eram os elevadores. Todos os fins de tarde, quando regressava da escola, precisava interfonar à minha avó para que me viesse buscar. Como ainda era muito baixinho e não conseguia alcançar o interfone junto à entrada do bloco, pedia ajuda a um segurança ou arremessava algo contra o aparelho para que caísse, mas muitas vezes recorria às escadas, subindo a pé os onze andares. Tal medo, que já existira, agravou-se ainda mais aquando do acidente que meu pai sofrera dentro de um dos elevadores do bloco A antes de deixar Aracaju, ao tentar abrir sua porta após ele haver parado repentinamente entre dois andares. O rastro do sangue que jorrara de sua mão direita ferida era apavorante; gotas enormes que iam do bloco A ao E e indicavam o rumo do meu genitor.

     Em Novembro de 1989, diante do cenário descrito, o que me poderiam preocupar notícias complexas que celebravam a queda de um muro na Alemanha? Tanto quanto sabia, a Alemanha era um rival! Um rival dos gramados - ganharia a Copa do Mundo no ano seguinte. O que me importava a Alemanha, se sequer conseguia saber o que se passava ali no que via à minha volta? Não guardei nenhuma lembrança marcante da Guerra Fria. As notícias até me interessavam, mas eu não entendia nada e confundia as palavras esquisitas vociferadas pelos jornalistas na televisão, de forma a que o cenário obscuro refazia cada palavra que eu não entendera; Golfo Pérsico passava a ser o Golfo Péssimo e a coitada da Maitê Proença era a Vai Ter Doença.

     O interesse daquilo que não entendia é facilmente explicável; mesmo sem entender, a conexão com tais acontecimentos me fazia sentir incluído no mundo lá fora como parte dele e ao mesmo tempo o aproximava um pouco da minha realidade. A globalização já estava ali à porta! Eu queria ser um cidadão do mundo, queria estar próximo de onde as coisas aconteciam. Sempre foi assim. Na verdade, estar ali na varanda observando uma paisagem com a qual eu não podia ter contato já era suficiente para conceber sua existência como algo real no meu mundo. Uma das lembranças mais claras que preservo das tardes na varanda é a disputa, com meu irmão, por carros que passavam pela avenida Hermes Fontes, a cento e cinquenta metros da saída do condomínio. O nosso conhecimento por carros era espantoso e distinguíamos mesmo à distância uma grande variedade de modelos. Carros nunca foram do nosso interesse, mas provavelmente passávamos tempo suficiente junto aos estacionamentos do condomínio; ou andando de bicicleta, ou brincando de “esconde-esconde” entre os veículos. A disputa com meu irmão consistia em escolher primeiro os melhores que passavam, apontando para eles, referindo cor e modelo e dizendo “é meu”.

     Era ao longo do estacionamento que tínhamos contato direto com o muro. O condomínio era circundado e isolado por ele da mesma forma que Berlim ocidental o era pelo seu. Apesar de ter uns três metros de altura, sempre encontrávamos formas engenhosas de o superar, violando uma regra interna. O muro do Flamboyant não tinha nada especial. Na verdade sua existência passava quase despercebida porque os meus locais de lazer e os meus amigos estavam todos ali dentro e se precisasse sair, saberia perfeitamente por onde o fazer. Na guarita de proteção, à saída, os seguranças normalmente obrigavam-nos, aos mais pequeninos, a fazer uma chamada por interfone aos nossos pais pedindo autorização para sair, o que era difícil e só funcionava com um bom motivo. Durante a noite era mesmo impossível! O muro era psicologicamente impactante para todos que ali residiam por transmitir a ideia de isolamento e proteção em relação aos perigos à espreita na cidade. O episódio mais fantástico de invasão da fortaleza aconteceu numa noite cuja única informação possível de lembrar é que não era uma Sexta-Feira. O invasor adentrou saltando o muro a oeste, atrás de uma das balizas da quadra, que era revestida por alambrados altos, com quatro ou cinco metros. Viera justamente do lado do areal, aumentando o mito da terra de ninguém. Tudo aconteceu enquanto alguns meninos teimavam em jogar futebol no escuro, já que não valia a pena pedir aos seguranças que os refletores fossem acesos noutro dia que não o referido. Eu estava lá, embora não me recorde ao certo se dentro ou fora da quadra no momento da invasão, apenas lembro ter ouvido gritos agudos de crianças e correria generalizada, todos queriam fugir. Alguns adolescentes se divertiam com a situação e embora o ocorrido tivesse chamado a atenção de muita gente não consigo dizer se minha mente exagerou na recriação do evento ou se fora mesmo algo escandaloso. O invasor era um homem de meia idade, barbudo e aparentemente bêbado. Ao menos essa era a imagem que me saltava do escuro. Havia alguma adrenalina no ar, alguma aflição, até. Mas para chegar até nós o sujeito, que permanecia de pé apoiado por um outro muro - mais alto do que aquele sobre o qual estava e que se encontrava com ele, dividindo o espaço da quadra de um dos estacionamentos abertos -, precisaria saltar dois alambrados altos, algo não tão fácil de se fazer, principalmente para alguém etilicamente alucinado. Constava que havia em sua posse um facão – daqueles de cortar coco – e ele emanava sons indecifráveis enquanto batia no alambrado com a suposta arma branca. O que aconteceu posteriormente é um mistério; ou fugi e por isso não presenciei o sucedido ou simplesmente esqueci por ter perdido o interesse. Mas o evento serviria para plantar o medo na minha mente e não me recordo de alguma outra vez ter entrado na quadra durante a noite, salvo às Sextas.

     Tal episódio ficaria enraizado e fomentou a ideia de que havíamos nós, residentes do condomínio e pessoas de bem, e os outros, imprevisíveis e perigosos. Mas como acreditar numa baboseira dessas? Eu conhecia poucas pessoas que não residiam na fortaleza. Interessava-me gente de fora porque as caras repetiam-se dentro do condomínio. Conhecia a todos; se não eram meus amigos, era gente da redondeza, à qual via todos os dias na piscina, na quadra ou no salão de jogos. Certa vez houve um entusiasmo generalizado por parte de alguns amigos ao saberem que um tal de Lico - antigo morador do condomínio e exímio jogador de futebol - aparecera para uma visita e estava na quadra. Nunca soube nada sobre ele, mas sua presença marcou-me profundamente. Olhava da janela do meu quarto, lá de cima, procurando observar o rapaz, alto e bem mais velho que eu. Sem saber por que motivo, corri lá para baixo na esperança de jogar com tamanha personalidade, mas ficaria muito decepcionado ao não ser convocado por ele e ter de jogar na equipe rival, para levar uma sonora goleada. Apesar disso nunca ter saído da minha cabeça não voltaria a vê-lo e seu nome pairaria como mais uma das lendas da fortaleza.

     A queda do tal muro na Alemanha me decepcionara um bocado, porque tudo continuava perfeitamente igual. O nosso muro estava ali e eu continuava fascinado por uma paisagem que implorava para ser explorada. Mas naquele momento confuso uma semente estava sendo plantada. A política era manifestada com alguma agitação dentro do condomínio e o meu primeiro contato com ela seria divisor de águas, embora na prática não tivesse significado absolutamente nada mais que uma musiquinha emotiva: o jingle da campanha do candidato Lula para as eleições presidenciais daquele ano. A notícia da queda do muro se confundia com a campanha dos candidatos e eu pensava que tudo estivesse ligado e fizesse parte de um mesmo acontecimento transformador, embora não compreendesse o que poderia de fato mudar dentro do meu mundinho. A paisagem, que já parecia um painel gigante por nada nela mudar, sofreria alguma alteração? Estaria a tal Berlim atrás da montanha mágica? É mesmo ali? Tudo acontece e eu não vejo, embora seja logo ali adiante? Nada disso! Tudo não passava de fragmentos de informação processada e sobreposta. Ou mera abstração! Mas havia a musiquinha simpática e esperançosa. Oh! Como eu adorava aquela música! Era tocada todos os dias pela manhã na radiola do quarto da mãe e da tia, duas fortes simpatizantes do PT e de Lula, até com alguma militância moderada. Em simultâneo, a mesma canção era ecoada por várias janelas de forma a que todo o condomínio parecesse um antro petista onde os residentes estavam empenhados naquela coisa de querer ver chegar Lula lá. Todos os dias de Novembro começavam ao som daquela musiquinha, eu via a minha tia confraternizar com pessoas nas janelas, as quais também a tocavam. Collor parecia estar liquidado! Era a primeira vez que me sentia emocionalmente ligado a uma ideia política, embora não soubesse qual. O simples fato da letra da canção soar-me justa era suficiente para ganhar a minha simpatia e apoio. Com aquela idade achava que a prática política era fiel aos discursos dos agentes implicados – resta-me concluir que os adultos que exercem o tal “direito” ao voto possuem a inocência da minha infância.

     Lula era o salvador e em tempos de transformação como eram aqueles tudo faria sentido quando ele finalmente se apossasse dos nossos destinos, porque afinal era disso que tudo parecia tratar. Ledo engano! E Collor, o monstro que tinha o saco roxo, ganharia as eleições no segundo turno e provocaria uma depressão enorme, certo? Errado! O anúncio da sua vitória foi celebrado dentro do condomínio e os apoiantes de Lula desapareceram. Eu próprio acompanhei a apuração dos votos até ao último minuto sempre incrédulo, sem querer acreditar que o sonho estava findado. E agora? O Muro de Berlim voltaria a se erguer? Onde está a beleza do primeiro voto de quem não tinha medo de ser feliz? Eu queria ver chegar o Lula lá, mas ele não chegou, nem lá e nem cá. Chegariam então os russos pela Barra dos Coqueiros? Por que os americanos não interferiram? Os americanos? Não interferiram? Enfim...era preciso derrubar o maldito muro daquela fortaleza, ele havia impedido o Lula de entrar. De fato nunca o tinha visto, por onde andaria? Certamente o deixariam entrar se pedisse ou se interfonasse para algum dos seus simpatizantes. Poderia falar com minha mãe ou com minha tia. Todo o sonho havia acabado, a musiquinha deixara de ecoar, o condomínio voltara a ser frio e a maldita paisagem continuava ali, intacta e irredutível. 1989 acabaria melancolicamente, com vestígios de uma derrota; as camisetas das Diretas Já virariam roupa de dormir ou pano de chão. Os quadros de Che Guevara e do Sandinista não passavam de decoração mal assombrada. As carreatas e os comícios de Lula desapareceram. E até o Raul Seixas havia morrido. O Raul Seixas! Quem era esse cara?

     Mas nem tudo estava perdido. Uma criança se recupera rapidamente de frustrações, sobretudo quando vê o Papai Noel passando no céu antes de deixar um saco cheio de presentes na porta de sua casa. Jurei que o vira para mãe e tia enquanto elas apontavam para o céu indicando a chegada do bom velhinho.

     E quanto à Alemanha, à Rússia e aos EUA? O que aconteceria? Eu não conseguia ver nenhum desses países da varanda gradeada. Algo se escondia atrás da montanha, só podia ser isso. Seria algum desses países? Por muito tempo, a única coisa que me viria à mente ao ouvir falar dos Estados Unidos seria a goleada sofrida na Copa do Mundo do ano seguinte: 5 a 1 para a Tchecoslováquia de Skuhravý!

     O distanciamento histórico em relação ao período possibilita uma análise mais lúcida do mesmo. Haverá década que desperte mais nostalgia que os anos oitenta? Na música, no esporte, no cinema e até nos produtos banais de consumo. A lembrança dos anos oitenta está revestida de magia. Afinal, o que havia de tão especial naquela época? O mundo vivia o derradeiro suspiro da Guerra Fria e caminhava a passos largos para o fim do século e do milênio. O que favoreceu o surgimento de uma geração que se tornaria tão nostálgica? Nunca vi ninguém desejando profundamente regressar aos anos cinquenta, sessenta ou setenta. Só aos anos oitenta. Mesmo pessoas nascidas somente na década seguinte! Havia realmente algo especial? O que poderia ser? A resposta pode estar no fato de ter sido a última década em que as crianças puderam ser realmente crianças e usufruir a inocência da simplicidade. Já haviam jogos eletrônicos, mas geralmente serviam para juntar muitos amigos na casa de quem os tinha e muito poucos os tinham. Os anos oitenta e começo dos noventa foram o último período antes de sermos invadidos e consumidos pelo progresso supersônico da eletrônica e nos transformarmos em seres isolados e dependentes de aparelhos como se fossem extensões vitais dos nossos corpos. O próprio computador passou a ser uma poderosa ferramenta de exclusão e isolamento; com o advento da inclusão digital, estamos conectados com centenas de “amigos” com os quais podemos desperdiçar tempo com conversas inúteis. O curioso é que justamente agora, quando estamos cada vez mais sozinhos, preocupamo-nos cada vez mais com o que os outros pensam sobre nós e fazemos questão de aparentar aquilo que idealizamos sobre nós próprios para passar uma imagem no mundo virtual aos nossos amigos, também virtuais. Cada uma dessas pessoas interessantes corresponde a um ser solitário que aprendeu a viver no conforto da tecnologia e precisa aparentar felicidade e desenvoltura. Nos anos oitenta ainda sentíamos emoções, sentíamos a chuva, sentíamos o ferimento no pé durante uma partida de futebol na rua. Hoje jogamos futebol no Playstation, sentimo-nos desmembrados quando esquecemos o celular em casa. Quando queríamos encontrar os amigos, sabíamos exatamente onde estariam. Agora precisamos que a internet e o celular os localizem. Na verdade nem precisam ser encontrados; estejam onde estiverem, estão sempre conectados. Já não os vemos, não olhamos em seus olhos. Podemos ficar meses sem os encontrar e ainda assim nos sentimos próximos. A superficialidade se apoderou dos nossos sentimentos e das nossas relações. Não faz mal se vemos o nosso melhor amigo apenas três vezes por ano. É assim mesmo, afinal já não somos crianças e o mundo fez de nós pessoas atarefadas, sempre na correria. Não havia nada mágico nos anos oitenta, apenas sentimos saudades dos tempos em que vivíamos intensamente cada momento, cada emoção, cada ideia e cada amizade. Hoje deixamos o tempo passar enquanto tratamos das nossas querelas virtuais. Mas o tempo não é virtual e deixa lacunas dolorosas. É claro que todos temos nossas amizades reais, mas o tempo que gastamos com nossa vida virtual é muito maior e para muitos ela é até preferível às relações verdadeiras. Vivemos num mundo triste e frio e os anos oitenta nos remete à plenitude das nossas vidas.

     É-me particularmente estranha a sensação de ter vivido noutro contexto geopolítico, noutra era. Acostumei-me com a Guerra Fria dos anais da história e recordar que vivi o fim de um período tão conturbado, mas também tão importante, traz-me inquietação; por um lado, presenciei um período bem diferente do atual e fui contemporâneo a um dos momentos mais importantes da história recente. Por outro lado, a sensação de estar ficando velho atormenta. Aquele menininho ruivo, inocente, medroso e acanhado jamais poderia imaginar que duas décadas depois encontraria refúgio no leste europeu ao apaixonar-se por Praga - cidade que visitaria sete vezes antes de se tornar hóspede permanente – e a partir dela conhecer nove países que formavam o “outro lado”, incluindo o próprio centro da Cortina de Ferro numa Berlim dividida entre as duas Alemanhas.

     A vida é estranha e dá voltas inesperadas. Quando visitei Berlim, em Setembro de 2008, só pensava em ver o muro – ou o que resta dele. A capital da Alemanha unificada possui centenas de atrações de grande interesse, é uma cidade extremamente dinâmica com uma riquíssima vida cultural, mas eu só queria ver as ruínas de um paredão cinzento. Para mim era, sem dúvidas, muito mais impactante que quaisquer outras coisas, por mais interessantes que pudessem ser. Além do interesse histórico, o contato visual com ele remeteu-me ao passado e colocou-me novamente contra o muro do Flamboyant, estabelecendo um paralelismo temporal de eventos tão distantes em espaço. A experiência do contato emanava uma confusão perturbadora de sentimentos em simultâneo. Era nada menos que o Muro de Berlim à minha frente, o maior símbolo político do século XX, que condicionara a geopolítica mundial durante décadas e muito mais do que tentar inserir-me no contexto da época, estar perante ele trouxe à tona a minha própria condição dentro de um condomínio fechado. Lá estava eu, finalmente desvendando o horizonte da montanha mágica. A varanda gradeada já não era o limite, eu estava definitivamente dentro da paisagem que vinte anos atrás só podia observar de longe.

     Naquele momento, tudo parecia fazer sentido. Nunca imaginara um dia poder estar ali em Berlim diante do muro, mas imaginara conseguir desvendar os segredos do horizonte alaranjado e no fim das contas era só disso que se tratava; libertar-se dos próprios limites e aventurar-se no exercício de explorar o mundo com todas as suas diversidades. Os muros mentais são os mais perigosos e deles erguem-se os de concreto. Foi preciso ir a Berlim para compreender o sentido da minha curiosidade em Aracaju; a criança sedenta por ampliar seu conhecimento sobre o mundo estava descobrindo, ali, naquela varanda, um impulso cosmopolita que acabaria por revelar o cidadão do mundo que escreve estas linhas, alguém que não se identifica com bairrismos e patriotismos, mas que depois de tantos anos percorrendo a Europa aprendeu a dar valor às raízes locais que tanto desprezara, revelando um certo pendor provinciano, embora bem distinto de sua acepção tradicional.

     Com algumas querelas do passado resolvidas, era interessante observar a paisagem ao redor dos vestígios do muro. Primeiro, na Potsdamer Platz, cercado por edifícios altos e modernos num local que configurara um verdadeiro deserto durante a Guerra Fria. São apenas dois blocos cheios de pixação no meio de uma praça modernamente cinzenta. Ali tive o primeiro contato. O segundo e mais impactante aconteceu quando me deparei com a East Side Gallery, um segmento de 1,3 Km do “muro da vergonha” transformado em galeria de arte a céu aberto, repleto de pinturas alusivas ao próprio símbolo de toda uma era. Desde sua destruição, há em Berlim um comércio oportunista que utiliza milhares de supostos pequenos pedaços do muro para serem comercializados como souvenir para turistas - cartões postais com pedaços de concreto incluídos são vendidos a três euros. A própria East Side Gallery costuma sofrer algumas pequenas depredações por parte de turistas que querem possuir uma recordação, mesmo que isso configure um desrespeito a um monumento histórico e à memória de Berlim. Obviamente é tentador estar ali. Felizmente consegui encontrar quatro pedacinhos soltos dentro de um buraco junto ao corte do muro, onde a galeria tinha início. O tema em si está profundamente guardado na minha mente de modo a que sua materialização é dispensável, mas a aquisição de um pedaço do muro é simbólico: estive lá e resolvi um assunto pendente!

     Mas a observação da paisagem modificada ao redor dos locais por onde o muro passava – marcados nas ruas da cidade – remetia mais uma vez a memória ao fim dos anos oitenta. Da mesma forma que Berlim engoliu a paisagem marcada pela divisão de uma cidade e de um país, a especulação imobiliária e o crescimento urbano desenfreado engoliram e modificaram profundamente a paisagem visível daquela varanda nas alturas do bloco A do Flamboyant. Já não há mais Barra dos Coqueiros nem montanha mágica. A primeira ainda está lá mas já não pode ser vista - e corre riscos, porque para os caciques das selvas de concreto uma área de coqueiral é algo inútil. A própria marginal da Treze de Julho foi transformada num novo muro formado por dezenas de prédios erguidos ao longo de seu curso. Lamento por quem hoje habita o meu antigo apartamento e olha para aquele segmento de prédios cinzentos sem poder contemplar o cenário de canções praieiras e nostálgicas existente por detrás dele. Do outro lado, mais do mesmo; prédios feios, tais como o próprio Flamboyant. O contorno da montanha mágica no horizonte alaranjado é ofuscado por mais blocos residenciais erguidos ali, sobre o melancólico areal branco, não deixando qualquer vestígio de que há vinte anos aquele local era uma terra de ninguém, palco de lazer durante as tardes e cheia de mistérios obscuros durante as noites, sobretudo as de luar, que conferiam um tom prateado à areia branca.

     O sonho de um dia voltar a Aracaju e poder encontrar novamente aquela paisagem que moldou a minha imaginação e as minhas aspirações está perdido para sempre e não me resta nada mais além de aceitar a transformação da paisagem que confere imagem à minha memória. Mas o muro continua ali servindo o seu propósito de circundar a fortaleza. Era a única coisa que deveria mudar e foi a única que permaneceu. Mas já não importa, porque se em 1989 imaginava a imensidão do mundo lá de dentro, cercado por aquele paredão, hoje eu olho aqui de fora; olho para lá, como se estivesse dentro daquela paisagem observando um menininho ruivo que por sua vez também me observa dali, pendurado na varanda gradeada. A montanha mágica, desvendada, revela o que escondia. A varanda não é mais limite. Não mais lá estou. Nunca estive tanto quanto agora.

A montanha de Berlim

por Juliano Mattos



quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A vida é um sopro ...

passa num minuto. A gente vem, conta uma história e vai embora.

Oscar Niemeyer