terça-feira, 29 de outubro de 2013

Fantasnor parte um

Sei que um filme realmente me impressionou quando ele desperta meu instinto de colecionador. Ao final da exibição de “Mar Negro”, novo longa-metragem do diretor Rodrigo Aragão, durante o “Fantasnor Parte 1 – Festival de Cinema Fantástico do Nordeste”, queria tê-lo em mãos, numa edição caprichada em DVD, para vê-lo e revê-lo em casa. E mostrar para os amigos. Me surpreendeu, imensamente .

Fui ao festival principalmente para ver, em primeira mão, o corte final de “Zombio 2 – Chimarrão Zombies”, com a presença física, em carne e osso, do legendário Peter Baiestorf, com quem me correspondo desde o início dos anos 1990, mas que não conhecia pessoalmente. Já havia visto, de Aragão, “A Noite do Chupa Cabras”, seu segundo longa. Curti, mas não a ponto de me tornar fã, já que não sou exatamente um aficcionado por filmes de terror “trash”, ou de baixo orçamento. Geralmente tenho mais respeito pela atitude e persistência dos realizadores do que apreço pela obra em si. Mas “Mar Negro” me pegou de surpresa. É excelente como cinema, de um modo geral, e não apenas como filme de gênero. Merece ser visto e aplaudido de pé por todos que entendam a sétima arte, antes de tudo, como uma espécie de magia em que a visão do realizador é transmitida ao público de forma a transportá-lo a um mundo paralelo onde o impossível pode acontecer diante de seus olhos por cerca de noventa minutos. Se, no processo, funcionar como entretenimento da melhor qualidade, como é o caso aqui, melhor ainda.

A história se inicia com uma pescaria inusitada: uma criatura bizarra e indefinida, espécie de “baiacu-sereia”, é capturada pelas redes de dois amigos, primeiras vítimas de uma contaminação misteriosa que logo se espalha pela vila de pescadores onde moram. Lá conhecemos Albino, um pária que vive humilhado pelo patrão, proprietário de um bar à beira-mar que compra uma arraia “mutante” – ou algo do tipo. Albino é apaixonado pela esposa de um dos amigos da cena de abertura. Que, ao voltar para casa, começa a agir de forma estranha e agressiva ...

A narrativa chega ao seu clímax durante a abertura de um bordel comandado por uma “drag Queen” engraçadíssima. À festa comparece uma verdadeira fauna, interpretada por algumas figurinhas carimbadas do underground cinematográfico tupiniquim, dentre eles a “screen Queen” Gisele Ferran, o canibal Peter Baiestorf, Coffin Souza e até nosso conterrâneo Eduardo Cardenas, exímio ilustrador sergipano que é também o responsável pela confecção das páginas de uma espécie de “Necronomicon” local, o livro perdido de Cipriano, responsável pela invocação do mal – “Klaato Barada Nitko”! Lá, entre um deputado pervertido, prostitutas de quinta categoria – ou não - e uma cantora de bolero picareta acompanhadas de um guarda-costas índio mexicano pra lá de casca-grossa, a trama descamba num banho de sangue sem fim que só vai parar na praia, entre zumbis-caranguejo e um gigantesco ser marinho que é uma espécie de toque de mestre, surpreendente em sua concepção e execução, dando à película um clima de fantasia lúdica que muito enriquece o produto final. Genial! Tudo isso regado a boas interpretações de atores competentes - caso dos protagonistas -, ótimas interpretações de atores surpreendentes - caso da drag queen ensandecida dona do "inferninho" - e péssimas intepretações de amadores caricatos assumidos, perfeitos em seus respectivos papéis – como Peter e Gisele, sempre excelentes em sua anti-atuações exageradas e canastronas.

O Livro de Cipriano, desenhado por Eduardo Cardenas
O diretor Rodrigo Aragão se mostrou também um grande orador e contador de “causos” durante a palestra que fez ao final da exibição. Lá explanou sobre sua cara-de-pau quando, ao constatar que não havia verba suficiente para filmar a cena do bordel – e o filme certamente não seria o mesmo sem ela – insinuou que o faria caso os atores que queria concordassem em trabalhar de forma voluntária, sem cachê. Logo teve que improvisar hospedagem e alimentação para um verdadeiro bando de malucos que acorreu ao set para socorrê-lo, vindos inclusive do exterior - do México, mais precisamente. Ou quando, para seu supremo orgulho, teve que se explicar a uma equipe do IBAMA que achou que a baleia encalhada na praia era de verdade. Ou ainda da disputa entre o elenco para decidir quem empunharia uma metralhadora giratória – improvisada a partir de uma parafusadeira - durante a carnificina. Discorreu também sobre a possibilidade, por ele comprovada, de se fazer cinema sem incentivos fiscais, com verbas que nunca ultrapassam os R$ 200 mil, e sem atores conhecidos, e mesmo assim ter suas obras vendidas para os EUA, Holanda, Bélgica, Alemanha e Japão. No Brasil, “Mar Negro” será o primeiro a estrear em circuito comercial, muito em breve. É cruzar os dedos para que chegue aqui, se não via Cinemark – algo praticamente fora de cogitação – pelo menos no alternativo Cine Vitória, do centro.

“Mar Negro” fica ainda mais impressionante quando comparado ao primeiro longa do diretor, “Mangue negro”, que eu vi pela primeira vez também lá, no Fantasnor. Dá pra entender porque se tornou “Cult”: é muito bem feito, especialmente se levarmos em conta o baixíssimo orçamento com o qual foi realizado. Tem, no entanto, um tom demasiadamente sério e um ritmo mais lento, arrastado. Trata-se de uma excelente obra de estréia, mas fica evidentemente ofuscado diante da excelência do que foi visto na última produção – esta, sim, uma pequena obra-prima.

A noite de estréia do Festival foi marcada pela exibição, também em primeira mão, da montagem final de “Zombio 2”, a mais nova infâmia saída da mente doentia de Peter Baiestorf. Num clima totalmente inspirado pelas produções da boca do lixo dos anos 1970 e oitenta, para o qual muito colabora a excelente trilha sonora – que Peter disse pretender lançar em vinil, assim que possível – somos jogados num vendaval insano e blasfemo de sexo e escatologia regada a litros de todo tipo de fluidos e melecas possíveis e imagináveis. O roteiro, dos mais infames, gira em torno de, adivinhem só, mais uma infestação de zumbis. O destaque, no entanto, são as vítimas, variando entre párias sociais, como o mendigo interpretado de forma surpreendentemente competente por Coffin Souza, e desajustados de todo o tipo, como a deliciosa “periguete” vivida pela sempre divertida Gisele Ferran. As “autoridades”, sejam elas “eclesiásticas”, como o pastor fanfarrão, ou “seculares”, como o atabalhoado investigador, são tratadas com o devido desrespeito e retratadas da forma mais caricata possível. No quesito "sacanagem" o menu também é bem servido: não há closes ginecológicos de penetração, evidentemente, pois não se trata de um filme pornô, mas os peitos e bundas e bucetas suculentas aparecem a todo tempo, sem o menor constrangimento. Escrachado, debochado e extremamente divertido. Excelente.

Após a exibição, mais um longo bate-papo com o diretor no qual ele revelou, dentre outras coisas, ter ficado ainda insatisfeito com a quantidade de fluidos mostrada no filme, bem como sua intenção de um dia rodar, aqui mesmo no nordeste, um filme de cangaceiros. Já estou esperando, ansiosamente.

Várias atividades constavam da programação do Fantasnor, como as oficinas de maquiagem, concursos de cosplay e rodadas de RPG. Não pude participar de tudo, mas me diverti bastante com tudo o que vi. Como a mostra competitiva de curtas-metragem, alguns bastante interessantes, como o que se passa em São Luiz do Maranhão, que eu identifiquei pela onipresença do bizarro guaraná cor-de-rosa “Jesus”, e cuja trilha sonora me fez voltar aos tempos em que viajava de caminhão com meu irmão ao som de música brega da época, como a clássica "prometemos não chorar", de Barros de Alencar. Houve também a exibição de uma divertida websérie que parece fazer bastante sucesso, mas eu não conhecia: “Nerd of the Dead”. A produção, muito bem cuidada e realizada, chega ao requinte de contar em seu cast com participações especiais ilustres, como a do comediante Danilo Gentili, interpretando um síndico de prédio “maléfico” que se transforma num churrasqueiro zumbi em uma cena plasticamente impecável. Destaque também para o apetitoso stand de quadrinhos da R2 Oficina de desenho, no qual morri em alguns reais – poucos, porém bem investidos – e para a apresentação despojada e bem humorada conduzida pela nossa queridíssima Rosi Matos.

querendo levar pra casa ...
Na noite de encerramento, apenas uma decepção: entregues os prêmios, o público praticamente ignorou a presença da banda convidada, os Mamutes. Preferiram ficar zanzando pela área externa da Casa Rua da Cultura, batendo papo e/ou exibindo suas fantasias. A galera não parece ser do rock. Ou é isso ou é público do coverama. Se eu fosse da produção, nem me daria ao trabalho de programar atrações musicais na próxima edição ...

Fora isso, foi um verdadeiro marco! Saldo pra lá de positivo.

Que venha a parte dois ...

AQUI, o trailer de "Mar Negro".
AQUI, "Zombio 2".

por Adelvan

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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Kubrick, o Iluminado

Perdi a exibição de todos os filmes de Stanley Kubrick no belíssimo cinema São Luiz do Recife em 2011, e agora estou perdendo a retrospectiva feita pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com direito a memorabília exposta no Museu da Imagem e do Som. Ok, é o preço por viver na província. Espero que os meus amigos de bom gosto que moram por lá estejam aproveitando. AQUI, minha homenagem ao mestre - ano que vem fazem 15 anos de sua morte. Abaixo, uma entrevista com Christiane Kubrick, sua viúva, publicada pela revista Carta Capital.

Seu sobrenome é motivo suficiente parar despertar o interesse de qualquer cinéfilo. Viúva de Stanley Kubrick, diretor de Laranja Mecânica, 2001: Uma Odisseia no Espaço, O Iluminado e Lolita, Christiane Kubrick recebeu CartaCapital em um hotel dos Jardins para falar sobre o legado do cineasta, com quem dividiu 42 de seus 81 anos de vida. Em São Paulo para promover a 37ª Mostra Internacional de Cinema, que o homenageia, a pintora – cujos quadros, além de aparecerem em De Olhos Bem Fechados e Laranja Mecânica, estampam todo o material gráfico do festival – comentou as teorias de conspiração nos filmes do cineasta, ameaças de morte após Laranja Mecânica e o significado por trás de 2001.

A Mostra, iniciada na sexta-feira 18, exibe a filmografia completa do diretor, em parceria com o MIS, que apresenta exposição com objetos raros como a maquete da sala de guerra de Dr. Fantástico e figurino de O Iluminado, e fica em cartaz até 12 de janeiro de 2014. 

CartaCapital – O seu relacionamento com Stanley Kubrick definiu a sua vida?
Christiane Kubrick – Ele teve um impacto enorme em mim e me fez muito feliz. Era muito fácil ser casada com ele. Gostamos um do outro imediatamente e ambos nos sentimos muito sortudos por isso. Eu o achava tão interessante e tão divertido que todas as outras pessoas pareciam entediantes. Foi amor à primeira vista. 

CC – Como foi a primeira vez que o viu?
CK – Eu queria ser pintora, mas não conseguia ganhar dinheiro, ainda mais sendo mulher em 1957 – acabaria numa fábrica de porcelana ou qualquer coisa assim. Então eu queria ganhar dinheiro fazendo filmes para poder estudar pintura. Falei pra minha agente que aceitava qualquer papel, e então recebi uma ligação dizendo que alguém queria que eu cantasse uma música. Sim! Logo que o vi, sabia que ele não era só o idiota mediano sentado atrás de uma mesa. E eu pensei, hum, bom homem. Foi amor à primeira vista para os dois, o que foi incrível porque ambos tínhamos tido casamentos anteriores infernais enão estávamos no clima de pensar “ah, isso vai ser amor eterno à primeira vista”. Tivemos sorte de que foi exatamente o que aconteceu.
CC – Ele tinha a fama de ser um diretor difícil. O que acha disso?
CK – A maioria dos atores gostava de trabalhar com ele. Muitos diretores gritam à distância “faça isso, faça aquilo”, e humilham os atores de vários modos. Ele não. Ele os levaria a um canto, falava muito baixo, e deixava que mostrassem o que podiam fazer antes de ocasionalmente dizer “não, eu preferia que fosse deste ou daquele jeito”. Ele não tinha uma equipe muito grande, gostava de que a coisa toda fosse enxuta, e ele preferia levar um longo tempo para filmar do que fazer rapidamente, porque o rolo de filme não custava dinheiro, não era a coisa cara. Às vezes ficava com raiva quando os atores não decoravam suas falas, o que era muito irritante porque você tem máquinas enormes prontas para o trabalho e alguém estraga tudo, isso não é bom. Mas ele era muito concentrado e não ficava nervoso. 

CC – Dizem que Scatman Crothers teve de fazer 160 takes de uma única cena em O Iluminado...
CK – Scatman Crothers era um ator brilhante, um homem muito gentil, mas muito velho. E ele não conseguia lembrar as falas. Isso o deixava muito nervoso, muito triste, mas Stanley disse: “paciência. Tome o seu tempo. Eventualmente você vai fazer certo”. E valeu muito a pena esperar. Quando você é muito velho seu cérebro... sabe, eu sei como é [risos].
CC – Ele mantinha relação com os atores após as filmagens?
CK – Não, não muito frequentemente. Você perde o contato, isso é muito típico da indústria cinematográfica – você tem relações muito próximas e depois nada. É às vezes bastante doloroso, não é muito legal. Mas é assim mesmo.
CC – Malcolm Mc Dowell [protagonista de Laranja Mecânica] me disse recentemente que ficou muito triste por não conseguir manter contato com Kubrick.
CK – Malcolm era muito jovem. Eles tinham se tornado muito bons amigos, se conheciam muito bem, e ele achou que eles conseguiriam manter a relação. Mas ele estava longe e Stanley estava construindo amizades com outros atores, ele era seu próprio produtor, tinha uma quantidade enorme de trabalho, tinha a sua família. Ele não fez muito contato. Muito tempo depois eles se encontraram e Stanley disse “me desculpe, eu não sabia que você queria que eu mantivesse contato”. Mas nunca foi intencional ou hostil. Acho que é uma das coisas mais peculiares dessa indústria. 

CC – Há diversas teorias sobre significados ocultos nos filmes de Kubrick. São minimamente críveis?
CK – Ele era extremamente inteligente. E se você também é, deixa todas as coisas inconscientes que vão para dentro de um filme e que alimentam a sua imaginação por isso mesmo. Ele rejeitava essas teorias completamente, assim como a maioria dos artistas.
Todos esses artigos que dizem “você fez tal coisa porque você é judeu” ou “filho único” ou “filho de médico” ou qualquer coisa assim – há milhares – são entediantes.
CC – As pessoas chegaram ao ponto de dizer que ele filmou a chegada à lua. O que ele achava disso?
CK – Ó céus. Pois é. Nós fomos abordados em Paris por entrevistadores. Em retrospecto consigo lembrar de ter uma sensação estranha sobre essas pessoas. Eles fizeram algo típico que se feito bem é imperceptível: você pode me fazer perguntas que farão com que eu fale o nome de Henry Kissinger, ou Roosevelt, ou o que você quiser. Se você fizer a pergunta, eu falarei o nome. Foi assim que conseguiram o que queriam. E de repente vimos na televisão essa teoria. Eu fiquei muito impressionada com o que fizeram. Fiquei surpresa.
CC – Que tipo de cultura ele consumia?
CK – Ele era uma daquelas pessoas – e eu acho que é por isso que ele morreu jovem – que não dormia muito. Dormia 4 horas por dia. Tinha uma memória muito boa e devorava informação. Eu sempre me sentia muito burra. Ele gostava bastante de música. Ele queria ser baterista quando era jovem. E lia vorazmente, a cada semana era fã de um autor diferente. Gostava de todos os cineastas de que todos nós gostamos, de verdade. Fellini, Bergman, esses caras. Spielberg. Gostava de diretores que eram completamente diferentes dele. Vimos Casablanca muitas vezes, e Quanto Mais Quente Melhor. A mania mais ridícula dele eram filmes da Segunda Guerra com diálogos abomináveis, enredos estúpidos, combates aéreos entre aviões. Coisa de menino. Patético. Ele assistia àquilo como quem assiste a pornografia. Esse foi seu ponto mais baixo [risos]. 

CC – Como acha que ele receberia as novas tecnologias de hoje?
CK – Meu Deus, ele iria usar os últimos artifícios, todos os programas especiais. Ele iria simplesmente amar. Ele era um excelente fotógrafo, construiu sua própria câmera em Barry Lyndon, ele gostava dessas coisas. Sabe como alguns meninos gostam de motos e as desmontam e examinam? Ele era assim com câmeras.
CC – Em entrevistas Kubrick raramente discutia o significado de seus filmes. Ele alguma vez discutiu com você o significado de 2001: Uma Odisseia no Espaço, um de seus filmes mais emblemáticos?
CK – Se você dissecar, não funciona mais. Com 2001 ele queria que sentíssemos algo, que pensássemos o mesmo de quando estamos cansados e olhamos para as estrelas e pensamos “que raios é isso”, essa sensação com que todos nascemos de que nossos cérebros são somente grandes o suficiente para saber que são muito pequenos. Não sabemos nada e só se pode ser um agnóstico otimista – o que mais seríamos se não sabemos nada? Ele queria que o público fantasiasse junto com o filme, com a música e as imagens. Ele queria perguntar: “Você se sente assim às vezes? Do que se trata tudo isso? Quem somos? Por que estamos aqui? Por que não sabemos?”. Essa é uma das fantasias favoritas e que mais é acometida por ansiedade de toda a humanidade, e uma que todos temos. Quanto mais você pensa sobre, menos você sabe comparado a quando começou. E é sobre isso que era o filme.
CC – Laranja Mecânica gerou muita polêmica quando foi lançado. Como ele reagiu a isso?
CK – Mal. Nós todos reagimos mal. De repente todo crime cometido na Inglaterra foi atribuído à influência do filme. Recebemos cartas horríveis, de como iam nos matar e quando, havia um grupo religioso que dizia que ele era o demônio. Ficou tão radical que as crianças não podiam ir à escola, não podíamos deixar a casa, virou uma avalanche. O filme já estava em cartaz por algum tempo, arrecadando bastante dinheiro na Inglaterra, e Stanley ligou à Warner Brothers para pedir que tirassem de cartaz. Ele nunca achou que o fariam, mas fizeram. Foi muito generoso da parte deles. Eles estavam ganhando dinheiro. Stanley ficou muito grato. Para sempre. Tinham um relacionamento muito bom porque Stanley estava muito ciente que ninguém mais tinha esse privilégio, e ele protegia isso. Ele economizava cada centavo na produção. Fez por merecer a confiança.
CC – Ele lia críticas sobre seus filmes?
CK – Como qualquer um, ele dizia “não estou nem aí, não vou ler... deixa eu ler” [risos]. Em dias bons ele não estava nem aí e em dias ruins chamava os críticos de idiotas.
CC – Hoje em dia seria difícil achar críticas negativas...
CK – Eu sempre penso, com toda essa adulação, essas coisas que fazemos, que ele não teria acreditado. Ele teria ficado tão lisonjeado! Ele só ganhou um Oscar, de efeitos especiais, por 2001: Uma Odisseia no Espaço. Acho que não foi nem de longe o suficiente. Desconfio que tenha parcialmente a ver com o fato de que ele não jogava o jogo social de Hollywood. Ele não era um recluso, mas não ia a festas, e a ideia de fazer programas de tevê era horrenda. Ele dizia que ia ficar nervoso, ia parecer um idiota. E estava certo, ele não era bom nisso. E os jornalistas se vingavam escrevendo besteiras sobre ele, sabe, que ele voava um helicóptero jogando inseticida sobre a casa, que atirava em turistas, coisas idiotas. Mas agora já não existe mais isso.
CC – Acha que ele teria gostado dessa Mostra?
CK – Espero que sim. Eu não sabia o que fazer com todas aquelas caixas, um oceano de caixas que ele ia eventualmente arrumar e nunca o fez. Ainda bem! O Museu de Frankfurt me mandou um arquivista para selecionar o que as pessoas iriam querer ver, e isso é uma ciência especial. Fiquei aliviada e então soube o que fazer: dei tudo à Universidade de Artes de Londres, que fez uma ala inteira dedicada a ele. Acho melhor do que ficar em mãos privadas.
CC – É muito especial para os fãs poder ver esse material.
CK – Fico tão contente quando vejo jovens vendo essas coisas. Sabe, tivemos voluntários que vieram da Universidade para colocar os papéis em envelopes plásticos especiais para que não desintegrem ou amarelem, e é muito entediante pegar cada folha e, muito cuidadosamente, colocar no envelope com uma pinça. Então pensei “eles vão ficar tão cansados”. E eles trabalharam, trabalharam, trabalharam, leram tudo. Todas aquelas cartas que um cineasta jovem escreve implorando “posso te ligar? – não”, essas coisas.
CC – O que gostaria que as pessoas soubessem sobre ele que ainda não sabem?
CK – Já falei tanto. Eu diria se pudesse. Não sei o que ele quereria que eu falasse. Além disso, sou desacreditada como a viúva, qualquer coisa que eu diga é considerada apenas sentimental, então não importa. Se eu o elogio vão dizer “ah bem, pobre mulher”. Se eu disser que eu o achava absolutamente maravilhoso, “ah vá!”, sabe, não significa nada. Então se eu o elogio, eu o diminuo. Mas acho que ele não precisa de mim.

por Marilia Kodic

Carta Capital

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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Show da minha vida.

“I can´t fucking hear you”, gritava uma voz pra lá de conhecida em um de seus célebres jargões por trás da cortina preta que havia se fechado no palco. A massa foi ao delírio, evidentemente. “Olé olé olé olé, come on”, prosseguia a voz. Pensei que fosse algo pré-gravado – talvez fosse - mas quando as cortinas se abriram lá estava ele, the “fucking Prince of darkness”, de microfone em punho, escudado por seus comparsas de crime, todos de preto, prontos para nos entregar o show de nossas vidas. Uma avalanche nos empurra para ainda mais perto do palco e, caso restasse alguma dúvida, a ficha teria caído: nós estávamos num show do Black Sabbath! Do Sabbath mesmo, com Tony Iommi, Ozzy Osbourne e Geezer Butler. Juntos e ao vivo pela primeira vez em turnê na América do Sul.

Faltou mencionar a sirene, que soava anunciando “War pigs”. “Generals gathering in their masseeeessss”, puta que pariu, começou! “Just like witches at Black masses” – caralho, primeira palhetada esporrenta do Deus do metal ali na minha frente! E o som estava perfeito, cristalino e alto, muito alto. Era verdade mesmo, eu estava num show do Black Sabbath, minha banda de rock favorita de todos os tempos, amém. E na frente de Tony Iommi, o cara que inventou essa porra, esse tal de Heavy Metal. Tô cansado pra caralho, mal consigo me segurar em pé, mas foda-se, vai ser foda!

Foi, claro. Já dava pra perceber que seria pelo primeiro grande momento da noite, quando um Ozzy Osbourne eufórico não se contém e dá um abraço apertado, quase um mata-leão, em Tony, arrancando do circunspecto mestre dos riffs um sorriso de satisfação. Quase que dava pra ler seus pensamentos: “veja isso, Tony, somos nós aqui, juntos novamente diante de uma multidão, desta vez in the fucking Rio de Janeiro, Wondefull city, full of encantos mil”. “Possacrer, Ozzy, de fuder”. O mesmo se repetiu no outro extremo com Geezer, e depois com um aceno para o baterista, Tommy Clufetos, que substituía Bill Ward. E mandou muito bem, como veremos a seguir ...

Uma coisa que notei logo de cara foi que Ozzy, apesar de manter todos os seus trejeitos amalucados e sua perfomance ensandecida, se comportava de forma um pouco mais contida, como que para ressaltar que ali ele era um membro de uma banda, não estava em carreira solo. Para deixar isso bem claro para todos, trata de sufocar os insistentes gritos ritmados com seu nome entoados pela platéia apontando sempre para a sua esquerda, onde um Tony Iommi contido porém visivelmente satisfeito, até sorridente, em vários momentos, comandava o espetáculo executando com a mestria de sempre os maiores e melhores riffs de guitarra já escritos. Demorou um pouco, mas o povo entendeu: logo estavam todos gritando por Tony e, eventualmente, Geezer – em seus momentos de maior destaque, como na introdução de NIB. No final da apresentação Ozzy chega a se curvar em reverência diante do guitarrista. Emocionante.

Tony porque Iommi é a base de tudo ali naquela porra de banda. E os solos também. A não ser quando, no meio da apresentação, deixa os holofotes nas mãos – e pés – de Clufetos que, sem exagero, humilha, principalmente quando se dedica a um solo de bateria absolutamente impressionante, capaz de calar qualquer vestígio de dúvidas quanto ao seu mérito para estar ali, substituindo uma lenda viva das baquetas. Fico imaginando o que se passa pela mente de Bill Ward ao ver aquilo. Certamente pensará que o tempo é um canalha, ou algo parecido, já que sua idade, evidentemente, não lhe permitiria tamanha vitalidade. Azar o dele, caso o motivo da falta seja realmente o que foi aventado:  uma simples – ok, nem sempre – disputa financeira. Porque tenho certeza que ninguém sentiria falta do vigor da juventude de Clufetos diante de sua simples presença, igualmente digna de reverência. Enfim, são apenas especulações. A realidade estava lá, diante de nossos olhos e castigando nossos ouvidos. E foi sensacional.

Depois de “Age of reason”, a primeira do disco novo, foi a vez de “Black Sabbath”, a música. Arrepiante. Ainda mais sinistra e arrastada que a versão original, foi executada em tom solene e acompanhada de forma emocionada pela platéia, no que parecia uma gigantesca missa negra em pleno templo da alegria, a praça da apoteose da passarela do samba – àquela altura do campeonato lotada por cerca de 35.000 pessoas. Nessa hora, do meu lado, alguém decide que era o momento de acender uma vela - ou algo parecido – no caso, um sinalizador, que eu carrego por alguns minutos até passá-lo adiante antes que seja tomado pela brigada anti-incêndio. Enquanto isso, do palco, soam gritos de desespero: “OH! NO! PLEASE, GOD, HELP ME” - e tome porrada no pé do ouvido. Impossível não lembrar da primeira vez que ouvi esse verdadeiro hino, sozinho, no escuro, nos anos oitenta, em Itabaiana. Senti medo – foi uma das duas únicas vezes em que uma música me fez sentir medo. A outra foi quando ouvi, também sozinho e no escuro, a composição de György Ligeti usada na cena do portal da trilha sonora de “2001, uma odisséia no espaço”.

O show prossegue com “Behind the wall of sleep” e “NIB”. “End of the beginning”, de “13”, entra na sequencia. O mais incrível é notar que as três músicas do novo disco inseridas no set list não comprometem em nada a qualidade da apresentação em meio a um repertório tão perfeito. Suspeito até que elas possam se tornar também, um dia, clássicos do cancioneiro “sabbático”, a julgar pelo impacto que foi ouvir ao vivo o riff matador que abre a ótima “God is dead”. O futuro dirá.

Enquanto isso Ozzy prossegue fazendo o que pode – e ainda pode muito – para animar a noite. Inclusive piada consigo mesmo, como quando entra no palco com um morcego de plástico na boca, ou quando joga os já tradicionais baldes de água nos que estão encostados na grade. Ou chutando de volta as bolas lançadas pelo público. Ou ainda emitindo um curioso e misterioso som de “cuco” na introdução de algumas músicas – quando a platéia finalmente demonstra notar que é ele que está fazendo aquilo, ele diz: “Dane-se o mundo e enlouqueça, é bom ficar louco”. O velhinho ainda tem muito bom humor e poder de comunicação, demonstrado também ao anunciar “Dirty women” – “I like then”. Gargalhadas gerais. Mas é bom não abusar: num dado momento ele arrisca um de seus clássicos saltos, tão amplamente registrados em fotos antológicas, mas consegue apenas um pulinho desengonçado. Ninguém pareceu notar – porque porra, Tony Iommi estava ali do lado, despejando mais uma saraivada de riffs. Que se foda o que não deu certo.

Antes de “Children of the Grave” Mr. Madman anuncia que eles só têm mais uma música antes do fim, mas que se nós fizéssemos muito, mas muito barulho mesmo, eles voltariam e tocariam "one more song". Dito e feito – voltam para o bis e, para minha surpresa, Tony puxa o riff de nada menos que “Sabbath Bloody Sabbath”! Geezer e Clufetos não se fazem de rogados e o acompanham, mas foi só uma brincadeira: ele logo emenda com “paranoid”, esta sim, programada para o final. Apoteótico, como não poderia deixar de ser, mas com uma misteriosa ausência de Geezer Butler na saudação final. Os caras até demoram um pouco mais a se despedir esperando por ele, que não aparece. Dá pra notar que Ozzy ficou um tanto quanto confuso e preocupado, mas enfim, fim de festa. Hora de tentar ir embora, ao som de “zeitgeist”, a faixa mais lenta do novo disco, tocada nos auto-falantes – que durante toda a espera antes do show só tocava AC/DC.

TENTAR porque a produção cometeu alguns absurdos de desorganização, o maior deles a estreita faixa de portão que TODOS os que estavam na pista vip tiveram que utilizar para se retirar. Felizmente não houve tumulto naquele momento, pois as conseqüências poderiam ter sido catastróficas. Detalhe: isso num evento particular - embora utilizando-se de um espaço público - com ingressos a preços exorbitantes. Outra bola fora, que ninguém pareceu notar, foi a ausência do belíssimo cenário que emoldura os telões do palco nos shows gringos. Aqui foi o tradicional telão preto quadradão mesmo. Que, por sinal, exibiu uma bela sequencia de imagens perfeitamente sincronizadas com o conteúdo das letras das músicas – com direito, inclusive, a uma sinistra imagem do “papa emérito” Bento XVI entre ditadores assassinos. Ousado.

Não tão bom ou ousado, no entanto, quanto o uso do telão feito pelo Megadeth, que abriu a noite com uma apresentação precisa e devastadora. Ou melhor, dos telões: tiveram o requinte de usar 3, um grande, atrás, e dois menores, na frente. A seleção de imagens foi bem melhor que a do Sabbath, com direito, inclusive, a grandes sacadas de humor, como os trechos de comédias Hollywoodianas que citam a banda usados na introdução de algumas músicas.

Esta era a terceira vez que eu veria o Megadeth, o que faz dela a banda “gringa” que eu mais vi ao vivo na vida. É sempre um bom show, claro, mas confesso que me surpreendi. Entraram com todo o gás, já com “Hasngar 18”, do “rust in peace” – que eu considero o segundo melhor disco de thrash metal de todos os tempos. E emendaram com a devastadora “Wake up dead”, faixa de abertura do segundo melhor disco deles, “peace sells... but who´s buying?” – heresia para muitos de meus amigos que preferem sempre o “countdown to extinction”. No meu ranking pessoal ele ocupa um honroso terceiro lugar, e só veio dar as caras no show com “Sweating bullets”, a quinta a ser executada. Fora essa, “apenas” o megahit “Symphony of Destruction”. Pra mim foi de excelente tamanho, já que no recheio tivemos “tornado of souls”, também do rust, numa apresentação que se encerrou com a faixa-título do segundo disco, “peace sells” - com direito à presença ilustre do mascote da banda, Vic Rattlehead, num "momento Eddie", dando um passeio no palco vestido num uniforme militar - e teve “Holy Wars” como bis. Tudo tocado de forma precisa e em alto e bom som, apesar de numa velocidade desenfreada. Como deve ser, aliás, em se tratando de uma das bandas fundadoras do thrash. Melhor impossível.

O show do Megadeth se encerrou com a execução, nos auto-falantes, da versão de Joey Ramone para “What a wondeful World”. Era exatamente o que sentíamos todos naquele momento, prestes a ver pela primeira vez ao vivo a banda das nossas vidas.

Unforgettable.

a.

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terça-feira, 8 de outubro de 2013

De boas intenções o inferno está cheio ...

          “Lênin e Trotsky foram os piores inimigos do socialismo no século XX”. A frase, no mínimo controversa, é de Noam Chomsky, um dos mais importantes intelectuais de esquerda da atualidade. Ela teria me escandalizado em 1989, quando eu estava na Universidade descobrindo o marxismo, abjurando o stalinismo e simpatizando com o trotskismo. Hoje, no entanto, ela apenas me intriga. Não sei se chegarei um dia tão longe em minhas conclusões, mas agora entendo que o stalinismo não foi exatamente uma ruptura completa com os cânones do leninismo, como os seguidores de Trotski parecem querer nos fazer crer. Quanto mais leio sobre o assunto, mais chego à conclusão de que as sementes do autoritarismo foram lançadas lá atrás, na concepção leninista de um partido de vanguarda que supostamente guiaria (na prática, tutelaria) as massas rumo ao futuro socialista. E seguiu sendo cultivada quando eles dissolveram a Assembléia Nacional Constituinte, convocada pela revolução de fevereiro de 1917; esvaziaram os sovietes, depois de justificar a atitude anterior com o argumento de que os conselhos de operários substituiriam a assembléia burguesa; extinguiram os demais partidos políticos e, por fim, proibiram as frações – ou facções - dentro do próprio partido Bolchevique.
          Tudo isso, no entanto, aconteceu em meio a um contexto dramático de agressão e posterior isolamento da Rússia soviética, economicamente atrasada, do resto do mundo. Não creio que isso justifique os equívocos cometidos, mas certamente explica muita coisa. O que sei é que ainda tenho um grande respeito por estas duas grandes figuras – Lênin e Trotski – assim como o tenho por Chomsky. Seguirei, portanto, estudando o assunto. Tirando minhas conclusões, quando possível, aqui e ali, e aceitando a dúvida, sempre. Porque ela é saudável. Mas também tomando posição, quando necessário. Porque às vezes – muitas vezes – a gente tem que escolher um lado, e arcar com os bônus e também com o ônus de nossas escolhas. Não dá pra ficar eternamente em cima do muro. Tenho pôsteres de Marx e de Lênin enfeitando as paredes de minha casa e, pelo menos por enquanto, não penso em retirá-los de lá. “De boas intenções o inferno está cheio”, já dizia o ditado popular. Mas os vacilantes e omissos também devem estar por lá ...
          Um grande – e prazeroso - instrumento de estudo sobre o assunto tem sido, para mim, a leitura da  monumental biografia de Trostski escrita em três volumes por Isaac Deutscher. Estou no segundo, “O Profeta desarmado”. Lá são narrados os pormenores da luta interna pela sucessão de Lenin e, consequentemente, pelo comando dos rumos a serem seguidos pelo novo estado nascido da revolução que, a princípio, era para ser uma trincheira avançada – ou uma ação de ocupação, nas palavras de Chomsky (ver AQUI) – na qual eles se manteriam a postos, segurando posição até que a verdadeira revolução, mundial, eclodisse, a partir da Alemanha. Aos poucos, no entanto, com o fracasso das tentativas de insurreição na Europa, a teoria original do marxismo, que preconizava a deflagração a partir das economias mais desenvolvidas, vai cedendo lugar a uma nova doutrina, defendida por Stalin: a do “Socialismo num só país”. Do mesmo modo, a idéia de que seria possível a existência de uma Democracia interna nas fileiras bolchevistas convivendo harmoniosamente com a Ditadura do proletariado sobre os demais extratos da sociedade sucumbe à realidade imposta pela disputa pelo poder que fez surgir a figura quase religiosa do partido monolítico, centralizado, todo-poderoso e infalível.
          Num dado momento, já enfermo, Lênin parece subitamente se dar conta dos rumos terríveis que os acontecimentos estavam tomando, e decide interferir decisivamente no processo, com a ajuda de Trotski. Este é um dos trechos mais emocionantes do livro: um daqueles momentos em que a História poderia ter seguido outros rumos, muito embora qualquer elucubração sobre quais seriam seja pura especulação. Reproduzo-o abaixo.
          Antes, porém, reproduzo também um outro trecho em que uma divagação de Trotski acerca do futuro do homem sob o comunismo se assemelha curiosamente à teoria do Super-Homem de Nietsche e a uma resposta de Chomski  a uma indagação sobre o processo de avanço do progresso social que vi ontem num documentário veiculado pela TV Escola: ele fez uma analogia com um passeio que havia feito certa vez com sua esposa quando estavam em lua de mel. Decididiram-se por uma caminhada até o cume de uma montanha próxima, apenas para descobrir que aquele não era o cume, havia outro mais elevado, que só se revelou quando cumpriram a tarefa à qual tinham se comprometido. “Assim caminha a humanidade”.
          No final do post, uma entrevista de 2007 publicada no jornal Le Monde Diplomatique da qual eu retirei  a frase que abre este artigo, que na íntegra diz: “lembremos que, na Rússia, a primeira coisa que Lênin e Trotsky destruíram, logo após a Revolução de Outubro, foram os sovietes: os conselhos de operários e todas as instituições democráticas. Lênin e Trotsky foram, neste sentido, os piores inimigos do socialismo no século XX. Porque, marxistas ortodoxos como eram, eles consideravam que uma sociedade atrasada como a da Rússia de sua época não poderia passar diretamente ao socialismo sem ser precipitada à força na industrialização.”
          A revolução russa "deu no que deu", mas também foi a responsável por grandes avanços recentes na história da humanidade. O "estado de bem estar social" europeu, por exemplo, foi montado com o intuito de barrar a influencia dos comunistas sobre a classe trabalhadora da região. Não por acaso, começou a ser desmontado - num processo que se estende até os dias atuais, apesar do ocaso do "neoliberalismo" - quando a "cortina de ferro" começou a desmoronar. Muito longe de renegar completamente seu legado, é necessário aprender com seus erros e começar de novo, tentando fazer diferente o que precisa, ainda, ser feito: superar a exploração do homem pelo homem.
          O povo está na rua.
          A luta continua.

por Adelvan k.


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          “É difícil dizer antecipadamente quais os limites de autodomínio que o homem poderá alcançar, tal como é difícil prever até que ponto poderá desenvolver seu domínio técnico da natureza. A construtividade social e a auto-educação psicofísica tornar-se-ão aspectos gêmeos de um mesmo processo. Todas as artes – literatura, teatro, pintura, escultura, música e arquitetura – transmitirão àquele processo uma forma sublime. (...) O homem se tornará incomparavelmente mais forte, mais sábio, mais sutil. Seu corpo se tornará mais harmonioso; seus movimentos, mais rítmicos; sua voz, mais musical. As formas de sua existência adquirirão uma qualidade teatral dinâmica. O homem médio ascenderá à estatura de Aristóteles, Goethe, Marx. E acima dessas culminâncias novos picos surgirão.”

Trotski, em “Literatura e revolução”, conforme citado por Isaac Deutscher.

Tradução de Waltensir Dutra

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         “(...) Lenin escrevera uma carta a Stalin ameaçando “romper todas as relações pessoais”. Stalin comportara-se de forma agressiva para com Krupskaia (NOTA: a esposa de Lenin), quando esta recolhia informações destinadas a Lenin sobre o caso georgiano (NOTA: perseguição de Stalin aos dirigentes do partido no país vizinho) e quando este ficou sabendo do incidente, a custo conteve sua indignação. Resolveu, segundo Krupskaia disse a Kamenev, “esmagar Stalin politicamente”.
          (...) Trotski tinha confiança em que o triuvirato (NOTA: Stalin, Zinoviev e Kamenev haviam se unido para enfrentá-lo nas instancias superiores do partido) se desfaria e Stalin seria batido. Era o vencedor e poderia ditar seus termos. Seus adversários também pensavam assim. Quando, em nome deles, Kamenev procurou Trotski em 6 de março, estava abatido, pronto a aceitar o castigo e ansioso em apaziguar Trotski.
          Não era necessário muito apaziguamento. A vingança de Trotski era demonstrar magnanimidade e perdão. Esquecendo a advertência de Lênin (NOTA: ele insistira com Trotski para que não demonstrasse fraqueza ou vacilação, não confiasse em nenhum “acordo podre” que Stalin pudesse propor), aceitou um “acordo podre”. Lenin pretendia rebaixar Stalin e Dzerzhinski (NOTA: fundador da “cheka”, depois rebatizada como KGB) e até mesmo expulsar do partido “pelo menos por dois anos” Ordjonikidze(outrora seu discípulo favorito) devido ao seu comportamento brutal em Tíflis, capital da Georgia. Trotski assegurou a Kamenev que não proporia represálias tão brutais. (...) Queria de Stalin apenas que ele modificasse seu comportamento, passando a comportar-se lealmente para com os colegas, apresentasse um pedido de desculpas a Krupskaia e deixasse de perseguir os georgianos.
          (...) Os triúnviros sabiam que Trotski prometera a Lenin levantar a questão dos desviacionistas georgianos e transmitir ao Congresso do partido sobre as políticas relacionadas às nacionalidades não-russas as opiniões de Lenin. A principal preocupação de Stalin era agora impor-se a Trotski e não agir segundo a vontade deste. Não fizera ele tudo o que Trostki desejara? Certo, e por isso Trotski concordou em apresentar as notas de Lenin ao politburo e deixar que este resolvesse se, ou de que forma, elas deveriam ser transmitidas ao congresso.  O Politburo (NOTA: dominado pelo triunvirato) resolveu que as notas em caso algum deveriam ser publicadas e que somente certos delegados deveriam tomar conhecimento delas, em caráter rigorosamente confidencial. Lenin não esperara que Trotski agisse assim e insistiu com ele para que fosse inflexível, falasse ao congresso com toda a franqueza e não aceitasse nenhum acordo para a solução de diferenças. Mas suas advertências não foram ouvidas e Trotski, com sua magnanimidade, ajudou os triúnviros a esconder do mundo a confissão feita por Lenin no seu leito de morte, de vergonha e culpa pelo renascimento do espírito tzarista no estado bolchevique.
          (...) A verdade é que Trotski absteve-se de atacar Stalin (NOTA: com a retaguarda garantida por Lenin, pela primeira e única vez) porque se sentia seguro. Nenhum contemporâneo, e ele menos do que todos, via no Stalin de 1923 a figura ameaçadora e preponderante que ele viria a ser. Parecia a Trotski quase que uma pilhéria de mau gosto ter como rival Stalin, e homem decidido e esperto, mas medíocre e pouco expressivo, que ocupava sempre o segundo plano. Não queria preocupar-se com ele (...) e, acima de tudo, não daria ao partido a impressão de que também ele, Trotski, participara do jogo indigno dos discípulos de Lenin sobre o seu caixão ainda vazio.”

Isaac Deutscher, em “Trotski – o profeta desarmado”

Tradução de Waltensir Dutra

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América Rebelde - Uma entrevista com Noam Chomsky

As manipulações da mídia e a fabricação do consentimento, o isolamento político do governo norte-americano, o totalitarismo e a essência da democracia: estes e outros temas sob a ótica de um dos mais importantes intelectuais de nossa época

por Daniel Mermet

Tão respeitado nos pequenos seminários acadêmicos quanto nas grandes reuniões do Fórum Social Mundial, Noam Chomsky é um dos mais importantes intelectuais da atualidade. Com 78 anos, esse professor do renomado MIT (o Instituto de Tecnologia de Massachusetts) tornou-se uma referência mundial, seja no domínio da lingüística, sua área de especialização científica, seja nas fileiras da esquerda, seu campo de atuação política. Como lingüista, Chomsky teve o nome internacionalmente projetado por sua teoria acerca dos princípios estruturais inatos da linguagem. Como político, tem-se destacado na crítica à globalização neoliberal e aos mecanismos de controle dos regimes totalitários e das sociedades ditas democráticas.

De origem judaica (seu pai, professor em escola religiosa, foi um dos grandes eruditos da língua hebraica), não poupa críticas a Israel, pelo tratamento dado aos palestinos e pela prática do que qualifica como “terrorismo de Estado”. Nascido em Filadélfia (o berço da identidade nacional norte-americana), é um dos principais opositores da política imperialista dos Estados Unidos, em geral, e do governo George W. Bush, em particular. Intelectual engajado (que se define como “socialista libertário”), vem sendo tão radical na condenação do stalinismo quanto do nazismo. Sua independência intelectual tem-lhe valido pesados ataques, vindos de várias direções. Mas também lhe tem granjeado amplas simpatias e apoios.

Nesta entrevista exclusiva a Le Monde Diplomatique, ele discorre extensamente sobre alguns dos temas mais relevantes do mundo contemporâneo (nota da edição brasileira).

Diplomatique Comecemos pela questão da mídia. Na França, em maio de 2005, por ocasião do referendo sobre o Tratado da Constituição Européia, a maioria dos meios de comunicação de massa era partidária do “sim”. No entanto, 55% dos franceses votaram “não”. O poder de manipulação da mídia não parece, portanto, absoluto. Esse voto dos cidadãos representaria um “não” também aos meios de comunicação?

Chomsky O trabalho sobre a manipulação midiática ou a fábrica do consentimento, feito por mim e Edward Herman, não aborda a questão dos efeitos das mídias sobre o público1. É um assunto complicado, mas as poucas pesquisas detalhadas sugerem que a influência das mídias é mais expressiva na parcela da população com maior escolaridade. A massa da opinião pública parece menos dependente do discurso dos meios de comunicação.

Tomemos como exemplo a eventualidade de uma guerra contra o Irã: 75% dos norte-americanos acham que os Estados Unidos deveriam pôr fim às ameaças militares e privilegiar a busca de um acordo pela via diplomática. Pesquisas conduzidas por institutos ocidentais mostram que a opinião pública dos Estados Unidos e a do Irã convergem também sobre certos aspectos da questão nuclear: a esmagadora maioria das populações dos dois países acha que a zona que se estende de Israel ao Irã deveria estar totalmente livre de artefatos nucleares, inclusive os que hoje estão nas mãos das tropas norte-americanas na região. Ora, para se encontrar esse tipo de opinião na mídia, é preciso procurar muito.

Quanto aos principais partidos políticos norte-americanos, nenhum defende este ponto-de-vista. Se o Irã e os Estados Unidos fossem autênticas democracias, no seio das quais a maioria realmente determinasse as políticas públicas, o impasse atual sobre a questão nuclear estaria sem dúvida resolvido.

Há outros casos parecidos. No que se refere, por exemplo, ao orçamento federal dos Estados Unidos, a maioria dos norte-americanos deseja uma redução das despesas militares e um aumento correspondente das despesas sociais, dos créditos depositados para as Nações Unidas, da ajuda humanitária e econômica internacional. Deseja também a anulação da redução de impostos que beneficia os mais ricos, decidida por Bush.

Em todos esses aspectos, a política da Casa Branca é contrária aos anseios da opinião pública. Mas as pesquisas de opinião que revelam essa persistente oposição pública raramente são publicadas pelas mídias. Resulta que não somente os cidadãos são descartados dos centros de decisão política, como também são mantidos na ignorância sobre o real estado da opinião pública.

Existe uma preocupação internacional com o abissal déficit duplo dos Estados Unidos: o déficit comercial e o déficit orçamentário. Estes somente existem em estreita relação com um terceiro: o déficit democrático, que aumentar sem cessar, não somente nos Estados Unidos, mas em todo o mundo ocidental.

Diplomatique Toda vez que perguntamos a uma estrela do jornalismo ou a um apresentador de grande jornal da televisão se ele sofre pressões ou censura, a resposta é invariavelmente “não”. O jornalista diz que é totalmente livre, que somente expressa suas próprias convicções. Conhecemos bem os mecanismos de dominação ideológica das ditaduras. Mas como funciona o controle do pensamento em uma sociedade democrática?

Chomsky Quando os jornalistas são questionados, eles respondem de fato: “nenhuma pressão é feita sobre mim, escrevo o que quero”. E isso é verdade. Apenas deveríamos acrescentar que, se eles assumissem posições contrárias à norma dominante, não escreveriam mais seus editoriais. Não se trata de uma regra absoluta, é claro. Eu mesmo sou publicado pela mídia norte-americana. Os Estados Unidos não são um país totalitário. Mas ninguém que não satisfaça exigências mínimas terá chance de chegar à posição de comentarista respeitável. Esta é, aliás, uma das grandes diferenças entre o sistema de propaganda de um Estado totalitário e a maneira de agir das sociedades democráticas. Com certo exagero, nos países totalitários, o Estado decide a linha a ser seguida e todos devem se conformar. As sociedades democráticas funcionam de outra forma: a linha jamais é anunciada como tal; ela é subliminar. Realizamos, de certa forma, uma “lavagem cerebral em liberdade”. Na grande mídia, mesmo os debates apaixonados se situam na esfera dos parâmetros implicitamente consentidos – o que mantém na marginalidade muitos pontos de vista contrários.

O sistema de controle das sociedades democráticas é mais eficaz; ele insinua a linha dirigente como o ar que respiramos. Não percebemos, e, por vezes, nos imaginamos no centro de um debate particularmente vigoroso. No fundo, é infinitamente mais teatral do que nos sistemas totalitários.

Tomemos, por exemplo, o caso da Alemanha dos anos 1930. Temos a tendência a esquecer, mas era então o país mais avançado da Europa, na vanguarda em matéria de ciência, técnica, arte, literatura e filosofia. Depois, em pouquíssimo tempo, houve uma grande reviravolta, e a Alemanha tornou-se o mais letal, o mais bárbaro Estado da história humana.

Tudo isso foi feito espalhando-se o medo. Medo dos bolcheviques, dos judeus, dos ciganos, dos norte-americanos – em suma, de todos aqueles que, segundo os nazistas, ameaçavam o coração da civilização européia, herdeira direta da civilização grega. Era o que escrevia o filósofo Martin Heidegger em 1935. Ora, a maior parte da mídia alemã, que bombardeou a população com esse tipo de mensagem, usou as mesmas técnicas de marketing utilizadas por publicitários americanos.

Não esqueçamos de como uma ideologia se afirma. Para dominar, a violência não basta. É preciso uma justificativa de outra natureza. Assim, quando uma pessoa exerce poder sobre outra, seja um ditador, um colonizador, um burocrata, um patrão ou um marido, ele precisa de uma ideologia justificadora, que sempre redunda na mesma coisa: a dominação é exercida para “o bem” do dominado. Em outras palavras, o poder se apresenta sempre como altruísta, desinteressado, generoso.

Nos anos 1930, as regras da propaganda nazista consistiam, por exemplo, em escolher palavras simples e repeti-las sem parar, associando-lhes emoções, como o medo. Quando Hitler invadiu os Sudetos, em 1938, ele o fez invocando os objetivos mais nobres e caritativos: a necessidade de uma “intervenção humanitária” para impedir a “limpeza étnica” da população de língua alemã e garantir que todos pudessem viver sob a “asa protetora” da Alemanha, com o apoio da mais avançada potência do mundo no domínio da cultura.

Em propaganda, se de alguma maneira nada mudou depois de Atenas, houve certamente aperfeiçoamentos. Os instrumentos sofisticaram-se muito, em particular e paradoxalmente nos países mais livres do mundo: o Reino Unido e os Estados Unidos. Foi lá, não em outra parte, que a moderna indústria das relações públicas, isto é, a fábrica da opinião ou a propaganda, nasceu nos anos 1920.

Estes dois países haviam de fato progredido em matéria de direitos democráticos, com o voto feminino, a liberdade de expressão etc. A tal ponto que o desejo de liberdade não podia mais ser contido somente pela violência estatal. Convertemo-nos, assim, às tecnologias da “fábrica do consentimento”2. A indústria das relações públicas produz, no sentido próprio dos termos, consentimento, aceitação, submissão. Ela controla as idéias, os pensamentos, os espíritos. Em relação ao totalitarismo, foi um grande progresso: é muito mais agradável sofrer o efeito de uma publicidade que se ver em uma sala de tortura.

Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão é protegida em um grau sem paralelo em qualquer outro país do mundo. Isso é muito recente. Desde os anos 60, a Suprema Corte deu grande proteção e garantia à liberdade de expressão, o que traduz, na minha opinião, um princípio fundamental estabelecido desde o século XVIII pelo Iluminismo. A Suprema Corte afirma que a palavra é livre com a única ressalva de não participar de ato criminoso. Se, por exemplo, entro em uma loja para roubar, um de meus cúmplices tem uma arma, e eu digo “atire!”, isso não será protegido pela Constituição. Quanto ao resto, o motivo deve ser particularmente grave para que a liberdade de expressão seja posta em xeque. A Suprema Corte já reafirmou este princípio até mesmo em favor dos membros do Ku Klux Klan. Na França, no Reino Unido e, me parece, no resto da Europa, a liberdade de expressão é definida de maneira muito mais restritiva.

A meu ver, a questão essencial é: o Estado tem o direito de definir qual é a verdade histórica e punir quem dela se afasta? O pensamento tende a se acomodar a uma prática stalinista. Os intelectuais franceses têm dificuldades em admitir que é bem esta a sua inclinação. No entanto, a recusa de tal abordagem não deveria comportar exceção. O Estado não deveria possuir nenhum meio de punir quem quer que pretenda que o Sol gire em torno da Terra. O princípio da liberdade de expressão tem algo de muito elementar: ou o defendemos no caso de opiniões que detestamos, ou renunciamos por completo à sua defesa. Mesmo Hitler e Stalin admitiam a liberdade de expressão daqueles que defendiam seus pontos de vista.(3)

Acrescento que há algo de muito perturbador e mesmo de escandaloso em debater essas questões dois séculos após Voltaire, que, como sabemos, declarava: “Odeio as suas opiniões, mas daria a minha vida para que você pudesse expressá-las”. Seria prestar um triste desserviço às vítimas do holocausto adotar uma das políticas fundamentais de seus carrascos.

Diplomatique Em um de seu livros, você comenta a frase de Milton Friedman “ter lucro é a própria essência da democracia”...

Chomsky A bem dizer, as duas coisas são de tal forma contrárias que não há sequer comentário possível. A finalidade da democracia é que as pessoas possam decidir suas próprias vidas e fazer as escolhas políticas que lhes concernem. A realização de lucros é uma patologia de nossas sociedades, associada a estruturas particulares. Em uma sociedade decente, ética, a preocupação com o lucro seria marginal. Tome como exemplo meu departamento universitário, no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Lá, alguns cientistas trabalham duro para ganhar muito dinheiro. Mas são considerados um pouco marginais, um pouco perturbados, quase casos patológicos. O espírito que anima a comunidade acadêmica é, antes, o da descoberta, a um só tempo por inteesse pessoal e para o bem de todos.

Diplomatique Em texto que lhe é dedicado, Jean Ziegler escreve: “Existem três totalitarismos: o totalitarismo stalinista, o totalitarismo nazista, e, agora, o ‘tina’(3).” Você compararia esses três totalitarismos?

Chomsky Eu não os colocaria no mesmo plano. Combater o “tina” é afrontar uma construção intelectual que não pode ser comparada aos campos de concentração ou ao gulag. Além disso, a política norte-americana suscita oposição em escala planetária. Na América Latina, a Argentina e a Venezuela expulsaram o FMI. E os Estados Unidos não puderam recorrer ao que seria a norma há vinte ou trinta anos: o golpe militar. O programa econômico neoliberal que foi imposto à América Latina durante os anos 80 e 90 é hoje rejeitado no continente. Vemos esta mesma oposição à globalização econômica por toda parte.

O movimento global pela justiça, sempre sob o foco da mídia na época de cada reunião do Fórum Social Mundial, trabalha na realidade durante todo o ano. É um fenômeno muito recente na história, que marca talvez o início de uma verdadeira Internacional. Seu principal cavalo de batalha é a existência de uma alternativa. Aliás, que melhor exemplo de uma globalização diferente do que o próprio Fórum Social Mundial? As mídias hostis chamam aqueles que se opõem à globalização neoliberal de “os antiglobalização”, quando, na verdade, eles lutam por uma outra globalização, a globalização dos povos.

Podemos observar o contraste entre uns e outros, porque, no mesmo momento, ocorre o Fórum Econômico Mundial, que trabalha para a integração econômica planetária, mas somente em prol dos interesses das altas financeiras, dos bancos e dos fundos de pensão – potências que controlam também as mídias. É a concepção deles de integração global: uma integração a serviço dos investidores. As mídias dominantes entendem que somente essa integração global merece o título oficial de globalização. Eis um belo exemplo de funcionamento da propaganda ideológica nas sociedades democráticas. A tal ponto essa propaganda é eficaz que mesmo os participantes do Fórum Social aceitam às vezes a qualificação pejorativa de “antimundialistas”. Em Porto Alegre, compareci ao Fórum e participei da conferência mundial dos camponeses. Eles representam, sozinhos, a maior parte da população do planeta...

Diplomatique Você é classificado na categoria dos anarquistas ou dos socialistas libertários. Na democracia, tal como você a concebe, qual seria o lugar do Estado?

Chomsky Vivemos neste mundo, não em um universo imaginário. Então, neste mundo, existem instituições tirânicas, que são as grandes empresas. É o que há de mais próximo das instituições totalitárias. Elas não têm, por assim dizer, que prestar qualquer esclarecimento ao público ou à sociedade. Agem como predadoras, tendo como presas as outras empresas. Para se defender, as populações dispõem apenas de um instrumento: o Estado. Mas ele não é um escudo muito eficaz, pois, em geral, está estreitamente ligado aos predadores. Há, no entanto, uma diferença que não se pode negligenciar: enquanto, por exemplo, a General Electric não deve satisfações a ninguém, o Estado deve regularmente se explicar à população.

Quando a democracia se tiver alargado ao ponto em que os cidadãos controlem os meios de produção e de troca e participem no funcionamento e na direção do conjunto em que vivem, então o Estado poderá, pouco a pouco, desaparecer. Ele será substituído por associações voluntárias sediadas nos locais de trabalho e de moradia.

Diplomatique Seria uma nova forma de soviets? Qual a diferença em relação aos soviets da Rússia revolucionária?

Chomsky Seriam soviets, sim. Mas lembremos que, na Rússia, a primeira coisa que Lênin e Trotsky destruíram, logo após a Revolução de Outubro, foram os soviets: os conselhos de operários e todas as instituições democráticas. Lênin e Trotsky foram, neste sentido, os piores inimigos do socialismo no século XX. Porque, marxistas ortodoxos como eram, eles consideravam que uma sociedade atrasada como a da Rússia de sua época não poderia passar diretamente ao socialismo sem ser precipitada à força na industrialização.

Em 1989, no momento do desmoronamento do regime comunista, eu pensei que este desmoronamento, paradoxalmente, representava uma vitória para o socialismo. Pois o socialismo, tal como o concebo, implica, no mínimo, eu repito, o controle democrático da produção, das trocas e de outras dimensões da existência humana.

No entanto, os dois principais sistemas de propaganda conspiraram para afirmar que o sistema tirânico implantado por Lênin e Trotsky e depois transformado em monstruosidade por Stálin era o “socialismo”. Os dirigentes ocidentais não fizeram mais do que se deleitar com esse uso absurdo e escandaloso do termo, que lhes permitiu difamar o socialismo autêntico durante décadas.

Com igual entusiasmo, mas em sentido contrário, o sistema de propaganda soviético tentou explorar a seu proveito a simpatia que os ideais socialistas autênticos inspiravam nas massas de trabalhadores. 

Diplomatique Não é verdade que, segundo os princípios anarquistas, todas as formas de auto-organização acabaram por desmoronar?

Chomsky Não há “princípios anarquistas” fixos, uma espécie de catecismo libertário ao qual se deva prestar juramento. O anarquismo, ao menos como o vejo, é um movimento do pensamento e da ação que busca identificar as estruturas de autoridade e dominação, exigindo que elas se justifiquem, e, se elas se mostram incapazes, como acontece freqüentemente, tenta superá-las.

Longe de ter “desmoronado”, o anarquismo, o pensamento libertário, vai muito bem. Ele é a fonte de muitos progressos reais. Formas de opressão e injustiça que mal eram reconhecidas, e muito menos combatidas, não são hoje mais admitidas. É uma conquista, um avanço para o conjunto dos seres humanos, não uma derrota.

1     Herman, Edward e Chomsky, Noam: Manufacturing Nova York, Pantheon, 2002.
2     Expressão do ensaísta norte-americano Walter Lippman, que, a partir dos anos 1920, pondo em dúvida a capacidade do homem comum se determinar com sabedoria, propôs que as elites cultas “lapidassem” a informação antes que ela atingisse a massa.
3     Tina: palavra formada com as iniciais da expressão inglesa “there is no alternative” (não há alternativa), utilizada por Margaret Thatcher para proclamar o caráter inelutável do capitalismo neoliberal.


2007

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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Sem grana não tem amor ...

Por ser um pouco mais novo que o pessoal da geração que realmente fundou o rock “autoral” em Sergipe nos anos 1980, e também por não morar em Aracaju na época, eu não participei ativamente da movimentação “underground” da cidade até “circa” 1987/88. Não fui, portanto, a nenhuma “rockada”. Nem a nenhum show do Guilhotina, Perigo de Vida ou Crove Horrorshow. Deste último poderia ter ido, mas minha mente na época, depois de um breve flerte com o rock mais “poético”, ou “adulto”, do pós punk via Hits radiofônicos – Ira!, Legião Urbana, Hojerizah, Capital Inicial -  estava tomado pela urgência e pela crueza do Hard Core e do Heavy Metal. Então a Crove, para mim, meio que “passou batido”. Era uma espécie de “lenda urbana” da qual eu sempre ouvia falar através dos caras (não muito) mais velhos – Silvio, Vicente, Marcelo Gaspar. Pelo que eles diziam, deduzia que foram muito importantes para a época, chegando a ter inclusive alguns “hits” underground, como “Sem grana”, sempre citada.

O mesmo pode ser dito para a década seguinte, quando a banda se reformulou, mas ainda assim continuava longe do meu “radar musical pessoal”, digamos assim. Se vi algum show deles no período, não me marcou, porque não me lembro. Muito embora tenha sido desde (quase) sempre um fã de Smiths, Cure e Echo & The Bunnymen, eu seguia imerso no mundo do rock mais “visceral”, só que dessa vez mais focado no barulho guitarreiro dos seguidores do Jesus & Mary Chain e do “grunge” ou do rock industrial do Nine Inch Nails e do Ministry.

Só fui parar pra ouvir a Crove mesmo, pra valer, na segunda metade da primeira década do século XXI, num show que eles fizeram, já com Fabinho no baixo, no Capitão Cook. E foi uma revelação. De repente ficou claro para mim o porque da admiração irrestrita de caras como Rafael Jr., da Snooze, e Silvio, da Karne Krua. Crove era rock pra caralho, esse tempo todo, e eu não sabia! Achava que fosse uma coisa mais melosa, datada – bom, “datado”, até que é, mas isso não é demérito nenhum. É uma opção estética, apenas. Você gosta ou não gosta. Não se propõem a reinventar a roda. A idéia aqui é fazer música autoral de qualidade emulando influências do pós punk mas também da soul music e do som que era feito nos anos 1970. Como Luiz Eduardo é um puta compositor e letrista, a tarefa é cumprida com honra e mérito.

Agora eles, finalmente, lançaram seu primeiro disco “oficial” – ou “de fábrica”, sei lá, está cada dia mais difícil acertar neste tipo de definição. Hora de parar pra ouvir definitivamente, no conforto de casa, num som decente, prestando atenção nos arranjos e acompanhando as letras pelo encarte – ops, isso não. É uma falha do disco, não ter as letras impressas no encarte. Que é bacana, apesar disso: a concepção gráfica como um todo, assinada por Fabio Viana e elaborada em cima de imagens de cartazes e fanzines locais da década de 1980 e desenhos de Helder, o DJ Dolores, é excelente. Acomodada em um digipack de capa tripla desdobrável, tem uma ótima concepção visual que prima por combinar despretensão com bom gosto e um afiado senso de  unidade. Só acho que para a imagem da capa, em si, deveriam ter escolhido a que ilustra o fundo do acrílico onde fica o CD. Fora isso – e a falta das letras! - está perfeito.

A bolachinha já começa dizendo a que veio com uma musica que sintetiza muito bem a proposta primordial da banda: “Não mais”. Letra inteligente, falsamente simples e ligeiramente minimalista, flertando com a poesia concreta, emoldurada por arranjos carregados daquela sonoridade tão característica dos anos 80. Na sequencia, um pouco mais de peso, com um excelente riff servindo de “cama” para o clima melancólico/existencialista de “A Dança do forró” – cuja letra, pelo que eu consegui entender, é uma espécie de manifesto contra a massificação da cultura popular. A seguinte, “Na sala fechada”, já volta ao clima oitentista, e assim segue o disco, faixa a faixa, ora resgatando pérolas nunca antes registradas em estúdio, ora melhorando o que já havia sido feito, como em “catedral”, aqui numa versão bem superior à da demo de 1996. Destaques para “geração ropinol”, “Barra pesada” e “sem grana”, todas com uma pegada “roqueira” vigorosa e letras com cara de manifesto marginal a la Helio Oiticica. Me chamaram a atenção, também, a “sergipanidade” da letra de “Depois da boa”, que fala, sempre num desencanado e gostoso sotaque local, como em todo os disco, em ir à praia depois de comer cuscus e beiju no mercado, e “Canção do Carnaval”, uma espécie de anti-ode aos festejos de momo - pelo menos da forma como são comemorados aqui, naquele esquema massificado/pasteurizado ao estilo baiano. Segue mais ou menos o mesmo mote de “A Dança do forró”: um certo fastio “roqueiro” pela falta de opções alternativas no calendário “cultural” local. Ou é isso ou eu entendi muito mal o que foi dito – e aí “não tem culpa eu”, já que, repito, as letras não vieram impressas no encarte. E deveriam ter vindo.

Um grande resgate. Para ser ouvido, curtido e, quiçá, estudado.

por Adelvan

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Babalu saves

Babalu, Gandhi, Silvio e Ivo
“Inanição”, último disco lançado pela Karne Krua, banda de rock sergipana há mais tempo em atividade ininterrupta – desde 1985! – é fruto de um momento de transição. Foi gravado por Silvio(vocal), Thiago “Babalu”(bateria) e Alexandre Gandhi(guitarra e baixo). Depois a banda passou por sua mais importante reestruturação: Babalu foi morar em São Paulo e Adriano ficou em seu lugar. Completaram a formação com a entrada de Ivo Delmondes, da Renegades of punk – e ex-xreverx e Triste Fim de Rosilene – no baixo. Estão juntos até hoje – cerca de 7 anos. Viva, ativa e surpreendendo a cada apresentação. E prestes a lançar um disco que, a julgar pelo que ouvi até agora, pode até mesmo superar "inanição" ...

O disco já havia sido lançado de forma inusitada: foi executado com transmissão ao vivo pelo programa de rock, direto dos estúdios da Aperipê FM, a rádio pública do estado. Mas não houve um show de lançamento, propriamente dito. Aproveitando uma passagem de Babalu por Aracaju para tocar com o pernambucano Siba – ex-Mestre Ambrósio – tiveram a idéia de fazê-lo, finalmente.

Cheguei na Casa Rua da Cultura por volta das 23H30, a tempo de ver a Robot Wars executar a última música do seu set. O ambiente estava preocupante: pouca gente, público ligeiramente apático e desanimado. Haviam rumores de um boicote à casa por conta de alguns acontecimentos anteriores envolvendo polícia e agressões a ex-integrantes da Companhia de teatro que administra o espaço. Mas, aos poucos, pessoas foram chegando, o clima foi melhorando e os boatos não se confirmaram.

O show seguinte, da Nucleador, continuou meio frio, mas não por culpa da banda, que mandou ver em seu crossover matador com uma execução precisa. O público é que continuava um tanto quanto distante. Algumas rodas de pogo, ainda que tímidas, foram esboçadas, mas não havia muito a ser feito, já que o principal “animador” da bagaça, Levi, estava ocupado fazendo seu trabalho nos vocais. Ele é, aliás, um dos destaques da banda, em termos de perfomance de palco, inclusive. Fizeram um set energético e enxuto – com direito a covers do Pennywise! - que, no final das contas, parece ter aquecido o ambiente.

Porque na apresentação seguinte, da Crimes Hediondos, o clima já era outro. O grupo, formado por alguns veteranos da cena punk/crust/grind da cidade – Cícero “Mago” na bateria, Pedro na guitarra e Mazinho no contrabaixo – escudados por um “seminovato”, Alércio, nos vocais, faz um Hard Core “old school” porradíssimo, pendendo para o crust – para que o som fosse definitivamente “crust” os vocais teriam que ser mais “guturais” ou gritados, mas o de Alercio está mais para uma vocalização mais limpa. Agressivo, meio desesperado até, é verdade, mas entende-se a pronuncia, o que não é muito característico do crust. Sua presença de palco, alíás, é excelente, com alguns trejeitos corporais bem característicos e uma entrega evidente à tarefa de espalhar a mensagem de caos, desordem e desgraça. A perfomance da banda, como um todo, é muito boa e incendiou de vez a platéia. Um aquecimento perfeito para o que viria a seguir ...

O que veio a seguir foi, provavelmente, o melhor show da Karne Krua que eu já vi – e olha que eu já vi muitos, mais que ele mesmo, disse Silvio – exagerando, evidentemente – naquela mesma noite. Dizem eles – e eu não tenho porque não acreditar – que fizeram apenas um ensaio para esta apresentação. Não parecia. Babalu, o único elemento que, a principio, poderia estar “enferrujado” na engrenagem, estava perfeito. Mais que perfeito, eu diria até. Incrivelmente perfeito. Todos ficaram impressionados com sua perfomance, absolutamente matadora. Velocidade, agilidade e habilidade fora do comum. Impressionantes os arranjos que ele fez para alguns dos sons mais toscos do início da carreira da banda, como “terrorista”, que eles tocaram depois de executar, na ordem e quase que na íntegra, o álbum “inanição”. Acho inclusive – e tive a chance de externar minha opinião lá mesmo, surrupiando o microfone do backing vocal – que, já que ele não vai mesmo ficar em Aracaju, deveria tentar entrar no Slayer. Só ele substituiria à altura Davi lombrado...

O público reagiu: foi uma verdadeira celebração da energia libertária do punk rock, do rock and roll e da anarquia. Verdadeiros hinos, como “Subversores da ordem”, "O Vinho da História", "Contaminados", e “neoclássicos”, como a matadora “inanição”, foram cantados a plenos pulmões pela platéia extasiada. Uma noite absolutamente memorável, inclusive pela presença, em certos casos inusitada, de vários ex-membros da banda, como Antonio “Almada”, o primeiro baterista, que há tempos eu não via num show de rock por aqui.

Lamento por quem perdeu.

A

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