sexta-feira, 22 de maio de 2015

A Fúria ...

(*) Não gostei do novo Mad Max - o ator, Tom Hardy. Fraquinho. Mas seu desempenho não compromete o resultado final, porque a verdadeira protagonista é a Imperatriz Furiosa interpretada de forma magistral por uma Charlize Theron ainda linda, apesar de praticamente irreconhecível. O filme é absolutamente sensacional! Uma obra-prima! Provavelmente o melhor do gênero – ação! - que eu já assisti em toda a minha vida. Nunca mais eu tinha torcido tanto para que uma projeção não acabasse, e depois do fim fiquei imaginando como seria, por exemplo, a cidadela/refinaria para a qual Furiosa originalmente se dirigia, antes de iniciar sua fuga. Ou o que aconteceria a seguir - aguardemos, pois há notícias de que haverá novas sequencias. Me fez lembrar, também, o tempo em que eu, garotão, voltava pra casa a pé, depois das sessões do Cine Santo Antonio, em Itabaiana, com uma metralhadora imaginária nas mãos, depois de ver o primeiro Rambo; ou com uma espada, vagando pela Ciméria, transformado em Conam, o Bárbado; ou voando como o Superman de Christopher Reeve; ou andando feito o cyborg do Exterminador do futuro; ou esperando cruzar com um velociraptor na primeira esquina que cruzasse – aí já em Aracaju, no cinema que ficava na Rua de Laranjeiras, em frente à igualmente saudosa Charutaria Chic. Hoje é um estacionamento. E no lugar do Cine Santo Antonio, em Itabaiana, há agora um supermercado ,..

Abaixo, dois textos muito bons que destrincham o que há nas entrelinhas do "fiapo de roteiro" ...

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(**) Longe de ambicionar uma cronologia ou um estudo de personagem - embora tenhamos acompanhado um fim do mundo gradual com Mel Gibson  por três filmes - os Mad Max constróem, acima de tudo, uma mitologia australiana a partir de subgêneros do faroeste. Não é diferente com Mad Max - Estrada da Fúria (Mad Max - Fury Road, 2015), a volta da franquia ao cinema depois de 30 anos.

O primeiro filme, de 1979, ecoava Rastros de Ódio (1959) e outros westerns de vingança na trama do cavaleiro solitário que caçava os "índios" que dizimaram sua família. Dois anos depois, Mad Max 2  aderia ao subgênero da defesa do forte, com Gibson integrado a um grupo de colonos do futuro. Ao servir de gladiador de aluguel em Além da Cúpula do Trovão (1985), Max não se diferenciava muito dos pistoleiros como o Shane de Os Brutos Também Amam (1953), que se veem no meio de um confronto pelo controle de um oásis próspero no deserto.

No entanto, enquanto os temas que atravessam os faroestes americanos ecoam a busca de uma unidade para o país, nas suas jornadas de redenção e de construção de uma civilidade na Conquista do Oeste, os filmes de Mad Max são absolutamente australianos no seu caráter de penitência. Ao criar uma mitologia que tem na estética sadomasoquista sua constante e na violência extremada o seu processo de purgação, George Miller se filia a uma tradição da literatura e do cinema australiano que se especializou em trazer para o Outback do século 20 - e para o futuro - todo o peso do passado desse país que foi concebido no século 18 como uma colônia penal do império britânico.

Na Austrália, todos são párias. Se Miller faz questão de enquadrar os quatro filmes de Mad Max no formato mais retangular do CinemaScope para valorizar horizontes, como em westerns clássicos, isso só faz de seus cenários arenas mais extensas para toda sorte de desajustados, deformados, sádicos e justiceiros. Em Estrada da Fúria, ele organiza as gangues em estratos econômicos e sociais aparentemente mais complexos, combinando industrias e religiosos messiânicos numa harmonia possível no caos (o mundo certamente vai acabar antes do capitalismo), mas a grande magia de Mad Max é que a arena os iguala.

E dentro dela, nesta volta da franquia ao cinema, Miller não economiza na catarse. Se mesmo alguns dos seus filmes mais subestimados, como As Bruxas de Eastwick (1987), de alguma forma lidam com a purgação pelo castigo, é em Mad Max que o diretor coloca pra fora os seus demônios. Algumas cenas de perseguição de Estrada da Fúria levaram meses para serem filmadas, depois de outros tantos meses de veículos sendo construídos nos sets na Austrália e na Namíbia, e essa obsessão se traduz gloriosamente na tela. O verdadeiro culto pagão de Mad Max, a fé nos automóveis (cujo simbolismo beira o óbvio no novo longa, com o volante transformado em totem), chega ao espectador num misto de missa roqueira, exorcismo e bacanal.

Nem todos os veículos, porém, são pensados como extensões da iconografia sadomasoquista e feitos para penetrar uns aos outros em incontáveis colisões. Porque o subgênero de western eleito por Miller em Estrada da Fúria é o da travessia do comboio, e desde sempre as diligências trazem consigo uma noção de feminilidade. Quantos faroestes já não mostraram no passado carroças que transportam mulheres grávidas, entre famílias que são protegidas pelos homens solitários a cavalo? A diligência é a esperança em marcha, sintetizada na fertilidade da mulher, e dela irradia o senso de proteção da civilidade que marca esses faroestes. A ideia antropomórfica de o caminhão-pipa de Mad Max "dar leite" na sua torneira é a expressão máxima dessa representação.

Sob essa ótica, parece não só justo mas necessário que George Miller escolha uma mulher, Imperatriz Furiosa (Charlize Theron), como "mãe", dona do caminhão-pipa. No futuro será muito interessante formar sessões duplas entre Mad Max - Estrada da Fúria e faroestes de comboio que também efetivam um ponto de vista feminino, como o recente Dívida de Honra (2014), com Hilary Swank, e principalmente Meek's Cutoff (2010), a obra-prima de Kelly Reichardt estrelada por Michelle Williams. De resto, desconfie de quem acha que "falta roteiro" neste Mad Max: westerns de comboio são exatamente assim, enxutos e pautados pela ação, pelo menos desde 1939, ano de No Tempo das Diligências.

Mas que papel cabe ao Max de Tom Hardy nessa história, diminuído não só por Furiosa mas também pelo arco dramático de Nicholas Hoult? Não bastasse a responsabilidade de substituir o ator titular - e nessa hora fica muito latente como o carisma de Gibson sempre foi o motor do personagem - o Max de Estrada da Fúria ainda precisa lidar com o ocaso da sua masculinidade. No passado, John Wayne conseguia expressar muito bem a fragilidade de homens violentos que se percebiam deslocados num mundo em transformação. Com seu jeito de ator do método que nunca soube ouvir aquele famoso conselho de diretores impacientes ("apenas atue"), Hardy segue a receita desse tipo de papel monossilábico e introspectivo, mas ele não é Mel Gibson - nem John Wayne.

É curioso que, em entrevistas, George Miller associe Max a James Bond, para justificar a troca de atores. Seriam dois casos de personagens que, em nome de uma longevidade, sempre permanecem alheios ao mundo ao seu redor, capazes de sobreviver à base das suas manias, orbitando a ação, sem se afetar pelo contexto. Pois Estrada da Fúria - um filme cujo nervo não está na ação e sim numa mudança de paradigmas - atesta justamente a obsolescência do "caubói". Aquela comparação com Meek's Cutoff vem a calhar aqui porque é um filme muito forte sobre empoderamento feminino e transmissão de responsabilidade, e que torna evidente a incapacidade que George Miller tem de descartar seu mocinho sem de fato se despedir dele.


(***)Evidentemente não existe filme feminista feito por homem, mas as simbologias que George Miller organiza não deixam muito espaço para dúvida: é numa reserva psíquica “matriarcal” que o filme diz que a humanidade tem ainda alguma chance. A nossa melhor jornalista de cinema, Ana Maria Bahiana, não escondeu seu entusiasmo neste texto (e aqui neste complemento ela explica como se desenvolveu o projeto ao longo dos anos). Também é dela a dica desta análise, em que Katie McDonough fala dos limites dentro dos quais um blockbuster (não) pode ser “feminista” (esse está em inglês, e é cheio de spoilers – este meu aqui aliás também tem alguns, já aviso).
Katie explica a consultoria que Eve Ensler, a autora dos Monólogos Da Vagina e ativista, deu para o filme – e dá uma sacaneada no que seria a perspectiva do diretor-roteirista (diz ela que uma mensagem da obra é “uma velha motoqueira misândrica com um saco cheio de sementes mofadas é a melhor coisa que você poderia ser”, em livre tradução). Aqui um outro texto interessante, de um homem, naturalmente, que vai no sentido contrário, saudando o feminismo no filme.
Eu sou mais otimista que Katie no seguinte aspecto: este Mad Max é sim um “filme de menino”, na ação intensa, gigantesca e incessante, quase sem respiros. Esse exibicionismo yang, no entanto, não se esgota em si mesmo, não está a serviço de nada, como nos filmes de um Michael Bay, por exemplo. Não é simplesmente Charlize Theron sendo mais macha que o macho, mandando (e fazendo) Tom “Mad Max” Hardy ficar quieto.
Assim como o caminhão dirigido por Charlize contrabandeia mulheres para fora do cativeiro, assim como para lá do deserto conhecido há um clã de velhas feiticeiras, assim como no coração cínico de Mad Max há uma aflição com o fantasma do que poderia ter sido, essa ação toda se dá em busca de algo perdido. Que, afinal, são sim sementes mofadas – não há o menor problema com sementes mofadas, se elas germinarem (a extinção da água potável pela humanidade, aliás, é o outro subtema).
O veterano George Miller é um cara sagaz com as relações conturbadas entre os gêneros. O maravilhoso As Bruxas De Eastwick (1987) é um estudo sobre como o sedutor perfeito (que é o diabo, e é Jack Nicholson) se vira. Ou melhor, não se vira e enlouquece, quando seu harém (Cher, Michelle Pfeiffer e Susan Sarandon), que ele havia tirado da mesmice da classe média, desenvove laços de sororidade e começa a demonstrar traços de independência… em relação a ele mesmo.
Uma leitura possível deste Mad Max é que ele discute os limites do que um homem pode fazer para “ajudar”, no momento em que o resgate da humanidade é necessariamente o resgate do feminino.(Entrando nos spoilers:) Faz sentido que no fim, Max, que poderia até ser o novo imperador, caia sozinho de volta na estrada – e pior, caia “castrado”, já que seu carro, o Interceptor, foi destruído na perseguição.
O nome da personagem de Charlize, Imperator Furiosa, tem um quê de lilithiano: o da imperatriz que rompe com seu imperador (Immortan Joe), para se juntar às hostes infernais. A principal tarefa de Max nem é tanto pilotar, já que ele dirige o caminhão pior do que ela, e pior até do que o “warboy” Nux. Acaba sendo – contra todas as expectativas – o do bom senso. É Max quem vai propor inverter a lógica lilithiana, de ir cada vez mais para longe do opressor, e identificar o momento em que o mecanismo da opressão coloca em risco a ela mesma, abrindo um flanco para a retomada (feminina) do poder.
Este Mad Max é um filme ambivalente. Como notou Sérgio Alpendre, ele é “estrondoso”, mas contém um comentário em sua própria narrativa sobre esse estrondo. O caminhão sound system que leva um guitarrista pendurado é o tipo de imagem que vai deixar um metaleiro extasiado – e ao mesmo tempo divertir quem odeia heavy metal.
Nesse sentido, os warboys são uma provocação inusitada. Soldados perfeitos, em busca da glória e do portão de Valhalla (e de um spray de cromagem na fuça), não são machos toscos. Pelo contrário, brancos, magros e chamados de “meia vida”, parecem-se com guerreiros eunucos – ou com modelos gays urbanos.
Se entregam à morte gritando por “testemunho”, como evangélicos. Mas, no fim, são eles que reagem positivamente à volta das matriarcas – enquanto Nux se transforma, por influência de uma das beldades liberadas. É esse warboy, o ator Nicholas Hoult, a bem da verdade, quem cumpre o arco dramático que o próprio Max não cumpre. Max está só à espera da oportunidade de desaparecer na poeira de novo, e Tom Hardy não tem nada a fazer a não ser exalar algum charme discreto. Mais discreto que o velho Mel Gibson, by the way.
Os veículos são um aspecto bacana. Tem um quê cronenberguiano, não na fusão do ser orgânico com o mecanismo (VideodromeA MoscaCrash) mas na composição frankensteiniana das máquinas, feitas de camadas e mais camadas de veículos antigos: o carro de Immortan Joe, no qual as mulheres voltam, é praticamente um cadillac cubista com rodas de monster truck. Importante resaltar que Miller evitou ao máximo a computação gráfica. Sempre que possível, o que se vê na tela é real (e o grande momento em CG, como anota Ana Maria, é a tempestade de areia).
Uma das fontes remotas de Mad Max, o filme de outro australiano, Peter Weir, The Cars That Ate Paris/ Violência Por Acidente, é homenageado no ataque dos carros-espinho, citação direta do famoso fusca-espinho de 1974. Outra fonte remota é a distopia atômica O Menino E Seu Cachorro, do diretor e ator LQ Jones – esse cult barato e quase trash de 1975, na ponta oposta do espectro de custos e facilidades tecnológicas, merece uma olhada (não tem feminismo, muito pelo contrário, mas tem um cachorro mutante falante que é um brother maneiro).
É notável que, quanto às motos das matriarcas, o clã das Vuvalini (cujo nome ecoa vulva e o despertar da kundalini, a “serpente” que transmuta a energia desta dimensão em energia superior), Miller contenha o fetiche. São motos simplinhas, meros veículos de transporte – e eu não creio que sejam pelas razões erradas. Assim como não é propriamente charmoso o braço mecânico de Charlize (que guarda alguma relação com a asa cortada de Angelina “Malévola” Jolie na adaptação de A Bela Adormecida).
E mesmo o fetiche tem pontos interessantes, como o fato dos volantes decorados serem pessoais e retirados dos veículos. Parece algo que faria sentido para alguém tipo um motorista cholo, um lowrider, mais do que para um playboy. Enfim. Mad Max – Estrada Da Fúria não é um filme feminista, mas sim um fantástico filme de ação. Que consegue ao mesmo tempo embarcar simbologias inusitadas que darão aos rapazes uma camada adicional para elaborar, enquanto torcem, gritam e suam de emoção.

*** por Adelvan "Kenobi"
** por Marcelo Hessel, no Omelete
* por Alex Antunes, em seu Blog
Omelete

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terça-feira, 12 de maio de 2015

Desolador ...

A inaceitável repressão policial aos professores do Paraná, comandada pela Polícia Militar e referendada pelo governador Beto Richa (PSDB), é, infelizmente, apenas mais um capítulo da trágica história da promíscua relação da elite brasileira com o aparato do Estado. E aqui deixo claro que entendo como “elite brasileira” não só aquela velha minoria – cerca de 10% da população – que detém 75% de toda a riqueza do país, e, por consequência, exerce desde sempre o Governo de forma direta ou por meio de prepostos, mas também a nova classe política que, ascendendo de movimentos populares (sindicatos, associações) ou pronunciando-se em nome de igrejas evangélicas, tomba emaranhada no cipoal de corrupção que caracteriza a nossa estrutura de poder.
Parece não haver dúvida – pelo menos a maioria dos discursos, amadores ou profissionais, convergem para a mesma solução – de que para o Brasil desatolar-se do pântano em que está afundado e ancorar-se em terra firme teria que investir em uma ampla e vigorosareforma educacional. Se começássemos hoje, talvez conseguíssemos salvar a próxima geração. Mas esse projeto, sempre adiado, acabou nos envolvendo em uma frustrante sensação de que somos, em uma festa, aquele sujeito inconveniente que todos evitam e que apenas gera piadas e comentários desabonadores entre os outros convidados.

Quando em 1985 os militares deixaram o poder, após 21 anos de ditadura, o país estava em ruínas. A inflação ultrapassava os 200% ao ano, a dívida externa girava em torno de 54% do Produto Interno Bruto (PIB), o desemprego alcançava 9% da população economicamente ativa e os sistemas de educação e saúde encontravam-se desmantelados. Pior que tudo, sem perspectivas, os jovens começaram a deixar o país. Estima-se que 1,5 milhão de pessoas tenham ido embora para os Estados Unidos, Japão, Portugal e outros países da Europa.
Cerca de 15 anos depois, com o crescimento do PT e a instalação deLuiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República, notou-se um movimento de regresso ao Brasil – as embaixadas chegaram a deslocar diplomatas para orientar os retornados, tal a demanda. Pouco durou, no entanto, esse entusiasmo. A sucessão de escândalos envolvendo membros da cúpula do PT confirmou o que o escritor e teólogo Frei Betto denunciava há tempos, que o partido trocou um projeto de governo por um projeto de poder.
A educação vem sendo tratada, desde tempos imemoriais, como uma questão de sobrevivência da nossa elite, ou seja, o mais eficaz mecanismo de perpetuação de seus privilégios – econômicos, políticos, culturais. Se é verdade, e é, que o governo petista modificou com ousadia e coragem alguns aspectos do ensino superior – o aumento substantivo de vagas nas universidades públicas, o estabelecimento de cotas raciais e sociais, o financiamento de alunos em universidades privadas – é também verdade que, no que concerne à instrução básica, a situação é desoladora.
Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 10% da população permanece analfabetae 20% são classificados como analfabetos funcionais – ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade para ler e interpretar os textos mais simples. As instituições públicas de ensino básico funcionam, na maioria das vezes, em ambientes degradados, com professores desestimulados por conta da baixa remuneração, pequena inserção social, insalubridade, etc, e ainda atormentados pelo medo, medo dos alunos, medo dos pais dos alunos – a ditadura militar conseguiu destruir na sociedade civil a crença na importância da autoridade. Não é tão diferente o quadro nas escolas privadas, cujas mensalidades podem ultrapassar os 1,5 mil dólares: arrogante, a nossa elite trata os mestres de seus filhos como subalternos, não como aliados.
Baixa instrução é sinônimo de ignorância. E ignorância é incapacidade de diálogo, é opção pela violência. De cada 100 assassinatos ocorridos no mundo, 13 ocorrem no Brasil – proporcionalmente, ocupamos o 11º lugar geral no ranking de homicídios. Somos ainda o sétimo lugar entre os países com maior número de mulheres vítimas de violência doméstica, taxa média de 4,5 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, com um saldo, na última década, de 50.000 mulheres mortas. Outras 50.000 pessoas, em sua maioria mulheres, são estupradas por ano. Também por ano acumulamos mais de 120.000 denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes e 313 homossexuais são mortos por conta de suas opções.
Baixa instrução é sinônimo de ignorância. E a ignorância leva a uma enorme predisposição para relativizar princípios éticos. A corrupção, cujo custo anual alcança cerca de 2% do total do PIB, é uma praga que atinge toda a sociedade. Herança de uma certa mentalidade colonial, que toma como privado o bem público, que desdenha o valor do trabalho e que leva em consideração apenas seus interesses pessoais, a cultura da corrupção contamina as instituições federal, estadual e municipal, contagia os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, infecciona o tecido social. O chamado “jeitinho brasileiro”, do qual muitas vezes nos orgulhamos, nada mais é que uma maneira de cometer ilegalidades no dia a dia, envolvendo dinheiro, tráfico de influência ou troca de favores.
Baixa instrução é sinônimo de ignorância. E ignorância é a inabilidade para construir raciocínios sofisticados. Como pensar é exercício penoso, acabamos optando pelo fácil, mas arriscado, caminho da lógica binária. Reduzimos o mundo a um confronto insano entre forças do bem e do mal, sendo que nós e todos os que defendem pontos de vista semelhantes aos nossos representamos o bem, enquanto o mal incorpora-se naquela massa informe que diverge de nossas opiniões. Assim, tornamos rasas nossas discussões, mesquinhas as reivindicações, belicosas as contestações, medíocre a sociedade. Acuados, pouco a pouco nos enterramos em trincheiras fundamentalistas que nos conduzem de maneira rápida e irreversível à barbárie.
Baixa instrução é sinônimo de ignorância. E ignorância é um dique que erguemos para deter o desenvolvimento econômico. Dos adolescentes brasileiros de 15 a 17 anos, apenas 44% frequentam o ensino médio. Na população de 18 a 24 anos, um terço chega à universidade, mas 39% ainda encontram-se no nível médio e 16% no fundamental. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, 15% dos jovens que entram no mercado de trabalho sem completar o ensino fundamental estão desempregados e 30% têm emprego sem carteira assinada. Cada ano de escolaridade nos ensinos médio e superior eleva a renda per capita em meio ponto percentual. A falta de instrução adequada emperra o crescimento do país pela falta de mão de obra qualificada.
Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, um professor em início de carreira no ensino público fundamental brasileiro recebe, em média, 10.000 dólares por ano – três vezes menos que a média salarial dos países membros daquela associação. No Paraná, um professor recebe, em regime de 40 horas semanais, 2.400 reais, e um policial militar, 3.600 reais. Um professor educa e instrui, um policial militar reprime. Richa é uma jovem liderança – no próximo dia 29 de julho completará 50 anos – e nome de destaque entre os tucanos. Provavelmente, vamos ouvir falar muito dele ainda. Entre professores e policiais militares, o governador demonstrou sua preferência.
O problema não é que ele pense deste jeito – o problema é que assim pensa nossa elite burra.***
A frase atravessa vídeos sobre o massacre dos professores, executado pela Polícia Militar do Paraná a serviço do Governo de Beto Richa (PSDB), em 29 de abril. Professores desmaiam, professores passam mal com as bombas de gás lacrimogêneo, professores são feridos por balas de borracha. Um cão pit bull da PM arranca pedaços da perna de um cinegrafista. Há sangue na praça de Curitiba, diante da “casa do povo”, a Assembleia Legislativa do Estado. Ao final, há cerca de 200 feridos. Mas mais do que as imagens, é essa frase anônima, em voz feminina, que me atinge com mais força. Porque há nela uma incredulidade, um ponto de interrogação magoado nas entrelinhas e finalmente a compreensão de ter chegado a um ponto de não retorno. Depois de ser humilhada por baixos salários, depois de dar aula em escolas em decomposição, depois de ser xingada por pais e por alunos, agora a PM também podia atirar nela. E atirava. E, se as bombas de gás, as bombas de efeito i-moral não matam, pelo menos não de imediato, a sensação é de morte.
O susto causado pela percepção de que não havia mais limite para o que se podia infligir a um professor era a prova de que um professor não era mais um professor. Toda a aura que envolve aquele que ensina se esvaía em sangue na praça de Curitiba. Os PMs, cujos filhos possivelmente são ensinados por aqueles educadores, tinham autorização para atirar. Esse extremo, o da fronteira rompida, causou uma comoção nacional. E vem desenhando o inferno do governador Beto Richa, explicitado por uma crise no Governo paranaense que levou até agora à demissão de dois secretários, o de Educação e o de Segurança Pública, e o comandante da PM.
De repente algo se esgarçou e tornou-se inaceitável para uma parte significativa da sociedade. Ainda houve quem tentasse transformar os professores em “vândalos”, a palavra usada para criminalizar aqueles que protestam desde as manifestações de 2013. Ainda houve na imprensa quem chamasse massacre de “confronto”, o truque para transmitir a ideia de que eram forças equivalentes em conflito. Mas as imagens e os relatos eram evidentes demais. As redes sociais na internet mais uma vez cumpriram o papel de amplificar as vozes e garantir um número maior de narrativas para dar conta da complexidade do 29 de abril. Os coletivos de mídia independente tiveram inegável importância na documentação da história em movimento.
É assustador que alguns tenham tentado justificar, em plena democracia, o massacre em praça pública dos professores do Paraná. Nessa tentativa de criminalizar aqueles que protestam e, ao mesmo tempo, legitimar a ação policial, como se as forças de segurança do Estado não tivessem se comportado como forças criminosas, há algo em curso que precisamos prestar muita atenção. Não existe equívoco de inocência nessa versão. Mas eu gostaria aqui de me deter em algo que também me parece um tanto perturbador, ainda que pelo avesso.
É sinal de esperança que grande parte da sociedade brasileira, na qual me incluo, se comova diante da violência contra os professores. Não há dúvida sobre isso. Mas cabem pelo menos duas perguntas. A primeira é: por que este é o limite que produz indignação? A segunda: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade maior?
Quando testemunho as manifestações de repúdio ao massacre de Curitiba, sinto esse misto de esperança e de incômodo. Esperança pelos motivos óbvios. Quem sabe não acordamos, todos nós, para o buraco da educação no Brasil? Inclusive porque a perda de popularidade do governador Beto Richa e a crise instalada no Governo virou um pesadelo bem vivo para o restante dos governantes.
Agora, o incômodo. O que esse limite revela sobre o que não é limite? É louvável que as pessoas se revoltem ao ver professores sangrando ou desmaiando ou sendo ameaçados por cães pit bull. Se não nos revoltássemos nem com isso seria ainda mais dramático. Mas por que testemunhar durante décadas professores brasileiros, dos diversos estados do país, ganhando um salário incompatível com uma vida digna é um fato com o qual parece ser possível conviver, tão possível que chegamos a esse ponto depois de 30 anos de democracia? Por que escolas caindo literalmente aos pedaços, naufragando a cada chuva, numa materialização explícita da situação crônica da educação pública, é algo com o qual a maioria se acostuma? Por que o fato de os professores serem ameaçados por alunos e às vezes por pais de alunos em salas de aula, num confronto entre desesperados, uma versão urbana da guerra dos miseráveis que atravessa os rincões do Brasil, é algo que se tolera?
Em resumo: pode pagar salário indecente, pode botar gente pra ensinar e gente pra ser ensinado debaixo de um teto que pode cair, pode quase tudo. Só não pode ferir com balas de borracha e sufocar com bombas de gás lacrimogêneo. Ah, pit bull também pega mal. Bem, isso os governantes acabaram de aprender que não podem fazer sem provocar repúdio dos eleitores. Já o resto... Talvez nesse sentido possa se justificar uma certa perplexidade da PM, do Governo paranaense e de alguns setores da sociedade brasileira e da imprensa tradicional: como assim, não pode bater nesses “baderneiros” que deveriam estar na sala de aula e não na praça protestando? Não pode descer o cacete nesses “vândalos” que têm o desplante de achar que a casa do povo é do povo?
Ao menos descobriu-se que há um limite para o que se pode infligir a um professor, uma fronteira demarcada pela reação da sociedade ao massacre de Curitiba. Mas que limite sem-vergonha o nosso.
Qualquer um, em qualquer classe social, em qualquer esfera de poder vai repetir que “a educação deve ser prioridade” ou que “a educação é o maior desafio para o país” ou que “sem melhorar a educação o Brasil jamais será um país desenvolvido”. É um consenso, quase uma platitude. Mas, de novo, é um consenso bem sem-vergonha. É o consenso mais vazio do Brasil contemporâneo, é quase uma flatulência. Que não se perceba o quanto fede é só mais um sinal dessa hipocrisia de salão.
De fato, uma boa parte daqueles que têm voz e poder de pressão para mudar essa situação está pouco se importando. Porque “a elite brasileira é burra”, como já disse aqui neste espaço meu colega Luiz Ruffato. Principalmente porque a elite brasileira acredita que seus filhos estão a salvo. Essa ilusão de que os “meus” filhos estão salvos, já dos filhos dos “outros” eu sinto pena, lamento, desculpe aí, queria sinceramente que fosse diferente, mas não me incomodo o suficiente para fazer disso uma grande questão na minha vida. Afinal, quem tem tempo pra isso tendo que ralar para pagar os preços exorbitantes de uma escola privada que transforma educação em mercadoria cara?
Inclusão social no Brasil significa entrar no barco dos que podem se salvar. A classe média acredita que seus filhos estão a salvo e uma parcela daqueles que ascenderam, na década passada, ao que se chama de Classe C fez um grande esforço para matricular seus filhos em escolas particulares assim que a situação financeira permitiu. Filho em escola privada – e portanto supostamente a salvo da péssima educação pública – é parte do que significa ser classe média no Brasil. Dos mais ricos, nem se fala.
É óbvio – ou deveria ser – que a má qualidade da educação oferecida a essa entidade chamada “povo brasileiro” em algum momento vai afetar os privilégios dos mais ricos. Mão de obra desqualificada é um problema sério no Brasil, com impacto em qualquer projeção de futuro. Então, ainda que por egoísmo ou por pragmatismo, a elite econômica deveria se preocupar, o que já vem acontecendo com bem poucos empresários, mas a preocupação ainda é imensamente menor do que as dimensões da catástrofe.
Talvez houvesse uma mudança real de posição se as pessoas percebessem que seus filhos estão menos salvos do que acreditam estar. Primeiro, porque escola privada e educação de qualidade não são sinônimos. Longe disso. Apenas poucas escolas, em geral as mais caras, a elite da elite, têm qualidade reconhecida. Ainda assim, são apenas medianas com relação ao nível de suas similares em países do mundo nos quais a educação é prioridade.
Segundo, educação está longe de ser apenas conteúdo formal. Educação é um processo muito mais complexo, no qual a diversidade das experiências é fundamental. É claro que aquela elite que se habituou por séculos a decodificar a diferença como inferioridade tem dificuldades para compreender a diversidade de experiências como riqueza. Para esta, o diferente era primeiro o escravo, depois o empregado ou o subalterno, alguém com quem não havia nada a aprender, já que a sua única função era servir.
Há, porém, uma elite intelectual e uma classe média com outra origem, de quem se poderia esperar uma visão menos estúpida. O que muitos pais não percebem é que a escola privada, como gueto de iguais, é um reprodutor de privilégios, mas também é um reprodutor de ignorâncias. E também um reprodutor de pobrezas não materiais. Num exemplo bem corriqueiro, em algum momento talvez os pais possam perceber que adolescentes que já andaram bastante pelo mundo em viagens protegidas mas nunca pegaram um metrô em São Paulo ou um ônibus de linha em qualquer lugar podem ter alguma dificuldade em lidar com a vida como ela é. Porque a vida como ela é chega para todos em algum momento e em alguma medida. E podem, principalmente, ter perdido um universo de experiências criadoras e criativas não apenas por serem incapazes de cruzar as pontes, mas por nem mesmo desconfiar que é importante cruzá-las.
Num país com a educação pública em ruínas ninguém está a salvo, nem mesmo os filhos da elite. Ainda que seja óbvio que estes estão bem mais a salvo que todos os outros. O que quero enfatizar é a hipótese de que a ilusão de estar a salvo cumpre um papel decisivo na manutenção das ruínas como ruínas. E na convivência com o que não deveria se poder conviver, na aceitação da indignidade como algo já dado, na tolerância ao intolerável que é a situação dos professores e das escolas no Brasil. O que quero dizer é que a comoção pública diante do massacre de Curitiba, se é louvável, é também sinalizadora da falência da sociedade brasileira, inclusive ética. Já que é pelos limites que também compreendemos a lógica de uma sociedade. E o limite aqui é: pode humilhar um professor, pode pagá-lo mal, pode submetê-lo a condições insalubres de trabalho. Não pode ferir explicitamente seu corpo.
Vale a pena compreender que a ampliação do acesso à educação formal é muito recente no Brasil. É o salto que deveria ter sido dado e ficou pela metade. Para muitos pais das camadas mais pobres, eles mesmos analfabetos ou filho de analfabetos, só o fato de conseguir matricular o filho numa escola, mesmo que seja uma instituição de má qualidade, já é um avanço. Como tem sido para os pais de Classe C ter um filho com diploma universitário, mesmo que de uma faculdade de terceira linha.
A saída encontrada pelos mais pobres, numa lição aprendida com a classe média tradicional, é individual. Por isso, uma das primeiras medidas de ascensão social é reproduzir o ciclo: matricular o filho numa escola privada, deixando a pública para os mais fragilizados, os menos visíveis, os com pouca ou nenhuma voz. O degrau seguinte daquele que historicamente foi submetido não é se tornar cidadão, mas cliente. Parece mais fácil aderir à lógica de mercado. Quem ainda não conseguiu fazer a conversão, almeja fazê-la. Acolhe a versão perversa de que a melhora está na sua mão, de que é o pai e a mãe de família que precisam mudar de classe se quiserem dar uma boa educação aos filhos.
No Brasil ainda infectado pela mentalidade de Casa Grande e Senzala, tantas vezes reatualizada para continuar em vigor, ainda é difícil para muitos compreender a educação como o direito fundamental que é. E cobrá-lo do Estado pelo caminho da cidadania. É também por conta dessa mentalidade, na qual a qualidade da educação vira um problema com solução individual e privada, e não uma luta pública e coletiva, que a revolta é abafada e os professores vão se convertendo em párias, esvaziados de dignidade, lugar e sentido.
É assim que caminha o “Brasil, pátria educadora”, país que tem um dos piores salários de professor do mundo. O lema do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (PT) apenas mais um sinal do absurdo, de uma espécie de realismo de perdição.
A tensão, porém, existe. E é grande. O fato de as escolas públicas sofrerem constantes depredações, se é sinal da violência crescente, é também sinal de que a escola falha como um lugar de acolhimento para os conflitos e também como espaço para a construção de sentidos e para a qualificação do desejo. Ainda que as causas sejam várias e complexas, é bastante óbvio que, sem outros canais para expressar a traição de uma educação que não educa, resta a violência mais primária. Também porque a escola pública, que deveria dar condições de representação, não representa. E assim vai fracassando ao ser reduzida a uma tentativa perversa de conter a tensão causada pela fratura racial brasileira.
A depredação das escolas por alunos é também uma resposta tortuosa à depredação original, a do Estado, que deixa as escolas apodrecerem, dando provas evidentes de que aquele que lá está é considerado cidadão de segunda ou terceira categoria. A violência direta de alunos e, às vezes, também de pais de alunos contra professores é também o sinal de que a lição dada pelo Estado foi bem compreendida: professor vale pouco, quase nada.
Enquanto alunos e professores se violentam mutuamente, aqueles que têm a responsabilidade de mudar essa situação não são incomodados. É conveniente que as vítimas se agridam entre si, muitas vezes dentro de escolas cada vez mais parecidas com bunkerspara se proteger da comunidade, o que em si já expõe o tamanho da tragédia. Se essa realidade ultrapassa os muros da escola para ocupar espaços geográfica e simbolicamente mais centrais, chama-se a PM. Que os policiais militares, também eles servidores mal pagos do Estado, façam o serviço sujo. E então homens públicos como Beto Richa sentem-se à vontade para declarar, rosto compungido: “Não tem ninguém mais ferido do que eu. Eu estou ferido na alma. O mais prejudicado hoje sou eu”.
Não, governador. Mas não mesmo. Valeu a tentativa, mas não vai colar.
Agora, a segunda pergunta que lancei no início desse artigo, e que diz respeito ao jogo entre o visível e o invisível. Ou, repetindo: o quanto o que se tornou visível apenas revela e reforça a invisibilidade de fundo? O sangue dos professores no massacre de Curitiba os tornou visíveis para o país, mas essa visibilidade é um tanto ilusória. Neste momento, greves de professores esvaziam salas de aula em vários estados e municípios brasileiros. E cadê a surpresa? Cadê o susto? Cadê as manchetes? Cadê a indignação? É muito menor do que o bom senso e a catástrofe educacional brasileira sugeririam.
Por isso. Porque pode. Na prática tornou-se aceitável que os mais pobres fiquem sem aula ou tenham educação de má qualidade. Só não pode é sufocar professor com gás e ferir professor com bala de borracha no centro. Aí passa dos limites. Aí exagerou, né, tio. Aí a sociedade grita. Não deixa de ser uma versão do “estupra mas não mata”.
Talvez o paradigma seja o estado de São Paulo, governado há mais de 20 anos pelo PSDB. Em São Paulo, os professores estão em greve há quase dois meses, mas o governador Geraldo Alckmin chegou a afirmar: “Na realidade não existe greve de professores”. Faltou explicitar em qual realidade.
Geraldo Alckmin é talvez o político que mais mereça a atenção do país no momento, mais até mesmo do que seu colega Beto Richa. Subestimado com o apelido de “picolé de chuchu”, o que apontaria uma suposta falta de personalidade, parece ser de longe uma das criaturas políticas mais nebulosas do Brasil atual. Sobre Alckmin, a academia deveria estar escrevendo teses, e a imprensa, perfis de peso. O apelido não tem nenhum lastro na prática concreta do Governo.
O governador de São Paulo escolheu na sua expressão pública, no trato com a população e com a imprensa, a política da negação. O que prejudica sua imagem e seus ambiciosos planos eleitorais não existe. Não existe racionamento de água, não existe greve dos professores. E, o mais surpreendente: funciona. Geraldo Alckmin se reelegeu no primeiro turno, em plena crise hídrica, dizendo que não existia crise. Agora, enfrenta a greve dos professores com a mesma fleuma. Enquanto Beto Richa, que começava a se tornar um expoente do PSDB, mandou a PM massacrar professores, Alckmin prefere fingir que os professores em greve não existem. Onde está a maior perversão? Ou a maior esperteza? Beto Richa com a popularidade em queda livre, chamado de “Rixa” e até de “Ritler” em artigos e posts nas redes sociais; Alckmin, o “picolé de chuchu”, avançando, apesar de todas as crises, olhos fixos na eleição presidencial de 2018.
Só posso sugerir que Geraldo Alckmin conhece bem seus eleitores.
Em 1965, com o nome de Palácio dos Bandeirantes, foi inaugurada a nova sede do Executivo. Na cerimônia, o governador Adhemar de Barros comemorou o fato de a nova casa distar 13 quilômetros da antiga sede do governo, o Palácio dos Campos Elíseos, no Centro: “Aqui eu posso ficar em paz. Posso caminhar sem que ninguém me peça dinheiro ou emprego.” Em 1966, quando o fim do mandato o obrigou a se afastar daquele jardim, Adhemar era o político que havia governado São Paulo por mais tempo, desde que os governadores passaram a ser eleitos pelo voto direto, em meados do século XX.
Em 8 de março de 2013, o recorde de Adhemar de Barros foi quebrado por Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho. O médico anestesista de 62 anos, nascido em Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, casado, pai de três filhos e avô de quatro netos, já passou, até 1º de dezembro deste ano, 3 281 dias no comando do estado que reúne 22% do eleitorado brasileiro. Desde que ocupa o Palácio dos Bandeirantes, não foram poucas as vezes que o tucano anunciou a volta da sede do governo para o Centro. Mas, assim como Adhemar, preferiu a paz no Morumbi.
No último dia 5 de outubro, Alckmin foi reeleito em primeiro turno com 12 230 807 votos. O feito renderá ao PSDB, principal partido de oposição ao governo federal, 24 anos no poder do estado que representa 32% da economia nacional, com um Produto Interno Bruto de 1,4 trilhão de reais. A proeza é ainda mais significativa levando em conta que muitos, inclusive entre os próprios tucanos, consideram sua gestão medíocre. O governo não tem uma grande marca. Saúde e segurança pública são criticadas pela população. A execução de programas-chave foi lenta, e ele não conseguiu cumprir promessas, como a que fez em 2012 sobre a expansão do metrô: dos 30 quilômetros prometidos, entregou 4.
Seu secretariado é um condomínio do qual fazem e fizeram parte deputados sem conhecimento técnico das respectivas pastas, oriundos de partidos da sua base na Assembleia: do PRB de Celso Russomanno e do PP de Paulo Maluf ao PSB de Marina Silva, são quinze legendas no total. No último ano, Alckmin também viu trincar o discurso da ética na esteira do escândalo de corrupção envolvendo o cartel dos trens, no qual integrantes do PSDB e servidores públicos são acusados de participar de um esquema de cobrança de propina de fornecedores do Metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, a CPTM. A tropa de choque de Alckmin na Assembleia enterrou alguns pedidos de investigação do caso.
Como se não bastasse, o estado passa pela maior crise de abastecimento de água da história. O Sistema Cantareira – com capacidade para 978 bilhões de litros, responsáveis por abastecer 8,8 milhões de pessoas, quase metade dos moradores da região metropolitana de São Paulo – secou. A despeito disso, Alckmin venceu a disputa eleitoral em 644 das 645 cidades do estado, incluindo a capital.
Em uma reunião realizada na ala residencial do palácio, depois da vitória, o sociólogo Antonio Lavareda, responsável por pesquisas qualitativas com grupos de eleitores, declarou ao próprio Alckmin: “A sua eleição ocorreu mais pela aprovação à sua imagem do que pela sua gestão.” Sobretudo entre eleitores de baixa renda, a imagem do governador é imbatível. Sua figura pública, associada à ética e ao respeito à família, o transforma numa espécie de Teflon: nele não colam denúncias de desvios ou corrupção.
“Ele é um cara conservador, extremamente católico. Tem uma atitude republicana e uma visão cristã das coisas. Entende que o Estado tem que ajudar os mais pobres, mas não é nem de longe um revolucionário. É um Montoro sem a mesma solidez democrática”, explicou um dos responsáveis pelas pesquisas encomendadas pelo governo tucano, comparando Alckmin ao governador André Franco Montoro (1983–87). “Ele não é elitista, parece uma pessoa comum da classe média. Por isso, praticamente não precisa de pesquisas de grupo. O que ele pensa é o que pensa a média da população paulista”, comentou um integrante da campanha.
No domingo da reeleição, o tucano comeu uma feijoada no almoço, no próprio palácio, e a seguir foi para a sala de tevê da ala privativa acompanhar a apuração. Enquanto lia os jornais do dia, espiava o desenrolar da votação num telão – assim como o jardim de inverno palaciano, um legado de José Serra. Na sala também estavam a primeira-dama, Maria Lúcia Alckmin, que todos conhecem como Dona Lu, e os filhos Sophia, Geraldinho e Thomaz, além do amigo Frederico D’Ávila e sua mulher. Mais tarde chegou o médico acupunturista chinês Jou Eel Jia, também amigo do tucano.
“Pai, não tem mais jeito. A partir de agora, para você não ganhar, todas as urnas terão que ser contra você”, antecipou Geraldinho, filho do meio, que trabalha na área de seguros do banco Santander. “Vamos aguardar”, Alckmin respondeu. Pouco depois, a GloboNews anunciava que ele estava matematicamente reeleito. Comemoração no ambiente, com pulinhos, palmas e abraços. “Gegê!”, saudou-o a primeira-dama, beijando o marido.
O telefone começou a tocar. “Ministro, muito obrigado”, disse Alckmin ao petista Alexandre Padilha, ex-titular da Saúde, que ligara para cumprimentar o adversário pela vitória. Depois foi a vez de Paulo Skaf, do PMDB, que ficou em segundo lugar: “Ô, Skaf, parabéns pela campanha.” Ao redor dele, caretas e xingamentos com as mãos apontadas em direção ao telefone. Alckmin pediu ao ajudante de ordens Carlos José Benassi que trouxesse sua jaqueta e seguiu para a comemoração na sede do PSDB. Voltou para casa depois das dez da noite, ainda jantou peixe com legumes, tomou uma Coca-Cola e foi dormir.
Quatro dias após a vitória de seu candidato, às vésperas de viajar para descansar e jogar golfe, Nelson Biondi, marqueteiro de Alckmin, sentia-se à vontade para dar pitacos no segundo turno entre Aécio Neves e Dilma Rousseff. “Pernambuco vai desequilibrar essa porra a favor do Aécio. Mineiro é foda... Mas virá muita pancada. Vão tentar desconstruir ele como gestor. Mortalidade infantil: uma bosta em Minas. Não construíram uma escola técnica. Vão usar o conceito ‘quem conhece Aécio não vota nele’”, comentou, do alto de sua sala envidraçada, numa produtora com mesas e ilhas de edição vazias. Do rescaldo da campanha, uma letra A gigante, de Alckmin, colada no vidro, nas cores da bandeira paulista (preta, branca e vermelha), seis televisões penduradas na parede, duas delas já desligadas, e dois potes com restos de frutas secas e pistaches, abandonados na mesa de reunião.
“Eu disse lá atrás: eles viriam para a desconstrução do governo. E tinha aí um caralhão de coisa. Sei lá, qualquer equívoco de política pública. Eles tinham a segurança para falar pra cacete, a crise da água, o negócio de cartel. Só que foram batendo em assuntos que eram o contrário da percepção do eleitor”, disse Biondi. “O eleitor abria a torneira e tinha água. Pô, uma limonada!”, completou o marqueteiro.
Biondi chegou até Alckmin pelo subsecretário de Comunicação, Marcio Aith. Com trajetória na Gazeta MercantilFolha de S.Paulo e revista Veja, Aith se tornou um dos homens fortes do governo. O jornalista é apontado como o grande responsável por conferir ao tucano um perfil menos contemporizador, incentivando-o a confrontar abertamente seus críticos e adversários, deixando para trás a velha imagem do “picolé de chuchu” – apelido dado em 2000 por José Simão. Ex-sócio de Duda Mendonça e ex-marqueteiro de Paulo Maluf e Serra, Biondi sustenta que há uma dissonância entre a imagem de “picolé de chuchu” e o modo como o eleitor enxerga o governador, “um cara com pulso”.
Alckmin, com 76 quilos, distribuídos por 1,74 metro, não pode ser chamado nem de alto nem de baixo; não é gordo, mas tampouco é magro. Olhos, boca e orelhas são discretos e simétricos, não demarcam território. A calvície é disfarçada por fios de cabelo nas laterais e no cocuruto, sempre engomados e penteados para trás.
O traço mais marcante de sua fisionomia é o nariz pontiagudo, que evoca a figura de Cyrano de Bergerac, mas até esse detalhe é de certa forma neutralizado pelos óculos retangulares, de aros finos. Nas ruas, percebe-se que, mesmo após tanto tempo de poder, o paulista nem sempre o reconhece. “Ei, vi você no Silvio Santos!”, gritou uma mulher durante uma caminhada num parque na Zona Norte da capital. “Tudo bem, querida?”, respondeu o tucano, com seu cumprimento protocolar. A moça virou-se para mim e perguntou: “Quem é esse mesmo?” Alckmin conta que é confundido com Britto Júnior, apresentador da Record, e que já o chamaram de Serra e até de Maluf.

Vestindo uma camisa azul, de mangas arregaçadas e com o monograma NB, uma corrente de ouro no pescoço, Biondi levantou-se da cadeira e começou a procurar alguma coisa pelo escritório. Voltou com uma pasta de plástico, de onde tirou dados de pesquisas. Passou a explicar que a boa avaliação do governante em áreas críticas, como saúde e segurança, se dá pelo reconhecimento do empenho em resolver os problemas. “Quem era mais capaz de melhorar a saúde? Ele. A educação? Ele. Gerar empregos? Ele. Melhorar a segurança? Ele. Isso apesar da expectativa de que os Seus Fudêncios fossem as novidades da eleição e tal. Picas!”, disse o marqueteiro, referindo-se a Skaf e Padilha, supostas novidades no cenário eleitoral. “E o Alckmin tinha o que mostrar. O estado que mais prendeu no país foi São Paulo”, completou. A propaganda tucana se orgulhava de dizer que São Paulo abriga a maior população carcerária do Brasil, com 221 mil pessoas atrás das grades – num sistema que comporta 128 mil.
O eleitor típico de Alckmin é pobre, tem escolaridade baixa e renda familiar de até dois salários mínimos. “Foi esse pessoal que nos elegeu”, comentou o governador dois dias após sua vitória, em visita à favela de Paraisópolis, a menos de 2 quilômetros do Palácio. Ele costuma ir lá uma vez por semana. Toma cafezinhos e conversa com moradores, ao lado do motorista e do ajudante de ordens. Gosta de dizer que, quando aparece no Palácio um “caboclo meio chique”, propõe um passeio pela favela. “Nego toma um susto”, disse, empregando um vocabulário mais informal do que de costume, acompanhado de um sorriso malicioso, típico dos momentos em que dispara pequenos comentários sardônicos. “Hoje aconteceu um fato histórico”, ele disse em agosto, durante a campanha, num café no Centro da cidade, com o mesmo sorrisinho estampado: “José Serra estava na porta de uma fábrica, às seis da manhã, acordado.”
O interior paulista, onde vive a maior parte do eleitorado do estado, está para o tucano como o Nordeste está para Lula. Lá, 53% das pessoas consideram seu governo bom ou ótimo, contra 38% na capital. São eleitores majoritariamente católicos, conservadores e mais velhos. Querem, acima de tudo, ordem. “Não explorei o episódio do Carandiru porque eu tinha muito medo de que as pessoas achassem o massacre do caralho”, contou Biondi sobre a decisão de não criticar o assassinato de 111 presos pela polícia durante o governo de Luiz Antônio Fleury Filho, que coordenou a campanha de Skaf. “Os caras querem...” Interrompeu a fala, pensou e completou: “Bandido bom é bandido morto. Hoje isso tem muito respaldo na sociedade.”
Embora fosse domingo, Alckmin estava vestido formalmente, de calça bege, camisa branca e paletó azul-marinho, quando cheguei a seu gabinete, no final de uma manhã de novembro. O ambiente, com paredes de lambri e pé-direito duplo, é decorado por móveis escuros, tapete oriental e um jogo de duas poltronas e sofá de couro azul, atrás do qual há um tríptico representando os bandeirantes. Do lado oposto ao sofá fica a mesa de trabalho, quadrada e com pernas torneadas, que pertenceu ao governador Rodrigues Alves, “o último presidente paulista”.
Assim que entramos, o tucano dispensou o ar-condicionado e começou a abrir cada um dos quatro janelões do gabinete. Perguntei a ele a que atribuía sua vitória, a despeito da conjuntura desfavorável. Alckmin se levantou da poltrona e pegou de cima de sua mesa um papel dobrado. Mostrou um mapa azul, pontuado por pequenas manchas vermelhas, ilustrando sua vitória sobre o PT em 594 das 645 cidades do estado na eleição de 2010. Excluindo a região metropolitana, as demais cidades onde o PSDB havia perdido tinham em comum a presença de assentamentos de reforma agrária.
“Por que as pessoas que foram assentadas não votam no PSDB? A minha tese é a seguinte: em política, você não obriga, você conquista. Então, fui aos assentamentos, ouvi as pessoas, levei energia elétrica, criei um programa de compras governamentais direto da agricultura familiar. Nenhum paternalismo, nenhum assis...”, interrompeu antes de completar a palavra assistencialismo. E continuou: “Todo apoio ao trabalho.” Animado, desdobrou o papel, como se encerrasse um suspense: surgiu um enorme mapa do estado, bem maior que o anterior, agora todo azul, com um único micropontinho vermelho, o município de Hortolândia, governado pelo PT. Era o resultado da eleição deste ano. “Não tem nenhum município aqui com reforma agrária em que eu tenha perdido. Então, não tem essa história de que o eleitor tem carteirinha.”

No fundo de um corredor no 3º andar da Câmara Municipal de São Paulo fica o gabinete do vereador tucano Mario Covas Neto. Zuzinha é filho do governador Mario Covas, que Alckmin sempre menciona como sua maior referência política. “Geraldo é o condutor seguro. Você quer ir para o Rio de Janeiro, pode chamar o Geraldo. Ele vai estar com o pneu calibrado, a revisão do carro feita, não vai faltar gasolina, não vai ultrapassar velocidade e vai chegar com segurança. No entanto, se tiver um congestionamento, não espere que ele faça um desvio”, resumiu o vereador, para quem Alckmin sempre teve o mesmo estilo, “o de um sujeito meio mineiro, que evita polêmicas, bola dividida, é extremamente gentil e educado com as pessoas.” Com um retrato do pai ao fundo, Zuzinha disse que essa característica colocou Alckmin numa posição equidistante entre os diferentes grupos do partido, e fez com que ganhasse espaço no PSDB: “Era o elemento neutro, o que não tinha vinculações tão nítidas e não causava problemas a ninguém.”
Em 1994, Alckmin era deputado federal e ocupava a presidência do PSDB paulista, durante a qual rodou, ora de ônibus, ora num Gol, todas as cidades do estado. Passou a ser cotado para vice na chapa de Covas, ao lado do economista Walter Barelli. Covas tinha simpatia por Barelli, mas, num movimento conciliatório, chamou a seu apartamento deputados do PSDB e abriu o tema para votação. Alckmin foi o preferido. “Tinham que escolher um candidato que fosse palatável para o Covas, mas que também fosse para o Montoro, o Fernando Henrique e o Serra. O Geraldo era essa pessoa”, lembrou Zuzinha.
 No Palácio dos Bandeirantes, Alckmin manteve uma atuação discreta e dedicou-se ao Programa Estadual de Desestatização. “Ele teve uma atitude absolutamente colaborativa, e isso foi conquistando o meu pai.” Em 2000, Covas decidiu dar peso político a “Geraldinho” e o escolheu candidato a prefeito da capital pelo PSDB. Por sorte de Alckmin, ele perdeu a eleição – Maluf, que a seguir seria derrotado por Marta Suplicy, passou ao segundo turno com uma ínfima vantagem de votos sobre o tucano. Quatro meses depois, no dia 6 de março de 2001, Covas morreu de complicações de um câncer, e Alckmin, aos 48 anos, tornou-se governador de São Paulo.
Os covistas não engoliram “Geraldinho” no início. O novo ocupante do Palácio dos Bandeirantes era visto como um político menor, a cara de Pinda – como todos se referem a Pindamonhangaba. Em 2002, apesar das desconfianças, Alckmin disputou a reeleição e venceu. Mais à vontade com o próprio mandato, livrou-se de representantes do Ancien Régime. “Ele não tem turma. É superelegante, faz elogios, mas ele não te abraça, mantém uma distância. É uma fraqueza dele. Ele não consegue dar intimidade”, avaliou Zuzinha, sorridente, com o rosto rechonchudo e os cabelos penteados para trás, da mesma maneira que o pai.
Quando cumprimenta as pessoas com um abraço ou aperto de mãos, Alckmin inclina o tronco em direção ao interlocutor, como na tradição oriental, mantendo plantada no chão a base dos pés, com as pontas voltadas para fora, de modo que metade de seu corpo nunca se aproxima da pessoa.
Instado a falar sobre suas amizades, o governador discorreu genericamente sobre amigos de Pinda e familiares. Citou apenas um nome, o do discretíssimo assessor especial Orlando de Assis Baptista Neto. Orlandinho, como é chamado o advogado de Caçapava, interior paulista, trabalha com Alckmin há trinta anos. “É um servidor. O menino não tem carro, é formado em direito pela Universidade de Brasília, ia fazer Itamaraty, fala três línguas fluentemente”, destacou Alckmin, que preza o fato de o assessor andar de metrô. Uma de suas missões é ler o Diário Oficial, assinalar com caneta vermelha contratos que secretários firmam sem licitação e levar ao chefe. Ele se recusou a conversar com a piauí.
Alckmin é invariavelmente apontado como uma pessoa fria, característica quase sempre associada a sua formação de anestesista. Costuma ser econômico ao emitir qualquer opinião, sobretudo quando se vê diante de polêmicas. Nessas situações, o governador pressiona os lábios com força, como se dramatizasse involuntariamente que não vai dizer o que está pensando. Sua boca também assume com frequência o formato de meia-lua, numa espécie de sorriso ao mesmo tempo teatral e reprimido. Além da expressão labial, a tensão de Alckmin costuma se manifestar em crises de soluço ou no aparelho digestivo. Neste ano, foi parar duas vezes no hospital, vítima de problemas no intestino: durante a campanha e um mês após a eleição.
Obsessivamente didático, o governador fala de maneira hiperarticulada, sempre se-pa-ran-doas sí-la-bas. Usa muito as mãos, seja para reforçar com mímica o conteúdo do que diz (por exemplo, esticando o polegar e o indicador para imitar uma pistola ao mencionar que a polícia está sendo reequipada), seja para enumerar princípios de vida. “Acordar cedo, deixar a luz do sol entrar no quarto, fazer exercícios físicos para liberar a serotonina, manter uma alimentação balanceada”, diz pausadamente, apertando cada um dos dedos de uma das mãos com o indicador e o polegar da outra ao ensinar o que se deve fazer para evitar o estresse.
O interlocutor quase sempre é mantido numa zona de conforto delimitada pela entonação do discurso, ao mesmo tempo que é atraído por esses mantras que ele repete ou por histórias envolvendo “o saudoso” Covas, o passado em Pinda, contos de Monteiro Lobato e nomes de lugares bem decorados. “Bo-tu-ca-tu. Em indígena: bons ares”, disse-me durante um ato de campanha no interior. É comum vê-lo suprimir verbos das orações e acelerar a última palavra para impor ritmo à sentença.
Também costuma fazer perguntas, a que ele mesmo responde – um cacoete retórico dos tempos em que dava aulas de química orgânica num cursinho para pagar a faculdade de medicina em Taubaté. “Há uma lei da química: nada se cria, nada se perde, tudo se...? Trans-for-ma. Então, esse é o rio Pinheiros, que vai desaguar na...? Billings. Na re-pre-sa Billings”, repetiu, com um mapa na mão, ao anunciar a jornalistas medidas para a crise de abastecimento de água, na Zona Sul da capital.
Alckmin ainda recorre a algumas citações, que repete em diferentes situações. Uma delas ouvia do pai, que a atribuía a santo Antônio de Pádua: “Se não puder falar bem, não fale nada.” Vale-se também de Santo Agostinho: “Prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me adulam, porque me corrompem.” E preza um conselho que diz ser do presidente argentino Juan Domingo Perón à sua terceira mulher e sucessora, Isabelita: “Fale muito das coisas, pouco das pessoas e nada sobre você.”

Em 2006, ainda governador, lançou-se candidato a presidente, chocando-se com as pretensões de José Serra, então prefeito de São Paulo. Ficou célebre a foto no extinto restaurante Massimo – conhecido pela excelência da cozinha e pelo preço extorsivo do cardápio –, onde Fernando Henrique Cardoso, Aécio e Serra se reuniram durante um jantar e tomaram duas garrafas de vinho no valor de 600 reais, enquanto discutiam a candidatura tucana. Nesse mesmo momento, Alckmin estava num rodízio de carnes de 15,90 reais, conversando com o baixo clero do partido. Serra depois decidiria se lançar ao governo do estado, e Alckmin, sem o respaldo do alto comando do tucanato, disputou o Planalto.
“Naquela eleição, nem Jesus Cristo com Roberto Carlos de vice ganharia do Lula”, disse o senador Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB paulista, em julho, numa conversa no comitê de Aécio, em São Paulo, de quem foi candidato a vice. Em Minas, Aécio tentava a reeleição e divulgava oficiosamente a chapa “Lulécio”, fazendo de tudo para descolar sua imagem de Alckmin. Eleito governador no primeiro turno, Serra viajou para o exterior, ignorando o colega de partido.
Enredado pela campanha do PT, que o acusava de defender a desestatização de tudo no país, Alckmin passou praticamente todo o segundo turno tentando se desvencilhar da pecha de privatizador contumaz, submetendo-se a posar diante das câmeras com um bonezinho do Banco do Brasil e uma jaqueta com logomarcas da Petrobras, da Caixa Econômica Federal e dos Correios. Conseguiu uma façanha: terminou a campanha com 2,4 milhões de votos a menos do que teve no primeiro turno. Derrotado de forma humilhante e abandonado, tentou ser presidente do PSDB. Serra e Aécio o impediram.
Em meados de setembro, num domingo, quase oito da manhã, Alckmin apareceu na porta da ala residencial no Palácio dos Bandeirantes. Tinha a voz um pouco rouca, de quem havia acabado de acordar, e vestia uma camisa branca com as mangas já arregaçadas. Encaminhou-se para a sala de jantar, adornada com pratos de porcelana, lustre e tapete oriental, e sentou numa das cadeiras de veludo bege, onde está bordado um brasão do estado. Iniciou o dia com chá.
A duas semanas da eleição, a agenda de campanha começaria em uma hora, e ao longo do dia o candidato tomaria em torno de dezoito cafés. “Café que não se deve tomar demais é o expresso”, comentou. Alckmin usa os cafezinhos para se aproximar do eleitor, assim como a paradinha para fotos, que sempre assente com um simpático “opa” ou um animado “claro, querida”.
No carro, a caminho da Zona Leste, perguntei a ele o que acha de Lula. “O Lula é o showman, né? É o encantador.” Gosta do petista? “Não, eu o respeito, acho que ele é uma pessoa inteligente. O cara tem méritos, até a perseverança dele, foi cinco vezes candidato a presidente. Mas é um estilo de política que não me agrada. O PT é difícil. Eu nunca fui próximo do PT. Você tem uma ala em que é inacreditável a falta de limites. Mas tem bons quadros, como todos os partidos.” Alckmin estava sentado no banco da frente, ao lado do motorista. Não anda de carro blindado e diminuiu a segurança pessoal, na contramão de Serra. Alega que isso pode pegar mal perante a população. Sobre Dilma, foi mais elogioso: disse querer manter uma relação “pro-fí-cua, pro-fí-cua” com a presidente, que “sempre agiu de maneira correta”.
Após perder a eleição presidencial, o tucano resolveu se candidatar a prefeito em 2008. Mais uma vez se chocava com José Serra, que apoiava a reeleição de Gilberto Kassab, então na prefeitura. “Foi um problema, porque o PSDB vinha participando com o Kassab no governo. Toda a prefeitura era nossa. Como você vai virar oposição?”, perguntou o ex-governador Alberto Goldman, velho aliado de Serra, em sua sala no comitê de Aécio, em agosto. “Estive várias vezes com o Alckmin para tentar demovê-lo. Ele dizia que gostaria de ser prefeito, porque o prefeito está mais próximo do povo. Eu, o Aloysio e o Serra chegamos a dizer que ele poderia ser o candidato ao governo do estado. Mas ele manteve a posição. E aí não teve jeito.” Boicotado pela máquina tucana controlada por Serra, Alckmin sequer passou para o segundo turno. Saiu da campanha com a imagem de Quixote.
No final de 2009, Serra era governador e se preparava para disputar a Presidência. “As pesquisas davam o Alckmin como o mais popular, o favorito para disputar o governo do estado. E num determinado momento o Serra consultou a mim e ao Goldman sobre o que achávamos de trazê-lo para o governo. Ele achava importante para unificar o partido”, lembrou Aloysio Nunes. Vivendo então seu ostracismo, Alckmin dava palestras e aplicava sessões de acupuntura num hospital público. Aceitou na hora o convite para ser secretário de Desenvolvimento Econômico. Aproveitou para viajar pelo interior e inaugurar o que tinha pela frente. Preparou sua volta e, no ano seguinte, elegeu-se governador, no primeiro turno, com 11,5 milhões de votos.

A assinatura de Alckmin consta em sétimo lugar na fundação do PSDB, ao qual ele gosta de se referir como “a social-democracia brasileira”. Mas, num partido em que os dirigentes contam histórias do exílio no Chile e em Paris e gostam de flertar com hábitos e representantes do topo da pirâmide social do país, Alckmin é tido como um redneck. Não bebe, não fuma, não fala francês. FHC e Serra sempre viram nele um político provinciano, de horizonte acanhado, que cultiva valores paroquiais e está à direita do que, em tese, estariam os ideais do partido.
 No palácio, Alckmin tem como secretário particular um integrante do Movimento Endireita Brasil, e um dos colaboradores mais prestigiados é o polêmico promotor Saulo de Castro Abreu Filho, que ocupa a Casa Civil. Ex-secretário de Segurança Pública, Abreu coleciona no currículo troféus como a Operação Castelinho, que resultou na execução pela polícia de doze supostos integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), em 2002. Socialmente, o governador convive com João Doria Júnior, empresário e apresentador de tevê apelidado de “Riquinho”, que em 2007 fundou o movimento “Cansei”. A família de Alckmin é de políticos da União Democrática Nacional (UDN), partido formado em 1945 em oposição ao populismo getulista e com forte vocação moralista. Os irmãos do seu pai foram eleitos prefeito e vereador em cidades do interior pelo partido conservador.
Quando o questionei sobre a fama, Alckmin repetiu o conselho de Perón a Isabelita a respeito da discrição. E acrescentou: “Então, eu não sou uma pessoa autocentrada, de ficar falando de mim. Agora, é só você verificar.” Passou a enumerar da participação no diretório acadêmico da universidade, “ligado à esquerda”, à eleição como vereador e prefeito de Pinda, nos anos 70, pelo MDB, que fazia oposição ao regime militar, e sobre o qual sempre se refere como a turma do “Manda Brasa”. “Agora, o que eu não sou é elitista.”
Defendeu que seus governos promoveram o que chama de “atitudes de vanguarda”, como a lei de combate ao trabalho escravo, de 2013. Foi até sua mesa de trabalho e exibiu a cópia da lei de combate à homofobia, que estava devidamente grifada e já posicionada à sua espera – a lei foi promulgada por ele, em 2001, após proposta do deputado petista Renato Simões. O tucano aceita o aborto apenas nos casos previstos em lei e se coloca contra a descriminalização do uso das drogas, embora diga que está aberto para o debate. Ao ser indagado se já experimentou maconha, respondeu que nem cigarro normal ele tragou: “Eu tentei fumar um cigarro, mas não entrou, não passou.”
O desprezo pelo elitismo, de que se orgulha, também assume a forma de certo desdém pela academia. Alckmin se refere com ironia a “esse pessoal da Brown”, uma das mais prestigiadas universidades americanas, onde FHC lecionou.
O vínculo do governador com o universo intelectual se exprime na admiração pelo deputado federal Gabriel Chalita, ex-secretário da Educação do governador. Doutor em filosofia do direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de mais de sessenta livros – entre os quais Seis Lições de Solidariedade, escrito em parceria com a primeira-dama, a partir de diários de Dona Lu –, Chalita exaltou a curiosidade cultural de Alckmin: “Ele gosta de teatro, de cinema. Foi ver o Juca [de Oliveira] no Rei Lear. Adora. Aí, ele começa a ler um pouco mais de Shakespeare porque acha que a atualidade daquilo é muito legal. Mas ele não foi estudar fora, fazer uma carreira acadêmica. Ele fez uma opção de vida, é um homem que se dedicou à política”, contou o deputado, hoje no PMDB, durante um almoço num bistrô em Higienópolis, na Zona Oeste de São Paulo, onde mora.
Os dois se conheceram quando Chalita era vereador numa cidade do Vale do Paraíba. “Alckmin começou a ir a todas as cidades do fundo do Vale para fundar o PSDB, e nós íamos junto. E era muito legal porque ele pedia para eu contar sobre um filósofo. Aí a gente ficava a viagem falando. E é engraçado porque ele sempre foi muito metódico. Dizia: ‘Que ano nasceu Platão? Como chamava a mãe dele, o pai dele?’”
“Ele começou no Monteiro Lobato e parou por lá. Nunca mais leu nada”, atacou um ex-governador, que pediu anonimato. É comum dirigentes tucanos o diminuírem dizendo que ele não fala inglês. O tucano morou cinco meses em Harvard, em 2007, depois que perdeu a eleição, onde fez um curso de políticas públicas, e teve logo a seguir um professor particular. Alckmin aproveitava para ouvir as aulas no som do carro, entre compromissos. Agora, diz que mantém o inglês lendo revistas. Num evento em agosto, ao falar das estâncias turísticas do estado, mencionou a prática de rafting, descida de bote em correntezas: “Em Brotas tem réf-tim. Lá em Pindamonhangaba é rala-bunda mesmo. Pessoal chique é outra coisa.”
Ele diz que leu “quase tudo” de Machado de Assis, Eça de Queiroz (A Cidade e as Serras), Dostoiévski (Crime e Castigo) e “tudo” de Monteiro Lobato. Em tom solene, narra de cabeça um trecho intrincado de “A vingança da peroba”, conto de Lobato. “Mas eu gosto do Fabio Feldmann [ex-deputado]. Ele pega aqueles livros de 300, 400 páginas, e já manda grifado. Pô, para você pegar um livro de 400 páginas, precisa tirar férias”, disse, ao comentar que vai direto para as partes assinaladas pelo colega.
Toda noite, Alckmin se dedica às palavras cruzadas e ao passatempo japonês Sudoku – deste último, só o nível difícil ou diabólico. Durante uma visita a uma represa do Cantareira, no final de agosto, pediu um jornal para mostrar a uma roda de jornalistas e de engenheiros da Sabesp qual a melhor maneira de fazer o jogo. “Você tem que dobrar, dar a batidinha, dobrar de novo. Aí, vira aqui e com a caneta faz”, explicou, com o jornal dobrado em quatro partes. Depois, contou que havia protestado com a direção do Estadão sobre o tamanho do jogo. “Não pode esse negócio. Tá muito miudinho.”

A maior referência na vida de Alckmin é seu pai. Geraldo José Rodrigues Alckmin era veterinário, ex-seminarista e integrante da Terceira Ordem de São Francisco. Trabalhou como chefe de gabinete na Secretaria de Agricultura no governo Jânio Quadros e como chefe de gabinete do próprio Alckmin, em Pindamonhangaba. “Um santo, impressionante”, falou durante o café da manhã no palácio. Colocou a mão no bolso direito da calça, de onde retirou um velho terço de madeira. “Este terço meu pai rezou a vida inteira. Ando com ele todo dia.” O terço lhe foi dado por um sobrinho, que o encontrou nas coisas do avô após ele morrer, em 1998. Era a segunda vez que Alckmin me contava a mesma história, repetindo o mesmo ritual de retirar o terço do bolso direito. A primeira havia ocorrido semanas antes, em Botucatu.
“Mamãe morreu em 1963. Papai foi pai, mãe, padrinho e parteiro.” Ele tinha 9 anos quando Myriam Penteado Rodrigues Alckmin morreu de complicações decorrentes de uma bronquite asmática. Para criá-lo, Geraldo pai contou com a ajuda das duas filhas mais velhas, Maria Isabel, a Bebé, e Maria Aparecida, a Mimi, e da babá Terezinha dos Santos, a Nhá, com a família até hoje. Para o pai e para as irmãs, Alckmin é o “Paiau”, uma tentativa de Mimi reproduzir o vocativo “palhacinho da mamãe”, cunhado por Myriam. A família viveu dezessete anos num sítio em Pinda, onde funcionava uma fazenda experimental do governo para a qual o pai, especialista em piscicultura, foi nomeado responsável.
“Meu pai era muito religioso, todo dia a gente tinha que rezar o terço, cada um rezava um mistério. Todo domingo era missa. Meu pai falava: ‘Não vou deixar dinheiro para vocês, mas uma formação religiosa eu vou deixar.’ A gente rezou demais nessa vida”, disse Mimi em sua casa em Pinda, uma construção típica de classe média do interior paulista, com varanda e um pequeno jardim na frente. Com 64 anos, falante e sorridente, vestindo uma blusa florida, Mimi me recebeu para um café com a irmã mais velha, Bebé, de 67 anos, no dia 13 de agosto, data do acidente aéreo que matou Eduardo Campos. “Meu irmão acabou de aparecer na televisão”, comentou. Num aparador, sob a luz fria da sala, o adesivo “Aécio 45”. Bem mais loquaz que Geraldo, Mimi tem os cabelos curtos e claros, assim como os olhos, que puxou da mãe e da avó paterna, Ida Ravache, descendente de alemães. A atriz Irene Ravache é prima dos filhos do seu Geraldo. O governador diz que essa é a “parte bonita da família” e, ao olhar para o secretário Marcio Aith, que acompanhava nosso café da manhã no Palácio, disse que as sobrinhas “são de parar o trânsito”.
Enquanto comia um pedaço de pão com queijo, o governador citou de cabeça, um por um, todos os mistérios do terço. Começou pelos cinco “gozosos”, que eram rezados às segundas-feiras, e depois partiu para os “dolorosos”, momento em que Aith o interrompeu: “Pra que passar para esses, governador? Melhor ficar nos gozosos.” Alckmin fingiu que não ouviu e seguiu a explanação até chegar aos mistérios “gloriosos” e “luminosos”, quando levantou os braços para falar da “res-sur-rei-ção do Nosso Senhor”.
Ele vai à missa quase todo domingo e tenta confessar quando tem tempo. Em 2003, sofreu um baque quando o filho mais novo, Thomaz, então com 20 anos, engravidou a namorada, uma funcionária do cerimonial do Palácio. Há alguns anos, a mãe da primeira neta do governador processou Thomaz, piloto de helicóptero, por causa dos valores da pensão. Hoje, mãe e filha moram na Noruega.
Depois do café, Alckmin me levou até seu gabinete para que eu visse a cópia de uma carta que o pai lhe escreveu em 1981, quando, com Dona Lu, ele participava de um Encontro de Casais com Cristo. Tirou as três páginas da “cartinha” da primeira gaveta de um móvel de madeira, que faz a função de baú – lá estão guardados desde o santinho da campanha a prefeito de Pinda, ao lado do candidato a vereador Nelson do Esgoto, até o caderno no qual constam todas as anestesias que já aplicou, a primeira em 3 de abril de 1979, numa cirurgia de hernioplastia inguinal. “Os católicos não nascem, fazem-se. É uma escalada difícil”, lê o trecho no mesmo tom grave empregado ao narrar o conto de Lobato. Em novembro, na segunda conversa que tivemos em seu gabinete, Alckmin voltou a pegar a carta. Desta vez, porém, leu-a na íntegra, durante seis minutos e 35 segundos.
As irmãs dizem que, além da fé, o tucano herdou do pai um comportamento franciscano, característica que ele faz questão de divulgar. “Vestir as sandálias da humildade” é um de seus bordões, ao lado de outros que remetem à vida laboriosa, como “amassar barro” e “comer poeira”. Alckmin dedica-se com esmero a pequenas economias do dia a dia do palácio. Determinou que se use também o verso do papel no qual é impressa sua agenda e mandou cortar dos eventos sucos e salgadinhos fornecidos pelo cerimonial. Ficou horrorizado com a champanhe Taittinger servida em uma agenda oficial pelo governo de Minas. Há dois anos foi visitar o filho Geraldinho que vivia no México. Comprou bilhetes de classe econômica. Quando roubaram o Rolex de um familiar, Alckmin buscou em suas gavetas um relógio de plástico, do Bom Prato – programa do governo que vende comida a 1 real – e o deu ao parente, como consolação.
Quando eu quis saber qual fora sua maior extravagância financeira, ele não soube responder. Disse que “só gasta dinheiro fácil quem ganha dinheiro fácil”, e frisou que vive de salário – seus vencimentos líquidos, em outubro, foram de 15 455,99 reais. Uma revista publicou que ele teria dado 10 reais de gorjeta a um engraxate. “Pô, avacalharam a minha boa fama!”, retrucou, negando peremptoriamente que os 10 reais fossem gorjeta. O dinheiro, explicou, era para remunerar o serviço e a graxa, uma vez que o dono do local não quis lhe cobrar nada.

Após um compromisso de campanha, no final de julho, Alckmin resolveu tomar um café no Centro de Artur Alvim, bairro da Zona Leste. Parou no boteco escuro de um chinês. O deputado José Aníbal, vendo uma padaria grande e iluminada do outro lado da rua, insistiu para que fossem para lá: “Tem um empadão...” O governador olhou para mim e cochichou: “Geraldo Alckmin, o único tucano franciscano.” Terminou o café, pagou o chinês e foi para o outro lado da rua. Na padaria, pediu “metade” de um café. “Zé, aqui é mais caro, é por sua conta. Meu pai dizia o seguinte: ‘Paga mais quem ganha mais.’ O meu é o de lá. Este aqui é dessa turma de Higienópolis”, disse em referência ao bairro, um dos mais valorizados da capital, onde mora Aníbal.
Mimi cita um padre de Taubaté para falar sobre o irmão. “Geraldinho não vai a nada, não aproveita nada. O padre Marquinho é engraçado, ele fala: ‘Eu é que tinha que ser governador, seu irmão tinha que ser padre.’” Alckmin tem um patrimônio declarado de pouco mais de 1 milhão de reais: um apartamento próximo ao palácio, um carro, aplicações financeiras e um sítio em Pinda, onde pernoita uma vez por mês.
A despeito da devoção a são Francisco de Assis, em 2012 ele fez uso do helicóptero do governo para fugir do trânsito paulistano e buscar o filho e os netos que desembarcavam do México no Aeroporto de Guarulhos. Dona Lu recebeu mais de 400 peças de roupa, principalmente vestidos, de presente de um estilista. Quando o tema veio a público, em 2006, ela disse que eram apenas quarenta vestidos e os doou. A filha Sophia mantém um blog de moda onde publica fotos de bolsas, sapatos e joias de marcas de luxo, com as quais mantém relações profissionais. Algumas das fotos são ambientadas nos jardins do palácio.
A religiosidade da família Alckmin tem como origem a avó Ida Ravache. Devota de são Geraldo Magela, adotou Geraldo para o nome de dois dos cinco filhos: o pai de Alckmin, Geraldo José, e o caçula, José Geraldo, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal, designado pelo regime militar. José Geraldo foi também um influente integrante da Opus Dei, movimento conservador da Igreja Católica, criado em 1928.
O fundador da Opus Dei, o padre espanhol José María Escrivá, foi acusado de admirar Hitler e o general espanhol Francisco Franco (dois opositores do “ateísmo comunista”), de ter colaborado com o regime franquista e de ter posto em dúvida o genocídio dos judeus pelo nazismo. Escrivá foi canonizado em 2002 pelo papa João Paulo II. Chamada de Obra por seus integrantes, a prelazia prega a retidão moral e diz que é possível alcançar a santidade aplicando no cotidiano os princípios cristãos. No livro Opus Dei: Os Bastidores, três ex-integrantes do grupo relatam o uso de objetos em rituais de autoflagelação, métodos de lavagem cerebral, incentivo à castidade e à misoginia.
O ramo da família Alckmin ligado a José Geraldo, o tio Zeca, é da Opus Dei. Alckmin morou com o tio durante o período que passou em São Paulo para fazer cursinho. Anos depois, em 1979, quando prefeito de Pinda, prestou uma homenagem ao líder da Opus Dei e assinou um decreto alterando o nome da antiga rua 13 da cidade para rua Monsenhor José Maria Escrivá. Desde 1976, carrega na carteira um bilhete do pai com uma passagem de O Caminho, livro com ensinamentos do fundador da Obra.
Quando deixou Pindamonhangaba para morar em São Paulo, a prima Maria Lúcia, filha de Zeca, lhe indicou como confessor o padre português José Teixeira, também da Opus Dei. Em 2005, Teixeira convidou Alckmin para participar de grupos de estudo do Evangelho, formado por pessoas ligadas à Obra. Algumas reuniões ocorreram na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes. “Fizemos três ou quatro círculos, muito bons. Não tem pauta. Você pega um texto evangélico e comenta. E tira as conclusões do texto”, contou Alckmin sobre os encontros.
Assim que as reuniões vieram à tona, na campanha presidencial de 2006, ele parou de frequentar a turma. Hoje, diz que tem apreço pela Obra. “Tenho grande admiração pela Opus Dei e respeito imensamente quem faz parte dela. Tenho enorme respeito. Aliás, o monsenhor Escrivá é santo da Igreja Católica”, observou.

As relações de Alckmin com a Opus Dei são frequentemente evocadas por seus críticos. Também já tentaram atacá-lo invocando a figura do “ladrão de casaca”, protagonista do filme homônimo de Alfred Hitchcock, sobre um ex-ladrão de joias suspeito de cometer crimes num balneário de luxo francês. Nas eleições para prefeito, em 2000, Paulo Maluf passou a disseminar uma história nebulosa, segundo a qual “o professor favorito de Alckmin era o ‘ladrão de casaca’”.
Numa tarde de novembro, Maluf – que apoiou o candidato Skaf, mas é aliado do governo Alckmin – recebeu a piauí em sua casa, no Jardim América. Sentado no sofá da sala de estar, entre tapetes persas, porcelanas, quadros impressionistas, estamparia floral e pot-pourris que deixam o ambiente com um cheiro adocicado, Maluf falou sobre o governador. “Ele é um homem sério. Nunca foi envolvido em nenhum escândalo.” Citou a seguir uma frase de Winston Churchill: There is no public opinion, there is published opinion (Não há opinião pública, há opinião publicada), enfatizando a letra “p” para forçar o sotaque britânico. “Por isso se diz que em Minas não tem governador ruim, porque o que O Estado de Minas fala é bíblia. No news is good news. E o Alckmin é um pouco isso. Como não tem escândalo, o governo dele é tido como sério, e é sério.” Indo além, o ex-prefeito defendeu a candidatura de Alckmin à Presidência em 2018: “Ele teve uma vitória eleitoral em São Paulo, enquanto o Aécio teve uma derrota eleitoral em Minas. Ele é o candidato natural, pelo peso de São Paulo.”
E a história do “ladrão de casaca”? “Não falo. Não falo. Isso é coisa pessoal. É vida pessoal. Você vai atrás das minhas namoradas, também?”, perguntou, sorrindo, mas já levantando do sofá, deixando claro que a entrevista havia terminado. “Julinha, sem ser neste sábado, no outro, se quiser almoçar no Miski, é minha convidada”, disse, mencionando o restaurante árabe. Caminhou até os jardins de sua casa, de onde se despediu.
O “ladrão de casaca” é o advogado Laurival de Moura Vieira Aquilino. Recebeu o apelido em reportagem da revista Veja de setembro de 1983, que tratava de seu envolvimento em oito assaltos à mão armada a mansões de São Paulo. Conhecido como “Dr. Netto”, o advogado frequentava os salões da elite paulistana, dirigia uma Mercedes e ia à Sociedade Hípica Paulista. Com base nas informações que obtinha, inclusive de clientes da mãe, dona de uma loja de roupas no Itaim, passou a organizar seus assaltos. “Ele era pobre, mas conseguiu se misturar. Depois, o comparsa dele foi preso e falou que ele fornecia drogas”, afirmou o ex-vereador Brasil Vita, um dos que tiveram a casa assaltada. “Mas não lembro mais muita coisa. Fatos desagradáveis a gente esquece. E, se lembrasse, também não falaria por questões de segurança”, declarou.
Com informações no submundo do tráfico, Aquilino passou a ser informante da Polícia Federal e da DEA, a Drug Enforcement Administration, agência americana de combate às drogas. Uma de suas delações levou à prisão de duas pessoas e à apreensão de 1 quilo e meio de cocaína no Aeroporto de Cumbica. Aquilino foi assassinado no dia 19 de janeiro de 1990, no segundo subsolo do edifício Central Park, na rua Estela, 515, no Paraíso, onde ficava seu escritório. No inquérito sobre sua morte, ao qual a piauí teve acesso, testemunhas apontam como autora do disparo uma mulher que, abraçada a um ruivo, fugiu num Escort. Arquivou-se o processo sem que o crime tenha sido solucionado, mas a crônica policial o relata como um caso clássico de queima de arquivo por parte do submundo do tráfico.
Aquilino foi o primeiro marido de Lu Alckmin, com quem ela se casou em 1973, segundo registro no 24º Subdistrito de Indianópolis, na capital. Lu tinha 22 anos e ficou casada por apenas oito meses. Em 1976, já separada, conheceu Alckmin num baile em Pinda. Em março de 1979, depois da anulação da união anterior, casou com o tucano. Alckmin considera “lamentável” a tentativa de exploração política do caso. “Essa é uma questão pessoal da Lu. Nem sei quem é essa pessoa, nunca o vi na minha vida. Aliás, ele já morreu. Foi declarada a nulidade do casamento. Se ela se casou com uma pessoa equivocada, tanto foi equivocada que oito meses depois ela separou. Quem era essa pessoa, nem sei. Nunca vi na vida”, disse Alckmin, ao comentar o caso pela primeira vez, na entrevista em seu gabinete. A declaração de que o “ladrão de casaca” seria o maior professor de Alckmin rendeu a Maluf condenação na Justiça, num processo movido pelo governador.

Até hoje Alckmin preserva costumes de político do interior. Sobre a mesa de Rodrigues Alves, no gabinete, mantém quatro cadernos universitários, onde anota dados das reuniões com secretários e aos quais recorre para checar informações. Também tem o hábito de ligar para prefeitos, donos de postos de gasolina e outras pessoas de sua rede de contatos pelo interior do estado. Um dos que recebem telefonemas esporádicos é o tucano Acir Filló, prefeito de Ferraz de Vasconcelos. É dele a biografia Geraldo Alckmin: o Menino, o Homem, o Político. “Em 2012, ele ligou lá em casa num domingo de manhã. Fiquei tão encantado que poderia filmar o telefonema. Ele queria avisar que viria à cidade comer um pastel”, disse o prefeito, em seu gabinete, um prédio de estilo colonial na cidade de 182 mil habitantes, na Grande São Paulo.
O prefeito-biógrafo acha que o tucano “nasceu virado pra lua”. “Não tem nenhum brasileiro na política, ou no mundo, que tenha tanta sorte”, disse. “Sorte aliada ao trabalho”, logo emendou. Em 1976, Alckmin se tornou prefeito de Pinda com a bola raspando na trave: levou o cargo por uma diferença de 67 votos. Eleito para quatro anos, ficou seis, beneficiado pela lei que estendia os mandatos até a eleição de 1982. Naquele ano, instado por Montoro, acabou se candidatando a deputado estadual. O próprio tucano avalia que, se tivesse saído da prefeitura em 1980, provavelmente teria se voltado à medicina.
A sorte também o favoreceu no episódio do sequestro envolvendo a família de Silvio Santos, em 2001. O bandido, que dias antes havia sequestrado a filha do apresentador, num enredo cinematográfico, invadiu a residência do dono do SBT e, mantendo-o como refém, exigiu a presença do governador. Um inexperiente Alckmin, com cinco meses de governo, cedeu à chantagem. Entrou sozinho na casa, onde encontrou o sequestrador de arma na mão. Deu-lhe garantia de vida, caso se entregasse. Quatro meses depois, o criminoso morreu na prisão. Toda a ação foi considerada desastrosa pela imprensa, mas o recém-empossado passou a ser conhecido como “o homem que salvou o Silvio”. Era saudado nas ruas por onde passasse.
Ao comentar sobre o papel da sorte em sua trajetória, Alckmin novamente recorreu à mesa de Rodrigues Alves, de onde trouxe uma edição do livro Rompendo o Cerco, de Ulysses Guimarães, amarelada e marcada nas laterais. “Eu nunca tive pretensão de fazer política. Nunca. Minha ideia era sempre a medicina e Pinda. Eu gostava de Pinda”, disse, enquanto procurava um trecho do livro. Quando o encontrou, partiu para a leitura em voz alta, sempre em tom solene. Segurou o livro com a mão esquerda, enquanto a direita regia a leitura, movimentando-se no ar: “Ao político azarado chove no dia do seu comício e dá defeito no microfone na hora que vai falar (...) Napoleão, antes de entregar o bastão de marechal a um de seus generais, investigava se ele tinha sorte.” Contei-lhe que havia lido sua biografia, e ele disse não gostar de ser o personagem central do livro. Citou mais uma vez o conselho de Perón a Isabelita. “É o contrário do Serra, que é muito auto...” Autorreferente?, perguntei. Ele seguiu recitando a frase de Perón, sem concordar nem discordar.

O ex-secretário de Segurança Pública Antonio Ferreira Pinto considera Alckmin um governador “frouxo” e “titubeante”. “Ele decide basicamente por decurso de prazo. Se preocupa muito em não passar uma imagem repressora. Acaba abrindo mão da autoridade e daí ocorrem excessos ou omissões”, disse Ferreira Pinto, hoje procurador de Justiça aposentado, enquanto fumava um charuto na varanda deum restaurante na Zona Sul da capital.
Ele ocupou o cargo durante três anos e nove meses, nos governos Serra e Alckmin. Enfrentou de maneira inédita a corrupção na Polícia Civil e acabou demitido por Alckmin em 2012, após uma série de desgastes. Seu estilo intempestivo afligia o governador. Ao contrário de Saulo Abreu, Ferreira Pinto não tinha a total confiança do chefe.
Durante nossa conversa, o ex-secretário disse mais de uma vez que o estado “glamoriza” o poder do Primeiro Comando da Capital, o PCC. Para ele, o governo anuncia enfrentar a facção para tirar dividendos políticos e criar uma cortina de fumaça sobre o aumento da criminalidade em outras áreas, como os roubos. Ferreira Pinto deu um exemplo do que vê como manipulação da opinião pública: em 2013, o Estadão divulgou uma escuta telefônica obtida pela polícia quase dois anos antes, na qual um preso ameaçava de morte o governador. “Era uma escuta gravada em 2011, aquilo não merecia nenhuma consideração, eu nem levei o caso ao governador. Quando veio à tona, em vez de o Alckmin dizer que aquilo era uma paspalhice, porque a informação estava isolada do contexto da facção criminosa, ele disse que não iria se intimidar, como se tivesse sendo rigoroso no combate à facção, e a facção quisesse efetuar uma represália.” O ex-secretário dava leves socos na mesa nos momentos mais exaltados, enquanto falava.
Entidades de defesa dos direitos humanos criticam a atuação da polícia de Alckmin em episódios como a Operação da Cracolândia, em repressão a traficantes e usuários de drogas, e a reintegração de posse em Pinheirinho, quando a Polícia Militar usou a força na retirada de milhares de famílias de um terreno no interior para cumprir uma decisão judicial. As pesquisas do governo nesses dois episódios, e não só neles, apontaram que uma ampla maioria da população respaldava o comportamento da polícia. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entidade que agrega especialistas e organizações não governamentais, como o Instituto Sou da Paz, diz que, depois da polícia fluminense, a Polícia Militar paulista é a que mais mata no país. As vítimas, quase invariavelmente, são negros e moradores da periferia.
A taxa de homicídio em São Paulo, índice mais usado para medir a violência, parou de cair desde que Alckmin recebeu o governo de Serra. Estacionou na faixa de 10,5 assassinatos para cada 100 mil habitantes. Em 2001, porém, quando Alckmin assumiu o governo pela primeira vez, a taxa era muito mais alta: 33,3 homicídios para cada 100 mil. O índice hoje está entre os menores do país. O governador alega que é difícil romper a barreira de um dígito e disse que essa é sua meta para os próximos quatro anos. Na campanha, uma das suas principais propostas era aumentar de três para oito anos o prazo de internação de menores que cometeram crimes hediondos. “A lei atual é frouxa”, disse Alckmin, na tevê. Em 2012, após uma operação da polícia no interior do Estado que culminou na execução de nove membros do PCC, ele justificou o saldo da ação com o seguinte comentário: “Quem não reagiu está vivo.” Entre os ativistas dos direitos humanos a declaração foi carimbada como a versão tucana do “bandido bom é bandido morto”, associada ao malufismo.

Na Serra da Mantiqueira, a pouco mais de 60 quilômetros de São Paulo, fica a represa de Atibainha. Segunda maior do Sistema Cantareira, com capacidade de armazenamento de 200 bilhões de litros, ela integra um cenário quase edênico, com suas águas verde-escuras circundadas pela mata. No final da manhã do dia 21 de agosto, porém, uma grossa faixa de terra seca e vermelha, entre a água e a vegetação, arruinava a paisagem. A temperatura acima dos 25°C, a umidade relativa do ar a 39% e um céu azul, sem sinal de nuvens, davam a impressão de que estávamos às margens do rio São Francisco, no Nordeste.
Dez minutos antes do meio-dia, o carro preto de Alckmin surgiu em uma estreita estrada de terra, levantando poeira e agravando a sensação de aridez. O governador inspecionou as doze bombas instaladas para captar 77 bilhões de litros do volume morto, água que fica abaixo das comportas da represa e que precisa de máquinas para ser jogada na tubulação. Enquanto observava o equipamento, posava para fotos, usando um capacete de plástico com o logotipo da Sabesp. Depois, atrás de um púlpito e com as bombas às suas costas, falou para as câmeras de tevê. Descartou o racionamento e garantiu que não faltaria água até o final do ano, mesmo se não chovesse. “Mas é evidente que tem chuva”, disse.
“Desde janeiro eu venho falando que precisaria ter decretado o estado de emergência, ter sido feito o racionamento. Hoje, estamos numa situação mais crítica”, disse o engenheiro civil e professor Antonio Carlos Zuffo, com pós-doutorado em engenharia hidráulica e saneamento. De sua pequena sala na Unicamp, três horas depois da inspeção de Alckmin em Atibainha, Zuffo vaticinou: “Tem que conscientizar a população de que o problema é sério. Quando se nega, as pessoas falam: ‘Então vou continuar minha vida normal.’ E continuam abusando, comprando caixa-d’água maior. Agora, se ele falar ‘Existe o problema de água e corremos o risco de desabastecimento’, ele pode perder voto. Então, ele está jogando com a sorte.”
Nelson Biondi, o marqueteiro, conta que durante toda a campanha “tinha um fantasma rondando, que era a porra da água”. “E nós não fizemos um comentário na campanha inteira”, ele lembrou, recebendo como apoio moral um “graças a Deus”, dito por um integrante da sua equipe que acompanhava a entrevista. O tema só foi tratado diretamente por Alckmin no penúltimo programa na tevê. “Não houve tempo de os adversários explorarem”, disse Biondi, com o colega repetindo: “Graças a Deus, graças a Deus.”
A presidente da Sabesp, Dilma Pena, está mais para Zuffo do que para Biondi. Em uma reunião da empresa neste ano, cujo áudio vazou para a imprensa, ela afirmou ser um “erro” a Sabesp estar tão pouco na mídia para falar da escassez hídrica. Resignada, disse que a “orientação superior” era aquela. Em 2014, as campanhas publicitárias da Sabesp foram tímidas, e o logotipo do governo do estado, que acompanhava as peças, sumiu, numa tentativa de desvincular o Palácio da crise. Eufemismos dominaram a retórica governista: volume morto era “reserva técnica”; corte no fornecimento de água, “diminuição na pressão”. Em janeiro, técnicos da Sabesp propuseram um rodízio. Em julho, o Ministério Público Federal recomendou o racionamento.
O governo paulista não adotou nenhuma das ideias. Alckmin, que repetiu incansavelmente que o estado passava “pela maior seca dos últimos 84 anos”, preferiu medidas alternativas, como o bônus para quem economizasse e obras em outros sistemas para diminuir a dependência do Cantareira. Com os reservatórios em queda, em novembro o governo teve que apelar para a segunda cota do volume morto. A crise é considerada gravíssima, com potencial de comprometer o futuro político de Alckmin. A falta de água já atinge todas as regiões da capital e diversas cidades no interior do estado. A aquisição de caixas-d’água maiores e o recurso a caminhões-pipa e baldes tornaram-se rotina entre os paulistas. Mal encerrada a eleição, Dilma Pena correu para o Palácio e demitiu-se. Ou melhor, usando um eufemismo, “colocou o cargo à disposição”.
“Na verdade, a culpa não é de são Pedro. Não havia estudos dizendo que choveria. Era um desejo de que chovesse, um devaneio”, declarou a procuradora Sandra Kishi, de tailleur e sandálias de salto alto, o cabelo escuro longo e solto, as unhas pintadas de rosa alaranjado. Ela organizou um seminário internacional para debater a crise de água no começo de novembro, mas as principais autoridades do estado, convidadas para falar sobre a questão, não foram.
Em 2004, Sandra, responsável pela área de abastecimento de água no Ministério Público Federal em São Paulo, acompanhou a elaboração de medidas que deveriam ser tomadas para combater a seca daquele ano, entre elas a adoção de um modelo que estipulava a quantidade de água a ser retirada de acordo com o nível do reservatório. “É como um depósito de suprimentos. Esse depósito deveria durar x, desde que o limite fosse respeitado. Não durou metade de x”, exemplificou. “Parou de chover, mas a retirada continuou acima da capacidade de regularização. O reservatório secou em dois anos. Teria que ter diminuído a vazão, depois que parou a chuva”, declarou Zuffo, na mesma linha. A Sabesp vive da venda de água, o que lhe rendeu um lucro de 1,9 bilhão de reais em 2013. Quanto mais água vende, maior sua receita. É um raciocínio tão simples quanto perverso, pois a empresa que deveria zelar por um produto escasso é a mesma que lucra com sua venda.

Num dia da primeira semana de novembro, pouco depois das 11 horas, o carro preto de Alckmin chegou a uma estação de tratamento de água em Santo Amaro, Zona Sul da capital. No local, seguiu um script parecido com o da visita à Atibainha, dois meses antes. Acompanhado novamente por fotógrafos e emissoras de tevê, e com o capacete da Sabesp, ele inspecionou dois reservatórios, dentro de uma área de 60 mil metros quadrados. Havia, porém, uma diferença no cenário: a chuva. “Graças a Deus”, comentou Alckmin, embaixo de um guarda-chuva empunhado por Paulo Massato Yoshimoto, diretor para a região metropolitana da empresa.
Depois da entrevista coletiva, duas paradas para cafezinhos e fotos com funcionários, Alckmin já se preparava para partir quando encostou numa roda de técnicos da Sabesp. Começou a falar de “José Bento Monteiro Lobato, o grande escritor” e mencionou, então, o trecho de “A vingança da peroba”, o mesmo que repetiria no encontro em seu gabinete, semanas depois. Ao terminar, recebeu aplausos entusiasmados. “Aêêê, governador”, gritou um funcionário.
O engenheiro civil Paulo Massato Yoshimoto é um homem alto, com o cabelo liso e escuro repartido de lado. Tem a voz rascante de quem fuma, está sempre de óculos escuros com lentes fotossensíveis e crachá no pescoço. Parece ter saído de uma foto da Sabesp dos anos 70. É a maior referência sobre o tema no governo paulista, uma espécie de presidente de fato da empresa.
Durante a visita à estação de tratamento, perguntei-lhe sobre a suspeita de que a Sabesp teria retirado do Cantareira mais água do que poderia. Massato afirmou que a empresa seguiu o planejamento de retirada normal até dezembro de 2013, porque havia “previsão de chuva”. “Em dezembro falou-se ‘Opa, não está chovendo’. Aí começamos a tomar as providências para em fevereiro estar reduzindo.” No áudio vazado da reunião da Sabesp, cuja data, neste ano, ninguém soube precisar, Massato foi catastrófico: “Saiam de São Paulo, porque aqui não tem água, não vai ter água pra banho, pra limpeza da casa. Quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder, vai tomar banho na casa da mãe lá em Santos, Ubatuba, sei lá.”
Batendo de frente com a Sabesp está o engenheiro Mauro Arce. Aos 73 anos, coleciona um recorde na burocracia tucana: trabalhou com todos os governadores desde Mário Covas. Foi secretário de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento, dos Transportes e, agora, de Abastecimento e Recursos Hídricos, cargo que acumula com a presidência do Conselho de Administração da Sabesp. Em março, já em meio à crise hídrica, Arce estava no hospital colocando um marca-passo quando recebeu um telefonema de Alckmin, que o convidava para substituir o então secretário, um deputado estadual da cota do Partido Verde (PV).
“Nós somos um povo latino, queremos que o governo resolva tudo”, afirmou Arce, da sua sala de reuniões, no 14º andar da secretaria, num prédio próximo à Paulista, em setembro. Ele faz coro a Alckmin e descarta o racionamento, que considera “o menos racional” dos meios de economizar água. “Você comete uma violência, fecha a rede, não permite que as pessoas tomem uma decisão. Quem vai guardar água? As pessoas vão encher a banheira.”
Questionado sobre um “racionamento branco” em São Paulo, escamoteado por causa da eleição, respondeu: “Não tinha eleição aqui, todo mundo reclamava que não tinha eleição. Agora tem eleição, todo mundo reclama que você está se comportando de acordo com a eleição.” Segurava o cinto com as duas mãos, enquanto falava esparramado na cadeira. “Temos uma situação de escassez, mas as pessoas estão economizando e estamos conseguindo superar. Vamos começar agora a melhor estação. Nessas estatísticas de 84 anos, temos muito julho que não choveu, mas setembro, muito raro.” Na verdade, em setembro choveu, mas abaixo da média histórica de 91,9 milímetros. No mês seguinte a situação se agravou: outubro de 2014 foi o pior desde 1985. Alckmin se elegeu no dia 5 daquele mês.
Perguntei ao governador se ele descarta o racionamento em 2015. “Nós já ultrapassamos o período mais crítico. Terminou o inverno, estamos no meio da primavera, e a parte pior da seca já passou. A preocupação é a seca do próximo ano.” Nesse exato momento seus netinhos gêmeos entraram no gabinete – um numa bicicleta, outro num triciclo. “Ôôôôô, temos visita”, interrompeu, animado. “Quem quer ‘cocolate’? Vamos lá”, disse o governador, saindo do escritório com a pequena dupla.

Num parque na Zona Norte de São Paulo, no final de julho, Alckmin caminhava apressado ao lado de Aécio Neves, tentando fugir da garoa fina que ameaçava apertar. “Doutor Ulysses contava uma história que Napoleão, ao escolher seus generais, procurava saber se eles tinham sorte. Aécio tem sorte. Trouxe até chuva”, disse o governador, repetindo a história do livro de Ulysses Guimarães. Oito anos mais velho que Aécio, o paulista parecia pertencer a duas gerações acima em seu uniforme de campanha: camisa de manga comprida com calça de sarja, um pouco curta e larga, sustentada na altura do umbigo por um cinto já gasto. Naquele dia vestia um paletó cinza, que sobrava nos ombros. O mineiro combinava sapatênis, calça mais justa, de cintura baixa, e camisa sobreposta por outra mais larga, de camurça cinza, que fazia a função de casaco.
No decorrer da campanha, Alckmin se esforçou para mostrar lealdade ao candidato presidencial do partido, principalmente porque comprou a tese que o mineiro lhe vendeu assim que começou o segundo turno: ele não disputaria a reeleição, em caso de vitória. “Esse é o Aécio, veio conhecer aqui o trabalho para implementar no Brasil”, disse Alckmin durante visita a uma clínica de reabilitação de usuários de droga em Botucatu. “Aécio estava aqui”, comentou com eleitores da Zona Leste, minutos depois de se despedir do tucano.
O empenho do governador paulista, sobretudo nos compromissos em São Paulo, lhe rendeu o apreço do mineiro. “Obrigado por tudo, você foi um parceiro, um irmão”, disse o senador, num telefonema, ao deixar os estúdios da Globo, no Rio, após o último debate contra Dilma Rousseff, dois dias antes do segundo turno. Alckmin, porém, não deixou de operar de acordo com o que lhe era conveniente. Assim como Aécio incentivou o “Lulécio”, em 2006, ele estimulou a dobradinha Marina e Geraldo, o “Marinaldo”, em 2014. Colocou em seu programa na tevê o candidato a vice de Marina, Beto Albuquerque, e sempre que pôde elogiou a candidata, com quem estampou 40 milhões de santinhos.
Alckmin destaca a “identidade” com o povo paulista como um dos fatores de seu sucesso eleitoral. Perguntei-lhe se isso não seria um empecilho para uma corrida nacional, daqui a quatro anos, e ele respondeu da maneira mais burocrática: “Minha meta não é ser candidato a este ou àquele cargo. Nosso dever é fazer um bom governo em São Paulo.” Depois desconversou: “Quatro anos são quatro séculos.”
Fernando Henrique Cardoso também vê em Alckmin “o espírito de São Paulo”. “Não é um espírito de mudança brusca. O Geraldo não é uma pessoa de rupturas. É uma pessoa de continuidade”, declarou FHC, para quem o governador não é conservador, mas “muito católico”. O ex-presidente, porém, admite que a paulistice pode ser um elemento limitador em 2018. “Todos os políticos de São Paulo têm sempre dificuldade, porque, como São Paulo cresceu muito e tal, frequentemente em outros estados é o primo rico. Mas o Geraldo tem um jeito do interior de São Paulo que pega outros estados”, disse FHC, em uma conversa por telefone em novembro, antes de viajar para o exterior. “Agora, se isso vai ser suficiente, ainda é muito cedo para dizer.”
O ex-presidente não quis citar favoritos no PSDB, mas destacou como ponto a favor de Aécio a votação de 2014, “maior que a dos outros” tucanos em eleições anteriores.
Apesar de dizer que “quatro anos são quatro séculos”, Alckmin dá pistas sobre o futuro. Avalia que enquanto São Paulo e Minas não votarem unidos, o PSDB não voltará ao Palácio do Planalto. Isso significa que, de alguma maneira, ele e Aécio caminharão juntos.

Em 2011, quando retornou ao Palácio dos Bandeirantes, Alckmin pendurou em seu gabinete um retrato a óleo de 1917 de Rodrigues Alves, “o último paulista eleito presidente”. Nascido em Guaratinguetá, cidade vizinha a Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, Alves foi também um dos representantes do compromisso entre Minas e São Paulo na República do Café com Leite, uma referência aos acordos políticos entre as oligarquias dos dois estados durante a República Velha. Na tela, do pintor ítalo-brasileiro Antonio Rocco, vê-se a mesa que Alckmin hoje usa.
Procuro pelo quadro no gabinete e não o encontro. Pergunto por ele ao governador. “Vem aqui ver”, me diz, tomando a dianteira, apressadamente, por um corredor escuro que nos leva a um grande hall, chamado Salão dos Despachos. Foi para lá que a primeira-dama sugeriu que se transferisse o retrato – talvez um amuleto, talvez o lembrete de uma maldição que ronda o Palácio dos Bandeirantes desde sua inauguração, em 1965. Até hoje nenhum de seus ocupantes conseguiu chegar à Presidência da República.
*** por Luiz Ruffato
** por Eliane Brum
* por Julia Duailibi

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