sábado, 5 de dezembro de 2020

Itabaiana calling

Nasci em Itabaiana, interior de Sergipe, em 1971. Sou “nascido e criado” lá, já que só me mudei definitivamente para a capital, Aracaju, aos 18 anos. Lá desenvolvi o hábito da leitura, através dos quadrinhos, principalmente de “Tex”, que meu irmão mais velho colecionava, e também o gosto pelo jornalismo, provavelmente a partir das revistas “Manchete” que um tio, que tinha um bar, tinha sempre a disposição para os clientes. Eram revistas sem capa – na época as distribuidoras, para baratear o frete, devolviam apenas as capas para as editoras, para comprovar que o exemplar não havia sido vendido.

 

Com o rock “underground” devo ter tido meu primeiro contato vendo a já célebre matéria sobre os punks paulistanos no Fantástico, sempre citada até hoje em documentários e entrevistas. Lembro que, a partir dali, o termo, antes desconhecido, virou uma espécie de xingamento no meu circulo de amigos: “Vôte, fulano parece que é punk, só vive fazendo ‘Indiagem”(termo evidentemente pejorativo e politicamente incorreto que era usado como sinônimo de bagunça na época).

 

Comecei a conhecer melhor e a me identificar com aquele novo universo quando a rede globo transmitiu ao vivo a primeira edição do rock in rio. Tinha um povo muito doido e diversificado ali, uns fazendo musica festiva e dançante com umas perucas estranhas, outros falando do diabo no palco ao som de guitarras distorcidas! Tinha até um coroa maluco que arrancou a cabeça de um morcego com a boca e cuspiu! Impossível ignorar. E tinha a Nina Hagen! Caralho, ela era bem louca, uma espécie de Cindy Lauper levada às ultimas conseqüências ...

 

Na Livraria Cunha – que na verdade era uma papelaria, mas funcionava também como banca de revistas – chegavam os quadrinhos de super heróis que eu tanto amava e também as revistas Bizz e Chiclete com banana. Em novembro de 1986 resolvi comprar minha primeira Bizz, a de numero 16, que tinha Matt Dillon, o ator, na capa . Foi nela que li pela primeira vez a respeito de bandas clássicas das quais nunca tinha ouvido falar, como The Doors e Velvet Underground, e do universo musical alternativo, notadamente o pós punk e a vanguarda paulistana. Notei que havia muito mais coisas entre o céu e a terra do que supunha a minha vã filosofia alimentada pelo radio e a televisão ...

 

O fascínio só aumentou quando conheci também o universo radical do metal, a partir da audição do álbum “Somewhere in time”, do Iron Maiden. Virei “metaleiro”, membro de uma “tribo” que em Itabaiana tinha pouquíssimos adeptos, só eu e mais dois ou três amigos – sendo que um se revelou um “poser” ao ficar com dor de cabeça durante a primeira audição do recém-lançado reign in blood do slayer, e foi devidamente enxotado da confraria. A necessidade de aumentar esse séquito fez com que eu tivesse a brilhante idéia de fazer uma “apostilha” com pequenas biografias de minhas bandas preferidas para distribuir pela cidade.

 

A primeira edição do NAPALM, a tal “apostilha” – que na verdade eu pensei como uma revistinha artesanal, portanto precisava de um nome – saiu em abril de 1988, com uma capa desenhada por mim mesmo a partir de uma arte de Libero Malavoglia para a banda Chave do Sol, de São Paulo. Eram cerca de 15 folhas de papel A4 datilografadas, xerocadas e grampeadas, frente e verso. O nome eu tirei de uma foto da apresentação da Legião Urbana na célebre casa noturna paulistana do início da década de 1980 que eu havia visto na Bizz, depois de descobrir que se tratava de uma bomba incendiária que havia sido usada no Vietnã.

 

Deu certo: começou a circular pelos corredores do colégio onde eu estudava e além - a noticia de que havia um fanzine – era esse o nome da criatura, soube depois -  circulando pelo interior do estado chegou à loja de discos Disturbios Sonoros, de Aracaju. Um dos sócios, Antonio Passos, ofereceu-se para conseguir uma tiragem maior, de cem cópias – nem sei mais quantas eram no inicio,  mas acho que não chegavam a dez – e passou a vender exemplares, o que fez com que Silvio “Suburbano”, vocalista da pioneira banda punk Karne Krua, me mandasse um pacotão recheado com publicações semelhantes vindas de todos os cantos do Brasil. Só ali percebi que havia toda uma rede de comunicação subterrânea circulando mundo afora divulgando uma vasta gama de assuntos que não chegavam à grande mídia.

 

Cheguei a entrar em contato timidamente com essa rede através dos endereços que constavam no pacotão de Silvio e na sessão de cartas da revista Rock Brigade, que começou como um fanzine mas a essa altura já chegava nas bancas de Aracaju – era a célebre Headbanger´s voice, imortalizada inclusive numa música da Gangrena Gasosa, banda do Rio de Janeiro. Mas a brincadeira foi interrompida pelas necessidades da vida: passei no vestibular e fui sugado pelo mundo acadêmico, me restando pouco tempo e dinheiro, principalmente, para dedicar ao Napalm, que teve ao todo seis edições.

por Adelvan


Horrores Humanos

Conheci a Karne Krua no II Festcore de Aracaju, o primeiro festival de rock que fui em minha vida, em 1987, aos 16 anos. Eu morava no interior do estado, em Itabaiana, e estava começando a mergulhar nesse universo totalmente novo pra mim. Fiquei impressionado! Lembro de ter pensado “caralho, essa banda é tão boa quanto o Cólera” – era minha principal referencia, pois tinha comprado o disco ao vivo na Europa através do CIC, Centro Informativo Cólera, e ouvia sem parar. Também porque tinha pouquíssimos outros discos para ouvir na época.

Fiquei amigo de Silvio, o vocalista, e cliente da loja de discos dele, a Lokaos. E fã da Karne Krua. De lá pra cá acompanhei todas as fases, fui a incontáveis shows e ensaios. E foram muitas, fases e shows e ensaios. Karne Krua tem 35 anos de existência ininterrupta! Nunca parou!

Conheci o rock, também, graças ao radio. Primeiro através dos hits de bandas como Legião, Titãs e Ultraje, que tocavam na programação normal. Depois por um programa específico, o “Rock Revolution”, que era produzido pelos caras da loja Disturbios Sonoros, de Aracaju, na radio Atalaia FM. Me marcou bastante. Sempre tive vontade de ter um programa de rádio. Ajudei a produzir um na Itabaiana FM já na década de 1990. Foi divertido, tocamos Napalm Death e Carcass no intervalo da transmissão da inauguração de um poço artesiano pelo então vice-governador do estado, que era o dono da emissora! Mas tinha pouquíssima audiência, evidentemente. Era uma excentricidade, quase uma molecagem. Em todo caso, cheguei a entrevistar a Karne Krua numa das raras ocasiões em que eles se apresentaram por lá.

Em 2007, 20 anos após a noite em que fui ao meu primeiro show de rock da vida, consegui finalmente um espaço no radio em Aracaju, na emissora publica do estado, a Aperipê FM. E em 2012 a Karne Krua se apresentou no meu programa de radio! A apresentação foi transmitida ao vivo, direto do estúdio. Foi meu “momento John Peel”. Memorável.

A apresentação foi também gravada e posteriormente lançada no CD Demo “Horrores Humanos”, que chega agora ao formato de streaming. São várias sessões de gravação registradas em diversos estúdios ao longo dos anos de 2011, 2012 e 2015. Um registro poderoso de uma formação marcante para a banda, com Ivo no Baixo, Alexandre Gandhi na guitarra e Adriano na bateria. Foi nessa fase que a lançaram seus excelentes dois últimos álbuns, “Inanição” e “Bem vindos ao fim do mundo”, em CD e LP de vinil, respectivamente, além do EP “split” com a banda brasiliense Besthoven, lançado em compacto de vinil de sete polegadas.

As duas ultimas faixas de “Horrores Humanos”, gravadas ao vivo no Bateras Beat, em 2015, já previam as novas mudanças pelas quais a banda passaria depois de um longo e produtivo período de estabilização na formação: Já contam com Oitchi, que substituiu Adriano, na bateria. Pouco tempo depois a banda perderia não somente Oitchi, mas também o guitarrista, Alexandre Gandhi. Seguem firmes, no entanto: os substitutos, Afonso, na bateria, e Lilo, na guitarra, já estão perfeitamente entrosados, com diversos shows no “currículo”, inclusive. Estão parados por conta da pandemia, mas prometem para breve um novo lançamento, “primitiva”, uma volta às raízes, com algumas musicas inéditas e outras antigas mas nunca editadas em álbuns ou demos.

por Adelvan Kenobi

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o rock alivia

No último mês de julho, em plena pandemia, os perfis de redes sociais mais ligadas ao “underground” roqueiro foram tomados pela imagem de divulgação de uma megacoletânea que se propunha a mapear o momento atual da cena punk hardcore nordestina. São 101 bandas de todos os estados da região, organizadas em ordem alfabética – começando com o Autopse, de Alagoas, e terminando com a Olho por olho, de Sergipe. Uma verdadeira “tour de force” concebida a partir de Itabuna, no sul da Bahia, através do selo “Tocaia”, mas que chamou mesmo a atenção pela capa, uma recriação da icônica ilustração de HR Giger para o álbum “To Mega Therion”, da banda pioneiora do death metal suíço Celtic Frost. “Satan”, a obra do eterno criador do Alien, mostra o demônio usando uma imagem de Jesus crucificado como estilingue. Na coletânea da Tocaia vemos Lampião fazendo o mesmo com Bolsonaro.  O desenho é de Adilson Lima, ilustrador itabaianense que vem se destacando como um “capista” de mão cheia, a cada dia mais requisitado por bandas de rock “pauleira”.

A provocação serviu como uma luva para os que ainda têm fôlego para o “debate” político polarizado e nivelado por baixo que vemos se arrastar há pelo menos 10 anos e acabou se tornado mais uma evidencia de algo que eu sempre digo: se engana quem acha que o mundo do rock está tomado por hostes reacionárias de extrema direita. É certo que há os que comungam desse anacronismo, tanto no “mainstrean” – Lobão e Roger, do Ultraje a rigor, são os nomes que logo vêm à mente – quanto nos guetos do punk e do metal: Fabio,. Vocalista da icônica Olho Seco, de São Paulo, Digão, do Raimundos, Roosevelt “Bala”, do Stress, de Belém do Pará – a banda que lançou o primeiro disco de Heavy metal brasileiro – foram apenas alguns dos que “saíram do armário” recentemente. Mas isso faz parte de um fenômeno que estamos vendo se espalhar por todo o mundo, impulsionado em grande parte pelas redes sociais. Não é exclusividade do rock, definitivamente.

A mim causa estranheza este tipo de posicionamento, tendo em vista que o rock foi, em sua origem, a música que fez cair as barreiras entre pretos e brancos em plena América ainda dominada pela segragação racial legalizada. Mas a verdade é que sempre existiram roqueiros “de direita”: há, por exemplo, o episódio célebre em que Elvis, “The pelvis”, apareceu de surpresa na Casa Branca ocupada por Richard Nixon oferecendo-se como delator “infiltrado” a serviço do FBI. Temos também Ted Nugent, Dave Mustaine, e mais recentemente John Lydon e Krist Novoselic apoiando atitudes tresloucadas de Donald Trump. Mas eu, particularmente, sempre achei e continuo achando que são exceções. O rock na minha cabeça sempre foi uma subcultura de cunho libertário e progressista. Teve um impacto muito grande na minha vida e na de muita gente que eu conheço: eu tive uma formação católica tradicional e repressora, da qual me libertei, em grande parte, a partir da descoberta de todo aquele universo musical e cultural barulhento e contestador no qual passei a mergulhar a partir da transmissão do primeiro rock in rio pele TV aberta e pela leitura da revista Bizz, que chegava em minha cidade, Itabaiana.

Apesar de reconhecer que o gênero está estagnado, sem produzir nada de realmente novo e arrebatador há pelo menos vinte anos, ainda defendo o rock porque o rock, se não me salvou – porque quem salva é Deus, o rock só alivia, como dizia o Made in Brazil – aliviou bastante boa parte de minhas angustias ao longo dos últimos 35 anos.

Adelvan Kenobi

@pocaolho

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