sexta-feira, 30 de maio de 2014

Heli

Poucas vezes a violência foi retratada nas telas de forma tão explícita quanto em “Heli”, filme de Amat Escalante que chocou Cannes no ano passado. É realmente difícil não desviar os olhos nas cenas mais fortes. O incômodo, no entanto, se justifica, pois está perfeitamente inserido no contexto de denuncia do estado de absoluto caos social no qual a exploração neoliberal e a guerra contra as drogas mergulhou o México de alguns anos pra cá.

“Heli” é um jovem operário que tenta levar a vida da forma mais digna possível, apesar do ambiente inóspito que habita – uma cidadezinha do interior cravada no meio do deserto. Ajuda a sustentar a família – mulher, filho bebê, pai e uma irmã menor de idade – trabalhando numa dessas empresas multinacionais que se instalam nos países do terceiro mundo em busca de mão de obra barata semi-escrava. Mas é pego no contrapé de uma brutal trama de vingança ao tentar defender sua irmã, que havia escondido dois pacotes de cocaína a pedido de seu noivo, um recruta de uma Força Especial Militar dedicada ao combate às drogas. A partir daí é só “pé na porta e soco na cara”, com estupro, morte, tortura e descaso das “autoridades”.

O argumento é ótimo, o roteiro é bem amarrado, os atores são bons e o filme é muito bem dirigido. Apesar da narrativa na maior parte do tempo convencional, o diretor se dá ao luxo de produzir pelo menos uma cena de beleza plástica e conceitual impressionante, aquela na qual um veículo militar para de forma intimidadora na porta da casa do protagonista, desafiando-o.

Assisti no cinema, mas em São Paulo. Não me lembro de tê-lo visto por aqui.

BAIXE AQUI.

A.

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quarta-feira, 28 de maio de 2014

O DVD "Desagradável" da gangrena gasosa ...

Quase tudo que envolve a Gangrena Gasosa, lendária banda de "Saravá metal" carioca, tem um toque de bizarrice e polêmica. Praticantes de cultos de matriz africana já quiseram matá-los – alguns quase chegaram às vias de fato – e “metaleiros” menos atentos não engolem “Quem gosta de Airon Meiden também gosta de KLB” – que na verdade é uma ode ao metal “real”. Já os ativistas gays – e simpatizantes da causa, dentre os quais me incluo – têm bronca com “Emboiolada” – e nesse caso têm razão, pois a letra é realmente ofensiva. Angelo Arede, um dos vocalistas, admite que hoje mudaria uma ou duas frases, mas explica que tudo se insere num contexto de humor e ironia, já que a letra foi inspirada no que ouviu durante um duelo de "embolada" na Feira de São Cristóvão. Conta também que, inclusive, "aliviou" no conteúdo, justamente com receio de ser mal interpretado, o que poderia levar a banda a atrair tipinhos asquerosos de extrema direita que curtem espancar minorias ...

São muitos anos de estrada e muitas e muitas tretas e histórias sinistras - e divertidas - para contar. Eu Sou fã de primeira hora e também tenho as minhas. Como a de quando conheci o antigo vocalista, Chorão 3. Havia lido, há MUITO tempo, uma entrevista na qual eles se diziam todos viados e representantes do movimento Homo Core. Normal. Um dia fui a Recife ver um show do Jason, também do Rio, e encontro lá o Chorão, com quem havia trocado algumas correspondências e feito uma entrevista para o meu fanzine. Normal também. Gente boa. Mas eis que, no final do show, ele me convida pra ir dormir na casa de um tio em Boa Viagem. Normal, mas imediatamente a lembrança da tal entrevista me veio à mente e um sinal de alerta começou a tocar em meu cérebro. "Será que esse negão tá a fim de abusar de minha ingenuidade?", eu pensei. Avaliei a estampa do indivíduo e concluí que poderia resistir a uma abordagem mais agressiva, então fui. Chegando lá, ele logo me chama para o quarto, supostamente para vermos um video inofensivo. Só que parecia um quarto de motel, com cama redonda e espelho no teto. Percebendo minha hesitação, ele me explica que seu tio era meio tirado a garanhão, que não ligasse. Respirei aliviado e lhe falei da entrevista que havia lido. Rimos muito e somos amigos desde então.

Outra história: Soube que a Gangrena iria lançar seu primeiro DVD no Circo Voador abrindo para o Cannibal Corpse! Fui. E não é que aconteceu de o show ser justamente no dia em que o caos tomou conta das ruas do Brasil, especialmente do Rio de Janeiro? 20 de junho de 2013. Bombas de gás lacrimogênico por todos os lados e a polícia caçando qualquer um que estivesse nas ruas da Lapa, com auxilio inclusive de carros blindados, conhecidos popularmente como "caveirão". Uma verdadeira batalha campal, típica de uma guerra civil ou de um estado de exceção! Enquanto isso o couro comia no palco do circo, entre um ou outro intervalo para que o público se recuperasse dos efeitos do gás que chegava por cima da lona. Foi antológico!

O DVD é "Desagradável" - fique avisado, portanto. Mas se resolver encarar, saiba que vai assistir a uma das melhores peças de comédia involuntária - ou não! - já produzidas na face da terra. Dirigido por Fernando Rick, o mesmo de "Guidable, a verdadeira história do Ratos de Porão", conta com o depoimento de praticamente todos os que passaram pelas inúmeras formações da banda - e foram muitos - e mais testemunhas oculares – e auriculares - ilustres do calibre de Jello Biafra, B Negão, Marcelo D2, Dado Villa Lobos - que lançou o primeiro disco pelo seu selo Rock it - Marcos Bragatto e Tom Leão, dentre outros. Um verdadeiro inventário de insanidades e histórias bizarras e supostamente reais, na medida em que o olhar de quem conta o conto interfere na autenticidade dos fatos. É difícil de acreditar, por exemplo, nas incríveis coincidências apontadas por Fabio, proprietário do Garage, verdadeiro templo do underground carioca. Ou dos Ratos de Porão, que saíram de uma zica apenas quando fizeram de frisbee o disco da Gangrena que haviam ganhado algumas horas antes.

São muitas histórias - e poucas imagens da época, infelizmente. Não havia a facilidade que temos hoje, e pouca gente tinha como registrar tudo aquilo. Um dos pontos altos, porém, a tour pela Alemanha, foi registrado, e está tudo lá: do assédio de um dos componentes a uma deficiente mental num squat repleto de punks politicamente corretos ao cagaço quando se viram cercados por neonazistas numa estação de trem. Ou a visita a um campo de concentração desativado - extremamente desrespeitosa, evidentemente.

Para compensar a falta de imagens históricas temos, num segundo disco, um show filmado há cerca de três anos no "Inferno" - onde mais? - em São Paulo. Não é ruim, mas infelizmente a banda não estava em uma de suas melhores formações, o que prejudicou a perfomance e o resultado final. Em todo caso, é muito bom vê-los finalmente numa produção à altura de sua reputação, com direito a efeitos especiais e atuações teatrais macabras em pleno palco.

Imperdível!

A.

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The Jesus & Mary Chain no Memorial da América Latina

Foto por Rodrigo Sommer
Não dá pra negar que houve uma certa dose de decepção para os que foram ver o The Jesus & Mary Chain ao vivo no Memorial da América Latina domingo passado. Muito por conta da falta do peso e da distorção, que só deram as caras, e mesmo assim em níveis abaixo do que gostaríamos – creio que posso falar por todos os presentes, pelo menos os que conheciam a banda – no bis, quando tocaram uma seqüência de seu disco mais célebre e barulhento, o primeiro, “psychocandy”. Os demais contratempos já eram previsíveis: a perfomance sofrível de Willian – que não cantou, apenas tocou – ou tentou tocar – guitarra - e o mau humor de Jim, que chegou a interromper a apresentação por três vezes. A falta de entrosamento era evidente, mas a qualidade das canções e o simples fato de estarmos ali, em frente a uma bela estrutura – tá “podendo”, a Cultura Inglesa – montada ao lado da icônica mão com o mapa da América Latina sangrando diante de um dos maiores mitos do rock mundial, compensou o esforço de sair de casa – no meu caso, de muito longe – num domingo chuvoso. Chuva que deu uma trégua e recomeçou, por incrível que pareça, exatamente na hora em que eles começaram “Happy when it rains”! Um daqueles momentos mágicos que ficarão guardados para sempre na memória dos presentes ...

O show do jesus foi também, eu confesso, uma desculpa “de luxo” para passar alguns dias em São Paulo, nossa megalópole insana e frenética, entre amigos queridos, discos, livros e cinema da melhor qualidade. Dentre os muitos bons programas possíveis recomendo uma visita à Sensorial Discos (Rua Augusta, 2.389 – jardins), que tem um bom acervo de cervejas, CD´s e discos de vinil a preços convidativos num um ambiente aconchegante e ótimo atendimento. De lá você pode seguir para o número 2075 da mesma rua e pegar uma ou mais sessões no Cinesesc, que atualmente abriga em seu saguão uma belíssima exposição de fotografias com astros do cinema nacional. Lá vi dois filmes, um bom – “Hotel Mekong”, tailandês, de Apichatpong Weerasethakul, uma espécie de exercício estético semidocumental – e sobrenatural - filmado às margens do rio que separa a Tailândia do Laos – e outro ótimo: “Heli”, de Amat Escalante, brutal produção mexicana que merece um parágrafo à parte ...

A história, totalmente “Mundo cão” e muito bem contada, se passa numa cidade do interior do México assolada pela violência do narcotráfico. Violência que é escancarada na tela sem concessões, sem desvios de olhar. Gira em torno das conseqüências de um romance adolescente que desanda devido ao roubo de dois pacotes de cocaína desviados dos estoques apreendidos por um esquadrão militar, numa trama de vingança banhada em sangue. Absolutamente chocante, principalmente porque sabemos que é real.

por Adelvan - Abaixo, entrevista conduzida por Fabiana de Carvalho e publicada originalmente no g1.

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A história do rock britânico certamente seria muito diferente – e menos barulhenta – se os irmãos Jim e William Reid não tivessem criado, em 1983, o Jesus and Mary Chain. Sem saber tocar quase nada, mas com um talento nato para compor doces melodias e soterrá-las em paredes de guitarras distorcidas e muito altas, a dupla garantiu o primeiro sucesso da então recém-criada gravadora Creation, de Alan McGee, que lançaria ainda bandas como Primal Scream, Teenage Fanclub, My Bloody Valentine e Oasis, entre muitas outras.

No domingo (25), o Jesus and Mary Chain faz sua terceira visita ao Brasil, após shows em 1990 e 2008, como a principal atração do encerramento do 18º Cultura Inglesa Festival. O evento, que tem ainda apresentações dos galeses do Los Campesinos! e dos brasileiros Monique Maion, Voliere e Staff Only, acontece na Praça Cívica do Memorial da América Latina, a partir das 12 horas. Veja abaixo como retirar os ingressos gratuitos.

Em novembro, Jim e William, únicos remanescentes da formação original, vão tocar, na íntegra, seu disco de estreia, em shows em Londres, Manchester e Glasgow. “Psychocandy” completa 30 anos em 2015 e, com sua combinação perfeita de doçura e psicose, tão bem definida no título, é considerado um dos discos mais influentes do rock britânico em todos os tempos. Também às vésperas da histórica data está sendo lançada uma biografia oficial, “Barbed wire kisses: The Jesus and Mary Chain story”. Escrito pela jornalista Zoe Howe, o livro chegou às lojas inglesas no dia 19 de maio.
Em entrevista ao G1, por telefone, Jim Reid falou principalmente de sua complicada relação com o irmão William, com quem divide os vocais e guitarras. As brigas entre eles já aconteciam na década de 80, quando a banda fazia caóticos shows de 15 minutos que, invariavelmente, terminavam em equipamento destruído e pancadaria entre músicos e plateia. Muitos anos depois, elas chegaram a provocar o fim da banda, em 1998, após o lançamento do sexto disco, “Munki”.

Em 2007, porém, os irmãos chegaram a um acordo e voltaram aos palcos no festival Coachella, nos Estados Unidos. Desde então, fizeram alguns shows e prometeram um disco novo, que ainda não saiu porque, previsivelmente, os dois nunca chegam a um acordo. Depois da reunião – que não significa necessariamente que fizeram as pazes – Jim e William apresentaram apenas uma música nova, “All things must pass”, em 2008.
Leia a seguir a entrevista de Jim Reid.

G1 – A pergunta é inevitável, já que disso depende a existência da banda. Como anda o relacionamento entre você e seu irmão?
Jim Reid – 
Sempre vai ser problemático entre William e eu, sempre seremos problemáticos. Termos essa banda juntos é uma grande alegria, mas é preciso certo esforço para as coisas funcionarem. Acho que existe muita tensão, que acaba indo parar nas músicas e ajuda a fazer bons discos. Não acho que nós dois voltaremos a ser melhores amigos novamente, mas sabemos como não incomodar um ao outro. Definitivamente é a banda que nos mantém juntos. Não conversamos muito e, sempre que o fazemos, é sobre a banda. Depois desse show (no Brasil) vou passar uns tempos em Los Angeles e nós não vamos nem nos ver.
G1 – Havia uma enorme expectativa pela volta da banda, mas desde que vocês se reuniram não fizeram muitos shows e lançaram apenas uma música nova. Por que?
Jim Reid – 
Basicamente é uma questão de oportunidade, sabe. Nós não precisamos tocar mais, não existe necessidade. No momento não há um disco novo para promover, então, de vez em quando, quando temos vontade de fazer alguns shows, reunimos a banda e fazemos uma pequena turnê. A diferença é que agora fazemos pelos fãs, sem ter um álbum ou uma gravadora te dizendo pra fazer turnês para promovê-lo. Agora é algo simplesmente por puro prazer e eu gosto disso.
Não acho que nós dois voltaremos a ser melhores amigos novamente, mas sabemos como não incomodar um ao outro"
Jim Reid, sobre o irmão William
G1 – E quando exatamente você e William decidiram reunir a banda e por que?
Jim Reid –
 Por várias razões. Não tocamos juntos durante nove anos. É esquisito. Nos anos 90 eu não imaginaria que algum dia iria querer voltar a tocar com o Jesus and Mary Chain porque era tão terrível, tão inacreditavelmente doloroso. Então, se naquela época alguém me dissesse ‘olha, você vai fazer isso de novo um dia’, eu nunca acreditaria. Mas, você sabe, nove anos é um tempo longo e é tempo suficiente para curar algumas feridas. Então comecei a pensar ‘talvez não tenha sido assim tão ruim’, entende? Mas levou um bom tempo até tudo acontecer. O pessoal do Coachella ficava nos convidando todos os anos, tentando levar a banda para tocar no festival. E aí simplesmente aconteceu de eu e William nos falarmos por telefone após um longo tempo. E percebemos que eu achava que ele nunca iria querer voltar e ele pensava que eu é que não aceitaria. Foi quando entendemos que ambos estavam interessados.
G1 – E você alguma vez imaginou que estaria tocando no Jesus and Mary Chain 30 anos depois de lançar 'Psychocandy'?
Jim Reid –
 Oooh! (risos). De jeito nenhum eu poderia imaginar isso. Quando você tem vinte e poucos anos simplesmente não imagina como será o futuro. Eu tenho 52 agora. Há trinta anos eu não imaginava que esse tipo de coisa poderia acontecer. Quando você tem vinte não pensa em como vai ser quando tiver cinquenta.
G1 – E além dos shows para os 30 anos do primeiro disco, quais são seus planos? Alguma novidade sobre aquele disco que vocês prometem desde 2007?
Jim Reid – 
Sim, temos planejado um disco há bastante tempo mesmo. Mas discutimos muito sobre como gravá-lo e onde fazer isso. Então ainda não gravamos nada. Mas acredito que em algum momento haverá um disco novo sim. Vai ser preciso uma dose de sorte, acho (risos).
G1 – No início vocês ficaram famosos pelo caos no palco e pelas violentas brigas em seus shows de 15 minutos. Quando você acha que o Jesus and Mary Chain se tornou uma banda mais madura?
Jim Reid – 
Bem no comecinho tínhamos nossas razões... quer dizer, pra começar nós nem tínhamos muitas músicas pra tocar. Outra coisa é que nós queríamos nos certificar de que seríamos muito barulhentos e extremos e pensávamos que nada poderia causar mais impacto nas pessoas do que tocar dessa forma por 20 ou 25 minutos no máximo. Mas depois lançamos outro disco, tínhamos mais músicas e as pessoas passaram a esperar mais de nós. Além disso, todo mundo envelhece, todo mundo muda. Os caras de bandas não são nem um pouco diferente.

G1 – E você acha que hoje em dia é impossível uma banda ser tão espontânea quanto vocês eram no início? Acha que não há mais espaço para a inocência daquela época do início da gravadora Creation?
Jim Reid –  
Sim, você tem razão, é impossível ser daquele jeito, tudo mudou de forma absurda. No início, a Creation Records era basicamente Alan McGee, Dick Green e nós, as bandas. Não existiam nem escritórios. As bandas simplesmente ficavam no quarto de hóspedes da casa do Alan, dobrando encartes, montando as capas dos discos e coisas assim. Hoje em dia eu nem sei te dizer mais como funciona o mundo da música. Está mais fácil gravar um disco, claro, mas a música escocesa ficou muito pior. O indie, ou punk, ou seja lá como for que você queira chamar, não consegue revelar uma banda boa. Esse tipo de música está quase como era o jazz nos anos 90.
G1 – Você ainda percebe a influência do Jesus and Mary Chain em outras bandas? Qual a maior contribuição de vocês, na sua opinião?Jim Reid 
– Não ouço muitas músicas novas. As pessoas me dizem sempre que existem bandas que soam como o Mary Chain e algumas mencionam isso em entrevistas. Quer dizer, às vezes até ouço alguma banda e reconheço algo de Jesus and Mary Chain ali, é legal isso. Mas acho que nossa maior contribuição são nossos discos e a maneira como realmente não nos importávamos no início. Havia muita gente na indústria musical que não nos queria e que achava que não podíamos gravar as coisas que fizemos naquela época. Acho que tivemos muita sorte.
G1 – E com que  frequência as pessoas ainda abordam vocês para falar sobre a banda e os discos mais antigos?
Jim Reid – 
Bem, eu moro em Midlands [região central da Inglaterra] e tenho que ser honesto com você: ninguém me conhece ou sabe quem eu sou. Mas, sim, quando viajamos muita gente ainda vem falar sobre a banda, especialmente integrantes de outras bandas.
G1 – Vocês estiveram duas vezes no Brasil, a primeira delas há mais de 20 anos. Você se lembra de muita coisa daquela época? E como compara as duas visitas?
Jim Reid – 
Sim, eu me lembro muito bem da primeira visita, na verdade. O público era muito entusiasmado. E, bem, éramos obviamente bem mais velhos da segunda vez, mas também foi ótimo. A única grande diferença pra mim é que eu estava bastante sóbrio dessa vez, porque foi durante um período de cinco anos durante os quais eu não bebia.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

55 Anos de Morrissey

Todas as adolescências se perdem nas dele, nos Smiths e a solo. Morrissey não cresce. Odeia a Família Real, a Inglaterra, a indústria musical, Madonna. Há quem amadureça com a idade. Há quem nunca cresça. E depois há Morrissey, que está proibido de crescer. Desde os tempos dos Smiths que a sua persona é edificada a partir dessa impossibilidade: recusando a responsabilidade, recusando o equilíbrio, recusando ser adulto.

Os Smiths foram importantes pela visão parcial do mundo que impuseram. E Morrissey incorporou essa noção com requinte, pela sua imperfeição, pela recusa da realidade, pela negação de crescer. Um pouco de satisfação, algum ajustamento com o mundo são coisas que não rimam com o cantor inglês. A sua actividade alimenta-se do fluxo da adolescência - essa forma de vacilar entre a liberdade e a claustrofobia, entre as inúmeras possibilidades que a vida possui e os constrangimentos e as frustrações que também acaba por implicar.

A sua tragédia é também a sua mais-valia. Como Mick Jagger, ou Johnn Lydon, está condenado a viver na sua personagem para sempre. O seu estilo é tão perfeito que não é possível sair dele. Exactamente porque não é um estilo. É ele. É a sua pele. Desde a primeira metade dos anos 80 que é assim. Hoje, no dia em que completa 55 anos de vida, não é diferente. Quando se comunica com ele percebe-se isso de forma transparente.

- Bem, durante muitos anos diziam que eu era um Smith, por isso dizerem agora que sou um mito (myth) é apenas uma pequena alteração,.

É o que ele responde, com a habitual ironia, quando lhe perguntamos como se sente quando é tratado pelos inúmeros admiradores pelo mundo fora como se fosse uma lenda viva. Nem todas as personalidades da música têm as características adequadas a uma base de admiradores extremamente fiel. Ele tem.

Os Smiths só lançaram quatro álbuns, entre 1984 e 1987, mas as personagens da maior parte das canções provocaram adesão imediata. As palavras de Morrissey certificavam-nos de que não tínhamos de nos sentir excluídos. Constituíam a prova de que havia outros por aí a experimentarem o mesmo. De repente, alguém cantava poeticamente acerca de coisas que pensávamos ser os únicos a sentir e a confusão, a rejeição ou a solidão eram-nos mais toleráveis, pela possibilidade de partilha.

- A maior parte das pessoas acha difícil escrever o seu próprio nome.

A pergunta era se é difícil escrever uma boa letra na actualidade. E a resposta continua: "Quando examino alguém como McDonna, que vendeu 90 milhões de álbuns, não consigo pensar numa única canção decente que tenha escrito", acrescenta, dizendo que hoje a maior parte das letras não tem significado nem carisma. "Na Inglaterra existe uma coisa chamada Brit Awards, cuja política é atribuir prémios às piores contribuições para a música que possamos imaginar. Por isso não existe nenhum incentivo da indústria no sentido de que sejam escritas boas letras."

As letras de Morrissey, as suas incertezas acerca da existência, provocam uma identificação simples e directa. Em grande parte porque ele próprio possui uma mentalidade de fã. É tímido mas altivo ao mesmo tempo. É um pouco misterioso, mas também extremamente cáustico. É culto, capaz de citar Oscar Wilde ou um poeta britânico no momento certo, mas logo de seguida pode escarnecer de um cantor rival como qualquer fã de música, sem distanciamento crítico, da boca para fora. Eis o que diz sobre celebridades da música actual como Lady GaGa, Adele, Rihanna ou Beyoncé:

- Elas são altamente financiadas, agressivamente promovidas e as suas editoras fazem tudo, mas tudo, para que não fracassem. Falhar, portanto, é impossível, para gente como GaGa.

"Não existe nenhuma música nova por aí que me satisfaça", continua, para logo se contradizer. "Bem, amo Kristeen Young... É incrível... Sem gravadora, claro!... Hoje as gravadores apenas assinam com quem lhes entrega de bandeja o que se ganha dos concertos e do publishing... O que a maior parte das crianças com borbulhas de 16 anos se dispõe a fazer... Mas eu não tenho 16 anos e não sou um desenho animado."

Heróis e marginais

Nem o fim dos Smiths, em 1987, constituiu a sua extinção - por causa dos fãs. Basta ver o excelente documentário Is It Really So Strange (2004), de William E. Jones, sobre os improváveis entusiastas hispânicos: jovens latinos entre os 20 e os 25 anos com tatuagens de devoção a ele e exímios penteados à Elvis Presley, tal como o adotado por Morrissey desde sempre. Dir-se-ia estarmos num cenário de um filme colorido de John Waters, em plena década de 1950 - mas estamos numa encenação garrida do século XXI, onde todos sabem as canções de cor e procuram ser como ele.

Como é que um cantor tantas vezes arrogante, de pronúncia nitidamente britânica, de orientação sexual gay, seduziu a comunidade latino-americana da Califórnia, proveniente de uma cultura com tiques machistas? Os hispânicos, nos EUA, são "marginais", "outros", "invisíveis", e nas canções de Morrissey os párias também são admiráveis. Talvez esteja aí uma explicação possível para esse fenómeno de identificação. Mas se Morrissey é modelo, James Dean ou Oscar Wilde foram modelo para ele próprio. E ele sabe-o muito bem. E gosta de falar sobre isso. Aliás, ele não fala de outra coisa.

- James Dean é arte humana. Não encontrará uma única má fotografia de James Dean. Ele não era um actor. Era um símbolo, da mesma forma que Marilyn Monroe o era. Eles são mais famosos e mais amados do que qualquer presidente americano de que nos consigamos lembrar. E Oscar Wilde foi a primeira estrela pop de sempre. Como escritor, nunca foi acomodado. Amava a vida e a sua popularidade só tem tendência a crescer enquanto o tempo passa. E é amado pelas pessoas mais novas, como Shakespeare nunca foi. Continuo a achar que Wilde foi assassinado pelos serviços judiciais britânicos porque invejavam a sua popularidade.

Quando os Smiths apareceram, providenciavam fantasias de inocência para os que estavam no processo de deixar a adolescência. Gente dividida entre as insatisfações juvenis e ter uma carreira, entre sonhar com uma vida melhor do que a dos pais e o medo de cair na mediocridade. Ao longo dos anos, Morrissey sempre enalteceu as debilidades, as fraquezas, o falhanço. Os fortes são aqueles que não têm problemas em expor as suas fragilidades, parecem dizer quase todas as suas canções.

Pop e anti-pop

Ainda hoje Morrissey incorpora um novo estilo de celebridade. Tem qualquer coisa de pureza pop e de anti-pop. É um de nós, mas um de nós que apenas pode ser ele. Alguém que conhece bem a história da pop e os mecanismos de obsessão dos melómanos. É como se quisesse utilizar os mecanismos da idolatria para introduzir alguma diferença no pop. Ao contrário do que se possa pensar, repetimos, não é uma personagem. É ele. E quando as forças arbitrárias do encanto (simbolizadas no rosto, no corpo e na voz de um cantor) coincidem sem nenhum motivo aparente, então o fascínio acontece. Mas não é crível que ele tenha essa consciência. A sua visão sobre a relevância dos Smiths e dele próprio e a forma como fala das suas letras provam-no. Claro que os Smiths foram uma banda relevante, mas não são a melhor banda do mundo. E claro que Morrissey é um excelente cantor e letrista, mas incorpora mais do que isso: às vezes um simples falsete ou um gesto qualquer dizem mais sobre a sua diferença, a sua resistência, a sua singularidade, do que todas as letras dos Smiths.

- Nunca ouço a minha música em nenhum lado, nunca! Apenas três singles da minha autoria (Suedehead, That"s how people grow up e I"m throwing my arms around Paris) tiveram boa cobertura radiofónica ao longo da minha vida. Nenhuma das minhas outras canções foi sequer tocada na rádio. Talvez seja porque a minha voz é demasiado humana.

Quando fala é sempre assim, totalitário, logo, radicalmente parcial. Não inclui, excluiu. Não lhe interessa complexificar, tentar encontrar diferentes pontos de vista, sugerir ou perceber as dinâmicas, mas sim apontar o dedo acusador. Quando discorre sobre a progressiva desmaterialização da música, também acontece isso.

- Nunca fiz parte de nada, não sou da era do vinil ou das editoras indie contra as multinacionais, mas parece-me que a música se foi tornando progressivamente insignificante por causa deste novo panorama digital. Antes tínhamos de sair, procurar uma loja de discos, fazer uma escolha e depois carregar qualquer coisa num saco para casa. As pessoas sentiam-se emocionalmente envolvidas com as suas escolhas, agora não me parece. Penso que tudo começou com o rap. Ouve-se em todo o lado porque soa quase sempre igual e não tem qualquer significado. Não ouvimos, por exemplo, canções de protesto em sapatarias. O mesmo com a música de dança tecno. É simplista e sem personalidade. É por isso que está nos centros comerciais, nos elevadores, em qualquer espaço. Em parte, não é ouvida. É apenas papel de parede sonoro.

Nada a não ser a música

Contrariamente a outros vultos da história da música, os Smiths, e depois Morrissey solo, nunca procuraram um som novo ou um novo paradigma. Os Smiths impuseram-se como o ultimo grande grupo pop de uma linhagem clássica. Se os Beatles simbolizaram a libertação dos anos 60, os Smiths incarnaram a desfiguração dessa revolução: a adolescência é um horror, a cultura jovem não é nada divertida, parece dizer Morrissey a toda a hora. Ser jovem é sofrer, é aceitar os defeitos, é olhar para dentro, é ser lúcido. Não espanta que a separação dos Smiths em 1987 tenha provocado uma onda maior de histeria do que o fim dos Beatles ou de Elvis.

A meio dos anos 90 encontrava-se imerso em processos judiciais (ainda o fim dos Smiths e as acusações de racismo) e mostrava-se algo renitente em lançar material novo. Mas a última década não tem sido nada má para ele. Retomou a credibilidade, lançou alguns discos bem sucedidos, tem realizado turnês lucrativas e interpreta canções dos Smiths (How soon his now?, Please, please, please let me get what I want, I know it"s over ou Still ill) nos concertos, sem crises de identidade. Com o seu país, a Inglaterra, é que ainda não se reconciliou, tendo vivido no exterior, na Itália e nos EUA, nos últimos anos.

- Vivo noutros países em grande parte para evitar a Família Real britânica, que é uma coisa embaraçosa. Quando se vive em Inglaterra somos bombardeados a toda hora com histórias infantis sobre esta louca, cruel e parasita família. É insuportável. A Itália é o país onde me sinto mais em casa. Gosto de Los Angeles, mas a polícia sufoca a cidade. Parecem ser em maior número do que a população na proporção de 20 para 1. É muito triste.

Hoje Morrissey completa 55 anos. A maior parte das pessoas aceita que, à medida que envelhece, o processo de amadurecimento vai acontecendo. Mas ele não é qualquer pessoa.

- Tenho tido uma vida estranha até agora, por isso não tenho grandes expectativas de amadurecer de uma forma normal. Nenhum dos clichés acerca da existência se me aplica. A minha vida nunca foi muito típica. E agora também não é. O romance nunca esteve presente na minha vida. Acima de tudo tento ser lúcido. Sempre fui o meu melhor amigo. Quando nos apaixonamos por alguém, olhamos a humanidade e as pessoas de forma diferente. Mas eu nunca amei nada a não ser a música.

Ouvindo-o fica-se com dúvidas se, na adolescência, não pertenceria àquele tipo de pessoas que ficava sempre à beira da pista de dança a sussurrar coisas aos ouvidos dos amigos, troçando de quem dançava e se divertia, mas secretamente desejando ser como eles. "Não, não exactamente", corrige ele, levando a pergunta muito a sério.

- Comecei a ir a concertos sozinho aos 12 anos. Não ia a discotecas. Aos 12 ans vi os T. Rex, aos 13 David Bowie, Lou Reed, Mott the Hoople ou Roxy Music. E continuei por aí fora ao longo da minha adolescência. Ia sempre sozinho e gostava disso, dessa sensação. Vi as pessoas certas ainda muito novo. Ramones, Patti Smith, Sex Pistols. Aos 20 anos estava exausto e tinha visto o suficiente. Apenas queria começar a fazer qualquer coisa eu próprio.

Foi isso que aconteceu, por volta de 1982. Agora, na casa dos 50, afirma-se mais desperto do que nunca. Há alguns anos, em declarações a um jornal inglês, disse que pensava abandonar a música aos 55 anos. Não só não abandonou como está prestes a lançar um novo disco. Quando lhe perguntamos se aos 60 continuará a cantar é evasivo: "Os 60 anos ainda estão longe. Se não estiver a cantar, provavelmente estarei num asilo perto de Varsóvia. O que também está bem para mim."

É assim Morrissey. Um puto adulto que não consegue crescer mais. Se isso acontecer, a sua graça desvanecer-se-á. As suas canções perderão aquele impacto primordial. E a nossa adolescência perder-se-á na dele.

por Vitor Belanciano

P

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domingo, 18 de maio de 2014

Karne Krua, sempre.

É impressionante a capacidade que a Karne Krua, banda com quase trinta anos de atividade ininterrupta nas costas, tem de se renovar. Ontem, na Caverna do Jimmy Lennon Rock Bar, presenciamos mais um capítulo desta belíssima e longeva história, com a estréia de um novo baterista, "oithi", na formação. E foi nada menos que um dos melhores shows da banda que eu já vi em toda a minha vida - neste momento deve-se levar em consideração que eu já vi muitos, mas MUTOS MESMO, já que os acompanho desde 1987!

Oithi, como é conhecido por todos, é um "discípulo de Babalu" - ex-baterista da Karne e de várias outras bandas locais, atualmente residindo em São Paulo - e está fazendo jus ao mestre: conduziu a apresentação com um gás inacreditável, combinando batidas incrivelmente rápidas com arranjos e "viradas" precisas e criativas. Não foi perfeito: notava-se, aqui e ali, um certo descompasso com os demais componentes, certamente fruto do pouco tempo que tiveram para consolidar o entrosamento, mas nada que obscureça o que ficou evidente: a Karne Krua parece ter encontrado seu melhor baterista. Depois de Babalu, claro ...



O show foi intenso, uma verdadeira celebração. O público, presente em bom número e lotando o espaço, participou o tempo inteiro, comandado pela presença já clássica e carismática do vocalista Silvio "Suburbano" - "codinome" usado por ele nos tempos heroicos do punk dos anos oitenta -, "imperador do Hard Core" - piadinha interna e infame que só os que são "das antigas" entenderão. Ele detesta, por isso mesmo alguns de nós ainda insistem em chamá-lo assim. Como não era nenhuma competição - ainda bem! - não vale a comparação, mas não posso deixar de dizer que foi, DE LONGE, o melhor show da noite.

Uma noite que teve ainda a CRIMES HEDIONDOS - que eu não vi, sorry -, daqui mesmo, de Aracaju; GUERRA URBANA, de Recife - boa banda, com dois vocais, um masculino e um feminino, fazendo um som numa linha bem tradicional de punk rock e hard core "constestatório" - e a CALIBRE 12, de São Paulo, que faz mais aquela linha "testosterona", meio "escola Roger Miret" do Hard Core novaiorquino. Não é ruim, mas também não é muito a minha praia. São competentes, mas falta composição e algumas letras, "auto-afirmativas", na falta de uma palavra melhor - "somos Hard Core, somos underground, somos foda" - soam francamente infantis.



A se lamentar, apenas, a insistência de alguns presentes em fumar, mesmo num ambiente fechado - MUITO fechado, aliás - e com ar-condicionado - poucos, não dão conta do recado muito bem, mas sem eles aquilo ali se transformaria num inferno. Fora isso, achei especialmente desagradável a presença de alguns indivíduos “marrentos” fantasiados de “sons of anarchy” fazendo pose de malvados e procurando a qualquer custo arrumar briga no recinto – caíam no “pogo” à base de empurrões desnecessários e fechavam a cara para qualquer um que trombasse com eles – algo impossível de não acontecer, já que o ambiente, pequeno, estava lotado. Não sei de onde vieram, não lembro de te-los visto em outros shows “underground”. Vai ver não estavam “fantasiados”. É foda, “quanto mais a gente reza, mais assombração aparece”. Mas felizmente ninguém comprou a provocação e tudo correu de forma mais ou menos normal, na medida da convivência civilizada, apesar dos esforços em contrário.

Deu tudo certo. Foi uma belíssima noite.

Parabéns para Alércio, que correu atrás e fez acontecer!

A


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Imprima-se a lenda ...

"John Ford point", em Monument Valley
A doutrina do “Destino Manifesto”, que impulsionou a expansão da grande nação norteamericana em direção ao oeste, em conflito com os povos nativos que já ocupavam o território, está a pleno vapor quando somos apresentados, de forma magistral – pela paisagem que se entrevê do ponto de vista do interior escuro, assim como a sala de cinema, de uma casa de fazenda - ao cenário e aos personagens que povoam “Rastros de ódio”, o melhor filme de John Ford e uma das grandes obras-primas da história do cinema. O conflito já está, portanto, instalado, e no calor da conflagração é sempre difícil distinguir as motivações e as razões por trás de atos de barbárie como o perpetrado pela tribo comanche contra a família do irmão de Ethan, o personagem icônico magnificamente interpretado por John Wayne. Um sentimento, no entanto, é evidente e constante: a vingança. Os índios se vingam da invasão de seu território e extermínio de seu povo e sua cultura. Já os brancos, investem contra a teimosia dos “selvagens”, que insistem em resistir ao avanço inexorável da “civilização”.

O embate ideológico está, inevitavelmente, posto, e é bastante evidente que a película é construída a partir do ponto de vista dos “colonizadores” – eles próprios descendentes de povos colonizados. Foi assim durante toda a construção da mitologia do chamado “velho oeste” pela cinematografia hollywoodiana, até que, em 1990, kevin Costner dirigiu “Dança com lobos”, primeiro grande filme do estilo a mostrar os fatos com uma visão claramente respeitosa ao drama das nações indígenas. Mas é, a meu ver, injusto reputar a “Rastros de ódio”a pecha de “racismo”. Por mais que Ethan/Wayne seja retratado como O herói e o chefe indígena Scar como o vilão bárbaro e impiedoso, há toda uma série de nuances durante a narrativa que nos deixam entrever que Ford está, acima de tudo, disposto a discutir o tema e as questões postas na tela, para além de simplesmente adotar qualquer posicionamento de forma maniqueísta, sem maiores reflexões a respeito. Com efeito, Ethan acaba se equiparando ao seu antagonista ao também escalpelá-lo depois de derrotá-lo, e se redime, em parte, de seu sentimento preconceituoso, ao desenvolver afeto pelo mestiço que inicialmente desprezava e aceitar a volta da sobrinha, aculturada. A identificação histórica da direita republicana com a figura mitológica do “cowboy” personificada por John Wayne é, portanto, pelo menos neste caso específico – porque em verdade o ator realmente incorporou o personagem à sua vida “real” -, mais uma opção do que um direcionamento claramente apontado pelo filme, que passa longe de ser apenas um panfleto político/ideológico. Algo parecido com o que aconteceu recentemente com os que se identificaram com o personagem de Wagner Moura em Tropa de Elite, no Brasil.

São publicas e notórias, no entanto, as preferências e a visão de mundo do diretor John Ford ao longo de sua obra, na qual procurou sempre dar forma ao mito da grande nação nascida da força dos pioneiros e da gente simples, do povo. É assim em “A Mocidade de Lincoln”, drama “de tribunal” no qual conta de forma didática uma história centrada no embate entre o campo, representada pela família dos acusados, e a cidade, encarnada na figura do arruaceiro provocador, vítima de si mesmo. Ou em “Juiz Priest”, outro “drama de tribunal” – mais para comédia dramática, no caso - no qual retrata o dia-a-dia de uma pequena cidade sulista com clara simpatia pela causa derrotada dos confederados. Inclusive na representação dos negros, tratados com reverência no aspecto cultural, especialmente através da trilha sonora, mas convenientemente mantidos na trama em uma posição social de subserviência conformada.

Ford tem pelo menos mais dois clássicos absolutos do gênero “western” em seu currículo: “No tempo das diligências”, no qual acompanha as aventuras e desventuras de 9 passageiros pelas pradarias inóspitas com índios à espreita entre as montanhas de Monument Valley, e “O Homem que matou o facínora”, no qual somos apresentados à máxima “imprima-se a lenda” pelo jornalista que se recusa a publicar a verdadeira versão dos fatos por trás da morte de Liberty Valance (Lee Marvin, em interpretação impecável), um dos vilões mais asquerosos já apresentados na tela dos cinemas. Não tão controversos quanto sua obra-prima, mas igualmente icônicos na apresentação de um universo idealizado forjado a ferro e fogo a partir do desbravamento de territórios inóspitos.

Para além das idiossincrasias ideológicas, no entanto, o mais importante é que a obra de Ford forma um impressionante painel cultural da américa – DO NORTE, “estadunidense” – e merece muito ser revista e estudada, porque é brilhante. Especialmente alvissareiro é ter a oportunidade de revê-la em tela grande, no cinema, experiência que tivemos aqui em Aracaju com a mostra “A América por John Ford”, uma parceria do Sesc-Se com o Cinema Vitória, da Rua do Turista. Nela, os expectadores puderam ver em tela grande e com entrada franca, além dos títulos citados, “O prisioneiro da Ilha dos Tubarões”, “Médico e Amante” e “As vinhas da Ira”. Um verdadeiro banquete cinematográfico!

Inesquecível ...

A

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terça-feira, 13 de maio de 2014

RIP HR Giger

Hans Ruedi Gieger, o mestre HR Giger, morreu ontem na Suíça, aos 74 anos. Toda uma geração o conhece, mesmo sem querer, pela concepção visual da criatura em "Alien", de Ridley Scott, que lhe valeu um Oscar. Giger havia ganhado fama com "Necronomicon", uma coleção de imagens inspiradas em H.P. Lovecraft. Sua participação em Alien começou em 1975, quando chamou a atenção do roteirista Dan O'Bannon enquanto trabalhava com o cineasta chileno Alejandro Jodorowski numa versão de Duna jamais concretizada. O'Bannon mostrou a Scott o livro "Necronomicon" e o diretor decidiu adaptar literalmente as pinturas fálicas do suíço para criar o alienígena do filme de 1979.

Ficaram célebres também suas capas de discos, como a de "Brain Salad Surgery", do Emerson, Lake & Palmer, e as imagens que licenciou para álbuns do Danzig, Celtic Frost, Dabbie Harry e companhia. Pra não falar do sensacional pedestal de microfone que esculpiu para Jonathan Davis, do Korn.


Mas Giger criou também um mundo próprio, com uma estética absolutamente singular e recheada de símbolos fálicos, biomecanóides e com provocações à religião. A casa de Jello Biafra foi invadida numa madrugada dos anos 80 por agentes que queriam confiscar o pôster "Penis Landscape", criado por Giger, e encartado no disco "Frankenchrist", do Dead Kennedys.

No livro "ARh+", editado em Portugal pela Taschen, ele dizia ter escapado da morte à bala em pelo menos cinco ocasiões de sua vida. Morreu em decorrência de ferimentos causados por uma queda ...

por Eduardo Abreu

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A Escravidão, por Darcy Ribeiro

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o corpo e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e nos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar, no dia seguinte, até à exaustão.

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas para trabalhar atento e tenso. Semanalmente, vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seio, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob 300 chicotadas de uma vez, para matar, ou 50 chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.

CLASSE E RAÇA

A distância social mais espantosa no Brasil é a que separa e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros.

Entretanto, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do que deveria ser. Não foi assim no passado. As lutas mais longas e cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição.

Sua forma era principalmente a da fuga, para a resistência e para a reconstituição de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias dos quilombos, que se multiplicaram aos milhares. Eram formações protobrasileiras, porque o quilombola era um negro já aculturado, sabendo sobreviver na natureza brasileira, e, também, porque lhe seria impossível reconstituir as formas de vida da África. Seu drama era a situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas sem vencer a guerra, mas não pode perder nenhuma. Isso foi o que sucedeu com todos os quilombos, inclusive com o principal deles, Palmares, que resistiu por mais de um século, mas afinal caiu, arrasado, e teve o seu povo vendido, aos lotes, para o sul e para o Caribe.

Mas a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado à força. Ajudou a construí-la e, nesse esforço, se desfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em função de sua total desafricanização. A primeira tarefa do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia nos berros do capataz. Teve de fazê-lo para poder comunicar-se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, começando a sair da condição de bem semovente, mero animal ou força energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamente dominar a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade ao português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o território, uma vez que nas outras áreas se falava principalmente a língua dos índios, o tupi-guarani.

Calculo que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12 milhões de negros, desgastados como a principal força de trabalho de tudo o que se produziu aqui e de tudo que aqui se edificou. Ao fim do período colonial, constituía uma das maiores massas negras do mundo moderno. Sua abolição, a mais tardia da história, foi a causa principal da queda do Império e da proclamação da República. Mas as classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema de recrutamento da força de trabalho, substituindo a mão de obra escrava por imigrantes importados da Europa, cuja população se tornara excedente e exportável a baixo preço. (…)

O negro, sentindo-se aliviado da brutalidade que o mantinha trabalhando no eito, sob a mais dura repressão –inclusive as punições preventivas, que não castigavam culpas ou preguiças, mas só visavam dissuadir o negro de fugir– só queria a liberdade. Em consequência, os ex-escravos abandonam as fazendas em que labutavam, ganham as estradas à procura de terrenos baldios em que pudessem acampar, para viverem livres como se estivessem nos quilombos, plantando milho e mandioca para comer. Caíram, então, em tal condição de miserabilidade que a população negra reduziu-se substancialmente. Menos pela supressão da importação anual de novas massas de escravos para repor o estoque, porque essas já vinham diminuindo há décadas. muito mais pela terrível miséria a que foram atirados. não podiam estar em lugar algum, porque cada vez que acampavam, os fazendeiros vizinhos se organizavam e convocavam forças policiais para expulsá-los, uma vez que toda a terra estava possuída e, saindo de uma fazenda, se caía fatalmente em outra.

As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos de antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que desgastado era facilmente substituído por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem ascender socialmente, os quais se somam ao contingente branco para discriminar o negro-massa.

A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar seus filhos, de qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente, discriminação e repressão. Grande parte desses negros dirigiu-se às cidades, onde encontraram, originalmente, os chamados bairros africanos, que deram lugar às favelas. Desde então, elas vêm se multiplicando, como a solução que o pobre encontra para morar e conviver. Sempre debaixo da permanente ameaça de serem erradicados e expulsos. (…)

BRANCOS VERSUS NEGROS

Examinando a carreira do negro no Brasil, se verifica que, introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à execução das tarefas mais duras, como mão-de-obra fundamental de todos os setores produtivos. Tratado como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração que, embora melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar-se na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continua sendo principalmente o de animal de serviço.

Enquanto escravo poderia algum proprietário previdente ponderar, talvez, que resultaria mais econômico manter suas “peças” nutridas para tirar delas, a longo termo, maior proveito. Ocorreria, mesmo, que um negro desgastado no eito tivesse oportunidade de envelhecer num canto da propriedade, vivendo do produto de sua própria roça, devotado a tarefas mais leves requeridas pela fazenda. Liberto, porém, já não sendo de ninguém, se encontrava só e hostilizado, contando apenas com sua força de trabalho, num mundo em que a terra e tudo o mais continuava apropriada. Tinha de sujeitar-se, assim, a uma exploração que não era maior que dantes, porque isso seria impraticável, mas era agora absolutamente desinteressada do seu destino. Nessas condições, o negro forro, que alcançara de algum modo certo vigor físico, poderia, só por isso, sendo mais apreciado como trabalhador, fixar-se nalguma fazenda, ali podendo viver e reproduzir. O débil, o enfermo, o precocemente envelhecido no trabalho, era simplesmente enxotado como coisa imprestável.

Depois da primeira lei abolicionista –a Lei do Ventre Livre, que liberta o filho da negra escrava–, nas áreas de maior concentração da escravaria, os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas próximas, as crias de suas negras que, já não sendo coisas suas, não se sentiam mais na obrigação de alimentar. Nos anos seguintes à Lei do Ventre Livre (1871), fundaram-se nas vilas e cidades do Estado de São Paulo dezenas de asilos para acolher essas crianças, atiradas fora pelos fazendeiros. Após a abolição, à saída dos negros de trabalho que não mais queriam servir aos antigos senhores, seguiu-se a expulsão dos negros velhos e enfermos das fazendas. Numerosos grupos de negros concentraram-se, então, à entrada das vilas e cidades, nas condições mais precárias. Para escapar a essa liberdade famélica é que começaram a se deixar aliciar para o trabalho sob as condições ditadas pelo latifúndio.

Com o desenvolvimento posterior da economia agrícola de exportação e a superação consequente da auto-suficiência das fazendas, que passaram a concentrar-se nas lavouras comerciais (sobretudo no cultivo do café, do algodão e, depois, no plantio de pastagens artificiais), outros contingentes de trabalhadores e agregados foram expulsos para engrossar a massa da população residual das vilas. Era agora constituída não apenas de negros, mas também de pardos e brancos pobres, confundidos todos como massa dos trabalhadores “livres” do eito, aliciáveis para as fainas que requeressem mão-de-obra. Essa humanidade detritária predominantemente negra e mulata pode ser vista, ainda hoje, junto aos conglomerados urbanos, em todas as áreas do latifúndio, formada por braceiros estacionais, mendigos, biscateiros, domésticas, cegos, aleijados, enfermos, amontoados em casebres miseráveis. Os mais velhos, já desgastados no trabalho agrícola e na vida azarosa, cuidam das crianças, ainda não amadurecidas para nele engajar-se. (…)

Assim, o alargamento das bases da sociedade, auspiciado pela industrialização, ameaça não romper com a superconcentração da riqueza, do poder e do prestígio monopolizado pelo branco, em virtude da atuação de pautas diferenciadoras só explicadas historicamente, tais como: a emergência recente do negro da condição escrava à de trabalhador livre; uma efetiva condição de inferioridade, produzida pelo tratamento opressivo que o negro suportou por séculos sem nenhuma satisfação compensatória; a manutenção de critérios racialmente discriminatórios que, obstaculizando sua ascensão à simples condição de gente comum, igual a todos os demais, tornou mais difícil para ele obter educação e incorporar-se na força de trabalho dos setores modernizados. As taxas de analfabetismo, de criminalidade e de mortalidade dos negros são, por isso, as mais elevadas, refletindo o fracasso da sociedade brasileira em cumprir, na prática, seu ideal professado de uma democracia racial que integrasse o negro na condição de cidadão indiferenciado dos demais.

Florestan Fernandes assinala que “enquanto não alcançarmos esse objetivo, não teremos uma democracia racial e tampouco uma democracia. Por um paradoxo da história, o negro converteu-se, em nossa era, na pedra de toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos esse suporte da civilização moderna”.

em "O Povo Brasileiro"

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domingo, 11 de maio de 2014

Mystifier em Nossa Senhora da Glória

Mystifier é uma banda de Black Metal soteropolitana bastante cultuada em todo o mundo. Formada em 1989, chamou a atenção em 1990 por ser a primeira do estilo em sua região a gravar um disco em vinil, o 7EP “The Evil Ascension returns”, lançado pelo selo local Maniac Records. “Wicca”(Hellion Records), o primeiro álbum, de 1992, foi aclamado como um dos discos mais extremos já compostos até aquela data, o que chamou a atenção de selos europeus como o Osmose, da França, que os contratou para dois álbuns. O primeiro, “Goetia”, saiu em novembro de 1993, com distribuição mundial via SPV. Acabaram relançando também o “debut”, com grande repercussão, o que resultou em sua primeira turnê européia. O último disco, “profanus”, é de 2001, mas a banda segue na ativa: acabaram de chegar de mais um giro pela Europa e o primeiro – e insólito – ponto de parada foi em Nossa Senhora da Glória, no sertão Sergipano, onde foram a atração principal da quarta edição do festival Glorimetal, ocorrida ontem, sábado, dia 10 de maio. Decidi que não podia perder isso e parti rumo à “Boca da Mata”, que fica a cerca de 110km de Aracaju ...

O evento aconteceu num colégio público estadual e teve um público aproximado de cerca de 50 pessoas, no máximo, quase todos locais ou de outros pontos do interior do estado e com uma faixa etária média bem baixa. Praticamente nenhuma das “figurinhas carimbadas” do metal sergipano estava por lá, muito provavelmente por conta das eternas “tretas” que tanto enfraquecem o “movimento” (que anda bem parado, diga-se de passagem) e o preço, salgado para os padrões das produções locais do estilo. Mas aconteceu. E foi bem legal, com organização e estrutura técnica razoável – embora amadora e equivocada em alguns momentos, principalmente os que tentava emular os esquemas de grandes festivais, como num improvisado, mambembe e, no final das contas, desnecessário isolamento dos “camarins”.

Cheguei por volta das 18:00H. A Grinding Souls, do Conjunto Marcos Freire, Nossa Senhora do Socorro – região metropolitana de Aracaju – estava no palco. Grata surpresa! Tem alguns verdadeiros ícones do submundo do metal em sua formação, como Carlos “Verruga”, na guitarra. Mandando muito bem, o que me impressionou, já que sempre o conheci como baterista. Fazem um Death/grind agressivo e bem trabalhado. Boa banda.

Na seqüência tivemos a Logorréia, veterana banda de Hard Core e grindcore fundada ainda na década de 1980 pelo incansável Silvio, da Karne Krua. É um “power trio”, como quase todas as outras que se apresentaram na noite. Boas composições, num estilo cru, sem firulas, mas surpreendentemente melódico e criativo em algumas passagens. As letras, de cunho libertário, são focadas em mensagens sociais, ressaltadas entre uma música e outra por falas do baixista Nininho. Os três são veteranos na cena: Robério “Nininho” já tocou na Plasma e na Sublevação; Cícero “Mago”, o baterista, em incontáveis formações e denominações ao longo dos últimos 20 e tantos anos; e Silvio, é Silvio, dispensa maiores apresentações ...

A terceira a se apresentar foi a que mais parece ter agradado o publico: a The End, de Poço Redondo, município circunvizinho famoso por abrigar em seu território a gruta onde o bando de Lampião foi dizimado. Fazem um Heavy Metal “old school” totalmente “oitentista”, com pitadas de Hard Rock e nítidas influências da NWOBHM. A garotada – sem eufemismo, eram quase todos muito novinhos mesmo, me senti um tiozão lá no meio deles – sabia de cor as musicas e foi ao delírio.

E então as trevas se fizeram presentes. Não, não era o Mystifier, ainda. Era uma banda “nova” – pelo que entendi eles ensaiam desde 2010, mas aquela seria a primeira apresentação – que atendia pelo estranho nome de “Anhan”. De origem indígena, segundo fui informado. E eram locais, de Nossa Sennora da Glória. Único quarteto da noite, demoraram a dar o ar da graça por trás das cortinas – outra improvisação meio mambembe e desnecessária da produção. E quando apareceram, foram dispostos a assustar, com “corpse paintigs” carregadíssimos sob túnicas negras que escondiam os rostos dos componentes. Mas o som eu achei bem tosquinho: uma espécie de valsa macabra primária marcada com dificuldade pelo baterista e pelo baixista e com um vocalista meio histérico, ansioso por “mostrar serviço”. Enfim, deram lá seu recado, e no final das contas não deixa de ser louvável a atitude de montar algo assim na cidade onde eles moram.

Mystifier, enfim. Outro nível. Formação totalmente diferente da que eu vi há algum tempo, no meio da primeira década dos anos 2000, quando eles TENTARAM tocar em Aracaju, num show tumultuado que acabou prematuramente. Dessa vez deu quase tudo certo, como veremos adiante: começaram já com a clássica oração satanista em português presente no álbum “wicca” e mandaram ver numa perfomance matadora e precisa, muito bem executada e com uma excelente presença de palco. Beelzeebubth, membro fundador e único remanescente dos primórdios, agora toca guitarra, escudado por dois excelentes músicos e com o “auxilio luxuoso” de uma presença ilustre, o vocalista da formação original, Meugninousouan, que estava presente e subiu ao palco para três hinos macabros extraídos do primeiro – e clássico – disco. Fez um interessante contraponto com o vocal atual, mais “gutural”, encorpado – o dele é mais gritado. Tem mais personalidade, no final das contas, mas eu gostei bastante da formação que ora se apresenta, também. O show foi perfeito, uma verdadeira celebração à música profana totalmente avessa a concessões e comercialismos. Os caras se apresentaram diante de um público pequeno e apático, que parecia não estar entendo muita coisa, de forma intensa e precisa, como se estivessem diante de uma multidão entusiasmada. Coisa de gente grande, com experiência lapidada a ferro e fogo em cima de palcos ao redor do mundo. O único porém foi a duração, já que tiveram que encurtar o set, pois o evento estava na mira da justiça e tinha hora pra acabar.

Uma pena, porque foi muito bom. Parabéns para a produção, centralizada na figura de Tom Mendes, figura atuante no cenário do metal sergipano desde o final dos anos oitenta.

Quem não foi, perdeu um momento único, que dificilmente se repetirá.

Fotos: Divulgação

A.