quarta-feira, 13 de junho de 2018

50 Anos de 2001 - Uma odisséia no espaço

No fim de março de 1968, as primeiras cópias de 2001: Uma Odisseia no Espaço começaram a ser projetadas para integrantes das elites do cinema de Hollywood e do jornalismo cultural dos Estados Unidos, e produziram um retumbante fracasso.

Ninguém tolerou a visão de futuro do nova-iorquino de ascendência judia Stanley Kubrick, nem mesmo o cientista e escritor inglês Arthur C. Clarke, que trabalhava havia quatro anos, em parceria com o cineasta, na versão literária do filme, que seria lançada logo a seguir.

No livro recém-lançado 2001: Uma Odisseia no Espaço – Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a Criação de uma Obra-Prima, o escritor e cineasta Michael Benson, nascido seis anos antes da estreia, narra com gozo as circunstâncias agudas daqueles dias de 50 anos atrás.  

Nas pré-estreias, Clarke, executivos do estúdio MGM e críticos de cinema se irmanaram naquilo que a viúva de Stanley, Christiane Kubrick, descreve no livro como o “prazer em ver a dor alheia” estampada no rosto do cineasta.

Acontecia ali um daqueles fenômenos em que as elites de um determinado tempo se divorciam completamente da realidade e entendem um fato pelo contrário simétrico do que ele significa. Desesperado pela rejeição inicial, Kubrick encurtou 19 minutos do filme (restaram 139 minutos para a posteridade).

Em lépidos 16 dias, um dos inúmeros críticos que apontaram os “erros” de 2001 produziu a primeira reavaliação, de mea-culpa, sobre o filme, e o apontou como “obra-prima”. Amparado pelas plateias mais jovens, 2001 se transformaria no filme mais lucrativo de 1968 e num dos épicos cinematográficos indeléveis do século passado.

Estima-se que a MGM, que embolsara algo como 12 milhões de dólares com 2001, foi recompensada com uma bilheteria de até 190 milhões de dólares. Antes que 1968 terminasse, a nave Apollo 8 fez o primeiro voo ao redor da Lua; em julho de 1969, a vida imitou Kubrick e fez um terráqueo pisar pela primeira e única vez o solo do satélite artificial do planeta que 2001 gostaria de suplantar.

De modo análogo ao que Kubrick fez ao explorar por dentro as espaçonaves e o robô com (maus) sentimentos humanos HAL 9000, o livro de Benson penetra as entranhas da produção de 1964-68 para explorar minuciosamente o futuro do pretérito que é a substância de 2001.

O que emerge é a colisão criativa sem tréguas entre passado e futuro, memória e invenção, o peso do tempo e a leveza do vento. É flagrante o desespero financeiro de Arthur Clarke diante da relutância de Kubrick em liberar o lançamento da versão literária de 2001.Ao longo da produção, o diretor vai extirpando as palavras da versão audiovisual.

Quando o livro vem à tona, o texto passa a servir de guia auxiliar de decifração para os enigmas não verbais do filme – o monólito alienígena que atravessa milhões de anos entre a Terra e a Lua e Júpiter e além, o salto humano entre o berço terrestre e o infinito intergaláctico, o astronauta que envelhece e volta ao útero materno ao percorrer o Portal das Estrelas imaginado por Clarke, e assim por diante.

Na tensão entre opostos complementares, é como se Kubrick compusesse a melodia da sinfonia que adornaria (ou melhor, ocultaria) as letras de Clarke para um épico folk-rock de Bob Dylan (a certa altura, o diretor cogita, não se sabe se a sério ou zombeteiramente, entregar a encomenda da trilha sonora para os Beatles).

Na contramão das trilhas especialmente compostas para filmes de grande orçamento, Kubrick queria impor à MGM o uso de peças eruditas – do ribombante e nietz-schiano Also Sprach Zarathustra (1896), do alemão Richard Strauss, ao manjado e “cafona” Danúbio Azul (1867), do austríaco Johann Strauss.

Ao vencer a peleja, o diretor impôs à indústria canibal um paradoxal balé futurista banhado por sons compostos mais de um século antes de 2001. Contraste ainda mais chocante era produzido pela cena de envelhecimento do astronauta, ambientado num quarto de hotel interestelar decorado à moda Luís XV.

O arco de ambição da odisseia homérica e joyciana de Kubrick para longe da ave-mãe Terra ajuda a explicar a repulsa da elite que primeiro teve acesso ao filme, e faz o diretor retroceder a hominídeos de milhões de anos atrás, no prólogo A Aurora do Homem.

Combustível fóssil abastece e incendeia a narrativa de Benson sobre o processo de caracterização dos neandertais coreografados pelo mímico Daniel Richter. Ele também acabaria por interpretar Moonwatcher, o homem-macaco namorado da Lua que, após vislumbrar o monólito, aprendia a usar ossos como armas e tornava a espécie carnívora e ereta. 

Ao atirar aos céus o fêmur animal que, na montagem, se convertia numa espaçonave em forma de espermatozoide capaz de furar a Via Láctea, Moonwatcher metaforizava o raio de alcance almejado por 2001.

Richter só foi creditado como ator, porque Kubrick não admitia que ninguém, além dele, acumulasse mais de um crédito nos letreiros. De olho nas estatuetas danúbias do Oscar, o diretor engoliu a equipe de efeitos visuais e assinou a autoria desse setor que era um dos monólitos de inovação do filme.

Os efeitos visuais renderam o único Oscar para 2001 e para Kubrick, diretor também de outros clássicos pop-rock do cinema mundial, como Dr. Fantástico (1964), Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980). Idealizador de epopeias de época, guerra, terror e thriller sexual, Kubrick jamais dirigiu um faroeste.

Para Benson, 2001 marca o encerramento do ciclo do cinema de Velho Oeste e a substituição dos épicos sertanejos e caipiras pelo breu interestelar. Psicodélico na travessia do Portal das Estrelas, 2001 o filme saiu da mente de um diretor que evitava religiosamente as drogas, por medo de que lhe sabotassem o fluxo criativo.

Embora um semideus se consolide na narrativa de Benson, biógrafo não perdoa os traços mui humanos do mito que brinca de deus. Em diversas passagens, Kubrick é retratado como limítrofe à ética, e 2001 assoma como resultado da predação do artista que, à maneira das personagens, aprendeu a usar ossos e espaçonaves como armas de destruição em massa (não seria Hollywood se assim não fosse).

Kubrick exigiu da equipe o transplante de árvores africanas em extinção para cenário mais adequado, e depois do uso as silhuetas vegetais pré-históricas extraídas clandestinamente foram serradas e destruídas, simples assim.

Trabalhadores acidentados no exercício da filmagem foram sumariamente demitidos. Além do estúdio hipercapitalista, também o cineasta aparece como obcecado por planilhas, cálculos, lucros, luxo. Ele, afinal, também pertencia à vanguarda que inicialmente rejeitou sua obra-prima.

Kubrick não quis esperar para ver a realidade concretizar (em tablets e internets) e desmentir (na conquista humana tímida do espaço) sua projeção de 2001. O homem que, entre os 36 e os 40 anos, orquestrou uma visão transcendental de futuro morreu de infarto, em 1999, aos 71 anos.

por Pedro Alexandre Sanches


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quinta-feira, 17 de maio de 2018

o processo

Compareci no último sábado à pré-estréia do filme "O Processo" em Aracaju. É sempre bom ver o pequeno e charmoso Cinema Vitória lotado - e neste caso não se trata de força de expressão, quem chegou atrasado teve imensa dificuldade de achar onde sentar. Trata-se, como todos já devem saber, do documentário que Maria Augusta Ramos , conhecida por seus filmes sobre o sistema de (in)justiça, fez sobre o processo de impeachment da presidentA Dilma Rousseff - não entendi porque no filme ela á tratada como presidentE ...

O filme começa com um sobrevoo sobre uma Brasília literalmente dividida entre vermelhos e verdeamarelos, mortadelas e coxinhas. Aquele tipo de imagem que ficará para a história e será vista e revista provavelmente para sempre nos anos que virão. Todo o filme, aliás, se presta a isso: ser um registro precioso para a história. Segue mostrando a igualmente já célebre votação na câmara dos deputados, aquela cena dantesca onde o Brasil mostrou sua cara de forma nunca antes vista - escancarada, despudorada. Daí parte para "o processo" propriamente dito, supostamente judicial mas, por acontecer no senado, eminentemente político - e farsesco.

A diretora teve acesso aos bastidores das reuniões e do dia-a-dia da minoria, que defendia a presidentA. Faz falta o mesmo olhar para o outro lado, mas não há nada que se possa fazer a respeito já que o acesso lhe foi negado. Intercala, então, imagens públicas e já conhecidas dos debates transmitidos pela TV Senado com discussões a principio privadas. Não há entrevistas, apenas o registro e a edição de imagens. Toda edição, evidentemente, revela o olhar do autor e se converte num comentário, numa opinião. A diretora tem consciência disso, já vi declarações suas afirmando que nunca teve a intenção - que na verdade seria uma ilusão - de fazer um filme "imparcial". Mas há sempre, também, a possibilidade da acusação de manipulação, e foi o que parece ter acontecido no debate que se seguiu à exibição do filme naquela tarde, quando um dos espectadores afirmou ter achado de mal gosto uma edição que mostra a Dra. Janaína Paschoal tomando um Toddinho logo após cenas em que destila sua costumeira fanfarronice. Disse que não gostou porque foi uma piada "fácil" que o fez ficar com um "pé atrás" com relação ao filme. Eu, particularmente, não tenho nada contra piadas "fáceis" e ri bastante com a cena. Pra mim funcionou como um alívio cômico necessário diante do tema pra lá de árido e espinhoso. Há pelo menos outras duas que se prestam ao mesmo serviço, a cena da troca da campainha e a da troca de ironias e sorrisos nervosos entre a presidentA Dilma e o senador Cássio Cunha Lima, um dos diversos CANALHAS, CANALHAS, CANALHAS - palavras de Tancredo Neves durante o golpe de 1964 oportunamente lembradas pelo senador Requião em 2016 - que atuaram de forma cínica e dissimulada naquela verdadeira ópera-bufa.

Para mim, particularmente, o filme teve um efeito parecido com o dos "Dois minutos de ódio" que era exibido aos cidadãos da Oceania em “1984” de George Orwell: impossível evitar o asco diante de tantos CANALHAS expostos em tela grande. Isso porque a diretora fez questão de mostrar - corretamente, evidentemente - todos os argumentos, contra ou a favor do impeachment, utilizando imagens publicas de discursos proferidos em plenário e nas sempre tensas e tumultuadas comissões. Janaína, felizmente, se permitiu ser filmada, o que nos proporcionou algumas deliciosas cenas "extras" - dela se alongando ou se congraçando com seus admiradores da direita hidrófoba - além dos muitos momentos patéticos já mostrados na televisão, como o episódio em que ela arma um verdadeiro barraco numa sessão do Senado para tirar satisfações pessoais. Não se pode "culpar" a diretora por nada disso, evidentemente: com relação ao ódio gerado pela situação absurda cujas consequencias estamos todos sentindo na pele trata-se de uma percepção totalmente pessoal, baseada em minhas convicções - sim, tenho algumas. Boa parte dos presentes à sessão de pré-estreia parece ter sentido pudor de se entregar a este sentimento - catártico, purificador, recomendo - a julgar por alguns  comentários proferidos durante o já citado "debate" - confuso, pouco produtivo - que se seguiu à exibição. Me deu a impressão de que alguns dos que se manifestaram ainda estão empenhados em perseguir aquele ideal jornalístico inalcançável de isenção e imparcialidade. A meu ver, o ideal a ser perseguido é o da honestidade intelectual, e isso a diretora demonstrou ter de sobra, a julgar pelo que foi visto na tela.

Gostei bastante do filme. E tenho certeza que gostarei ainda mais ao longo do tempo, com o distanciamento histórico. Será muito bom relembrar, especialmente, a figura patética da "Doutora" Jana e suas caras e bocas e discursos involuntariamente cômicos, e o verdadeiro "tapa na cara" em forma de autocrítica registrado na fala de Gilberto Carvalho em uma das reuniões petistas. Só espero que isso aconteça numa situação ideal, no momento utópica, em um Brasil que superou a crise pela esquerda e se tornou um país mais justo, e não distópica, num país destroçado pelo avanço implacável da insensatez. Quem viver, verá.

Em tempo: o final é sensacional, avançando no tempo para registrar imagens da gigantesca manifestação contra a reforma da previdência um ano depois do impeachment. O filme, que havia começado com a imagem do sobrevoo sobre a cidade dividida, termina com a fumaça do incêndio de um dos ministérios tomando conta da tela ...

“O Processo” está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil.

Em Aracaju, no Cine Vitória.

Vá e veja.

A.

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terça-feira, 17 de abril de 2018

A VERDADE VENCERÁ

Costumo dizer que Lula foi o segundo melhor presidente da História do Brasil. Juscelino, que costuma ocupar este posto, a meu ver seria o terceiro - tenho sérias críticas ao modelo de desenvolvimento por ele implantado, principalmente no que toca à priorização do transporte rodoviário em detrimento do ferroviário, e também à construção de Brasilia, uma idéia megalomaniaca e despropositada.

O primeiro seria Getulio, mas confesso que ando revendo meus conceitos. A favor de Vargas temos o fato dele ter institucionalizado as conquistas populares - a Petrobras até hoje se tenta mas ainda não conseguiram privatizar, e a CLT só com o golpe de 2016 foi desmontada. Já o “legado” do PT desmoronou quase que completamente assim que o partido foi apeado do poder. Lula, no entanto, conseguiu o que conseguiu - e não foi pouco - num ambiente democrático, ao contrário de Vargas, que governou na maior parte do tempo com mão de ferro, usando e abusando de poderes ditatoriais. É uma disputa acirrada, portanto. Mas uma coisa é certa: o metalúrgico que se tornou presidente entrará para a História pela porta da frente, ao contrário da maioria de seus atuais algozes.

Ivana Jinkins, filha de um livreiro comunista, tem feito um belíssimo trabalho com sua editora Boitempo, que acaba de lançar um livro para ficar na história: "A Verdade vencerá". Trata-se da transcrição de uma longa entrevista com Lula conduzida por ela mesma e por Gilberto Maringoni, Juca Kfouri e Maria Inês Nassif, com textos adicionais de Luis Fernando Veríssimo, Luis Felipe Miguel, Eric Nepomuceno e Camilo Vanuchi. A edição, feita a toque de caixa e no calor de momentos dramáticos(quando todos esperavam o resultado do julgamento do habeas Corpus no STF), é pra lá de caprichada e recheada de notas explicativas que serão de grande utilidade em leituras futuras, além de ricamente ilustrada com fotos de arquivo e de Ricardo Stuckert.

Na entrevista temos um Lula em grande forma falando com sinceridade raramente vista de temas espinhosos, como sua relação com Dilma Roussef e as acusações que levaram à sua condenação. Sobre estas últimas, diz que se fossem verdadeiras ele seria “o chefe de quadrilha mais burro da face da terra”, por se contentar com um apartamento no Guarujá e reformas num sítio em Atibaia enquanto seus subordinados se locupletavam com rios de dinheiro. Faz sentido. Sobre Dilma, fala o que todo mundo já sabia mas nunca tinha ouvido - pelo menos não eu - saindo de sua boca: que não tem paciência para o jogo político e cometeu equívocos mortais na condução da economia. Ressalta, no entanto, sua lealdade. Critica duramente, mas demonstra sempre, também, imenso respeito.

A linguagem, como de praxe, é pra lá de informal - vários "porras" são ditos durante as falas, que revelam curiosidades que eu, particularmente, não conhecia, como o fato de que seu irmão, Frei Chico, nunca foi frei. A alcunha é apenas um apelido de infância. Ou de seu radicalismo (melhor seria chamar de sectarismo) nos primórdios da militância sindical, quando achava que o dono de um boteco era patrão e que a sogra, que apenas gostava de se vestir bem, era burguesa. Destaque para a saborosa história do dia em que Brizola o levou para visitar o túmulo de Getúlio - na verdade o líder trabalhista o havia conduzido até lá para apresentá-lo ao defunto, com quem ficou conversando por um bom tempo.

A vida de Lula foi muito dura. Seu pai, por exemplo, proibia os filhos de estudar. Ele só conseguiu entrar para a escola escondido, "acoitado" pela mãe, Dona Lindu, por quem tem uma devoção comovente. As enormes dificuldades que enfrentou, no entanto, não o endureceram nem fizeram com que perdesse a ternura: trata a todos como "meu querido", até as altas autoridades internacionais. É curiosa, por exemplo, a forma como ele conta o episódio do pagamento da dívida externa com o FMI, como se fosse uma negociação no balcão de uma mercearia de bairro: diz que chamou o presidente do fundo e perguntou: "meu querido, quanto eu te devo? Quero pagar". Vale dizer que o "eu", no caso, não é um termo muito apropriado e revela um certo personalismo, sempre apontado como um dos calcanhares de aquiles do lulismo. É preciso que se diga, também, que o pagamento da dívida foi muito mais um brilhante golpe de marketing que um triunfo verdaeiro, pois na verdade o que se fez foi uma substituição da dívida externa pela interna, regada a juros pra lá de generosos para o mercado financeiro.

Lula é um personagem complexo e cheio de contradições: critica o excesso de partidos mas quando vai elogiar a candidatura de Boulos lamenta que ele tenha escolhido o PSOL e diz que esperava que ele fundasse uma nova agremiação. Num dado momento, diz que Jader Barbalho era "de esquerda" ! Nunca foi! Era do MDB e militava na oposição à ditadura na época por ele referida, mas dizer que era de esquerda, é um pouco demais. Ele também dilui o charmoso termo “companheiro” que o PT adotou em seus primórdios para emular o “camarada” dos comunistas, ao se referir assim até a personalidades como o do ex-presidente norteamericana George W. Bush ...

Questionado sobre o desleixo com a formação de quadros e as mobilizações populares de massa, diz que nem sempre isso resolve, e dá como exemplo a campanha pelas diretas já, que levou milhões às ruas mas não conseguiu a aprovação da emenda Dante de Oliveira no congresso. Justifica, na sequencia, a opção pelos acordos de gabinete, que implicam em concessões de alto custo. Sobre isso, vale a pena a transcrição literal de sua fala:

"Fiz as concessões que o momento exigia. Fui eleito presidente com 10 senadores e 91 deputados, num colégio de 513. E, mesmo com esse balanço desfavorável, promovi a ascensão social dos mais humildes. Tirei 36 milhões de brasileiros da miséria, disponibilizei 47 milhões de hectares para assentamento de pequenos produtores (quase 50% do que foi feito em quinhentos anos de história deste país), levei outros 40 milhões a um padrão de vida de classe média baixa, instalei luz elétrica para mais de 15 milhões de pessoas, dei início à transposição do rio São Francisco, coisa que dom Pedro tentou fazer nos tempos em que era imperador ... Conciliação é quando você pode e não faz. Se eu tivesse a força que teve o PMDB em 1988, com 23 governadores e 306 constituintes, teria concedido menos e realizado muito mais. Nós demos um padrão de vida para o povo que muitas revoluções armadas não conseguiram - e em apenas oito anos."

Lula é um gênio político. A forma como ele transformou sua prisão num ato que ficará para a história foi brilhante. Prisão injusta, uma infâmia que põe em cheque o futuro deste nosso colosso sulamericano. Mas precisamos seguir em frente! Uma vitória da direita nas eleições de outubro seria uma tragédia, a consolidação final do golpe. A esquerda precisa urgentemente se unir em torno de uma candidatura viável, e o único nome que vejo como capaz de tal proeza, na atual conjuntura, é o de Ciro Gomes. Apoiado por Lula e com Haddad como vice acredito que formaria uma chapa fortíssima. Mas a marcha da insensatez segue firme nos dois lados do front, infelizmente, e o mais provável é que esta união não aconteça. Fragmentada, a esquerda corre o sério risco de ficar de fora e ter que assistir horrorizada a uma disputa entre Alckimin e Bolsonaro no segundo turno. Isso tem que ser evitado, a qualquer custo. 

A.

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segunda-feira, 2 de abril de 2018

O PUNK NÃO MORREU

Adolfo Sá no Viva La Brasa: Luiz Moraes Santos chegou em Aracaju vindo de Garanhus nos anos 90 e virou uma das figuras mais emblemáticas da cena punk local. Cabelo de espeto e jaqueta com patches, o vocalista da Cessar Fogo morreu em fevereiro durante o carnaval mais combativo dos últimos tempos.

Blocos de rua e palavras de ordem, vampiro neoliberal e intervenção federal, que tiro foi esse. Enquanto o mundo frevia, Luiz era preso e morria em condições nada festivas. Até hoje não conhecemos os culpados, autorizados, máquinas de matar. Indefesos, os amigos se mobilizaram para liberar seu corpo no IML e chegaram junto no enterro.

Kakuseisha Punx viveu na contramão, fez seus corres e mandou o recado nos 2 álbuns da sua banda. Convidei uns camaradas pra contar algumas das suas melhores histórias, começando pelo baixista Lauro Francis, que gravou com ele o disco ‘Conflitos Mundanos’ e hoje toca na Cidade Dormitório:

“Luiz teve uma vida difícil, veio com a mãe e o irmão porque tinha um tio aqui que poderia ajudar eles – o pai, que já era idoso, morreu quando ele era pequeno. Nessa de vir pra Aracaju ele foi ajudar o tio, tipo aquelas coisas que rolam de pegar jovens do interior pra trabalhar/morar em troca de comida e casa. Rola muito com meninas, né, trabalhar como empregadas em casa. No caso ele trabalhava na empresa, que é no centro, onde teve contato com os primeiros punks da cidade quando era garotão. E foi nessa época que começou a trampar como locutor de porta de loja. E depois que saiu da casa dos tios continuou trampando pelo centro, vendendo óculos pirata e como locutor. Locutor que foi seu trampo a vida toda. Ele era bom nisso.

Existem várias histórias engraçadas com Luiz, quando o conheci na adolescência lá no Marcos Freire/João Alves o apelido dele era Nirvana. Haha. Ele tinha um lance de quando tava com uma pessoa e tinha que ir embora, ia se despedindo andando pra trás e acenando por uns 2, 3 metros como se não quisesse dar as costas, saca?

Tem uma que eu acho foda: Um conhecido o encontrou trabalhando como locutor no Extra, todo arrumado, de farda da empresa, cabelinho penteado e tal. Viu ele lá no trampo todo almofadinha, falou: - Porra, nem tinha reconhecido! Quando acaba o horário de serviço você coloca a fantasia punk, né? Ele respondeu: - Não, na verdade eu tô fantasiado agora.”
Maicon Rodrigues, guitarrista da Psicosônicos e Dr. Garage Experience, já produziu uma festa punk com a Cessar Fogo em Itabaiana:

“Eu vivia meus dias de aventura como organizador de um projeto cultural quando Luiz veio com a banda tocar. Foi tudo muito tranquilo, desde os primeiros contatos até o dia do show, quando os conheci pessoalmente. Todos muito simpáticos, pareciam músicos empolgados, porém contidos, mas Luiz se destacava pelo visual punk levado ao extremo, sempre com um sorriso no rosto e atento a tudo ao seu redor. Parecia estar pronto pra tudo que pudesse acontecer. Lembro de sua jaqueta recheada de patches, bottons e uma crosta de sujeira acumulada ... 

O show foi foda como tinha que ser, após a gig foram todos jogar seus esqueletos maltrapilhos na residência dos meus pais como era costume com todas as bandas que eu recebia no projeto, e logo cedo se picaram pra casa após um café. Até aí tudo bem, ‘falou valeu, até a próxima’...

Dias depois eu percebo um trapo estranho e vermelho entre os panos de chão da minha mãe e saquei que era a jaqueta do Luiz. Fiz contato com o bicho e marquei de entregá-la em Aracaju. Ao encontrá-lo ele parecia aliviado pois nem lembrava onde tinha deixado. Parece que tinha muito apreço pela velha jaqueta de guerra, ficou muito feliz por tê-la encontrado, mas vi que ficou também um pouco contrariado, meio puto, e quando eu perguntei ‘qual foi man’ ele me responde:

- Pô, velho, sua mãe lavou a jaqueta...”

Rás de Sá é uma criatura das noites undegrounds aracajuanas e conheceu Luiz quando o punk cantava numa banda thrash metal chamada Epidemic:

“Vivemos em um país que juízes falam que não dá pra viver sem auxílio-moradia, pessoas tomam antidepressivo porque não podem trocar o carro 2017 por um 2018 e outros tratam mal os amigos quando falta grana pra cerveja ou o celular novo. O meu amigo Luiz dormiu na rua muitas vezes e era sempre simpático e amigável, por mais problemas que tivesse. Sempre aparecia sorrindo e falava: - Eu dormi debaixo daquele toldo, almocei no Padre Pedro e mais tarde vou a um evento underground. Tá massa! Protestou a vida inteira contra as Injustiças dessa merda de país e ao mesmo tempo foi um exemplo pelo que escrevi acima.”

E por fim Adelvan Kenobi, testemunha ocular da escória:

“Os frequentadores habituais da praça Roosevelt, conhecida como ‘praça da mini ramp’ do Bairro América, periferia de Aracaju, se depararam no domingo 11 de março último com uma movimentação diferente e inesperada: um grupo de punks, skatistas e aficionados da cena rock da cidade se reuniram por lá para celebrar a vida de Luiz.

Foi uma noite bacana, com apresentações ao ar livre, na quadra, de bandas como Casca Grossa, Iconoclastia e Putrefação Humana. Bem “rueiro”, do jeito que Luiz curtia. Não fosse ele próprio o homenageado póstumo, certamente estaria lá liderando alguma nova formação da Cessar Fogo, banda que ele se recusava a deixar morrer ...

Era um cara boa praça, sempre gentil com todos, e também um punk de corpo e alma, daqueles que simplesmente não conseguem se adaptar às vicissitudes do sistema. Por conta disso, passou os últimos dias de sua vida à deriva, morando nas ruas. Somente com a notícia da sua morte os amigos souberam que morreu na cadeia, para onde provavelmente foi levado por conta de um furto banal – foi portanto mais uma vítima do encarceramento em massa que nosso país reserva como destino aos “perdedores”, os que não se enquadram nos moldes do conformismo e da subserviência exigidos pelos donos das casas grandes. Corria o risco, inclusive, de ser sepultado como indigente. Não foi o caso, felizmente: uma galera se mobilizou e conseguiu providenciar uma despedida decente.

Luiz morreu como viveu: como um punk.

Crucificado pelo sistema.

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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Fanzines sergipanos

Fanzines são publicações amadoras e artesanais dirigidas, geralmente, a um público especifico: são produzidas por fãs para fãs – de rock, quadrinhos, ficção científica, etc. A palavra, em si, é um neologismo oriundo da união das palavras Fan(atic) e magazine, ou revista de fã(nático). O termo foi cunhado nos Estados Unidos no início do século passado e popularizado, a princípio, entre os fãs de ficção científica, mas tomou um novo impulso no final da década de 1970 com o advento do punk rock e sua filosofia “Do It Yourself”, “Faça você mesmo”. A partir daí se tornou o principal veículo de divulgação da cena do rock independente e “underground” em todo o mundo .

No Brasil os primeiros fanzines de que se tem registro datam da década de 1960 e também circulavam entre fãs de ficção científica. A partir dos anos 1980 começou a se formar uma grande rede de circulação de informações subterrâneas voltada principalmente para os universos do rock e das histórias em quadrinhos, fenômeno que perdurou até a popularização da internet, no final da década seguinte.

Em Aracaju o pioneiro neste tipo de publicação foi Silvio Campos, que já produzia seu “Arakarock” – todo feito a mão, de próprio punho – no início da década de 1980. Seu envolvimento com o punk rock fez com que iniciasse em 1986 a publicação do “Buracaju” – este já datilografado -, certamente a mais importante publicação do estilo na época. Era voltado à divulgação de bandas e do movimento anarquista e teve grande circulação nacional, via correios, sendo o maior responsável pela divulgação da embrionária cena roqueira local.

Circulava também na época o “Seduções ecológicas” – publicado por Ana Iuna, formada em biologia pela UFS –, o “Clube do ódio” – mais “cabeça”, literato, meio beat, que tinha entre seus colaboradores Helder “Podre”, hoje DJ Dolores -, “Boca Quente”, de Roberto Aquino, e o “Centauro sem cabeça”, do poeta e capoeirista Nagir Macaô. Esta movimentação acabou chegando até mim em Itabaiana, onde morava – e onde eu na verdade já publicava um fanzine, o “Napalm”, sem ter consciência disso. Eu comecei a me interessar por rock a partir do primeiro rock in rio e da leitura da revista Bizz e resolvi fazer minha própria publicação – porque tinha ciúme de emprestar minhas revistas! Como não conhecia o termo, chamava de “apostilha”.

Na década de 1990 meu fanzine passou a se chamar “Escarro Napalm”. Era xerocado e teve seis edições, com periodicidade mais ou menos semestral e tiragem de 100 a 150 exemplares distribuídos pelo correio. O número 2 foi publicado em conjunto com o “Buracaju” de Silvio. O formato era meio oficio, com as páginas dobradas e grampeadas, simulando uma revistinha mesmo. Foi o formato que Silvio também passou a adotar para seu Buracaju. Ele também publicou, na época, um fanzine maior, tamanho A4, chamado Microfonia. Silvio era um exímio diagramador autodidata: gostava de experimentar com texturas de fundo e colagens decorativas, além de usar muito bem os novos recursos que as copiadoras disponibilizavam na época, com edições em cores diferenciadas, como azul ou vermelho – às vezes duas cores numa mesma página, o que encarecia o produto, mas produzia efeitos diferenciados. Ele publicou também o fanzine “Ultralibido”, mais erótico e escrachado, e o informativo “A Bomba”, que consistia de uma única página impressa dos dois lados e dobrada em formato de folder. Este formato, mais barato tanto para copiar quanto para mandar pelo correio, foi adotado por um grupo de punks anarquistas em seu informativo “Humanismo”, que teve circulação expressiva, com numeração alta e periodicidade regular – fato raro.

Outros punks seguiram o exemplo de Silvio e passaram a publicar seus próprios fanzines no início da década de 1990. Os que mais se destacaram foram o “Brigada de resgate”, de Jall Chaves, um baiano de Alagoinhas radicado na cidade, e o “Zoada”, de Cícero “Mago”. “Mago” publicou também o “Muda Expressão”, que não tinha texto, era feito só com colagens de frases e imagens recortadas. Cícero é irmão de Jamson Madureira, notório artista gráfico que colaborava com capas de fitas demo e ilustrações para diversos fanzines – chegou, inclusive, a ilustrar dois livros, do poeta Araripe Coutinho e do depois ministro do Supremo Carlos Ayres de Brito. No final da década de 1990 Madureira costumava aparecer esporadicamente pelas ruas da cidade com mais uma edição das histórias em quadrinho de seu personagem fixo, “Automazzo”. “A Amante do mutante”, a primeira, é antológica, marcou época.

A primeira metade da década de 1990 foi a mais rica para os fanzines em Aracaju. A partir da troca de idéias entre malucos das mais diversas tribos urbanas que freqüentavam as escadarias da Catedral e as lojas “Lókaos” e “BR Records”, especializadas em rock underground, foram surgindo publicaçãoe como “Furúnculo no cérebro” - uma publicação da “Zé Guiaba produções artísticas”, de Teleu; “Entropia indiscreta” e “Acatalepsia”, de Furia; “Sinagoga´s Butterfly” - mais “cabeção”, voltado para a filosofia e a literatura, publicado a seis mãos por Dani Maya, Sérgio “Dedão” e Clarck Bruno; “Mouth Stranger”, de Estranho e Carlos “Mouth” - que focava no Heavy Metal; e o maior e mais célebre de todos, aquele que alcançou visibilidade nacional e é considerado até hoje um dos melhores fanzines já publicados no Brasil: o “Cabrunco”.


O “Cabrunco” era o que se chamava na época de “pro-zine” – mais profissional, com cara de revista. Era editado, principalmente, por Adolfo Sá, que posteriormente se formou em jornalismo pela UFS – seu TCC foi sobre fanzines -, com a ajuda de Rafael Jr., baterista da Snooze, nas sessões dedicadas à musica, e de Marcio “de Dona Litinha” – hoje vocalista da Naurêa – falando de literatura. Foi xerocado até o número 6. O número 7 teve capa colorida e foi impresso na Gráfica Digital. O 8 na Gráfica da UFS. Era bancado, principalmente, por anunciantes, por isso tinha uma tiragem bem maior que o usual. Chegou a chamar a atenção da imprensa nacional, sendo eleito, ao lado do “Papakapika”, do Paraná, um dos dois melhores fanzines do Brasil. Não se prendia a um tema específico, mas dava grande destaque à cena roqueira local, com resenhas de shows, discos e fitas “demo”. Publicou entrevistas antológicas com Mundo livre S/A e Zenilton, que eles encontraram por acaso, de “rolê” na rua – ele morava em Aracaju. Em pleno auge de sua redescoberta via Raimundos, o forrozeiro veterano, rei do duplo sentido, foi emparedado pelos “cabrunquentos” e se saiu com pelo menos uma declaração bombástica – e antológica: “Eu tô achando é bom que esses minino novo me descobriram. Agora quero aproveitar o sucesso, quero mais é morrer emaconhado e com AIDS, comendo essas minina novinha”. Todas as edições do “Cabrunco” estão disponíveis para download em pdf no blog de Adolfo, http://blog.vivalabrasa.com

Surgiu também, nesta época, um fanzine no interior, o “Putrefy”, publicado em Estância por Alberto “Pereba” – que hoje, atente o estimado leitor para as voltas que o mundo dá, é padre! Era escrotíssimo, com sátiras engraçadíssimas, algumas “impublicáveis” em qualquer veículo minimamente respeitador da moral e dos bons costumes. Sua personagem “Jezebel, a puta”, era antológica! Já na primeira década do século XXI aconteceu uma interessante movimentação “fanzinística” em Itabaiana, com títulos como “Xibiu”, “100Palavras”, “Rosebud”, “Vitrola de papel”, “The Cool Megafun Zine”, “Fun Zine” e “Tico Tico no Fullbach”, que iam da poesia – Samara era a musa local desta seara – ao rock de garagem, passando por muita polêmica e fofoca. Foi uma época intensa na cidade serrana, com toda uma movimentação roqueira underground gravitando ao redor dos shows que aconteciam no Bar “Casagrande”, uma espécia de CBGB “ceboleiro”, com bandas como Karranca, Dr. Garage, Urublues e Carburadores.

Com a popularização da internet a circulação de fanzines xerocados pelo correio foi minguando até praticamente desaparecer. No limiar do novo século poucos nomes surgiram por aqui – lembro apenas do “Cartão Postal”, que era publicado por Duardo Costa e Carol. Até Silvio, incansável, parou de “fanzinar” - sua última publicação, "Boogie Hooker", era dedicada ao blues e distribuída nos shows de uma de suas bandas, a Máquina Blues. Mas há resistência: um jovem franzino e entusiasmado chamado Aquino Neto tomou gosto pela coisa através da “fanzinoteca” improvisada que o “velho guerreiro” manteve por algum tempo em sua loja, a “Freedom”, e passou a publicar um novo fanzine chamado “Guerrilha”, todo feito à mão. Recentemente lançou o “Linhas Tortas”, muito melhor elaborado, e segue na atividade com uma distribuidora de publicações alternaticas chamada “Café com veneno”, onde publica, dentre outros, os desenhos do talentoso itabaianense Maicon Rodrigues. Também em Itabaiana temos Adilson Lima, que produz quadrinhos divertidos e ilustrou a capa do novo disco da banda de Thrash metal sergipana Berzerkers. 

É importante dizer, no entanto, que a movimentação "fanzineira" diminuiu mas não acabou de vez: "vira e mexe" me deparo, na Freedom, com alguns fanzine novos produzidos no velho esquema, xerocados, como “O Velho punk”, do veterano Robério “Nininho”, "Páginas Sujas", de Alécio, e "Kaos Universal", do casal Kelly(que também é de Itabaana) e Renan - moram em São Cristóvão, cidade histórica que faz parte da região metropolitana de Aracaju. Em shows de rock eles também costumam dar as caras, eventualmente - alguns muito caprichadinhos, como o "Ouija", de Marcio Tiago, outros rápidos, rasteiros e panfletários, geralmente pequenas publicações punks e feministas.

Recentemente estive numa feira de publicações alternativas no Museu da Imagem e do som de São Paulo, a “Feira Plana”. Nem sabia que existia, mas existe, e é impressionante: muita gente! Cheguei atrasado para uma palestra sobre a série “Zine é compromisso”, da revista Vice, que havia me entrevistado. Ao me ver por lá, o camarada Marcio Sno – maior pesquisador e divulgador do universo “fanzinistico” no Brasil – passou a me apresentar aos amigos como “uma lenda viva, o cara que foi mencionado no auditório, que fazia fanzine sem saber o que era fanzine no interior de Sergipe na década de 1980”.

O mundo, realmente, dá voltas.

Da revista "Cumbuca"

A.

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quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

200 Anos de "Frankenstein" - Em 1 de janeiro de 1818 foi publicada uma modesta edição do mítico romance em que uma precoce Mary W. Shelley moldou os dilemas e avanços de sua época

Frankenstein nasceu de algo mais do que o desafio de Lord Byron ao lado de uma chaminé com vista para o lago Léman no verão mais frio do século XIX. Tudo o que foi depositado por Mary Wollstonecraft Shelley na narração que deu à luz um mito universal – inspirador de quase mil obras entre o cinema, o teatro e os quadrinhos – tem relação com as circunstâncias extraordinárias que a cercaram desde que nasceu em 30 de agosto de 1797 em Londres. Ao seu redor o velho mundo havia se fragmentado após várias revoluções. A industrial se encontrava em plena excitação graças ao aperfeiçoamento da máquina a vapor de James Watt. A política digeria a overdose de guilhotina de Robespierre e companhia abraçando a volta da ordem. As ideias e a ciência (ainda chamada filosofia natural) estavam igualmente agitadas, com as teorias de Lavoisier que inauguram a química moderna e as expedições aos polos para se aprofundar no magnetismo. E todas aquelas revoluções tomavam chá em sua casa atraídas por seu pai, o romancista e filósofo radical William Godwin (1756-1836), partidário da abolição da propriedade e contrário a toda forma de governo. O primeiro anarquista.

O próprio entorno doméstico é forjado contrário à convenção. Godwin vivia com sua segunda esposa, Mary Jane Clairmont, e cinco filhos de diferentes origens biológicas no que hoje seria uma moderna família reconstituída. Mary W. Shelley cresce marcada pelo pensamento de sua mãe, a escritora e filósofa Mary Wollstonecraft (1759-1797), que a convida a formar-se como uma cidadã consciente em vez de uma esposa submissa. Uma mãe ausente, cujo túmulo era um local frequente de leitura. A autora transportará sua experiência de orfandade à criatura literária, que espalha dor e morte porque não tem quem a queira.

Em 1792, após o sucesso de um ensaio em defesa da Revolução Francesa, Mary Wollstonecraft publicou Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher, onde exigia a educação às meninas: “Para fazer o contrato social verdadeiramente equitativo, e com a finalidade de estender aqueles princípios esclarecedores que só podem melhorar o destino do homem, deve permitir-se às mulheres encontrar sua virtude no conhecimento, o que é praticamente impossível a menos que sejam educadas mediante as mesmas atividades que os homens”. É considerado o primeiro tratado feminista, paralelamente à Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã escrita pela francesa Olympe de Gouges, decapitada em Paris por querer levar os direitos humanos longe demais.

Se o pensamento de Mary Wollstonecraft era transgressor em si mesmo, sua vida encarnou vários mitos românticos por seus desamores e suas duas tentativas de suicídio. Entre o episódio do láudano e o do rio Tâmisa viajou pela Escandinávia com sua primeira filha, Fanny, e uma babá. Da experiência sairia um livro de viagens que entusiasmou William Godwin: “Se alguma vez foi escrita uma obra com a intenção de que um homem se apaixonasse pelo autor, acho que é essa”. Os dois escritores se tornam amigos, amantes e, por último, cônjuges entre chacotas da imprensa conservadora (Godwin havia se manifestado contra o casamento em escritos públicos). Na quarta-feira 30 de agosto de 1797 nasce a única filha do casal, Mary. A filósofa passou as contrações lendo em voz alta Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, com seu marido. O mesmo livro que no futuro será apreciado por uma criatura de dois metros e meio de altura e lábios negros.

Mary talvez não tenha sido educada como teria desejado sua mãe, que faleceu 11 dias após o parto, mas seu pai estimulou seu intelecto desde o começo. Os biógrafos sugerem que cresceu com mais pensadores do que afetos. “Ela frequentemente sentia-se sozinha e carente de um sentimento de identidade familiar”, diz James Lynn, “as relações com a segunda esposa de seu pai eram pobres, e mesmo que Godwin tenha lhe dado uma boa educação, não deu atenção às suas necessidades emocionais”.

Mary podia ouvir em sua casa o poete Samuel Taylor Coleridge, o inventor William Nicholson e o químico Humphry Davy. Seu pai a levava em conferências sobre eletricidade e para tomar chá com o divulgador do vegetarianismo John Frank Newton. Todo esse magma individual e criativo deixou marcas em Frankenstein: o capitão Walton faz referência a um poema de Coleridge (‘A Balada do Velho Marinheiro’) e o gigante mata, mas é vegetariano. Um velho amigo de Godwin é apresentado no começo do romance: “Na opinião do doutor Darwin, e de alguns fisiologistas da Alemanha, os acontecimentos em que a presente ficção é baseada não são inteiramente impossíveis”.

O médico e naturalista Erasmus Darwin, defensor de uma teoria sobre a origem única da vida e avô do autor de A Origem das Espécies, também será evocado em Villa Diodati no frio verão de 1816. Horas antes de Mary ter a visão que alimenta Frankenstein, os poetas Lord Byron e Shelley recordam um de seus supostos testes, como relata a própria escritora: “Ao que parece havia conservado um pouco de massa em um pote de vidro, até que, por algum extraordinário processo, aquilo começou a se agitar com um movimento autônomo. (...) Talvez um cadáver pudesse reviver, o galvanismo deu provas de coisas semelhantes: talvez as partes que compõem uma criatura possam ser construídas, e depois possam ser reunidas e dotadas de calor vital”. A grande pergunta que se faz Victor Frankenstein – “Onde estará o princípio da vida?” – era a grande pergunta da época.

Diante da falta de respostas precisas, os substitutos triunfam. A eletricidade vive seu momento de glória desde meados do século XVIII. As descobertas científicas de Benjamin Franklin, Luigi Galvani e Alessandro Volta convivem com a prestidigitação ambulante. Em seu ensaio Mulheres e Livros, o editor Stefan Bollman recria um popular espetáculo de “aparelhos elétricos”: “Colocavam em funcionamento as rodas de suas máquinas eletrostáticas e enviavam descargas elétricas através das mãos de uma cadeia humana. Suspendiam uma pessoa de tal forma que levitava e faziam com que sua cabeça brilhasse”.

Até mesmo Percy Bysshe Shelley entrou na onda da eletricidade em Oxford, como detalha Charles E. Robinson, principal especialista na obra de Mary W. Shelley, em sua introdução a uma edição anotada para cientistas e inventores publicada em comemoração ao bicentenário da criação da obra: “Construiu sua própria pipa elétrica, fez faíscas saltarem de um aparelho elétrico e até armazenou o fluido da eletricidade em garrafas de Leyden: esses testes servem de base às experiências elétricas do pai de Victor, Alphonse, em Frankenstein”.

O poeta Shelley também acabaria frequentando a ágora doméstica de William Godwin, atraído pelo pensamento de um filósofo quase mais célebre por controvérsias públicas como a que manteve com Malthus do que por seus densos tratados políticos. Percy também era especialista em controvérsias: casou-se apesar da oposição de sua influente família e acabava de ser expulso de Oxford por fazer propaganda do ateísmo. Mary tinha 16 anos quando foge com ele, mas voltam logo por falta de dinheiro. A partir daí suas biografias alimentam o mito do casal perfeito do romantismo, com uma sucessão de sucessos literários e cadáveres jovens: só um de seus quatro filhos sobrevive e, aos 29 anos, Percy B. Shelley se afoga na Itália. No futuro a escritora se afastará da condição de maldita e se preocupará em obter a aprovação social para ela, seu único filho e o poeta morto.

Mas quando Mary W. Shelley escreve seu relato em 1816 para a competição sobre histórias de fantasmas, convocada por Lord Byron no verão mais frio do século, tem somente 18 anos, um bebê vivo e outro morto, e uma relação escandalosa que acabará com o suicídio da primeira esposa de Shelley. Ignora que está forjando um mito universal e que, naquela família onde só contavam os que tinham méritos literários, ultrapassará a popularidade de todos eles.

Em 1 de janeiro de 1818, quase dois anos depois da estadia no lago Léman, é publicado Frankenstein ou o Prometeu Moderno com uma tiragem de 500 exemplares. Não tem assinatura. A mão de Percy B. Shelley (que fornece correções ao manuscrito) chega a ser especulada. Mas se algum incrédulo sobreviveu nesses 200 anos, perdeu a última esperança em 2013. Nesse ano foi leiloado por 477.422 euros (1,9 milhão de reais) um exemplar da primeira edição dedicada a Lord Byron “pelo autor”. A letra foi autentificada como a de Mary W. Shelley.

Na segunda edição de 1823 (de tiragem semelhante à anterior), a escritora se identifica. Em apenas três anos são feitas 10 adaptações teatrais diferentes, incluindo finais paródicos sobre a morte da criatura, que irá se afastando-se de seu cultivado espírito original – lia Plutarco, Milton e Goethe – para transformar-se no imaginário coletivo em um monstro de parafuso na cabeça e um tanto bobalhão. A obra se emancipa da autora. Seus leitores encontram em Frankenstein o que precisam: terror gótico, antecipação da ficção científica e um dilema ético sobre os limites da ciência.

No dia de Halloween de 1831 é lançada uma terceira edição de 4.020 exemplares. A escritora introduz mudanças e cala os céticos: “Certamente, não devo ao meu marido a sugestão de nenhum episódio, nem sequer de um guia nas emoções e, entretanto, se não fosse por seu estímulo, essa história nunca teria adquirido o formato com o qual se apresentou ao mundo”. Assina sua introdução como M.W.S., mas a história da literatura prescindirá do sobrenome materno.

Mas somente rastreando suas origens familiares e as circunstâncias dos primeiros anos de sua vida pode-se responder à pergunta que tantas vezes fizeram a Mary W. Shelley: “Como é possível que eu, à época uma jovenzinha, pudesse conceber e desenvolver uma ideia tão horrorosa?”.