sexta-feira, 27 de setembro de 2019

“Quero Que Você Entre Em Pânico”

“Onde está aquela garota?”, uma adolescente, ainda vestindo o uniforme da escola se pergunta em voz alta. “Que garota?” “Você sabe!” Suas amigas parecem intrigadas por um momento, depois se descontraem em reconhecimento. “É, é. Aquela garota.”

Alguns minutos depois, um grupo de meninos um pouco mais informados começam a entoar simulando um sotaque sueco: “Greta! Greta!”

Toda vez que a polícia nos empurra para a calçada, alguns de nós na multidão imaginam que estamos prestes a ver Greta Thunberg, a garota sueca de 16 anos que inspirou milhões de outras crianças ao redor do mundo a matar aula às sextas-feiras para protestar contra o fracasso dos seus governos em impedir o desastre climático.

A greve climática de 20/09, atraiu milhões de pessoas ao redor do mundo. A que ocorreu em Nova Iorque foi a maior do país até o momento, com 70.000 pessoas na rua. Grande parte do motivo foi a emoção de ter Greta Thunberg aqui na cidade. O sistema de ensino público nova-iorquino ter permitido que os alunos faltassem aula sem penalidade também ajudou, resultando no que talvez tenha sido a marcha climática da classe trabalhadora mais diversa que os Estados Unidos já viram. Mas os números também se devem ao impulso que Greta deu ao movimento.

Movimentos são coletivos, mas algumas pessoas têm a personalidade certa para liderar na hora certa. Quem acha que o socialismo seria tão popular nos Estados Unidos hoje se Bernie Sanders não tivesse concorrido à presidência em 2016? As condições históricas estão corretas, mas o povo também precisa de líderes. Greta é uma dessas pessoas. Não há dúvidas de que ela é grande parte do motivo pelo qual as pessoas estão indo às ruas e por que até os políticos e a mídia estão começando a levar essa questão mais a sério.

Greta é autista. Como Slavoj Žižek observou, isso é provavelmente parte do seu apelo. Ela se refere ao seu autismo como um “superpoder”, e pode ser que seja mesmo. Pessoas autistas muitas vezes têm dificuldades para entender comunicações sociais. Isso não deve ser idealizado; torna a vida deles mais difícil, e a sociedade nem sempre é tolerante com essas diferenças. Para uma porta-voz climática como Greta, no entanto, não é difícil ver como o autismo pode ajudar.

A maioria das pessoas, especialmente as meninas, é socializada para fazer com que os outros sintam-se bem, para serem gentis e não serem chatas. É impossível chamar atenção para uma ameaça à civilização humana sob tais restrições sociais. A possível extinção da nossa espécie não faz ninguém se sentir bem. Além disso, a maior parte das pessoas é socializada para dizer às outras que elas estão fazendo um ótimo trabalho, ou pelo menos para encontrar maneiras de enfatizar o que é positivo. Mas, novamente, é impossível dizer a verdade sobre o clima dessa maneira. Na semana de 15 a 21 de setembro de 2019, Greta disse sem rodeios, na cara dos membros do Congresso americano, para pararem de puxar seu saco. “Por favor, guardem seus elogios”, disse ela. “Nós não os queremos. Não nos chamem aqui só para nos dizer como somos inspiradores, porque isso não leva a nada.” Ela disse: “eu sei que vocês estão tentando, mas não o suficiente. Sinto muito.”

Pessoas autistas muitas vezes conseguem concentrar-se fenomenalmente em um único assunto. Isso pode torná-los trabalhadores extraordinariamente produtivos, como descobriram alguns empregadores. Greta é incomum para uma ativista contemporânea, pois ela raramente menciona outras questões. O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é a metáfora neurológica da nossa era da internet; há muitos problemas atraindo nossa atenção, enquanto nossas formas contemporâneas de consumir mídia — notificações constantes em nossos celulares, tweets — nos desencorajam a dar a qualquer um deles a atenção constante que necessitam. Talvez uma dose de autismo seja o antídoto certo para o nosso TDAH coletivo.

omo qualquer pessoa com um impacto tão grande na cultura política, Greta tem seus críticos. Não é de surpreender que a maioria deles esteja à direita, exatamente onde esperamos encontrar negadores climáticos que odeiam crianças excepcionais. Mas também houve uma reação contra ela na esquerda.

Algumas vêm daqueles esquisitões para os quais nenhum ser humano é abnegado o suficiente. Greta, sendo uma ativista climática de princípios e levando a sério seu papel de exemplo para os outros, não usa aviões; as viagens aéreas são a forma de transporte que mais emitem carbono. Para vir a Nova Iorque para a Cúpula do Clima da ONU (e a Greve Climática) neste mês de setembro, ela viajou de barco. Alguns dos críticos mais rígidos de Greta ficaram indignados com o fato de os adultos que pilotavam o barco planejarem voltar de avião à Europa. Outros ficaram aborrecidos com fotos de plástico descartável a bordo do barco. Isso é o ambientalismo como uma neurose punitiva, e não política.

Outros críticos de Greta, com uma perspectiva política bastante diferente, estão igualmente equivocados: estão chateados devido ao barco de carbono zero ser tão caro, enfatizando, com um ressentimento populista idiota, que é um “iate”. Para esses críticos de esquerda, Greta é o rosto de um movimento ambiental de “elite”. Eles suspeitam que ela seja muito institucionalmente amigável e amada pela mídia para fazer algo bom. Eles estão seguros de que ela não pode ser verdadeira, que se trata de um fenômeno fabricado. Essas críticas parecem fugir do cerne da questão tanto quanto as feitas pelos obcecados pelo plástico.

Não tenho dúvidas de que a embarcação de carbono zero é cara. Na verdade, espero mesmo que seja; que pais deixariam um filho atravessar o Atlântico em um barco a remo barato? Além do mais, certamente não parecia uma viagem luxuosa. Quanto à idéia de que Greta é abraçada pelas elites e pela mídia, qual é a insinuação aqui? Que ela estaria tentando nos distrair participando do movimento ambiental mais radical e popular ao invés de bombardear a sede da ExxonMobil e raptar os irmãos Koch? Essa é uma fantasia sombria e risível para quem assiste de perto o movimento ambiental dominante se aconchegando junto às piores empresas e políticos, arrecadando fundos para o drama de bichinhos fofos ameaçados de extinção, enquanto ecossistemas inteiros estão em perigo.

Greta Thunberg continua dizendo aos adultos — francamente, implacavelmente, não facilitando — que ela não pode nos salvar. Ela está certa. Precisamos refazer toda a nossa sociedade. Mas ela chamou nossa atenção e nos deu um exemplo, e precisávamos disso. Na Greve Climática houveram muitos bons sinais. Alguns fariam qualquer pessoas que já foi criança rir, como “Mantenha a Terra Limpa, Não É Seu (C)Urano”. Outros, como “Compostem os Ricos”, propunham soluções sagazes. Alguns foram de partir o coração: “Estou Estudando Para Um Futuro Que Foi Destruído”. Um dos melhores levou uma citação de Greta Thunberg: “Quero Que Você Entre Em Pânico”. Isso provavelmente não é algo que uma pessoa “normal” diria.

por

jacobin



quarta-feira, 4 de setembro de 2019

BACURAU

Assim como Aquarius, a recepção de Bacurau parece comprometida pela expectativa, compartilhada por apoiadores e críticos, de que o filme seja uma análise da conjuntura presente. No caso de Bacurau, a confusão começa já na questão sobre o registro em que devemos lê-lo. A suposta influência de Tarantino é enganosa: não se trata de uma película ao estilo do diretor americano, mas que explora um gênero cultivado por ele e Robert Rodriguez –– algo que poderíamos descrever como filme B de fantasia de vingança coletiva. Bacurau não seria, assim, uma tentativa de copiar, mas de fazer a mesma coisa por outros meios, com referências predominantemente não-hollywoodianas: Punishment Park (Peter Watkins), The Wicker Man (Robin Hardy) e Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr.), para arriscar algumas. É quando o lemos como filme de gênero que vários traços do filme, como sua violência estilizada, começam a fazer sentido.

O que Tarantino descobriu a partir de Death Proof é que aderir às convenções do filme B lhe permitia ser maniqueísta e didático ao falar de política. Há, claro, uma grande ironia aí: em tempos em que o próprio fim do mundo pode ser assistido com distanciamento irônico, é como se só o distanciamento propiciado pelo artifício e o absurdo nos desse o direito de ir direto ao ponto. Dito de outro modo, é como se a condição necessária para dizer a verdade sem rodeios –– e nada é mais verdadeiro que uma fantasia de vingança –– fosse a inverossimilhança. Porque a verdade, no fim, está menos na caracterização dos personagens ou na plausibilidade da trama que na catarse que o filme provoca ao realizar na tela uma fantasia de vingança –– de mulheres, em Death Proof; judeus, em Bastardos Inglórios; negros, em Django Livre e Os Oito Odiados; e latinos, em Machete.

Sob este aspecto, acusar de didatismo uma cena como aquela em que os estrangeiros humilham os paulistas que os levam à Bacurau é não entender a piada. O esquematismo e a falta de sutileza não estão ali a serviço da mensagem, mas do efeito catártico que a cena proporciona: a vingança é um prato que se come lambuzando-se. Não por acaso, a cena parece ter incomodado especialmente os críticos do sudeste –– o que sem dúvida só faz aumentar o prazer que o público nordestino pode extrair dela.

Mas se Bacurau é uma fantasia de vingança, quem são os vingados? Reduzir o filme a uma revanche do #elenão é a leitura mais superficial que se pode fazer, seja contra ou a favor. Tampouco podemos dizer que trata apenas dos nordestinos ou sertanejos. Basta projetar sobre o filme um pouco de economia política, porém, e ele se torna bem menos metafórico e bem mais literal. A violência que o filme vinga, passada, presente e futura, é aquela que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico. É a violência que ronda os “involuntários da pátria”, na expressão certeira de Eduardo Viveiros de Castro: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia. É a violência através da qual o sistema capitalista se expande e se defende; aquela que se manifesta na busca por mão-de-obra e natureza baratas, nos processos de acumulação primitiva e na gestão das populações “excedentes” (leia-se: desprovidas de funcionalidade econômica). Esta violência não é uma metáfora; ela está acontecendo neste exato momento em alguma terra indígena, periferia ou fronteira que, de um ponto mais central das redes que dela se alimentam, nós não vemos ou preferimos não ver.

A transformação de Bacurau numa zona de caça para turistas, mediada pela elite local (o prefeito) e nacional (os paulistas), não é, assim, uma alegoria do imperialismo tirada de alguma cartilha dos anos 60, mas outra coisa. O que o filme faz é tomar um traço do presente e estendê-lo até o futuro –– que é, afinal, onde ele se passa. O resultado é a projeção bastante lúcida de um cenário cada vez mais possível, em que as fronteiras e a violência que as acompanha proliferam e podem aparecer em (quase) qualquer lugar a qualquer hora. Em que há cada vez mais bolsões de pessoas deixadas às margens, sem acesso aos benefícios do desenvolvimento, mas sempre sujeitas a terem uma última gota de rentabilidade extraída de si (o abastecimento de água cortado, o safári humano como serviço de luxo). Em que as populações “excedentes” se tornaram tão numerosas que seu manejo é feito ao ar livre, em execuções em massa exibidas pela televisão. Em que extrativismo e exterminismo finalmente tornaram-se inteiramente reversíveis.

Quem viu os discursos de Donald Trump e Jair Bolsonaro na ONU reconhecerá este cenário. O negacionismo climático não é burrice, mas a aposta de setores que já assumiram que a manutenção de suas condições atuais de vida tornou-se incompatível com a sobrevivência da grande maioria. O antiglobalismo não é um desvario, mas a justificativa ideológica de quem já percebeu que, sem uma correção radical de rumo –– justamente o que eles querem evitar ––, o capitalismo não dá mais para todo mundo. O resultado disso só pode ser, de um lado, o caos crescente causado pela crise ambiental, pela extinção de qualquer rede de proteção social, pela automação do trabalho e pelo empreendedorismo predatório; e, de outro, a formação de enclaves fortemente protegidos. Morador da Barra da Tijuca, Bolsonaro pode, pelo menos nesse sentido, dizer que vem do futuro.

Famosamente, Michel Foucault chamou de “biopolítica” um acordo tácito entre governantes e governados estabelecido a partir do século XVIII. Em troca de potencializar a utilidade econômica dos governados, os governantes assumiam o dever de fazer viver (através de políticas de saúde, seguridade, legislação trabalhista...), reservando para ocasiões extraordinárias o direito de deixar ou fazer morrer. Esta biopolítica sempre foi inseparável, nas suas fronteiras, de uma violência letal: para que algumas populações vivessem dentro de certos parâmetros, era preciso que outras fossem exploradas até à morte. O nazismo apenas levou esta lógica às últimas consequências.

O cenário que Bacurau e a extrema direita mundial projetam aponta para a dissolução deste pacto e uma virada abertamente necropolítica do capitalismo. Num mundo de concentração de renda astronômica, degradação ambiental crescente, recursos cada vez mais escassos e aumento das populações excedentes –– desempregados estruturais, refugiados climáticos, população carceral ––, o Estado tende a eximir-se da responsabilidade de fazer viver e a privatizar –– para empresas de segurança, “empreendedores” e “cidadãos de bem” –– o direito soberano de fazer morrer. Vista assim, a combinação de ultraliberalismo e culto da violência de Trump e Bolsonaro faz perfeito sentido.

Se Bacurau pretendia ser uma previsão do futuro próximo, aliás, aí está seu maior deslize. Na figura de Tony Jr., o típico político moderno filho do latifundiário local, Bacurau parecia apostar que quem se beneficiaria da crise econômica e política seria a direita liberal que historicamente cumpre no Brasil a função de ser o lado civilizado da família dos coronéis e senhores de escravos. Como muita gente, Kleber Mendonça não foi capaz de imaginar que, não achando um candidato viável entre o quadro de sócios do Country Club, a elite brasileira optaria por botar o capataz da fazenda na presidência.

Em Bastardos Inglórios, Tarantino inclui uma cena (o assassinato de Hitler) cuja função é lembrar-nos que aquilo é só uma fantasia. A droga que os moradores tomam em Bacurau talvez também deva ser interpretada assim. A catarse é um poderoso psicotrópico e cria um sentimento de comunhão inclusive com gente com quem há pouco em comum: muitos daqueles que se identificaram com Bacurau talvez defendessem em outras oportunidades a necessidade de uma aliança com Tony Jr. Passados os efeitos da droga, porém, continuamos no mesmo lugar. Como sair? É neste ponto que o filme foi mais criticado, a violência dos personagens sendo entendida como um apelo à radicalização num momento em que seria preciso desarmar a polarização política. Mas enquanto a questão se resumir a “é preciso radicalizar ou deve-se dialogar com o centro?”, o problema estará mal colocado.

Primeiro, porque carece de conteúdo concreto. Radicalizar como? Em relação a quê? Dialogar sobre o quê? Em quais bases? Com qual centro? É isto que falta responder. Segundo, porque parece supor que sair da polarização envolveria tirar a média aritmética dos extremos existentes. Mas quando os extremos são o reformismo fraco do PT e a terraplanagem bolsonarista, o meio-termo fatalmente estará bem aquém do necessário. O erro implícito aí é, terceiro, tratar centro e extremos como coordenadas que estão dadas, quando o objetivo da política é justamente transformar as coordenadas –– ou, como entendeu o ideólogo conservador Joseph Overton, fazer com que o centro se desloque em nossa direção. É exatamente isso que a extrema direita tem sabido fazer, e não foi com “bom senso” que eles ocuparam esse lugar.

Quarto, porque supõe que bom senso era o centro do debate político tal como este existia até alguns anos atrás, e que é a este centro que deveríamos voltar, contra extremos irreais. O que este realismo não entende é que as condições materiais e políticas para aquele consenso deixaram de existir: não há retorno possível. O único caminho possível hoje é na direção de redefinir o centro, criar um novo consenso –– e, novamente, foi a extrema direita quem entendeu isso primeiro, mas para propor um projeto que é sustentável apenas para os muito poucos. Por último, o problema é mal posto porque, como a menina Greta Thunberg tem mostrado, diante de questões como o aquecimento global ou o futuro que a extrema direita prepara, não há mais tempo ou espaço para soluções de compromisso: ou diz-se um não definitivo à barbárie, ou não se está dizendo rigorosamente nada. A este não ainda é preciso, sem dúvida, dar a forma concreta de programas, propostas, ações. Mas ou se faz isso ou não se faz nada: fingir que tudo pode continuar como está é a posição menos realista a essa altura.

por Rodrigo Guimarães Nunes


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