sábado, 31 de dezembro de 2016

2016, o ano que não vai terminar

Tudo começou a desandar quando soubemos, logo em janeiro, da morte de David Bowie dois dias após lançar seu álbum derradeiro – uma ode à própria morte. Seria, de fato, um ano de baixas.

Mundo afora, Spotlight, sobre a equipe de jornalistas responsáveis por investigar a rede de pedofilia e crimes acobertados pela Igreja Católica, vencia o Oscar de Melhor Filme e desbancava A Grande Aposta, também baseado em fatos reais, também uma aula sobre apuração, observação de sinais, desconstrução de discursos e mensagens oficiais, desta vez sobre a bolha do mercado imobiliário. A ironia é que o dicionário Oxford escolheria a expressão “pós-verdade”, que, entre outras artimanhas, ajudou a definir o Brexit e a eleger Donald Trump nos EUA com a divulgação de notícias factíveis e não factuais pelas redes, como a palavra do ano.

Pós-verdades, obituário e escândalos domésticos competiam por nossa atenção logo nas primeiras horas de 2016. Um dia era a ex-amante que acusava o ex-presidente de pagar mesada com ajuda de uma empresa amiga de sua gestão. No outro, o marqueteiro da campanha de Dilma Rousseff (e Michel Temer) era preso, suspeito de receber dinheiro oriundo de propina na 23ª (vi-gé-si-ma-ter-cei-ra) fase da Lava Jato.

Em março, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o presidente da Câmara responsável por dar início ao julgamento de Dilma entre os deputados, virou réu no STF sob acusação de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

No mesmo mês, promotores de São Paulo pediram a prisão do ex-presidente Lula, mas o que chamou a atenção foi a confusão entre os pensadores Hegel e Engels. Lula não chegou a ser preso, mas foi conduzido coercitivamente à PF para prestar depoimento.

Ainda em março, uma multidão foi às ruas contra o governo petista, liderados por um jovem militante que, naquele domingo, comparava a luta contra a corrupção no Brasil com a luta imaginária de sua infância contra os vilões dos Power Rangers.

Mas era outro vilão, o Coringa do Batman, que o ex-senador Delcídio Amaral (PT-MS), preso após tentar comprar o silêncio de um delator, evocaria ao anunciar a sua própria delação: “sou o profeta do caos”. O caos era a ideia, desenhada a cada nova denúncia, de que a quebra do silêncio era também a quebra de um pacto frágil que nos fazia acreditar que, longe de nossos olhos, as instituições funcionavam, eram independentes, democráticas, republicanas.

O caos narrado ali desordenava o modelo vilões, mocinhos de HQs e seriados japoneses e patos da Fiesp. Citava, por exemplo, o herói do impeachment, Eduardo Cunha, nas falcatruas e atribuía à perda de influência em órgãos públicos como a origem da bronca contra a presidenta prestes a ser destituída.

Naquele mesmo mês, Lula foi nomeado e desnomeado ministro antes de assinar o papel do Bessias. O vai-não-vai tinha como pano de fundo a divulgação de trechos de gravações entre ele e a presidenta, levando, possivelmente, ao ápice do radicalismo entre apoiadores e opositores do governo. Um ator chegou a interromper uma peça em Belo Horizonte para xingar tudo o que se assemelhasse ao governo, inclusive um “nego qualquer”, grifo dele, da plateia.

Ao mesmo tempo, estava sendo gestada a lista da Odebrecht com mais de 200 políticos de vários, se não todos, os partidos. Foi nesse contexto que o PMDB decidiu romper com o governo que ajudou a eleger e governar até o abismo. Era o triunfo do achaque após levar os anéis e todos os dedos da partilha ministerial.

Estava mais do que desenhado que o futuro presidente seria alguém que fazia saudação em cartas em latim e conseguia enviar mensagem de voz de 15 minutos no WhatsApp. Totalmente conectado, portanto, com as ferramentas para compreender um mundo de diversidades, velocidades e compartilhamentos.

No Planalto, ministros começam a jogar a toalha já em abril. Era uma boa notícia para quem via no governo petista o símbolo da corrupção, da fisiologia e da incompetência. A má notícia era que os antigos sócios da parceria - e protagonistas do mesmíssimos escândalos que todos juram combater – seriam promovidos.

Nos jornais, uma rede de fast food iniciava “um movimento de democratização e acessibilidade a todos” em direção a esfihas vendidas por um real. Dizia que a “queda”, um trocadilho com o momento político e o preço da iguaria, seria boa para todos. Era um retrato bem-acabado daqueles dias, quando até a vergonha virava oportunidade de negócios.

Até que chegou o dia da votação do impeachment na Câmara. O primeiro voto, de Abel Galinha, mobilizou esforços de tradutores da mídia estrangeira que concentrava as atenções sobre o futuro político do Brasil. Em diversos veículos, os colegas tentavam explicar como acusados notórios de corrupção poderiam comandar o julgamento de um governo acusado de corrupção, embora este não fosse exatamente o mérito do pedido de impeachment.

Na sessão, Jair Bolsonaro prestou duas homenagens; uma, ao torturador da ditadura Carlos Brilhante Ustra, e outra a Eduardo Cunha, pela condução dos trabalhos. Segundo o deputado, os derrotados no processo “perderam em 64, perderam em 2016". Cunha, por sua vez, pediu para que Deus tivesse misericórdia da nação.

Em outro momento magnífico, a deputada Raquel Muniz (PSD) disse que o “Brasil tinha jeito” ao votar pelo afastamento de Dilma e citou como exemplo seu marido e prefeito de Montes Claros, Ruy Borges Muniz (PSB), que seria preso menos de 24 horas depois.

Enquanto os deputados falavam em nome de Deus, o futuro governo já encaminhava com representantes da indústria, da agricultura e do comércio uma série de concessões, entre elas menos controle de retorno das concessionárias de serviços públicos, a permissão para negociações diretas entre empregadores e empregados, e a liberação de milhões em recursos.

Alguém lembrou de atualizar a expectativa em relação ao país de alguns anos atrás: de candidato a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU a uma cadeira rotativa da Presidência.

Quem leu ou reler o “Admirável Mundo, de Adous Huxley, naquela época, poderia imaginar que chegara o tempo em que os regimes totalitários já não precisariam do cassetete para impor uma estabilidade à força. Bastaria convencer a população de que ser oprimido era um bom negócio. Para isso era preciso conter a consciência e a capacidade de auto-reflexão dos indivíduos com uma jornada de trabalho alienante (não pense em crise, trabalhe), uma mega exposição a programas de entretenimento infantilizadores, pílulas da felicidade ao menor sinal de sofrimento e o descarte da literatura e de qualquer arte de questionamento como itens de inutilidade.

O Brasil de 2016 se tornava um case de sucesso nas previsões de todas as distopias literárias.
Temer, que já na época era apontado como a melhor solução para o país por apenas 8% do eleitorado, segundo o Ibope, governaria com o apoio do PSDB, que se tornaria aos poucos no PMDB do PMDB.

Em maio, enquanto o futuro presidente se trancava nos bastidores para decidir o futuro e deixar tudo ficar como estava, com os mesmos atores que levaram o governo à ruína, no Brasil real estudantes secundaristas se mobilizavam em outras salas para reivindicar o presente. Seriam eles os acusados de provocar desordem e tumulto em um país que já não sabia o rumo.

Amigo de alcova do novo presidente, Cunha foi afastado em maio do mandato de deputado via STF. Voltaria a operar e vagar feito alma penada pelo submundo de onde surgiu até ser preso. 

Waldir Maranhão (PP-MA) assumiu o lugar de Cunha prometendo surpreender e não desapontou: tentou melar a votação do impeachment e promoveu o maior cai-não-cai na história recente da República. As definições de modernidade líquida acabavam de ser atualizadas pela política brasileira.

Até que o Senado finalmente pôde votar, e confirmar, o afastamento, então provisório, de Dilma. Por ironia, no dia em que seria alçado a presidente interino, quem caiu foi Temer: caiu na pegadinha de um radialista argentino que telefonou para dar os parabéns fingindo ser o presidente Mauricio Macri.

Desfeita a gafe, Temer montou um ministério alinhadíssimo com o Congresso - majoritariamente masculino (e branco e rico). Da nova equipe, 18 ministros colecionavam suspeitas ou polêmicas. Um deles já assumiu dizendo: “não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina”. Falava do SUS com a autoridade de quem teve as contas da campanha para deputado bancadas por operadoras privadas de saúde.

Temer sinalizava, sem dizer uma palavra, que diversidade e cultura não eram prioridades do primeiro escalão, o que levou o pastor Silas Malafaia, coagido a prestar depoimento à PF meses depois, a manifestar no Twitter a sua empolgação: “Os esquerdopatas estão chorando porque Temer acabou com um dos seus antros, Ministério da Cultura”.

Temer teve de se dobrar diante da pressão dos artistas e desistiu de extinguir o ministério, cujo titular, logo em seguida, pediria dispensa após ser pressionado por um colega a liberar um empreendimento de seu interesse embargado pelo Iphan, o instituto responsável por zelar pelo patrimônio histórico. O prédio do Geddel, como ficou conhecido, expôs, segundo um grande observador da cena, o embate entre o patrimônio histórico e o patrimonialismo histórico.

Detalhe: após a pressão, o colega, um dos braços direitos do presidente, tombou, assim como o ministro do Planejamento que disse, em áudio vazado em delação, que a saída para conter as investigações policiais era colocar Temer no poder.

Apesar das tratativas de Jucá e companhia, a PF seguiu prendendo gente, entre eles dois ex-governadores do Rio, empresários, ex-ministros e até mesmo o Japonês da Federal, responsável por acompanhar os detentos famosos, acusado de facilitar contrabando.

Nos novos dias de um novo tempo que começou com o novo governo, o DEM voltaria ao comando da Câmara com Rodrigo Maia, o rosto de um partido que se apequenou desde o fim do governo FHC, da qual serviu como linha auxiliar, trocou de nome, viu sua bancada encolher e passou os últimos anos tentando inviabilizar projetos de ações afirmativas, como as cotas, a partir de um discurso extemporâneo sobre meritocracia.

Nesses novos sonhos, uma atriz chegou a ser agredida, e chamada de puta, ao atravessar uma manifestação pró-impeachment.

Com os ânimos exaltados, recebemos as Olimpíadas do Rio após uma cerimônia que, se não foi capaz de apagar ou escamotear nossos conflitos e contradições, conseguiu suspender por instantes nossos afetos pautados pela dor e imaginá-los como uma harmonia possível.

Entre tantos estrangeiros da festa, ninguém parecia mais fora de seu ambiente do que o interino decorativo. O medo da vaia, que ao fim aconteceu, transformou sua presença numa metáfora de sua condição: uma figura menor, deslocada de seu povo, acuada na apropriação à força de uma autoridade que não reconhece e nem é reconhecida como tal. Nesse retrato, até os aplausos e os sorrisos soavam custosos, artificiais e distantes.

O constrangimento de um símbolo político que se cala menos por medo do que por nada ter a dizer é também parte deste retrato. Ainda assim ele seria confirmado no cargo, confirmando em parte a sua verve poética que, em um de seus muitos versos em tema livre, falava do incômodo com um certo passarinho: “Morro eu ou ele/Os dois, impossível/Começo a matutar/Contratarei pistoleiro”.

Entre ditos e desditos, passamos a observar em tempo real, e pela cobertura da imprensa, a construção de projetos que não duram as 12 horas da jornada de trabalha proposta e “desproposta” pelos ministros temerários. Com elas, Temer e sua equipe se tornaram a imagem do governante que queimou as energias para subir na sela e, preocupado em se manter ali, já não sabe para onde vai o cavalo.

Enquanto isso, Lula começou a acumular denúncias na Justiça, uma delas baseada em PowerPoint.

Tantas denúncias fizeram estragos, nas disputas municipais, nas pretensões eleitoras dos candidatos apoiados pelos principais nomes do sistema político. De puxadores de votos, Lula, Dilma, Aécio Neves e até Marina Silva viram a candidatura afundar no palanque onde colocavam os pés. O resultado imediato da ojeriza à política tradicional foi a ascensão de outsiders (ou falso outsiders), como João Doria em São Paulo e Alexandre Kalil em Belo Horizonte, ou de candidatos ligados a outras agremiações que não partidárias, caso de Marcelo Crivella, ligado à Igreja Universal, no Rio.

Passamos a apostar na Justiça como a saída para todas os vícios políticos, sem atentar para casos em que o desembargador que mandou anular as condenações pelas mortes no Carandiru era o mesmo que determinava a prisão de ladrões de salame.

Se o mundo já estava suficientemente maluco, faltava viver para ver, em plena Avenida Paulista, uma manifestação em apoio a Donald Trump com bandeirinhas com a fotografia de Hilary Clinton entre demônios e menções que a ligavam à “ditadura anarco-petista” (sic). A manifestação terminou em pancadaria com grupos antifascistas, que há tempos tentam demonstrar o elo entre discursos de ódio e crimes como o ocorrido no Metrô Pedro 2º, ocorrida no apagar das luzes deste ano.

Ainda neste ano, quando o mundo inteiro dava demonstração de solidariedade, sensibilidade e (vá lá) união após a queda do avião da Chapecoense, na Colômbia, dirigentes, não só políticos, invertiam prioridades e escancaravam a preocupação em salvar a própria pele durante a votação das medidas de combate à corrupção.

No embalo, o presidente nota 3,6, segundo o Datafolha, conseguiu aprovar um pacote de controle de gastos bancado por um Congresso rejeitado por 58℅ da população. A medida era rechaçada por seis em cada dez entrevistados pelo instituto. A primeira conta é a mais elementar e não fecha: a suposta estabilidade econômica tem como custo uma crise política com risco de convulsão social.

O lema “as instituições estão funcionando” teve, em 2016, o mesmo destino de outra frase famosa, “a defesa brasileira é sólida”, de 2014.

Entrincheirado em Brasília, Renan Calheiros se recusou a obedecer uma ordem judicial que o mandava se retirar da presidência do Senado. A decisão provocou uma onda de provocações e gentilezas verbais impronunciáveis entre juízes e congressistas.

Pouco depois, a delação do ex-vice-presidente de Relações Institucionais da Odebrecht serviu como um mapa até o subsolo do funcionamento das instituições políticas e empresariais brasileiras. Delatado, rejeitado e perdido: o retrato do governo Temer no Datafolha era o epílogo de uma falsa saída política. 

NOTA DO BLOG: Eis que o ano que começou com a morte de Bowie termina se despedindo de outro ícone pop: Carrie Fischer, a eterna (MESMO) princesa Leia de Guerra nas Estrelas. Foi um ano triste, desanimador mesmo. Os poucos (imagino, mas na verdade não sei) que acompanham este blog devem ter sentido isso na quantidade reduzida de postagens - especialmente de textos meus - olá, meu nome é Adelvan, prazer. Ando bem desanimado pra escrever, porque a impressão que tenho é que (quase) ninguém mais lê, tá todo mundo distraído nas redes sociais. Mas ok, deixa pra lá, não vou ficar me lamuriando aqui. Feliz ano novo para todos. Até breve - ou não ...

por Matheus Pichonelli

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FUI!

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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Aborto não é questão de opinião.

Enquanto o feto depende do corpo da mãe para se desenvolver, ele é parte integrante do corpo dela. Então acho que cabe só a ela decidir o que fazer com essa parte – chame-se essa parte embrião, feto ou Ludwig van Beethoven.

Essa é a minha posição filosófica sobre o aborto. Se você acredita que não, que a vida começa no momento em que espermatozoide e óvulo encerram suas existências independentes e se tornam uma coisa só, eu respeito. Mas a nossa discordância é irrelevante fora do mundo das ideias, porque no mundo real a legalização do aborto não é uma discussão filosófica. É uma questão de saúde pública.

Uma em cada cinco brasileiras que estão hoje nos últimos anos da vida reprodutiva (35 a 39 anos) já passaram por pelo menos um aborto voluntário, segundo um estudo famoso da Universidade de Brasília. Ou seja: pelos padrões vigentes neste momento, você, mulher, tem 20% de chance de chegar aos 40 já tendo induzido voluntariamente um aborto.

Diante disso, tecer leis e punições contra interrupção de gravidez me parece tão produtivo quanto legislar contra o consumo de oxigênio. Pior: no mundo real, as leis anti-aborto só tornam o procedimento mais caro para quem pode pagar e mais arriscado para quem não pode. E quem não pode acaba apelando para gambiarras suicidas, extremamente arriscadas. Como a maioria não pode pagar, temos que as nossas leis anti-aborto são, elas sim, uma afronta contra a vida. Uma afronta contra a vida das mulheres pobres.

Alexandre Versignassi

Superinteressante

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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

FIDEL

Durante nove dias uma carreta militar transportando as cinzas do Comandante Fidel Castro atravessou Cuba de ponta a ponta, de Havana a Santiago, refazendo, em sentido contrário, a trajetória da Coluna Heroica chefiada por ele que derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista em 1959. No sábado, 3 de dezembro, a urna contendo os restos mortais de Fidel foi recebida na Praça Antonio Maceo, em Santiago, por uma multidão de centenas de milhares de pessoas, entre as quais se encontravam chefes de estado e personalidades vindas de todos os continentes. O Brasil estava representado pelos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff e por uma pequena delegação formada por sindicalistas, lideranças de movimentos sociais e jornalistas.

Às sete horas da manhã de domingo, dia 4, a urna foi sepultada no cemitério Santa Efigênia, em uma cerimônia fechada, da qual participaram apenas os familiares de Fidel e os presidentes Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Evo Morales (Bolívia) e os ex-presidentes do Brasil Lula e Dilma. Ao invés de um mausoléu, as cinzas do Comandante foram depositadas em uma cavidade de um bloco de granito e cobertas com uma placa de mármore negro sobre a qual está gravada uma única palavra: “Fidel”.

A simplicidade e o recato da cerimônia cumpriam determinação do próprio Comandante, que exigiu, horas antes de falecer, que seu nome e sua figura “nunca fossem usados para denominar instituições, praças, parques, avenidas, ruas ou outros lugares públicos nem erigir em sua memória monumentos, bustos, estátuas e outras formas de tributo”.

Fernando Morais

Nocaute

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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

“Vida e Destino”, o “guerra e paz” soviético

Na década de 1980, um tempo em que a gente tinha que ir ao cinema ou esperar passar na TV – aberta – pra ver algum filme, havia o Festival da Primavera da Rede Globo. Era um espaço nobre, reservado às grandes produções, o “créme de la créme” da cinematografia mundial. Foi lá que assisti pela primeira vez – em versão dublada e com intervalos comerciais, ressalte-se - alguns de meus filmes favoritos de todos os tempos, como “2001 – Uma odisséia no espaço”, de Stanley Kubrick, “Era uma vez no oeste”, de Sergio Leone, e “Doutor Jivago”, de David Lean. Este último despertou em mim um fascínio que preservo até hoje pela história, cultura e paisagens geladas da Rússia.

O interesse cresceu no ambiente universitário, quando passei a me aprofundar sobre o imaginário revolucionário. Não me tornei comunista, apesar de ter feito um “curso de iniciação ao marxismo” com Wellington Mangueira, então no PCB, mas até hoje leio bastante sobre o assunto. Causou-me surpresa, portanto, quando me deparei, numa livraria, na sessão de lançamentos, com um calhamaço de mais de 900 páginas de um romance escrito ao longo de mais de uma década e finalizado em 1960 cuja ação transcorria no auge da chamada “Grande Guerra Patriótica” – é assim que os russos chamam a segunda guerra mundial – e que era descrito, na contracapa, como “O guerra e paz soviético”.

O fato é que eu nunca havia ouvido falar do tal livro, “Vida e destino”, nem de seu autor, Vassili Grossman. Me interessei, pesquisei e entendi porque: tratava-se de uma obra proscrita, de publicação póstuma, salva do esquecimento pela ação abnegada de alguns amigos. E foi banida porque era visceralmente verdadeira – um pecado mortal para o totalitarismo stalinista, que sobreviveu à morte do ditador, em 1953.

O caminho percorrido até que aquelas muito bem traçadas linhas chegassem às minhas mãos, aqui em meu cantinho ensolarado do mundo, é, por si só, uma epópéia: A KGB chegou ao extremo de confiscar não apenas os originais, mas também as fitas da máquina de escrever onde o tomo foi redigido e a escavar a horta da casa do primo do escritor em busca de mais exemplares. Nem uma carta direta do autor ao então secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Nikita Khruschov, a quem havia conhecido pessoalmente no front de stalingrado, adiantou. “Talvez ele seja publicado daqui a uns duzentos, trezentos anos”, disse-lhe Mikhail Suslov, o ideólogo do Partido, respondendo pelo “chefe”. Sua devolução estava fora de questão ...

Uma cópia, no entanto, foi preservada por uma amiga, Liôlia Klestova, em uma mala trancada embaixo de sua cama num apartamento comunal. Posteriormente, em 1974, esta cópia foi microfilmada e contrabandeada para a Europa no fundo falso de uma caixa de biscoitos de gengibre entregue pelo também escritor Vladimir Voinovich a uma rede de dissidentes da qual fazia parte o célebre físico Andrei Sakharov. Foi publicado pela primeira vez, finalmente, na Suíça, em 1980, mas sem grande repercussão - aos dissidentes, em plena guerra fria, o que mais interessava era a denuncia, e esta já havia sido feita com sucesso através dos escritos de Pasternak e Soljenitsin. Em todo caso, oito anos depois, com o degelo da “glasnost” e da “perestroika”, a grande obra pôde finalmente chegar a seu destino original, o povo russo, e de lá se espalhar pelo mundo, consagrando-se como uma das mais incisivas e importantes peças de literatura do século XX.

A narrativa gira em torno, principalmente, da família Chapochnikov, da qual faz parte o físico judeu Viktor Chtrum, uma espécie de alter-ego do autor. Seu drama pessoal segue, em linhas gerais, o roteiro da vida do próprio Grossman: do remorso pela morte da mãe nas mãos dos nazistas na Ucrânia ocupada – culpava-se por não tê-la abrigado em seu apartamento em Moscou antes que fosse tarde demais - e por uma carta aberta de repudio que assinou mesmo sabendo se tratar de uma injustiça movida por perseguição até o romance proibido que manteve  com uma mulher casada. A partir deste núcleo central a narrativa se desdobra por, literalmente, centenas de personagens secundários que vivem tramas típicas de sua época: o velho bolchevique Mastovkói, prisioneiro num campo de concentração alemão; os ocupantes de uma casa que resiste bravamente ao bombardeio de Stalingrado; os responsáveis pela usina de força da cidade, que têm que resistir ao impulso de correr em debandada para não serem considerados desertores pelos responsáveis pela implantação do comunismo de guerra; os destemidos aviadores que singram os céus combatendo o inimigo; Krímov, comissário do exército vermelho que cai em desgraça por uma simples menção a um elogio de Trotski a um de seus artigos; ou o oficial Nóvikov, comandante de um Corpo de tanques que se envolve em batalha decisiva nos arredores de Stalingrado. Nóvikov é o amante e Krímov é o ex-marido de Ievguênia, irmã de Liudmila, esposa de Viktor, que é salvo de um destino terrivel ao receber um telefonema no meio da noite ...

Além desses personagens ordinários e fictícios, o livro é povoado por figuras históricas, notadamente Albert Eichmann, que supervisiona a construção das câmaras de gás na qual milhares seriam imolados. Hitler e Stalin também dão o ar da graça, de forma breve porém surpreendente. A passagem em que o fuhrer aparece é particularmente primorosa, especulando sobre sua psique – não vou dar detalhes para não estragar a surpresa.

“Vida e Destino” apresenta um amplo painel da sociedade russa da época, com uma abordagem pioneira de temas tabu como a brutalidade da coletivização agrícola forçada e o banho de sangue da repressão política de 1937, passando pelo antissemitismo e o início do programa nuclear soviético. Suas páginas nos transportam de forma absolutamente arrebatadora pelos meandros da tragédia humana através de sofisticadas narrativas que nos inserem dentro da mente de uma mãe que visita o túmulo do filho morto em combate, de uma médica de meia idade e de uma criança desprotegida em uma tenebrosa jornada a caminho da morte nas câmaras de gás ou do comandante que hesita até o ultimo instante em dar uma ordem de ataque, sentindo o peso do destino de tantos sobre seus ombros. Nos diálogos, sempre brilhantes, embates ideológicos e dilemas existenciais que reverberam através do tempo e ainda se apresentam absolutamente relevantes, especialmente agora, quando experimentamos o retorno a uma situação de polarização ideológica perigosa e preocupante.

É uma obra notável, fruto do imenso trabalho intelectual de uma mente privilegiada que colocou no papel o que viu e viveu, pois foi correspondente de guerra em Stalingrado e também sofreu com a perseguição política. Deve ser lido e relido e redescoberto pelos séculos que virão.

Já é um clássico.

A.

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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Snooze is not dead.

Foto por Hugo Daniel
Não se apresentavam em público desde a última Festa da Antevéspera, no final de 2014. Resolveram voltar, ironicamente, justamente no dia de Finados, 02 de novembro do ano que tentaremos esquecer. E voltaram em grande estilo, se apresentando pela primeira vez no já tradicional “Clandestino”, evento kamikaze que acontece na rua, “na tora”, esporadicamente. Já está na décima sétima edição, o que prova que nem tudo está perdido, afinal ...

Foi ótimo, claro. Estávamos com saudade. Tocaram com a Renegades, os “anfitriões”, e com uma banda nova chamada Amandinho, que saiu do Recife com destino ao mundo numa “cruzada contra o rock de arena” – seja lá o que isso queira dizer. Banda nova, “instigada”, fez um bom show, energético – mas meio chato nas partes mais “viajantes”.

Adolfo Sá ficou sabendo da novidade e, num timing perfeito, fez uma excelente – e necessária -  entrevista com a snooze que eu, preguiçosamente, reproduzo abaixo – a postagem original está em http://blog.vivalabrasa.com/

Quando começaram a tocar juntos, os irmãos Fábio Oliveira e Rafael Júnior eram apenas moleques que curtiam Pixies, Sonic Youth e Hüsker Dü. Fabinho tinha 14 anos na gravação da primeira fita demo e Rafael divulgava a banda através de cartas. Mesmo vivendo numa cidade pequena e distante dos grandes centros como a Aracaju dos anos 90, quebraram barreiras: emplacaram clipe na MTV, participaram de coletâneas nacionais e foram trilha sonora em comercial de surf.

Mais de duas décadas, três álbuns e inúmeras formações depois, a Snooze tá saindo de um longo período de hibernação. O último show foi em 30 de dezembro de 2014, na Festa da Antevéspera. O motivo é que seus integrantes são músicos requisitadíssimos. Rafael é baterista do Ferraro Trio, Maria Scombona, Classex Brothers, toca em bares acompanhando Julico dos Baggios e ainda participa de algumas apresentações da Orquestra Sinfônica de Sergipe. Fábio já foi professor de contrabaixo no Conservatório, volta e meia acompanha nomes como Patricia Polayne, Nino Karvan, Deilson Pessoa e Paulinho Araújo. O guitarrista Luiz Oliva, caçula do grupo, é engenheiro de som, produz discos e faz mesa em shows e festivais.

VIVA LA BRASA - A demo que vocês lançaram em 95 abriu muitas portas numa era em que a internet ainda não tava tão disseminada e as informações não eram tão disponíveis…
RAFAEL JÚNIOR - Sim, a gente utilizava correios e telefone, não tinha internet. Fizemos de forma despretensiosa, não sabíamos onde ia dar, mas eu acompanhava o movimento dos zines e sabia que a qualidade da demo era muito boa. Mesmo assim foi surpresa ver tantas resenhas positivas em jornais e revistas como Folha de SP, Estadão, Rock Brigade etc.

VLB - Quando lançaram o primeiro álbum em 98 vocês fizeram uma turnê pelo sudeste. Como foi gravar o disco de estreia por um selo paulista e fazer esse rolê?
RJ - Marcelo Viegas, do selo Short Records que hoje é editor de livros pela Ideal, desenvolveu uma empatia com a banda logo no início e ficamos bem amigos. Ele foi o canal pra coletâneas, matérias, além de ter lançado os dois primeiros discos. Articulou parte da tour no sudeste também, hospedou a gente e tal. Mas antes dessa viagem já tínhamos viajado o nordeste inteiro por 3 anos seguidos. Só não visitamos São Luís no Maranhão. Fomos pro Piauí de carro, fazíamos 4 cidades de quinta a domingo, show em Salvador direto… Então a gente já tinha uma estradinha. No lançamento do disco em 98 passamos por Niterói no Rio e tocamos em São Paulo, São Bernardo do Campo e Jundiaí. Anos depois também fizemos Sorocaba e fomos em Goiânia duas vezes, através do pessoal da Monstro Discos.

VLB - Lembranças especiais, já que Daniel, guitarrista da banda falecido em 2010, também tava com vocês?
RJ - Daniel cativava a todos com seu jeito tímido e na dele, mas soltava os cachorros com as guitarradas no palco… Era bem brincalhão nas viagens.

VLB - Fabinho, como foi crescer na Snooze?
FÁBIO OLIVEIRA - Dá uma sensação boa olhar pra trás e a história da banda se confundir com minha própria história pessoal. Isso também é refletido no decréscimo da produção, na medida em que fui envelhecendo, o que é a parte chata mas, enfim, faz parte quando a premissa foi sempre ser um hobby levado a sério, e não meio de vida.

VLB - Luiz, como você entrou na banda?
LUIZ OLIVA - Em 2004, eu tocava na Triste Fim de Rosilene e fizemos uma minitour por São Paulo. Fabinho tava morando lá e foi ver o show, fomos apresentados e no dia seguinte nos encontramos por acaso numa loja de discos. Eu tinha 18 anos e tava imerso no circuito hardcore. Fabinho era o cara da Snooze e foi massa conhecê-lo naquela situação, já que eu tinha o maior carinho e respeito pela banda que conheci por causa da minha irmã Kika, que me apresentou a demotape quando eu era guri. Tempos depois, de volta a Aracaju, Fabinho apresentava o Programa de Rock junto com Adelvan Kenobi, eu tava no quarteto instrumental Perdeu a Língua e fomos convidados pra uma entrevista. Durante a conversa, surgiu o convite pra tirar um som com a Snooze. Isso aconteceu em 2007 e entrei na banda logo no primeiro ensaio.

VLB - O EP "Empty Star" é a única gravação com você na banda?
LO - Gravamos tributos pro Second Come e Pastel de Miolos. Poucos registros em estúdio, mas temos novas ideias e composições. Nunca conseguimos nos organizar pra gravar um novo disco, mas o ímpeto existe e penso que isso pode acontecer a qualquer momento.
FO - Eu tenho um quarto disco na cabeça há uns bons anos, e parei de me preocupar. Quando chegar a hora a gente vai gravá-lo e vai ser bem diferente de tudo que a banda fez até hoje.

VLB - Como cada disco marcou vocês, já que foram gravados entre grandes intervalos de tempo e com diversas formações?
FO - À medida que convive com pessoas diferentes, que se tornam próximas, sua personalidade também vai mudando. Com certeza existe um Fabinho em cada um dos trabalhos…
RJ - Todos os músicos que passaram deram sua influência, isso é um processo bem natural. A única formação meio criticada pelos fãs mais antigos foi sem a presença de Fabinho, ele continuava na banda mas tava morando em SP e era importante manter a atividade naquele momento específico em que lançamos o terceiro álbum.

VLB - Rafael, voce sempre foi um cara muito ativo: é bombeiro, surfista fissurado, pai de 3 filhos e toca com meio mundo de gente. Como arruma tempo e disposição pra tanta coisa?
RJ - Sou músico full time e é o que sei fazer na vida. Encontrei remuneração fixa na área através de concursos públicos, em 1995 pra Orquestra e em 2002 pra Banda de Música do Corpo de Bombeiros. Sempre conciliei essas atividades com o surf e a criação dos filhos, tocando com artistas que me chamam e em casas noturnas e bares. Paralelamente, também dou aulas. Entre 2007 e 2013 ainda encontrei tempo pra fazer graduação em Música pela UFS.

VLB - Fabinho também tem formação musical, além de Psicologia, confere?
FO - Confere, mas ainda sou formando em licenciatura em Música. Também dei aulas de inglês e atualmente sou coordenador musical no Sesc.

VLB - E Luiz se especializou em engenharia de som…
LO - Eu já brincava com áudio desde moleque, quando comecei a tocar aos 13 e gravar minhas idéias em K7 num microsystem Aiwa que tinha uma entrada de microfone e num gravador de jornalista que me permitia gravar ambientes na rua. Logo depois chegou o computador e pude implementar a danação. Em 2009 me candidatei a uma vaga de estágio na Fundação Aperipê, logo após ter feito o curso de desenho de som e captação de som direto no Núcleo de Produção Digital Orlando Vieira, e foi aí que a parada ficou mais séria. Fui selecionado e depois de um ano de trampo meu ex-chefe saiu e fui convidado a assumir o lugar dele. Fiquei lá até 2012, tive a chance de aprofundar meus conhecimentos em diversos segmentos da produção de áudio e aproveitava todas as férias e folgas pra fazer cursos dentro e fora do estado. Entre o som ao vivo, estúdio e audiovisual, pude trabalhar com orquestra sinfônica, grupos folclóricos, bandas do pé-de-serra ao thrash metal, documentários e longas-metragens.

VLB - O clip de "704", cover do Second Come, foi gravado no seu estúdio em casa?
LO - Eu tinha acabado de me mudar pra um apartamento e o registro aconteceu nesse fluxo. Tudo muito simples, filmamos com uma condição: os takes que constam no vídeo deveriam ser os mesmos da faixa gravada. Sem dublagem. Elialdo Galdino, grande comparsa e editor deveras competente, foi o responsável por tornar a ideia possível. O Second Come é uma banda histórica e o tributo saiu pela Midsummer Madness, do Rodrigo Lariú.

VLB - A clássica pergunta: por que cantar em inglês? Sei que vocês não gostam dela e que a Snooze surgiu num período em que as guitar bands brasileiras procuravam mesmo se distanciar do "Rock Brasil" dos anos 80. Mas nunca surgiu a inspiração pra uma letra em português?
FO - O que posso dizer é que, apesar de não ser minha língua mãe e eu nem sequer ter morado na gringa, as letras em inglês soam pra mim naturais, descobri esse universo através dos discos. O rock brasileiro eu já havia esgotado na pré-adolescência, então tudo o que soava e eu internalizava era em inglês. Então é meio fazer algo que você já tem prática. Compor em português seria começar do zero e, não, não estou interessado.

VLB - As letras da Snooze são existenciais e sentimentais. Como é tocar num evento mais engajado e combativo como o Clandestino? Onde essas linhas se cruzam?
FO - Nossa linha de combate é o rock, quer mais? 20 anos de suicídio comercial e você quer mais? Brincadeiras à parte, nós fomos convidados pra tocar na última edição com o Wry, mas a data chocou com minhas atividades no Sesc. Ficamos felizes com a insistência e o convite pra esse agora.
LO - Toquei a primeira vez no Clandestino em 2014, numa edição especial da Triste Fim de Rosilene e Karne Krua. Aconteceu no half pipe do conjunto Inácio Barbosa e foi surreal! Chego junto com o projeto sempre que posso, realizei um minidocumentário da décima edição, gravei o áudio de outras tantas e só de comparecer e ocupar os espaços já sei da importância que isso confere. O hardcore exerceu uma influência brutal na minha vida. Aos 17, quando recebi o convite do Ivo pra entrar na TFR, eu era o típico moleque que não tinha família com condições pra me bancar e tocar guitarra era a melhor coisa que eu sabia fazer. De cara, me vi inserido num circuito articulado, que se nutria do faça-você-mesmo e que prezava por uma vida mais simples e autônoma. Conservo essas posturas até hoje e entendo a capacidade de articulação que só os coletivos podem exercer. É massa perceber que estamos na ativa e podemos contar uns com os outros até hoje.
RJ - Adorei o convite pro Clandestino, é um evento autêntico e honesto, feito por pessoas que confiamos e também admiramos. Acho que vai ser bem legal e é uma oportunidade pro pessoal mais novo que nunca viu a banda, já que a gente tem tocado tão pouco.

VLB - Vocês imaginavam que aquela banda de irmãos que ensaiavam no quarto se tornaria cult 20 anos depois?
FO - Era tão espontâneo que a gente nem pensava. Fazer planos era mais no nível do fantástico do que realidade.
RJ - Às vezes acho até graça e penso que é supervalorizada, sei lá. Nossos fãs acabam se tornando amigos. Por outro lado, tem uma galera nova que não faz ideia de nada, o que já fizemos e por onde andamos. Pra mim o meio termo tá bom. Fizemos nossa parte e de alguma forma abrimos caminho pra uma galera que tá aí.

VLB - O que vem pela frente pra Snooze?
LO - A Rússia invadindo ou não o Brasil, vamos fazer um show irado no Clandestino!
RJ - Espero que venha mais material novo e não apenas shows saudosistas. Aviso que tá confirmada a Festa da Antevéspera dia 30/12, nos encontramos lá!

DISCOGRAFIA
Snooze (demotape) - 1995
Waking Up… Waking Down (álbum) - 1998
Let My Head Blow Up (álbum) - 2002
Snooze (álbum) - 2006
Empty Star (EP) - 201

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terça-feira, 20 de setembro de 2016

O CARNAVAL DE 2016 EM SÃO PAULO FOI INCRÍVEL!

Difícil deixar de pensar que estamos vivendo num circo gigante. Quando sentamos no sofá depois de um dia bizarro de trabalho e horas de transporte, as novelas surreais na TV nos dão uma visão geral do jogo global: tantas bombas sobre a Síria, mais refugiados nas fronteiras, os problemas das grandes finanças, os últimos gols de Neimar. Ah sim, e quem, depois da Hungria, a Grécia, a Polônia e o Reino Unido está ameaçando deixar a União Europeia em nome de ideais nacionais superiores.

É um jogo e tanto. Relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam mostram a grande divisão entre os donos do jogo e os espectadores: 62 bilionários têm mais riqueza do que os 50% mais pobres da população mundial. Eles produziram tudo isso? Evidentemente, tudo depende de que papel você desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos que habitam o condomínio de Alphaville estão murados em segurança, enquanto os pobres que vivem na vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa cortar a grama e entregar as compras.

De acordo com o relatório global da WWF sobre a destruição da vida selvagem, 52% das populações de animais não-domesticados desapareceram, durante os 40 anos que vão de 1970 a 2010. Muitas fontes de água estão contaminadas ou secando. Os oceanos estão gritando por socorro, o ar condicionado prospera. As florestas estão sendo derrubadas na Indonésia, que substituiu a Amazônia como a região número um do mundo em desmatamento. A Europa precisa ter energia renovável, de carne barata e da beleza do mogno.

A Rede de Justiça Fiscal revelou que cerca de 30 trilhões de dólares – comparados a um PIB mundial de US$ 73 trilhões – eram mantidos em paraísos fiscais em 2012. O Banco de Compensações Internacionais da Basileia mostra que o mercado de derivativos, o sistema especulativo das principais commodities, alcançou 630 trilhões de dólares, gerando o efeito iôiô nos preços das matérias-primas econômicas básicas. O maior jogo do planeta envolve grãos, minerais ferrosos e não ferrosos, energia. Essas commodities estão nas mãos de 16 corporações basicamente, a maior parte delas sediadas em Genebra, como revelou Jean Ziegler em “A Suiça lava mais branco”. Não há árbitro neste jogo, estamos num ambiente vigiado. Os franceses têm uma excelente descrição para os nossos tempos: vivemos une époque formidable!

Fizemos um trabalho perfeito em 2015: a avaliação global sobre como financiar o desenvolvimento em Adis Abeba, as metas do desenvolvimento sustentável para 2030 em Nova York e a cúpula sobre mudanças climáticas em Paris. Os desafios, soluções e custos foram claramente expostos. Nossa equação global é suficientemente simples para ser executada: os trilhões em especulação financeira precisam ser redirecionados para financiar inclusão social e para promover a mudança de paradigma tecnológico que nos permitirá salvar o planeta. E a nós mesmos, claro.

Mas são os lobos de Wall Street que traçaram o código moral para este esporte: Ganância é Ótima!

Afogando em números

Estamos nos afogando em estatísticas. O Banco Mundial sugere que deveríamos fazer algo a respeito dos news four biliion – referindo-se aos quatro bilhões de seres humanos “que não têm acesso aos benefícios da globalização” – uma hábil referência aos pobres. Temos também os bilhões que vivem com menos de 1,25 dólar por dia. A FAO nos mostra em detalhes onde estão localizadas as 800 milhões de pessoas famintas do mundo. A Unicef conta aproximadamente 5 milhões de crianças que morrem anualmente em razão do acesso insuficiente a comida e água limpa. Isso significa quatro World Trade Centers por dia, mas elas morrem silenciosamente em lugares pobres, e seus pais são desvalidos.

As coisas estão melhorando, com certeza, mas o problema é que temos 80 milhões de pessoas a mais todo ano – a população do Egito, aproximadamente – e este número está crescendo. Um lembrete ajuda, pois ninguém entende de fato o que significa um bilhão: quando meu pai nasceu, em 1900, éramos 1,5 bilhão; agora somos 7,2 bilhões. Não falo da história antiga, falo do meu pai. E já que não é da nossa experiência diária entender o que é um bilionário, vai aqui uma nova imagem: se você investe um bilhão de dólares em algum fundo que paga miseráveis 5% de juros ao ano, ganha 137.000 dólares por dia. Não há como gastar isso, então você alimenta mais circuitos financeiros, tornando-se ainda mais fabulosamente rico e alimentando mais operadores financeiros.

Investir em produtos financeiros paga mais do que investir na produção de bens e serviços – como fizeram os bons, velhos e úteis capitalistas – de modo que não tem como o acesso ao dinheiro ficar estável, muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é naturalmente atraído para onde ele mais se multiplica, é parte da sua natureza, e da natureza dos bancos. Dinheiro nas mãos da base da pirâmide gera consumo, investimento produtivo, produtos e empregos. Dinheiro no topo gera fabulosos ricos degenerados que comprarão clubes de futebol, antes de finalmente pensar na velhice e fundar uma ONG – por via das dúvidas.

Um suborno global

Muita gente percebe que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos são de fraude global, quando pessoas fabulosamente ricas doam a políticos e promovem a aprovação de leis para acomodar suas crescentes necessidades, fazendo da especulação, da evasão fiscal e da instabilidade geral um processo estrutural e legal. Lester Brown fez suas somatórias ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”], mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz, Jeffrey Sachs e muitos outros estão trabalhando no Próximo Sistema[“Next System”], mostrando, implicitamente, que nosso sistema foi além de seus próprios limites.

Joseph Stiglitz e um punhado de economistas lançaram Uma Agenda para a Prosperidade Compartilhada, rejeitando “os velhos modelos econômicos”. De acordo com sua visão, “igualdade e desempenho econômico constituem na realidade forças complementares, e não opostas”. A França criou seu movimento de Alternativas Econômicas; temos a Fundação da Nova Economia no Reino Unido; e estudantes da economia tradicional estão boicotando seus estudos em Harvard e outras universidades de elite. Mehr licht! [Mais luz!]

E os pobres estão claramente fartos desse jogo. Sobram muito poucos camponeses isolados e ignorantes prontos a se satisfazer com sua parte, seja ela qual for. As pessoas pobres de todo o mundo estão crescentemente conscientes de que poderiam ter uma boa escola para seus filhos e um hospital decente onde pudessem nascer. E além disso veem na TV como tudo pode funcionar: 97% das donas de casa brasileiras têm aparelho de TV, mesmo quando não têm saneamento básico decente.

Como podemos esperar ter paz em torno do lago que alguns chamam de Mediterrâneo, se 70% dos empregos são informais e o desemprego da juventude está acima de 40%? E eles estão assistindo na TV o lazer e a prosperidade existentes logo ali, cruzando o mar, em Nice? A Europa bombardeia-os com estilos de vida que estão fora do seu alcance econômico. Nada disso faz sentido e, num planeta que encolhe, é explosivo. Estamos condenados a viver juntos, o mundo é plano, os desafios estão colocados para todos nós, e a iniciativa deve vir dos mais prósperos. E, felizmente, os pobres não são mais quem eram.

Cultura e convivialidade

Sempre tive uma visão muito mais ampla de cultura do que o tradicional “Ach! disse Bach”. Penso que ela inclui desfrutar de alegria com os outros, enquanto se constrói ou se escreve alguma coisa, ou simplesmente se brinca por aí. Convivialidade. Recentemente passei algum tempo em Varsóvia. Nos fins de semana de verão, os parques e praças ficavam cheios de gente e havia atividades culturais para todo lado.

Ao ar livre, com um monte de gente sentada no chão ou em simples cadeiras de plástico, uma trupe de teatro fazia uma paródia do modo como tratamos os idosos. Pouco dinheiro, muita diversão. Logo adiante, em outras partes do parque Lazienki, vários grupos tocavam jazz ou música clássica, e as pessoas estavam sentadas na grama ou assentos improvisados, as crianças brincando por perto.

No Brasil, com Gilberto Gil no ministério da Cultura, foi criada uma nova política, os Pontos de Cultura. Isso significou que qualquer grupo de jovens que desejassem formar uma banda poderiam solicitar apoio, receber instrumentos musicais ou o que fosse necessário, e organizar shows ou produzir online. Milhares de grupos surgiram – estimular a criatividade requer não mais que um pequeno empurrão, parece que os jovens trazem isso na própria pele.

A política foi fortemente atacada pela indústria da música, sob o argumento de que estávamos tirando o pão da boca de artistas profissionais. Eles não querem cultura, querem indústria de entretenimento, e negócios. Por sorte, isso está vindo abaixo. Ou pelo menos a vida cultural está florescendo novamente. Os negócios têm uma capacidade impressionante para ser estraga-prazeres.

O carnaval de 2016 em São Paulo foi incrível. Fechando o círculo, o carnaval de rua e a criatividade improvisada estão de volta às ruas, depois de ter sido domados e disciplinados, encarecidos pela comunicação magnata da Rede Globo. As pessoas saíram improvisando centenas de eventos pela cidade, era de novo um caos popular, como nunca deixou de ser em Salvador, Recife e outras regiões mais pobres do país. O entretenimento do carnaval está lá, é claro, e os turistas pagam para sentar e assistir ao show rico e deslumbrante, mas a verdadeira brincadeira está em outro lugar, onde o direito de todo mundo dançar e cantar foi novamente conquistado.

Um caso de consumo

Eu costumava jogar futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias para a vida inteira. Mas principalmente brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos, mas um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e bebe uma cerveja, não é o esporte – mas a cultura no seu sentido mais amplo – que se transformou numa questão de produção e consumo, não em alguma coisa que nós próprios criamos.

Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente brincando em tantos lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao ar livre podem ser encontrados em todo canto. Aparentemente, por certo nos esportes, eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o mainstream, obviamente. A indústria de entretenimento penetrou em cada moradia do mundo, em todo computador, todo telefone celular, sala de espera, ônibus. Somos um terminal, um nó na extensão de uma espécie de estranho e gigante bate-papo global.

Esse bate-papo global, com evidentes exceções, é financiado pela publicidade. A enorme indústria de publicidade é por sua vez financiada por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e expansão é baseada na transformação das pessoas em consumidores. O sistema funciona porque adotamos, docilmente, comportamentos consumistas obsessivos, ao invés de fazer música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa piscina com nossas crianças.

Um punhado de otários consumistas

Que monte de idiotas consumistas nós somos, com nossos apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone celular, assistindo o que outras pessoas fazem.

Quem precisa de uma família? No Brasil o casamento dura 14 anos e está diminuindo, nossa média é de 3,1 pessoas por moradia. A Europa está na frente de nós, 2,4 por casa. Nos EUA apenas 25% das moradias têm um casal com crianças. O mesmo na Suécia. A obesidade está prosperando, graças ao sofá, a geladeira, o aparelho de TV e as guloseimas. Prosperam também as cirurgias infantis de obesidade, um tributo ao consumismo. E você pode comprar um relógio de pulso que pode dizer quão rápido seu coração está batendo depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu médico.

O que tudo isso significa? Entendo cultura como a maneira pela qual organizamos nossas vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança, tudo o que torna minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um cochilo depois do almoço, como todo ser humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho. Claro, há esse terrível negócio do PIB. Todas as coisas prazerosas que mencionei não aumentam o PIB – muito menos minha sesta na rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade de vida. E o PIB é tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostituição e venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento. Considerando o tipo de vida que estamos construindo, eles talvez estejam certos.

Necessitamos de um choque de realidade. A desventura da terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas não vai resolver nada, o desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos nosso mix de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir aonde deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força política forte o suficiente para apoiar as mudanças necessárias (a não ser que estejam efetivamente informadas sobre nossos desafios estruturais). Enquanto isso, as Olimpíadas e MSN (Messi, Suarez, Neymar para os analfabetos) nos mantêm ocupados em nossos sofás. Como ficará, com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda.

por Ladislau Dowbor

dowbor.org

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