quarta-feira, 30 de novembro de 2016

“Vida e Destino”, o “guerra e paz” soviético

Na década de 1980, um tempo em que a gente tinha que ir ao cinema ou esperar passar na TV – aberta – pra ver algum filme, havia o Festival da Primavera da Rede Globo. Era um espaço nobre, reservado às grandes produções, o “créme de la créme” da cinematografia mundial. Foi lá que assisti pela primeira vez – em versão dublada e com intervalos comerciais, ressalte-se - alguns de meus filmes favoritos de todos os tempos, como “2001 – Uma odisséia no espaço”, de Stanley Kubrick, “Era uma vez no oeste”, de Sergio Leone, e “Doutor Jivago”, de David Lean. Este último despertou em mim um fascínio que preservo até hoje pela história, cultura e paisagens geladas da Rússia.

O interesse cresceu no ambiente universitário, quando passei a me aprofundar sobre o imaginário revolucionário. Não me tornei comunista, apesar de ter feito um “curso de iniciação ao marxismo” com Wellington Mangueira, então no PCB, mas até hoje leio bastante sobre o assunto. Causou-me surpresa, portanto, quando me deparei, numa livraria, na sessão de lançamentos, com um calhamaço de mais de 900 páginas de um romance escrito ao longo de mais de uma década e finalizado em 1960 cuja ação transcorria no auge da chamada “Grande Guerra Patriótica” – é assim que os russos chamam a segunda guerra mundial – e que era descrito, na contracapa, como “O guerra e paz soviético”.

O fato é que eu nunca havia ouvido falar do tal livro, “Vida e destino”, nem de seu autor, Vassili Grossman. Me interessei, pesquisei e entendi porque: tratava-se de uma obra proscrita, de publicação póstuma, salva do esquecimento pela ação abnegada de alguns amigos. E foi banida porque era visceralmente verdadeira – um pecado mortal para o totalitarismo stalinista, que sobreviveu à morte do ditador, em 1953.

O caminho percorrido até que aquelas muito bem traçadas linhas chegassem às minhas mãos, aqui em meu cantinho ensolarado do mundo, é, por si só, uma epópéia: A KGB chegou ao extremo de confiscar não apenas os originais, mas também as fitas da máquina de escrever onde o tomo foi redigido e a escavar a horta da casa do primo do escritor em busca de mais exemplares. Nem uma carta direta do autor ao então secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Nikita Khruschov, a quem havia conhecido pessoalmente no front de stalingrado, adiantou. “Talvez ele seja publicado daqui a uns duzentos, trezentos anos”, disse-lhe Mikhail Suslov, o ideólogo do Partido, respondendo pelo “chefe”. Sua devolução estava fora de questão ...

Uma cópia, no entanto, foi preservada por uma amiga, Liôlia Klestova, em uma mala trancada embaixo de sua cama num apartamento comunal. Posteriormente, em 1974, esta cópia foi microfilmada e contrabandeada para a Europa no fundo falso de uma caixa de biscoitos de gengibre entregue pelo também escritor Vladimir Voinovich a uma rede de dissidentes da qual fazia parte o célebre físico Andrei Sakharov. Foi publicado pela primeira vez, finalmente, na Suíça, em 1980, mas sem grande repercussão - aos dissidentes, em plena guerra fria, o que mais interessava era a denuncia, e esta já havia sido feita com sucesso através dos escritos de Pasternak e Soljenitsin. Em todo caso, oito anos depois, com o degelo da “glasnost” e da “perestroika”, a grande obra pôde finalmente chegar a seu destino original, o povo russo, e de lá se espalhar pelo mundo, consagrando-se como uma das mais incisivas e importantes peças de literatura do século XX.

A narrativa gira em torno, principalmente, da família Chapochnikov, da qual faz parte o físico judeu Viktor Chtrum, uma espécie de alter-ego do autor. Seu drama pessoal segue, em linhas gerais, o roteiro da vida do próprio Grossman: do remorso pela morte da mãe nas mãos dos nazistas na Ucrânia ocupada – culpava-se por não tê-la abrigado em seu apartamento em Moscou antes que fosse tarde demais - e por uma carta aberta de repudio que assinou mesmo sabendo se tratar de uma injustiça movida por perseguição até o romance proibido que manteve  com uma mulher casada. A partir deste núcleo central a narrativa se desdobra por, literalmente, centenas de personagens secundários que vivem tramas típicas de sua época: o velho bolchevique Mastovkói, prisioneiro num campo de concentração alemão; os ocupantes de uma casa que resiste bravamente ao bombardeio de Stalingrado; os responsáveis pela usina de força da cidade, que têm que resistir ao impulso de correr em debandada para não serem considerados desertores pelos responsáveis pela implantação do comunismo de guerra; os destemidos aviadores que singram os céus combatendo o inimigo; Krímov, comissário do exército vermelho que cai em desgraça por uma simples menção a um elogio de Trotski a um de seus artigos; ou o oficial Nóvikov, comandante de um Corpo de tanques que se envolve em batalha decisiva nos arredores de Stalingrado. Nóvikov é o amante e Krímov é o ex-marido de Ievguênia, irmã de Liudmila, esposa de Viktor, que é salvo de um destino terrivel ao receber um telefonema no meio da noite ...

Além desses personagens ordinários e fictícios, o livro é povoado por figuras históricas, notadamente Albert Eichmann, que supervisiona a construção das câmaras de gás na qual milhares seriam imolados. Hitler e Stalin também dão o ar da graça, de forma breve porém surpreendente. A passagem em que o fuhrer aparece é particularmente primorosa, especulando sobre sua psique – não vou dar detalhes para não estragar a surpresa.

“Vida e Destino” apresenta um amplo painel da sociedade russa da época, com uma abordagem pioneira de temas tabu como a brutalidade da coletivização agrícola forçada e o banho de sangue da repressão política de 1937, passando pelo antissemitismo e o início do programa nuclear soviético. Suas páginas nos transportam de forma absolutamente arrebatadora pelos meandros da tragédia humana através de sofisticadas narrativas que nos inserem dentro da mente de uma mãe que visita o túmulo do filho morto em combate, de uma médica de meia idade e de uma criança desprotegida em uma tenebrosa jornada a caminho da morte nas câmaras de gás ou do comandante que hesita até o ultimo instante em dar uma ordem de ataque, sentindo o peso do destino de tantos sobre seus ombros. Nos diálogos, sempre brilhantes, embates ideológicos e dilemas existenciais que reverberam através do tempo e ainda se apresentam absolutamente relevantes, especialmente agora, quando experimentamos o retorno a uma situação de polarização ideológica perigosa e preocupante.

É uma obra notável, fruto do imenso trabalho intelectual de uma mente privilegiada que colocou no papel o que viu e viveu, pois foi correspondente de guerra em Stalingrado e também sofreu com a perseguição política. Deve ser lido e relido e redescoberto pelos séculos que virão.

Já é um clássico.

A.

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