sábado, 31 de março de 2012

NÃO PASSARÃO !

Passaram, um a um, escoltados pela Policia Militar que, evidentemente, tratou de dispersar com a devida truculência que é de sua praxe, auxiliada por gás de pimenta, tiros de borracha e bombas de efeito moral, os que estavam ali para que não se permita esquecer um passado tão triste que teima em não se deixar passar a limpo.

Abaixo, um depoimento emocionado de Hildegard Angel, Filha de Zuzu Angel e irmã de Stuart, duas das muitas vítimas daqueles aparentemente inocentes senhores de idade que desfilavam suas carcaças moralmente apodrecidas pela calçada do Clube Militar, tal qual imagens vivas do retrado de Dorian Gray:

Foi um acaso. Eu passava hoje pela Rio Branco, prestes a pegar o Aterro, quando ouvi gritos e vi uma aglomeração do lado esquerdo da avenida. Pedi ao motorista para diminuir a marcha e percebi que eram os jovens estudantes caras-pintadas manifestando-se diante do Clube Militar, onde acontecia a anunciada reunião dos militares de pijama celebrando o “31 de Março” e contra a Comissão da Verdade.

Só vi jovens, meninos e meninas, empunhando cartazes em preto e branco, alguns deles com fotos de meu irmão e de minha cunhada. Pedi ao motorista para parar o carro e desci. Eu vinha de um almoço no Clube de Engenharia. Para isso, fui pela manhã ao cabeleireiro, arrumei-me, coloquei joias, um vestido elegante, uma bolsa combinando com o rosa da estampa, sapatos prateados. Estava o que se espera de uma colunista social.

A situação era tensa. As crianças, emboladas, berrando palavras de ordem e bordões contra a ditadura e a favor da Comissão da Verdade. Frases como “Cadeia Já, Cadeia Já, a quem torturou na ditadura militar”. Faces jovens, muito jovens, imberbes até. Nomes de desaparecidos pintados em alguns rostos e até nas roupas. E eles num entusiasmo, num ímpeto, num sentimento. Como aquilo me tocou!

Manifestantes mais velhos com eles, eram poucos. Umas senhoras de bermudas, corajosas militantes. Alguns senhores de manga de camisa. Mas a grande maioria, a entusiasmada maioria, a massa humana, era a garotada. Que belo!

Eram nossos jovens patriotas clamando pela abertura dos arquivos militares, exigindo com seu jeito sem modos, sem luvas de pelica nem punhos de renda e sem vosmecê, que o Brasil tenha a dignidade de dar às famílias dos torturados e mortos ao menos a satisfação de saberem como, de que forma, onde e por quem foram trucidados, torturados e mortos seus entes amados. Pelo menos isso. Não é pedir muito, será que é?

Quando vemos, hoje, crianças brasileiras que somem, se evaporam e jamais são recuperadas, crianças que inspiram folhetins e novelas, como a que esta semana entrou no ar, vendidas num lixão e escravizadas, nós sabemos que elas jamais serão encontradas, pois nunca serão procuradas. Pois o jogo é esse. É esta a nossa tradição. Semente plantada lá atrás, desde 1964 – e ainda há quem queira comemorar a data! A semente da impunidade, do esquecimento, do pouco caso com a vida humana neste país.

E nossos quixotinhos destemidos e desaforados ali diante do prédio do Clube Militar. ”Assassino!”, “assassino!”, “torturador!”, gritava o garotinho louro de cabelos longos anelados e óculos de aro redondo, a quem eu dava uns 16 anos, seguido pela menina de cabelos castanhos e diadema, e mais outra e mais outro, num coro que logo virava um estrondo de vozes, um trovão. Era mais um militar de cabeça branca e terno ajustado na silhueta, magra sempre, que tentava abrir passagem naquele corredor humano enfurecido e era recebido com gritos e desacatos. Uma recepção com raiva, rancor, fúria, ressentimento. Até cuspe eu vi, no ombro de um terno príncipe de Gales.

Magros, ainda bem, esses velhos militares, pois cabiam todos no abraço daqueles PMs reforçados e vestidos com colete à prova de balas, que lhes cingiam as pernas com os braços, forçando a passagem. E assim eles conseguiram entrar, hoje, um por um, para a reunião em seu Clube Militar: carregados no colo dos PMs.

Os cartazes com os rostos eram sacudidos. À menção de cada nome de desaparecido ao alto-falante, a multidão berrava: “Presente!”. Havia tinta vermelha cobrindo todo o piso de pedras portuguesas diante da portaria do edifício. O sangue dos mortos ali lembrados. Tremulavam bandeiras de partidos políticos e de não sei o quê mais, porém isso não me importava. Eu estava muito emocionada. Fiquei à parte da multidão.

Recuada, num degrau de uma loja de câmbio ao lado da portaria do prédio. A polícia e os seguranças do Clube evacuaram o local, retiraram todo mundo. Fotógrafos e cinegrafistas foram mandados para a entrada do “corredor”, manifestantes para o lado de lá do cordão de isolamento. E ninguém me via. Parecia que eu era invisível. Fiquei ali, absolutamente sozinha, testemunhando tudo aquilo, bem uns 20 minutos, com eles passando pra lá e pra cá, carregando os generais, empurrando a aglomeração, sem perceberem a minha presença. Mistério.

Até que fui denunciada pelas lágrimas. Uma senhora me reconheceu, jogou um beijo. E mais outra. Pessoas sorriram para mim com simpatia. Percebi que eu representava ali as famílias daqueles mortos e estava sendo reverenciada por causa deles. Emocionei-me ainda mais. Então e enfim os PMs me viram.

Eu, que estava todo o tempo praticamente colada neles! Um me perguntou se não era melhor eu sair dali, pois era perigoso. Insisti em ficar, mesmo com perigo e tudo. E ele, gentil, quando viu que não conseguiria me demover: “A senhora quer um copo d’água?”. Na mesma hora o copo d’água veio. O segurança do Clube ofereceu: “A senhora não prefere ficar na portaria, lá dentro? “. “Ah, não, meu senhor. Lá dentro não. Prefiro a calçada”. E nela fiquei, sobre o degrau recuado, ora assistente, ora manifestante fazendo coro, cumprindo meu papel de testemunha, de participante e de Angel. Vendo nossos quixotinhos empunharem, como lanças, apenas a sua voz, contra as pás lancinantes dos moinhos do passado, que cortaram as carnes de uma geração de idealistas.

A manifestação havia sido anunciada. Porém, eu estava nela por acaso. Um feliz e divino acaso. E aonde estavam naquela hora os remanescentes daquela luta de antigamente? Aqueles que sobreviveram àquelas fotos ampliadas em PB? Em seus gabinetes? Em seus aviões? Em suas comissões e congressos e redações? Será esta a lição que nos impõe a História: delegar sempre a realização dos “sonhos impossíveis” ao destemor idealista dos mais jovens?


Nossos quixotinhos destemidos e desaforados diante do Clube Militar ...
do Blog de Hildegard Angel, no R7

Veja aqui.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Um lugar do caralho ...

“Cidadão do mundo” é um espaço “underground” pequeno e simples porém aconchegante, limpo e, ouso dizer, bem decorado! Não que eu seja nenhum expert no assunto, mas gostei muito das chapas de madeira que ornamentam o palco e a parede ao lado deste – chapas que, me falou meu camarada Marlio, que é músico, servem também para melhorar a acústica do recinto.
Por uma dessas coincidências cabalísticas do destino, o “Cidadão do Mundo” fica em São Caetano, cidade para a qual eu já iria me dirigir, de qualquer jeito, para visitar meu já citado amigo Marlio, ex-baixista da Karne Krua e da Câmbio Negro HC, que mora lá. Para deixar a mão ainda mais na roda, fica pertinho da casa dele – mas perto mesmo, tipo, desci da Estação de trem, andei uma quadra, bati um rango massa que incluiu o bom e velho cuscus com leite (valeu Tânia!) na casa de Marlio, voltei mais umas duas quadras e voilá – estávamos lá.
Fomos lá para ver, basicamente, duas bandas: No Sense e Lobotomia. A segunda dispensa apresentações, é uma daquelas lendas vivas do Hardcore/crossover nacional. Já o No Sense é menos conhecido, embora não menos importante: trata-se de uma das primeiras bandas de grindcore do Brasil. Foi formada em Santos em 1990 – tecnicamente, portanto, ainda na década de 80! Eu sou fã desde mais ou menos aquela época, quando ouvi a primeira fita demo, “Confused mind”, podríssima, e, posteriormente, o primeiro disco deles - e também o primeiro disco de grindcore lançado por uma banda brasileira - um compacto chamado “out of reality” que trazia na capa um desenho de HR Giger – este já com uma gravação bem melhor. Devo dizer que o que primeiro chamava 3a atenção na banda era o fato de contarem com uma garotinha de apenas 13 anos (!!!) no vocal, mas se fosse apenas isso, teria sido apenas isso. Além disso, a banda era supercriativa e, mesmo fugindo da mediocridade e dos clichês tão comuns ao gênero, conseguia fazer um barulho desgraçado! Se duvida, ouça o primeiro LP deles, “Cerebral Cacophony” (Baixe aqui), lançado em 1992 em vinil pela Cogumelo Records. Ou o mais novo EP, “obey”, que vem com o “out of reality” de bonus. Ouça aqui.
Apesar disso, e de ter mantido por muito tempo correspondência com Ângelo, então guitarrista, e Marly, a vocalista, além de tê-los conhecido pessoalmente e, inclusive, ter ido a um ensaio deles em Santos em janeiro de 1993 (no mesmo dia em que o Nirvana tocou em São Paulo), nunca havia visto um show do No Sense ao vivo. E pensei que nunca veria. Mas eis que me deparo por um acaso, na internet, com o anuncio de um “grito rock” no ABC em que eles iriam se apresentar e me dou conta de que estaria em São Paulo na época, para ver o show do Morrissey e para pegar minha mãe, que estava por lá fazendo um tratamento de saúde. Estava, portanto, fácil pra mim ir, e nas mais que perfeitas condições já especificadas acima. O mundo, realmente, dá voltas, e quem é vivo um dia aparece.
Apareci por lá com Marlio uma hora e meia depois do horário marcado com medo de ter perdido o show que mais queria ver, mas nos deparamos com o espaço praticamente vazio – nenhuma banda havia, ainda, se apresentado. E seriam várias. Ok, tranqüilo: nos sentamos e continuamos a colocar a conversa em dia. O tempo vai passando e as criaturas começam a aparecer, dentre elas, eles: os longos cabelos loiros de Marly e as barbas grisalhas de Morto e Paulão se destacavam na escuridão da noite. Muito bom revê-los depois de quase 20 anos, amigos queridos, e constatar que continuam as mesmas ótimas pessoas de sempre.
Não poderei relatar em detalhes o que aconteceu logo a seguir justamente porque estava aproveitando aquele raro momento para conversar com o pessoal, mas vi alguns trechos de alguns shows, dentre eles o primeiro, de uma banda de Hardcore de Santos que conta com membros do no Sense na formação, e o do Zefirina Bomba, da Paraíba, que tem as manhas de tirar uma distorção irada de um violão. De fora, ouvi também ecos de algo que parecia com planet Hemp (perdidos no tempo, os caras) e uma outra banda que, ao que parece, cantava em espanhol. Lá fora, conheci uma figura: Fralda, ex-Ratos de Porão e Forgotten Boys. O cara tá com um visual cabuloso, total stoner rock podrão, cabeludo e barbudo, e é muito gente fina. Ele toca no Lobotomia e nos falou que iríamos nos surpreender com o novo guitarrista deles, um moleque novinho, de 15, 16 anos, que precisava inclusive de autorização dos pais para viajar, mas que tocava pra caralho. Era esperar para ver.
Na espera tivemos, finalmente, o No Sense, que foi a penúltima banda a se apresentar, já com a madrugada avançada. Foi um show curto (pensei que fosse o normal deles, mas Marly me falou depois que tiveram que limar metade do set atendendo a pedidos da organização) porém avassalador, com musicas de no máximo, 2, 3 minutos, tocadas com precisão, peso e velocidade. Mesclaram sons novos com algumas já velhas conhecidas da galera “de meia idade” presente e contaram com a participação especial, numa delas, de Luiz Carlos Louzada, vocalista do Vulcano. Foi ótimo: a banda está muito bem entrosada, tocam pra cacete e Marly tem um vocal perfeito para o estilo, além de entregar uma perfomance animalesca. A galega, como falamos por aqui no nordeste, se vira numa besta-fera quando sobe ao palco! Antológico. Tou mentindo, Marlio Oliveira ? Comenta aí, porra!
Destaque também para os afiados, hilários e desbocados diálogos entre Marly Cardoso e Barbara Cristine Chiariello no meio do show – aí só estando lá mesmo pra ver e ouvir. Muito engraçado.
Depois da queda o coice, já diziam os Paralamas do Sucesso (quem?). O show do Lobotomia foi absolutamente matador e nos surpreendeu, já que, confesso, não estávamos botando muita fé numa banda tão descaracterizada – creio que apenas o baterista era da formação original. Era, pelo menos, o único que já ostentava cabelos grisalhos. Foi foda: o vocalista, também novo, segurou bem a onda, assim como o batera. Fralda tem uma presença de palco muito boa, é um rocker, totalmente old school, e o guitarrista, puta que pariu! Sensacional! Simplesmente detonou, mandando altos riffs e solos matadores, com um estilo, tanto visual quanto musical, totalmente metal. Muito bom. Um dos melhores shows de Hard Core que vi em muito tempo – e olha que até que tenho visto bons shows de Hard core ultimamente ...
Voltamos pra casa com o dia amanhecendo e aquela sensação de satisfação que só uma boa noite de rock e diversão pode proporcionar. Na manhã seguinte, segui meu rumo, já que precisava descansar para o que viria à noite – leia sobre aqui.
São Paulo é foda: vi Morrissey, No Sense e Lobotomia, mas perdi Sisters of Mercy, que estava na cidade e iria se apresentar naquela mesma noite no Via Funchal (não fui porque não tenho uma plantação de dinheiro no quintal de casa), e o Ugra Zine Fest, evento no qual foi lançada a segunda parte do documentário “Fanzineiros do século passado”, do meu camarada Márcio Sno, e no qual também esteve presente outro amigo de correspondencia de longa data, o cyberpunk gaúcho Law Tissot, além de várias outras figuras antológicas do meio alternativo nacional como Marcelo Viegas e Flavio Grão. Perdi também, e isso só é perdoável porque eu não poderia me dividir em vários como o Multi-homem, dos Impossíveis, um show da lendária banda brasiliense Death Slam, do meu camarada Fellipe CDC, que estava se apresentando em São Paulo na época. Tudo isso no mesmo dia, na mesma noite. Na noite seguinte eu poderia ter ido depois do show de Morrissey com outro amigo, Andye Iore, de Maringá, Paraná, a um show de monobandas que haveria na Augusta, onde eu estava hospedado, mas cadê a coragem? Preferi bater uma pizza com os camaradas Viegas e Grão e depois se jogar nos braços de Morfeus (ui, poético). São Paulo é realmente foda – possui um incrível efeito aglutinador (todo mundo, uma hora ou outra, passa por lá) e é quase sempre tudo ao mesmo tempo agora, e pra já. Eu sei, a vida é feita de escolhas, mas assim fica difícil ...
Fora este lado “alternativo” da empreitada, teve a viagem em si que, por si só, já é bem legal. Fui com a patroinha e ela não perdeu tempo: chegamos na sexta, dia 09 de março, por volta das 3 da tarde, deixamos a mala no hotel “5 cruzes” no qual costumo me hospedar (ela merecia algo melhor, mas teve que compreender, Morrissey nos quebrou – e o hotel era simples porém decente, no final das contas), batemos um rango e já estávamos no metrô, a caminho do Mercado Municipal, que ela queria conhecer e eu nunca havia visitado. No caminho, passamos pela 25 de março e foi uma loucura: a baixinha ficou louca com a quantidade de bijouterias à venda por preços pra lá de camaradas. Algumas bem bonitas, como um bracelete que ela comprou, mas ficar de “role” por lojas de bugingangas da 25 não é exatamente o MEU tipo de programa, então fomos ao mercado com a promessa de voltarmos lá depois com mais tempo (acabamos não voltando, porque o dinheiro tinha acabado e o cansaço tomado conta).
É muito bonito, o Mercado Municipal de São Paulo. Altas frutas exóticas, como os gigantescos morangos americanos que um feirante esperto convenceu minha senhorinha a comprar por absurdos 25 reais (depois, no hotel, quando fomos comê-los, ficamos um pouco menos arrependidos da compra, pois eram realmente enormes e deliciosos), e o famoso sanduíche de mortadela, supostamente o mais famoso da cidade. Comi. É bom, mas é grande demais! E enjoado. Muito gorduroso. Ficou a desejar ...
De lá seguimos para a galeria do rock, que continua basicamente a mesma: A Baratos Afins continua por lá, com Calanca atrás do balcão, o que significa que tudo está no seu lugar, graças a Deus. Aproveitamos para dar um pulo na galeria ao lado, que não sei hoje, mas antes chamavam de “galeria indie”, muito provavelmente por causa de lojas como a London Calling, e nela encontramos uma simpática lojinha gótica com seu proprietário igualmente simpático que nos deu várias dicas do que fazer – dicas que não seguimos por pura falta de tempo. E de dinheiro, evidentemente.
Visitei também, desta vez sozinho, a Galeria Nova Barão, que reúne, principalmente, lojas especializadas no bom e velho vinil. É de babar! Poderia ficar horas ali só olhando aqueles bolachões lindos e suas capas e encartes grandes e maravilhosos, mas como estava sem grana (oh! Céus! De novo?), era “olhar com os olhos e lamber com a testa”, portanto nem me demorei tanto ...
De lá, no caminho para a Estação Sé do metrô, passamos pelo Centro Cultural Banco do Brasil, onde estava havendo uma exposição bacana sobre a Índia. Mas bacana mesmo foi outra que vi, no MASP, sobre a Roma antiga: Belíssimos objetos, a maioria esculpido em mármore branco, vindos diretamente dos melhores museus da Itália. Era impressionante, dava vontade de tocar em tudo, tocar a história da humanidade em si, ou, pelo menos, uma parte muito importante dela. Destaque para alguns altares sacrificiais ricamente ornamentados, para um busto gigante de Julio Cesar, Uma estátua de Júpiter e outra de Calígula em tamanho real e alguns adereços usados pelos gladiadores, além de toda uma parede pintada em afresco retirada da cidade de Pompéia, aquela que foi destruída pela erupção do vulcão Vesúvio.
Também lá, no MASP, pude ver, Ao Vivo e a cores, um quadro de um de meus artistas plásticos favoritos: “As tentações de Santo Antão”, de Hieronymus Bosch. Sensacional. Haviam também vários outros de pintores igualmente famosos, como um esboço de Salvador Dali – mas nada de muito célebre, apenas “lados B”, como bem definiu Viegas, que me acompanhou na visita.
Que mais? A Livraria Cultura e sua impressionante seção de quadrinhos, que no entanto é menor que a seção de quadrinhos da Martins Fontes. Que, por sua vez, perde para a mesma seção da Fnac – todas na Paulista. É muita tentação consumista numa cidade só ...
A lamentar ainda, no quesito “poderia ter visto mas não deu”, uma Mostra de trabalhos de Angeli que estava em montagem no Instituto Itaú Cultural. Também na paulista. Como deu pra notar, praticamente nem saí daquela região, e mesmo assim não consegui dar conta do que havia por lá.
São Paulo é foda. Um lugar do caralho.
Por Adelvan

quinta-feira, 29 de março de 2012

( Os Sertões ) A Luta - Capítulo I - Preliminares

Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Brito Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados.

Antecedentes

O mal era antigo.

O trato do território, que recortam as cadeias de Sincorá até às margens do S. Francisco, era, havia muito, dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.

Opulentada de esplêndidas minas, aquela paragem, malsina-a a própria opulência. Procuram-na há duzentos anos irrequietos aventureiros ferrotoados pelo anelo de espantosas riquezas, e eles, esquadrinhando afanosamente os flancos das suas serranias e as nascentes dos rios, fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas e o indumento áspero das grupiaras: legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.

De sorte que, sem precisarem despertar pela cultura as energias de um solo em que não se fixam e atravessam na faina desnorteada de faiscadores, conservaram na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos fazedores de desertos. E como, a pouco e pouco, se foram exaurindo os cascalhos e afundando os veeiros, o banditismo franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada.

O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.

A transição é antes de tudo um belo caso de reação mesológica.

Caracterizemo-la, de relance.

Vimos como se formaram ali os mamalucos bravos e diligentes, interpostos tão a propósito na quadra colonial, entre o torvelinho das bandeiras e o curso das missões, como elemento conservador formando o cerne da nossa nacionalidade nascente e criando uma situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas mineiras e as utopias românticas do apostolado. Ora, aqueles homens, depois de esboçarem talvez a única feição útil da nossa atividade naqueles tempos, tiveram desde o começo do século 18, quando se desvendaram as lavras do rio de Contas à Jacobina, perigosos agentes que, se Ihes não derrancaram o caráter varonil, o nortearam a lamentáveis destinos. De feito, transmudaram-se em contato com os sertanistas gananciosos. Estes vinham, então, do oriente, espavorindo a ferro e fogo o selvagem e fundando povoados que, ao revés dos já existentes, não tinham o gérmen de uma fazenda de gado, mas as ruínas das malocas. Bateram rudemente a região, estacionando largo tempo ante a barreira de serras que vão de Caetité para o norte; e quando as minas esgotadas lhes demandaram aparelhos para a exploração intensiva, tiveram, logo adiante, entre as matas que vão de Macaúbas e Açuruá, novas paragens opulentas, atraindo-os para o âmago das terras.

Devassaram-nas até nova barreira, o rio S. Francisco. Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhes antolhou, cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale do rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina, em carta dirigida à rainha Maria II (1794) , afirmava "que as suas minas eram a coisa mais rica de que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade".

Naquele ponto se abeiravam das lindes de Goiás.

Não deram mais um passo além. Ultimara-se uma empresa deplorável. Pelos campos de criação avermelhavam, nodoando-os, os montões de argila revolvida das catas entorroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. A nossa historia, tão malsinada de indisciplinados heróis, adquiria um de seus mais sombrios atores. Fez-se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranqüila dos campeiros, uma outra caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irrequieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.

Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço.

É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio entre colaterais, que o meio físico já diversificara, resume os atributos essenciais de uns e outros — na atividade bifronte que oscila, hoje, das vaquejadas trabalhosas às incursões dos quadrilheiros. E a terra, aquela incomparável terra que mesmo quando abrangida pelas secas, desnuda e empobrecida, ainda lhe sustenta os rebanhos nas baixadas salinas dos barreiros, ampara-o de idêntico modo ante as exigências da vida combatente: dá-lhe grátis em toda a parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projéteis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na galena argentífera do Açuruá...

É natural que desde o começo do século passado a história dramática dos povoados do S. Francisco começasse a refletir uma situação anômala . E embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mineradora, denunciam a gênese remota que esboçamos. Exemplifiquemos. Todo o vale do rio das Éguas e, para o norte, o do rio Preto, formam a pátria original dos homens mais bravos e mais inúteis da nossa terra . Dali abalam para as algaras aventurosas alugando a bravura aos potentados, e têm sempre, culminando-lhas, o incêndio e o saque de vilas e cidades, em todo o vale do grande rio. Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade mineira de Januária, que conquistaram, tornando a Carinhanha, de onde haviam partido, carregados de despojos. Desta vila para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até Xique-Xique, lendária nas campanhas eleitorais do Império.

Não há traçá-la em meia dúzia de páginas. O mais obscuro daqueles arraiais tem a sua tradição especial e sinistra.

Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos; abrindo-se na gruta de âmbito caprichoso, semelhando a nave de uma igreja, escassamente aclarada; tendo pendidos dos tetos grandes candelabros de estalactites; prolongando-se em corredores cheios de velhos ossuários diluvianos; e a lenda emocionante do monge que ali viveu em companhia de uma onça — tornaram-no objetivo predileto de romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de Sergipe, Piauí e Goiás.

Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, o visitante observa , de par com as imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas.

O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, com a arma à bandoleira. Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido do calcário, transudante... E reza. Sonda longo tempo, batendo no peito, as velhas culpas. Ao cabo cumpre devotamente a promessa que fizera para que lhe fosse favorável o último conflito que travara: entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo na coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de remorsos , feliz pelo tributo que rendeu. Amatula-se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa.

Pilão Arcado, outrora florescente e hoje deserta, na derradeira fase de uma decadência que começou em 1856; Xique-Xique, onde durante decênios se digladiaram liberais e conservadores; Macaúbas, Monte Alegre e outras, e todas as fazendas de seus termos, delatam, nas vivendas derruídas ou esburacadas à bala, esse velho regímen de desmandos.

São lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo disciplinado.

O conceito é paradoxal, mas exato.

Porque há, de fato, uma ordem notável entre os jagunços. Vaidosos de seu papel de bravos condutícios e batendo-se lealmente pelo mandão que os chefia, restringem as desordens às minúsculas batalhas em que entram, militarmente, arregimentados.

O saque das povoações que conquistam, têm-no como direito de guerra, e neste ponto os absolve a História inteira. Fora disto, são raros os casos de roubos, que consideram desaire e indigno labéu. O mais frágil "positivo" pode atravessar, inerme e indene, procurando o litoral, aquelas matas e campos, com os "piquás" atestados de diamantes e pepitas. Não lhe faltará um só termo da viagem. O forasteiro, alheio às lotas partidárias, atravessa-os igualmente imune.

Não raro um mascate, seguindo por ali, com seus cargueiros rengueando ao peso das caixas preciosas, estaca — tremendo — ao ver aparecer inesperadamente um grupo de jagunços, acampado na volta do caminho...

Mas perde em momentos o modo. O clavinoteiro — chefe aproxima-se. Saúda-o com boa sombra; dirige-lhe a palavra risonha; e mete-lhe à bulha o terror, galhofeiro. Depois lhe exige um tributo — um cigarro. Acende-o numa pancada única do isqueiro; e deixa-o passar, levando, intactas, a vida e a fortuna.

São numerosos os casos deste teor revelando notável nobreza entre aqueles valentes desgarrados. Cerca de dez ou oito léguas de Xique-Xique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, ereto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais. Estas, de ordinário, conseguem pacificar os lugares conflagrados, tornando-se interventoras neutras ante as facções combatentes. E uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamenta com os criminosos; balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos; e acaba ratificando verdadeiros tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.

Assim os estigmas hereditários da população mestiça se têm fortalecido na própria transigência das leis. Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco, e desbordando para o norte.

Porque o cangaceiro da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico , com diverso nome distingue-o do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a parnaíba, de lamina rígida e longa, suplanta a fama tradicional do clavinote de boca-de-sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.

A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las.

por Euclides da Cunha

( ... )

quarta-feira, 28 de março de 2012

Morrissey pode

E eis que, meio que do nada, depois de muita especulação e boatos não confirmados, surge a notícia bomba: Morrissey vem mesmo ao Brasil! 12 anos de espera iriam, finalmente, chegar ao fim. Não havia muito o que pensar, já que, há algum tempo, eu havia elegido 3 nomes de bandas/artistas que, se dessem as caras por aqui, eu iria ver de qualquer jeito, fosse onde fosse, custasse o que custasse: Kraftwerk, Slayer e Morrissey.

Sim, eu sei, eu sou eclético. Mas acabei desistindo do Kraftwerk por medo de que fosse um show muito curto, já que eles viriam como banda de abertura do Radiohead. E também porque Florian Schneider, até então um dos dois últimos remanescentes da formação original, tinha acabado de deixar o grupo. Dos fundadores, restou apenas Ralf Hütter. Aí não dá, né. É muita descaracterização. A única banda totalmente descaracterizada que ainda vale a pena é o Napalm Death, mas é outra história, um processo gradual que acabou por legitimar as formações mais recentes. Quanto ao Kraftwerk, tudo bem, eles são os "homens máquina" e podem muito bem ser substituídos sem que se perca a qualidade do espetáculo (é só apertar os botõezinhos!), mas convenhamos, o legal mesmo é ver ao vivo, pessoalmente, na sua frente, aqueles caras que criaram aquelas musicas que mudaram a sua vida. Por isso desisti e não me arrependi, mesmo sabendo através de quem foi que foi ótimo, um show completo, com toda a parafernália sonora e visual a que os pais da música pop eletrônica têm direito. Ponto para o Radiohead, que soube compartilhar as glórias da noite, dando a César o que é de César - e a Deus o que é de Deus.

Já o Slayer eu vi ano passado, num show bom, apesar de alguns problemas sérios de produção - mais detalhes aqui. As coisas parecem estar mesmo mudando no cenário do "Show Bizz" brasileiro: não esparava para tão cedo a oportunidade de fechar minha trinca de "ases". Me pegou desprevenido, endividado, mas não teve choro nem vela: Morrissey, minha fatura de cartão de crédito, este mês, é toda sua!

Ao contrário da Via Funchal, onde o Slayer tocou e eu, para chegar lá, peguei um ônibus que parecia que não ia chegar nunca (por causa disso perdi a apresentação na porta do Test), o Espaço das Américas fica num local de fácil acesso, ao lado da Estação Barra Funda do Metrô. Tão fácil que me dei ao luxo de ir lá um dia antes pegar meus ingressos, comprados via net. Estava em reforma, o local - terminavam de montar a marquise da fachada. Mal sabia eu que nessa reforma, ao que parece, esqueceram de instalar um sistema de ar-condicionado que desse conta da multidão que compareceria no dia seguinte ...

No dia seguinte, chegamos por volta das 6 da tarde, debaixo de chuva. Identificamos a fila destinada à Área Vip e, inadvertidamente, minha patroinha furou a "bicha"! Foi sem querer, ela só notou depois, mas já que ninguém reclamou, ficamos por lá mesmo e, por conta disso, conseguimos um lugar a cerca de 10 metros (ou menos) do palco! Nada mal, especialmente se levarmos em conta que a tal pista "vip" ocupava quase a metade do espaço, ou seja: os que estavam na "geral", mais barata, ficariam, forçosamente, a uma distancia considerável, e com dois agravantes: o palco era baixo e os telões não funcionaram, segundo postou Lorena Calabria em seu blog, por ordem do próprio Morrissey. O mundo é injusto, fazer o que ...

Nos posicionamos em nossos lugares e de lá não arredamos o pé pelas próximas 4 horas e meia - duas delas gastas numa espera interminável em um ambiente cada vez mais quente e apertado. Achei o espaço pequeno para o porte do show. Não por acaso, apesar dos preços pra lá de salgados, os ingressos estavam esgotados há dias. Pelo menos a decoração do ambiente era bonita, elegante, o som que saía dos auto-falantes era de boa qualidade e minha camiseta da The Baggios acabou atraindo um sergipano que nos fez companhia. Um não, dois: Chico Pitanga me achou por lá e foi me comprimentar.

Tinha esperança de que 20:00, a hora marcada para o início do show, seria a hora da atração principal (foi assim com o Iron Maiden), mas ledo engano: às 8 da noite quem surgiu por trás das cortinas foi a tal da Kristeen Young. Bem vestida (gostei do figurino), bonitinha, mas ordinária! O grande mistério da noite era o porque de Morrissey ter escalado para a abertura de sua "south american tour" aquele refugo de Bjork misturado ao que de pior existe em Nina Hagen, Kate Bush e Cindy Lauper! Se existe algo de aproveitável no repertório da moçoila, pra mim, passou batido. Péssimas composições interpretadas numa perfomance esquizofrenica que não empolgou ninguém. E olha que o público até que foi educado, aplaudindo ao final de cada "música". Ok, não era nenhuma ovação, claro, mas eram aplausos, ora! E ela, também educadamente, agradecia, para logo em seguida voltar a martelar um teclado ou se dirigir sozinha ao centro do palco, na frente de uma imensa tela que projetava seu nome, e soltar mais alguns trinados irritantes ao som de batidas pré-programadas. Corajosa - e cara de pau ...

Passado o suplício, começam os vídeos. Já tinha lido a respeito: antes do show são projetados alguns vídeos selecionados pelo proprio Morrissey. Começa com um em que um Shoking Blue pouco à vontade com as câmeras interpreta "Mighty Joe" passeando pela neve. Bonito, elegante, mas eles têm musicas melhores - "Never merry a railroad man" ou "love buzz", que o Nirvana celebrizou, por exemplo. A seleção prossegue com, dentre outros, Nico, Sparks (uma banda new wave obscura e bacana da qual só Morrissey parece lembrar ), um "rocker" não identificado (por mim, pelo menos) com uma bonita jaqueta de couro dançando "twist" com uma fogosa moçoila e, claro, New York Dolls. No final, uma mulher gritando desesperadamente em close no telão, cujo pano cai e é rapidamente recolhido ao som de sinos dobrando para a entrada triunfal do profeta da dor em pessoa e sua trupe - ele, com uma camisa dourada de peito aberto, eles, vestidos de vermelho com camisetas ostentando a frase "Assad is shit". O público, claro, foi à loucura: fui subitamente projetado para a frente pela multidão ensandecida que tentava desesperadamente chegar mais perto de seu ídolo. Ótimo, fiquei ainda mais perto do palco.

Ele olha para as palmas de suas mãos, solta um "olá, Sampa" e a banda começa a executar os primeiros acordes de "First of the gang to die", logo emendada com a ótima "you have killed me", do excelente e subestimado penúltimo disco, "ringleader of the tormentors". Melhor impossivel. A emoção toma conta de todos e eu sinto a presença, mesmo que apenas em meus pensamentos, de um grande e velho amigo que me apresentou aos Smiths ainda nos anos 80. Eu era um típico moleque adolescente deslumbrado com a descoberta do rock "pauleira", do Heavy Metal, e não entendi muito bem a proposta daquela banda que para mim soava, paradoxalmente, muito bem, mas de forma esquisita. Sentia que ali havia algo especial, afinal eram muitos os que, assim como aquele meu amigo, alegavam ter sua vida sido salva por aquelas canções. "The band that saved your life", literalmente falando. Não era pra mim naquele momento, mas assim que minha mente foi se abrindo para novas possibilidades, novos sons, batidas e pulsações, os Smiths passaram a ser uma de minhas bandas favoritas, e segue sendo até hoje. Nunca me canso de ouvir - eles e o Black Sabbath. Eu sei, eu sou eclético ...

Seguem-se duas que eu acho mais ou menos, "Black Cloud" e "When Last I Spoke To Carol", e então "Still ill", dos Silva. É uma musica tipicamente "smithiana", com sua levada meio rockabilly, seus vocais chorosos entoando versos sofridos e os dedilhados geniais de Johnny Marr reproduzidos à perfeição pelo guitarrista mexicano Jesse Tobias, que já tocou, por um mês apenas, no Red Hot Chilli Peppers! Mais catarse, mais marmanjo chorando pra todo lado. Mas o melhor estava por vir: nunca se viu tanta gente cantando com tanta empolgação uma letra tão triste quanto a de "Everyday is like sunday". Parecia que todos estavam preparados para morrer ali mesmo, vitimados por um ataque nuclear ("Come! Come! nuclear bomb!") ou algo do tipo, e morreríamos felizes, abraçados, pois o prazer e o privilégio de partir de forma tão gloriosa seriam nossos. Dramático, né ? É Smiths, é Morrissey, porra ! Foda-se tudo, é drama mesmo, é voltar pra casa, chorar e ter vontade de morrer, e é lindo!

O show segue em frente com "Speedway", do seminal "Vauxhall and I ", e "you´re the one for me, Fatty", a única de "your arsenal", meu disco favorito, que muitos consideram fraquinha, mas eu gosto muito. A esta altura parece que o fervor emanado do publico contagiou o bardo e ele parece genuinamente feliz por estar ali, coisa que ele tenta a todo custo demonstrar, mas de forma um tanto quanto desajeitada - não esqueçamos que ele é herdeiro de uma "shyness that is criminally vulgar". Num dado momento ele declara estar tão feliz que nem sabia o que fazer. Cantar, ora! E ganhar presentes - a moça das flores não conseguiu dar o seu, mas o rapaz do vinil dos NY Dolls (a princípio confundido com Ramones) sim. E passar seus recados - porque não? Acho justo. Lembrou da passagem do Príncipe Harry pelo Brasil e nos exortou a não entregar nosso suado dinheiro a eles, a monarquia britânica, comparando-a a ditaduras - "no more dictatorships". Emendou com "Meat is murder", certamente o momento mais dramático e, para muitos, anticlimático, da noite. Não concordo. A letra, a melodia e as imagens explícitas mostradas no telão convidam à reflexão, e talvez seja isto que incomode tanto a tantos que se manifestaram contrários a um suposto panfletarismo "de mal gosto" em resenhas e comentários pela net. Não sou vegetariano, mas se um dia me tornar um, esta música será, certamente, uma das principais responsáveis.

"Meat is murder" aparece em uma nova roupagem, com arranjos "viajantes" e pesados, o que chama a atenção para a competencia da banda de apoio, composta por jovens - á exceção de um gordo e aparentemente acomodado Boz Boorer que pouco lembra a energia dos tempos do vídeo "Live in Dallas". Ele parece estar deixando o trabalho pesado para a rapaziada, e eles, felizmente, não deixam a peteca cair. Todos são muito bons, com destaque para o tecladista, que cria climas envolventes para os novos arranjos de musicas já bastante conhecidas. Neste quesito, o destaque vai para "please please please let me get what I want", tocada de forma ainda mais lenta. Funcionou maravilhosamente bem, apesar do vexame do som "pipocando".

Também lentíssima é "I know it´s over", do clássico "The queen is dead", dos Smiths. Particularmente preferia outra de andamento parecido e letra igualmente desesperada, "I Know It's Gonna Happen Someday", mas ok, não estou reclamando - seria ridículo. "Oh Mother, I can feel The soil falling over my head", cantamos todos a plenos pulmões. Mas nada se comparou ao grande momento da noite, quando ele disse que "agora que já nos conhecemos melhor, podemos chegar até aqui": "There´s a light that never goes out", provavelmente a letra de musica mais romântica já escrita. Nem sei muito bem como descrever o que aconteceu naquela hora, pois tudo o que eu disser vai soar clichê. Só quem tava lá mesmo pra saber. Arrepiante.

O show vai chegando ao final e novos grandes sons se sucedem, dentre eles "I’m Throwing My Arms Around Paris", single de "years of refusal", o último disco, que é bom, mas inferior aos dois anteriores. Nova catarse com "How soon is now", talvez minha música favorita dos smiths, e é isso. Ele volta para o bis com a bandeira do Brasil enrolada na cintura, formando uma espécie de saia, e canta apenas mais uma, a apropriada "One Day Goodbye Will Be Farewell". Sacode a bandeira, se enrola nela, coloca-a na cara e diz que nos ama. Parece sincero - até por que Morrissey não costuma ter muito pudor em demonstrar insatisfação, que o digam os argentinos, que, segundo relatos, o pegaram macambuzio e de mal humor.

Missão cumprida, saldo pra lá de positivo. Pra não dizer que tudo isso é coisa de fã deslumbrado e cego (embora seja isso mesmo), posso afirmar que o único momento que eu achei realmente exagerado, tolo e gratuito, no show, foi aquele em que ele abre a camisa feito um Clark Kent revelando-se o superman, enxuga com ela seu suor e a joga para a platéia. Mas note bem: o exagero, pra mim, foi apenas o jogo de cena de enxugar o suor. O resto tá perdoado.

Porque ele é Morrissey. Ele pode.

As fotos, de Stephan Solon, foram tiradas do site omelete.

texto por Adelvan Kenobi

Veja tudo aqui.

true to you March 2012 statement from Morrissey.
Thank you for an incredible tour of South America. It has been the best tour of my life. Nothing I had previously experienced prepared me for the love shown to me by the people of Chile, Peru, Brazil, Colombia and Argentina. The excitement of the Brazilian audiences was almost heart-stopping. After all these years, to still be a part of people's hope is astounding to me. It's one thing to be valued, but to be loved is an entirely different experience.
Thanks also to the police in Peru, Brazil and Colombia who escorted me around (as custodians, I should add.) I am grateful.
Nights of unforgettable joy:
1. Bogota, COLOMBIA.
2. Lima, PERU.
3. Belo Horizonte, BRASIL.
4. Santiago, CHILE.
5. Sao Paulo, BRASIL.
6. Rio, BRASIL.
7. Buenos Aires, ARGENTINA.
8. Rosario, ARGENTINA.
9. Mendoza, ARGENTINA.
10. Cordoba, ARGENTINA.
O Set list do show de São Paulo:

1- First Of The Gang To Die
2- You Have Killed Me
3- Black Cloud
4- When Last I Spoke To Carol
5- Alma Matters
6- Still Ill
7- Everyday Is Like Sunday
8- Speedway
9- You’re The One For Me, Fatty
10- I Will See You In Far Off Places
11- Meat Is Murder
12- Ouija Board, Ouija Board
13- I Know It’s Over
14- Let Me Kiss You
15- There Is A Light That Never Goes Out
16- I’m Throwing My Arms Around Paris
17- Please, Please, Please Let Me Get What I Want
18- How Soon Is Now?
Bis
19- One Day Goodbye Will Be Farewell

DEP Millor Fernandes

Morreu na noite da última terça, 27, o escritor carioca Millôr Fernandes. Ele estava com 87 anos e, segundo o portal G1, foi vítima de falência múltipla dos órgãos e parada cardíaca. Millôr morreu em casa, em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro, de acordo com o que revelou o filho do escritor, Ivan Fernandes. O velório acontecerá na próxima quinta, 29, entre 10h e 15h, no cemitério Memorial do Carmo, no Caju, na Zona Portuária do Rio. O corpo será cremado em seguida.

Millôr ficou mais conhecido como escritor, mas era desenhista, jornalista, dramaturgo e tradutor. Ele também foi um dos maiores tradutores de peças de Shakespeare no país. Começou a carreira como colaborador da revista O Cruzeiro quando tinha somente 14 anos. Na década de 60, foi um dos fundadores do lendário O Pasquim, jornal revolucionário de papel importantíssimo na luta contra o regime militar no Brasil.

André Bracinsky: Morreu Millôr Fernandes. Jornais e sites vão publicar obituários bem completos e elogiosos ao homem. Não vou ficar aqui chovendo no molhado, dizendo como ele era brilhante, influente, etc.

Vejo a morte do Millôr como mais um passo do nosso processo de emburrecimento. Só de saber que ele continuava ali, escondido na cobertura em Ipanema, mesmo que velhinho e frágil, dava uma sensação de conforto. Agora nem isso temos mais. Quando Paulo Francis morreu, pelo menos tínhamos o Millôr como farol. E agora?

Cada vez mais esse país me deprime. Na época do Millôr também era deprimente, mas pelo menos havia ele e alguns outros para colocar as coisas em perspectiva. Outro dia, participei de uma entrevista com Agildo Ribeiro. Sujeito culto, irônico, cheio de idéias e opiniões. E foi um comediante de sucesso na TV aberta. Fiquei pensando como um sujeito talentoso daqueles deveria se sentir, vendo o nível do entretenimento popular que temos hoje.

Não sei de Millôr, mas imagino que ele devia se sentir assim também: isolado, falando para as paredes, até meio desorientado no meio de tanta burrice, de tanto analfabetismo funcional, de tanto radicalismo sectário, de tanta gente entorpecida por TV ruim e filosofia de redes sociais.

Ontem, o técnico da Seleção Brasileira, que não vê problema em fazer comercial de cerveja, foi pego na blitz da Lei Seca e se recusou a fazer o teste do bafômetro. O que diria Millôr sobre isso? Que pena saber que ele não estará aqui para escrever sobre a Copa e nosso ingresso no Primeiro Mundo.

O mirante de Ipanema está vazio. Estamos sozinhos. Agora é cada um por si.


sexta-feira, 23 de março de 2012

RIP Moebius

(wikipedia) Jean Giraud (8 de maio de 1938 - 10 de março de 2012) foi um artista francês de história em quadrinhos que também colaborou na produção de diversos filmes. Giraud é também conhecido pelos pseudônimos de Moebius e Gir. Ele começou a publicar suas primeiras tiras aos 18 anos, logo tornando-se um dos ilustradores mais consagrados da Europa.

Sua primeira história publicada foi "Frank et Jeremie" para a revista Far West, em 1956, publicada antes de seus 18 anos. Ainda na década de 50, fez quadrinhos para a Sitting Bull, Fripounet et Marisette, Âmes Vaillantes e Coeurs Vaillants.

Sua carreira foi interrompida pelo serviço militar que prestou na Argélia, porém, ao retornar, se tornou aprendiz de Jijé, um dos principais quadrinistas europeus da época, com quem colaborou Jerry Spring. Giraud foi por ele indicado para desenhar a série de faroeste Blueberry, que seria publicada pela revista Pilote.

Em 1963, Moebius aparece pela primeira vez na revista Hara Kiri. Nela, foram publicadas 21 tiras em 1963 e 64, e então se passou quase uma década até que o pseudônimo fosse utilizado novamente. Em geral, Giraud assina como Moebius em seus trabalhos de ficção científica e fantasia, que costumam ser mais experimentais.

Em 1974, ele formou os Humanoïdes Associés junto com Jean-Pierre Dionnet, Philippe Druillet e Bernard Farkas. No mesmo ano, lançaram a revista de fantasia e ficção científica Métal Hurlant, que se tornaria muito influente. Já em seu primeiro volume, a capa era de Moebius e Philippe Druillet, e havia as primeiras histórias de Arzach e Major Grubert.