terça-feira, 16 de abril de 2013

O Operário e a camponesa da fazenda coletiva

Simbologias podem se tornar instrumentos poderosos nas mãos de mentes habilidosas. A Foice e o Martelo (em russo, серп и молот, serp i molot), quando representados entrelaçados, é um símbolo poderoso. Já foi mais, mas ainda é. Já fez tremer de terror ou paixão ideológica multidões mundo afora, especialmente nos tempos da guerra fria, quando simbolizava o poder comunista, supostamente oriundo da aliança de classes entre o operariado urbano e o campesinato. Aliança esta que forjou, a ferro, fogo e sangue, uma das maiores potências que o mundo já viu: A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O símbolo da foice e do martelo está presente desde os primórdios da revolução bolchevique de 1917. Foi inicialmente utilizado pelo Exército Vermelho e no brasão da República Socialista Soviética Federada da Rússia (RSFSR). Em 1923 foi incorporada à bandeira da União soviética (a federação russa era apenas uma de suas repúblicas). Antes disso, as bandeiras das repúblicas soviéticas geralmente eram apenas vermelhas, com o nome da respectiva república escrito em dourado no canto superior esquerdo, como estabelecido pelo artigo 90 da Constituição Soviética de 1918. Com o tempo tornou-se um símbolo do comunismo em si, sendo utilizado mesmo por partidos opostos às diretrizes de Moscow.

Uma das mais belas representações da Foice e do Martelo é o monumento “O Operário e a camponesa kolkhoziana" - Kolkhozes eram as fazendas de propriedade coletiva, embora não estatais - estas eram os Sovkhozes. O estado havia empreendido uma campanha feroz contra os proprietários de terras, chamados pejorativamente de "kulaks" (Russo: кула́к, kulak, "punho", literalmente punho-fechado; Ucraniano: курку́ль, kurkul) - não confundir com Gulag - talvez por isso a figura feminina não tenha sido chamada apenas de "camponesa" - era preciso evidenciar sua origem de classe. Trata-se de uma obra-prima moldada em estilo “Art Deco” na era do chamado “realismo socialista”, uma época em que todas as artes destinavam-se a servir à propaganda do estado totalitário. Para além desta função, no entanto, ainda é possível enxergar, ao se observá-la, a pureza da idéia que está em sua origem. Uma idéia poderosa, que se espalhou por todos os continentes e abalou o mundo, seduzindo as classes menos favorecidas com a promessa de uma espécie de paraíso na terra – ou, pelo menos, da ascensão de uma sociedade mais justa e igualitária.

O monumento foi esculpido por Vera Ignatyevna Mukhina, a princípio, com o objetivo de ornamentar a entrada do Pavilhão Soviético na Exibição Internacional de Artes, Ofícios e Ciências de Paris, em 1937. Lá, localizados frente a frente, separados pelo “Trocadéro”, uma passagem para pedestres localizada na margem norte do Rio Sena, os pavilhões da República Socialista e da Alemanha nazista concorriam em monumentalidade e força bruta, antecipando o conflito que dentro em breve viria a envolver os dois países.

Seu transporte de Moscou à capital da França foi feito através de uma desmontagem em 65 peças, o mesmo acontecendo em sentido contrário depois de terminada a Exposição. Foi então instalado de forma definitiva no grandioso Complexo de Exposições das realizações da economia popular, hoje chamado Parque de Exposições de Toda a Rússia. Em 2003, por determinação da Câmara de Moscou, a escultura passou por um longo processo de restauração que durou cerca de 6 anos, sendo novamente assentada num novo pedestal de 60 metros de altura – o anterior tinha apenas 10.

“O Operário e a Camponesa” ficou também conhecido e ainda é lembrado em todo o mundo por ter sido o símbolo da “Mosfilm”, o maior estúdio de cinema soviético, onde foram rodadas obras-primas como “Quando voam as cegonhas”, “Balada do Soldado” e “Andrei Rublev”. Já sua autora, Vera Mukhina, ganhadora de 5 prêmios “Stalin” e intitulada oficialmente “Artista do povo”, caiu no esquecimento junto com o movimento artístico/propagandístico que ajudou a moldar.

por Adelvan Kenobi

Reza uma lenda popular que Vera Mukhina foi também autora de outra obra, decerto menos monumental, mas inquestionavelmente mais popular: o copo multifacetado - conhecido no Brasil como "copo americano". Ecos da Guerra Fria ...

“Copos com várias faces sempre existiram. Mas este, este em concreto e em específico, saiu do punho empenhado da “Artista do Povo”. Há quem diga que, no desenho das linhas retilíneas do copo de vidro, Vera Mukhina foi influenciada pelo pintor construtivista Kazimir Malevich. Graças ao sopro inspirador de Malevich, o copo tinha a dimensão perfeita. Límpido e puro, casto e sereno, sem arrebiques burgueses. Sendo de uma elegância e de uma simplicidade extremas, o copo de Mukhina tinha também as proporções exatas para servir à função a que se destinava: embriagar o povo a goles de vodca, fazendo-o esquecer que, como destino de férias, o arquipélago Gulag conseguia ser relativamente pior do que Benidorm e a Quarteira. A tese da influência de Malevich na criação do copo não é descabida, visto que Mukhina, nos anos vinte, namorara o cubismo, chegando mesmo a praticá-lo em público. Mas, na década de trinta, como bela artista que era, virou-se para o que estava a dar na altura, o realismo socialista. Na criação de O Operário e a Camponesa inspirou-se em diversas obras clássicas e neoclássicas (desde a Vitória de Samotrácia ao Arco do Triunfo), com resultados fatídicos: um casalito de assalariados com 24 metros de altura e 75 toneladas de peso.

Aqui, no copo, ao invés da estátua do Operário, não existe nada de megalómano. Nada de devaneios. O copo tinha uma função: durar. Durar como o regime que, a partir de 1943, inicia a produção em massa deste objeto, que deveria servir para brindes viris ao “Pai dos Povos”, mas cujas dimensões teriam de permitir também a sua limpeza nas máquinas de lavagem industrial que, na URSS, começaram a ser fabricadas nos anos trinta. Em comparação com a estátua, o copo era um tudo nada mais pequeno. Mas vencia na estatística. De fato, nunca um objeto foi produzido em tão grande escala. Vera Mukhina era mulher de grandes feitos e de grandes números. A estátua colossal fora a primeira a ser construída em placas soldadas. O copo multifacetado foi produzido à cadência de 5 a 6 milhões por ano. Grosso e forte, servia para todas as bebidas: o chá escaldante ou a água cristalina, que ora aqueciam ora refrescavam o corpo, mas sobretudo o álcool potente, que entorpecia o espírito.

Por causa disso, o copo plurifacetado – possivelmente, a única coisa plurifacetada que havia na Rússia soviética – sempre esteve associado ao consumo de álcool. (...)diz-se que o copo de Mukhina constitui um bom exemplo das relações entre o design industrial e a política. É que, a dada altura, Nikita Khrushchev – um empedernido abstêmio, como todos sabemos – tentou combater o endêmico alcoolismo que grassava na sua pátria. Fê-lo, claro está, à boa maneira soviética: proibiu as garrafas de 250gr e 125gr de vodca e só autorizando garrafas de 750gr, na convicção de que, desaparecendo as garrafas-mini, os russos não se abalançariam a vôos mais altos. Mais um erro da economia planificada. Graças à criação de Vera Mukhina, a litragem de 750gr vinha mesmo a calhar, pois dava exatamente para encher três copos até à borda, dado que cada copo tinha capacidade para 250gr (100gr = 0,1 litros). É só fazer as contas.” - Malomil

Entre a nostalgia soviética e o novo patriotismo

A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população é um fato, mas numa realidade que não permite mais um retorno ao ’sovietismo’. A liquidação do sistema social soviético, as privações, o papel do dinheiro e as pressões do mundo globalizado atingiram um ponto em que não há mais volta. 

01 de Abril de 2004, Le Monde Diplomatique
por Jean-Marie Chauvier

Quem nunca viu, mesmo que no cinema, o monumento assinado por Vera Moukhina representando o operário e a camponesa kolkhoz lançando-se em direção ao futuro radiante empunhando a foice e o martelo(1)? Instalado na entrada do parque de exposições em Moscou, ele acaba de ser desmontado. Talvez, não para ser posto de lado, mas para ser reformado. Bandeiras vermelhas tremulam novamente no 9 de maio, nas celebrações oficiais da vitória sobre a Alemanha nazista, como nos desfiles comunistas do 1º de maio e 7 de novembro(2). O hino da URSS ressoa novamente(3). Adolescentes exibem malhas com a inscrição "Minha pátria, a URSS". Grupos de rock reciclam os "sucessos" soviéticos. A faixa de FM, em Moscou, repercute especialmente canções em língua russa. Cafés da moda e publicidades comerciais também estão cobertos de símbolos soviéticos, testemunhando assim uma "nostalgia" pós-moderna.

Essa volta do pêndulo teve início em meados dos anos 1990. Os filmes soviéticos passam novamente na televisão - "a pedido do público", dizem as emissoras. Um editorialista se inquieta: o "o povo soviético" está sempre lá, a nostalgia aparece como "a dominante do humor local(4)". As pesquisas de institutos considerados sérios confirmam: "57% dos russos querem a volta da URSS" (2001), 45% consideram o sistema soviético como "melhor" que o atual, 43% desejam mesmo "uma nova revolução bolchevique" (2003). As opiniões sobre o presente também se mostram pouco "corretas": descrédito da "revolução democrática" de agosto de 1991(5) e rejeição em massa (quase 80%) das grandes privatizações "criminosas". Os democratas vituperam: amnésia ("eles esqueceram o gulag e as penúrias"), o ódio aos ricos "porque são ricos", mediocridade de descrentes e dos velhos, "a biologia resolverá o problema". Com Vladimir Putin, os acontecimentos políticos vieram confortar suas angústias: processos judiciais contra muitos dos grandes oligarcas por seus amigos e financiadores(6), retomada do controle das grandes mídias pelo Kremlin, reabilitação da NKVD e da KGB(7), influência crescente dos "siloviki(8)" e do FSB (Serviço Federal da Segurança), desejo de restaurar a influência russa no espaço ex-soviético, críticas oficiais dirigidas aos Estados Unidos e sua penetração nesse espaço, oposição à guerra do Iraque. E isso, apesar da "aliança estratégica" selada pelo presidente Putin em Washington no dia seguinte ao 11 de setembro de 2001.

No entanto, esforços não foram poupados para erradicar o comunismo. Desde 1991, os russos estão submersos em arquivos, artigos, livros e programas de televisão que denunciam os "crimes bolcheviques": terror vermelho sob Lênin e Trotski, "Grande terror" sob Stalin, fome de 1932-1933, gulag, deportação de povos "punidos" ou "suspeitos" de colaboração com a Alemanha nazista, repressões sob Brejnev. A "batalha da memória" conjugada com a promoção dos "valores mercantis democratas" foi levada a termo, com entusiasmo, por grandes mídias, jornalistas, historiadores, respaldada por uma vasta rede ocidental e, sobretudo, americana, de instituições, universidades e fundações - Ford, Soros, Hoover, Heritage, Carnegie, USIS, USAID, sem falar dos filantropos oligarcas da Rússia(9).

Os debates contraditórios da época Gorbatchev(10) foram substituídos por acusações contra o "Império do Mal" em todas as suas encarnações. A virulência desse anticomunismo russo é de dar inveja aos cruzados ocidentais. É preciso, a cada momento da crise que ameaça o novo regime, agitar o espantalho do "retorno dos vermelhos" e da guerra civil. A condenação do "bolchevismo" leva à reabilitação de seus opositores, principalmente o movimento branco e as dissidências. Até algumas colaborações com os nazistas são "compreendidas". É assim que o cronista do Izvestia Maxim Sokolov tenta explicar: "A época era complexa... (o Terceiro Reich) era o único bastião a proteger a Europa da barbárie bolchevique. Se tivesse vivido até hoje, o Reichsfüher SS (Himmler) seria provavelmente honrado como combatente contra o totalitarismo(11)".

Esse revisionismo caricatural - que ignora os contextos reais, os períodos, os regimes, as sociedades e as culturas muito diversas da história soviética - é contestado por vários historiadores, mas não são eles que dão o tom. Muito mais amplamente difundidos são os best-sellers de Viktor Suvorov(12). O mais recente, lançado no final de 2002, começa com a seguinte afirmação: "Todos os dirigentes soviéticos, sem exceção, foram crápulas e não valem nada".

Um dos pioneiros do anticomunismo oficial, Alexandre Tsipko, considera contraprodutiva essa forma de denegrir. Seus efeitos desmoralizadores, combinados com as "reformas confiscatórias" que ele já lamentava em 1995, "prepararam o campo para uma reabilitação da história soviética" (13). Ele estava certo. Os ataques visam, além do "sistema", os valores igualitários e coletivistas, comunitários, tanto russos tradicionais como soviéticos. Eles visam as "pessoas de baixo", os operários que, ao mesmo que tempo que são desestabilizados na sua condição de vida, são estigmatizados como "cúmplices" do antigo regime, "ajudados", "preguiçosos" e "inúteis" ao progresso industrial(14).

Apesar dessa avalanche, a Rússia ainda escapa do "pensamento único" sobre a URSS. Há ali experiências vividas em demasia, heranças culturais, memórias dilaceradas para permitir esse tipo de uniformidade. Os relatos de vida podem, numa mesma inspiração, trazer ecos caóticos de tempos extremados em que as fronteiras entre a fé cristalina, as alegrias positivas, a descida incompreendida e súbita aos infernos de um terror cego, eram móveis, imprevisíveis.

Uma testemunha maior do universo dos campos de concentração, Varlam Chalamov(15), evoca sua juventude agitada, a irradiação de Lênin e dos ideais da revolução ("quantos horizontes, quanta imensidade se ofereciam ao olhar de cada um, do homem mais comum"), nesse período soviético muito ambíguo dos anos 20(16). A voz do destino mais comum, ao deixar perceptíveis as razões da adesão popular àquele socialismo, se faz ouvir através do relato de Lioudmilla, filha de camponeses brutalizados pela deskulakização, mas que ultrapassa a fronteira dos mundos para vencer com esforço, na cidade, o caminho da promoção social(17).

Esse foi, realmente, o caminho de milhões de habitantes do mundo rural. Entre os camponeses, que viveram a guerra civil e permaneceram na aldeia depois da "grande ruptura" da coletivização, outros relatos de vida foram coletados a tempo(18), no início dos anos 1990, quando a palavra foi liberta antes de ser "reformatada" pela ideologia anticomunista dominante.

Um dos problemas da memória "reconstruída" nesse novo contexto é a arregimentação de vítimas e mártires a serviço de uma ideologia "antitotalitária" formulada a posteriori. Pois, entre eles havia muitos comunistas e opositores da esquerda trotskista(19) - pessoas que, voltando ao campo, não deixaram de crer e de servir ao "socialismo" ao qual, hoje, se pretende que elas reneguem. Quem fala, e com qual direito, em nome dos mortos?

Mas a maior parte dos ex-soviéticos ainda vivos não conheceu os tempos piores. Evocam os quarenta anos vividos depois da guerra e da morte de Stalin. Um artista se lembra da atmosfera doa nos 1960: "Eu idealizo, talvez, mas havia na época um entusiasmo otimista no país. Não falo de política, mas do clima moral das pessoas que me cercavam. O impulso dado pelos Beatles revelou a aspiração ao amor, que teve seu auge com o movimento hippie. Era um tempo luminoso que me ensinou a viver olhando o futuro com otimismo". Choque e conivência com referências imprevisíveis: uma em compasso com os ideais oficiais ("o futuro com otimismo"), a outra com uma cultura não-conformista (os Beatles).

A confiança nas perspectivas de um país em pleno arranque, onde ninguém tinha medo do dia seguinte, coexistia com o apoliticismo e as tentações de uma cultura alternativa. Outros, contestadores do regime de Brejnev, sentem falta do tempo em que se refazia o mundo nas cozinhas. "O futuro ainda não tinha acontecido" - e ele seria, sabemos, bem decepcionante. Quantos dentre eles, depois de 1991, retiraram-se da cena, doentes, deprimidos ou mortos de tristeza ao ver o que produziu a mudança tão esperada?

"Os novos chefes não dão crédito aos chestidisiatniki, as pessoas dos anos 1960", conta Vassili Jouravliov, "porque esses são para eles uma reprovação viva". Pois foi sobre suas costas que os oligarcas e outros homens de negócios alçaram-se ao poder(20)". Antigos jovens - que não eram nem militantes, nem contestadores, nem intelectuais ou quadros do partido, mas simplesmente ávidos de viver plenamente - haviam deixado o conforto urbano pelas "grandes construções" dos anos 1950-1980, por romantismo ou atraídos pela recompensa. A construção da "cidade de sábios" em Novossibirski, as grandes centrais sobre os rios siberianos, os complexos industriais de Togliatti e em Kama, o segundo transiberiano, o BAM, deixaram neles, quase sempre, lembranças de uma juventude intensa, apesar do sentimento comum hoje ser de imenso desperdício.

Outros voltaram marcados de uma aventura abominável: a guerra do Afeganistão, da qual os mutilados, de mais ou menos 40 anos, falam nas ruas e no metrô. E a geração jovem "retornada da Chechenia", outra abominação, já toma o seu lugar. Porém, a maioria não participou de engajamentos tão fortes. Viveu, simplesmente, imersa em um modo de vida, de relações sociais, em uma cultura da qual separou-se com dor. Nascido em 1961, o escritor ucraniano Andreï Kourkov fala, a seu modo, de algo que não era raro: "Essa sociedade era fundada na amizade. Era possível bater na porta dos vizinhos, se precisasse de dinheiro, eles o emprestariam. Depois da queda, toda essa solidariedade ruiu (...) As pessoas que nasceram logo depois da queda, que têm 20 anos, adaptam-se muito rápido. Para a minha geração, a solidão é a doença da época. Perdi muitos amigos. Muitos suicidaram-se, outros emigraram(21)".

Lembrança de relações de convivência, ou vivacidade de uma cultural social ainda perceptível nas resistências à liberalização? A estudiosa Lioudmila Boulavka relata testemunhos dos meios operários comprometidos nos recentes movimentos de protesto: os militantes julgam com severidade suas próprias ilusões dos anos 1989-1991 (o apoio aos democratas), sentem uma perda dolorosa com o final da URSS, não aceitam que os patrões façam a lei sem consultá-los, querem crer ainda que "o Estado, somos nós", permanecem ligados a uma cultura de consenso e de paternalismo social(22).

Todo um continente de conhecimentos falta aos ocidentais para que eles compreendam o que é essa "perda" tão sentida: o universo de uma cultura, a densidade de uma vida social que não podem ser enquadrados com nenhuma ideologia. Onde classificar, nas suas gavetinhas, tanto a vanguarda quanto a cultura popular de massa que marcou gerações, as comédias musicais de Alexandrov e o jazz de Utesov, o humor de Ilf e Petrov, as aventuras do soldado Vassili Tiorkine, os personagens "aos pares" do cinema de Vassili Choukchine, a arte amadora dos clubes de fábricas e vasto movimento das canções de compositores, a "contestação" de massa mais importante nos anos 1960-1980? Onde situar a recente decisão dos bardos não-conformistas de todas as idades de consagrarem como "canção do século" a balada "Grenada" de Mikhaïl Svetlov, "poeta do Komsomol" dos anos 1920? Será possível transmitir mensagens dessa Atlântida que realmente existiu?

Uma pesquisa realizada com o concurso da fundação alemã Friedrich Ebert, e dirigida por Mikhail Gorchkov(23), mostra a que ponto a "reabilitação da URSS" procede de uma reflexão amadurecida, sem estereótipos. Ela revela o fracasso do poder e das mídias na sua tentativa de apresentar os setenta anos soviéticos como um "pesadelo", estimando, até, que a pressão exercida nesse sentido esgotou seus efeitos. As avaliações diferem, contudo, segundo os períodos propostos e a idade das pessoas que respondem à pesquisa.

"Os crimes do stalinismo não podem ser de forma alguma justificados" - é o ponto de vista de 75,6 % entre 16-24 anos; de 73,5% de 25-35 anos; de 74% de 36-45 anos; de 66,8% dos 46-55 anos; de 53,1% dos 56-65 anos. "As idéias marxistas eram justas": as respostas positivas variam, dos mais jovens aos mais velhos, de 27,4% a 50,3%. "A democracia ocidental, o individualismo e o liberalismo são valores que não convêm aos russos": esta opinião e aprovada por 62,9% dos 56-65 anos, mas apenas 24,4 % dos 16-24 anos. Entre as "razões de orgulho", cerca de 80 %, em todas as categorias de idade, citam a vitória de 1945. Quem tem mais de 35 anos escolhe em segundo lugar a reconstrução do pós-guerra, os mais jovens (16-35) citam "os grandes poetas russos, os escritores, os compositores". Em média, 60% citam as explorações das viagens espaciais. A afirmação segundo a qual "a URSS foi o primeiro Estado de toda a história da Rússia a assegurar a justiça social para as pessoas simples" é escolhida pela maioria das pessoas com mais de 35 anos, 42,3 % entre 25-35 anos, e apenas 31,3 % entre 16-24 anos.

Entre as características dos diferentes períodos, a maioria dos participantes designa principalmente: o período do Stalin seria a era da disciplina e da ordem, do medo, dos ideais, do amor à pátria, de um desenvolvimento econômico rápido; o período do Brejnev: proteção social, satisfação, sucesso na ciência e na técnica, ensino, confiança entre as pessoas; e o período atual: criminalidade, incerteza do futuro, conflitos entre nações, possibilidade de enriquecer, crise e injustiça social. As pessoas de opinião liberal concordam com um balanço positivo da era Brejnev (25%), entre os comunistas (45,9%); com um balanço negativo da era Yeltsin (21%), entre os comunistas (59%).

Quanto ao futuro, uma ampla maioria pronuncia-se a favor de uma gestão estatal dos grandes setores da economia, do ensino e da saúde; só reconhecem o valor da gestão mista (com o setor privado) nos campos da alimentação, da moradia e das mídias. Uma maioria (54%) "escolheu uma sociedade de igualdade social" e definiu como o principal caráter da democracia "a igualdade dos cidadãos diante da lei".

Evolutiva, a visão do passado é, portanto, filtrada pela experiência de "reformas de mercado", cujo caráter desastroso é, entretanto, amplamente reconhecido. A primeira inspiradora dessas reformas, a socióloga Tatiana Zaslavskaïa(24), estima que os trabalhadores são "ainda mais alienados da propriedade e privados de direitos do que na época soviética. (...) A produção não está apenas reduzida, mas degradada do ponto de vista estrutural e tecnológico. (...) Setores que asseguravam as necessidades sociais na época soviética e aumentavam, ainda que modestamente, a qualidade de vida da população, hoje se degradam cada vez mais. As conquistas democráticas da época da perestroïka e da glasnost estão em perigo. (...) A polarização da sociedade tomou um vulto colossal: de 20 a 30% da população vivem sérias privações, habitam moradias em ruínas, têm fome, são doentes e morrem prematuramente".

O economista liberal Grigori Iavlinski fala de "desmodernização" da Rússia, o ecologista Oleg Ianitskii de "sociedade de todos os riscos". "Vivíamos atrás da cortina de ferro", explica o historiador Viktor Danilov. "Ignorando as realidades exteriores, acreditávamos viver na miséria do nivelamento. Agora que a cortina de ferro caiu (...) sofremos a provação da verdadeira miséria. Sabemos, hoje, que na época soviética, não vivíamos na miséria, mas numa "suficiência" nivelada, ainda que baixa. O sistema de saúde e de ensino era acessível a todos apesar dos privilégios dos ?servidores do povo? As filas existiam para que cada um pudesse ter o necessário, o que não é mais acessível, hoje, para a maioria".

Segundo Danilov, para muitos, "sem dúvida abriram-se as portas para o mundo externo, mas portas blindadas foram postas entre as pessoas". Nunca a "atomização" atingira um tal grau. Além dessas tristes constatações, não faltam, na Rússia, reflexões interessantes sobre o passado, o futuro e as possibilidades de desenvolvimento. Mas esse universo muito plural do pensamento russo é ignorado pelo Ocidente, onde só se repercutem os pontos de vista liberais ocidentalistas.

O patriotismo refigurado nutre-se, no entanto, do ressentimento da decadência, da miséria, da nova "imagem do inimigo" - o "terrorista" árabe-muçulmano - criado em conjunto com o Ocidente civilizado com o qual identifica-se. O clima não é mais de "anti-imperialismo", mas de xenofobia "petit blanc(25)" em relação a povos ainda mais desfavorecidos, o Sul ameaçador. É paradoxal: muitos lamentam, ao mesmo tempo, a falta do espírito de amizade que reinava nas comunidades multinacionais soviéticas de operários e estudantes e deploram a criação de novas fronteiras, os entraves políticos e financeiros que afetam a liberdade de viajar, as famílias e os amigos que se deslocaram. Aceita-se o massacre dos chechenos ao sabor do filme cult dos anos 1930, Le Cirque, no qual o ator judeu Salomon Mikhoels, assassinado por Stalin, canta uma canção de ninar yiddish a uma criança negra arrancada das garras do racismo americano!

A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população não se confundem com seus diferentes usos políticos. A realidade exclui um "retorno ao sovietismo": a liquidação do sistema social soviético, as privações, o papel do dinheiro e as pressões do mundo exterior "globalizado" atingiram um ponto em que não há mais volta. E, se as tradições de potência, burocráticas e policiais, foram reativadas por necessidades internas do poder e do controle do petróleo, o mesmo se dá no contexto internacional no qual o exemplo da militarização, da cultura securitária é estadunidense, venerado pelos novos russos.

Entre as "reabilitações", o presidente Putin não esqueceu Pedro, o Grande, o reformador liberal autoritário Piotr Stoypine, sob Nicolau II, nem a muito atual Igreja Ortodoxa. O Kremlin tem como emblema a águia imperial bicéfala coroada. O ídolo da nova burguesia é um veado de ouro, verde como o dólar.

Quando ao casal de Vera Moukhina, empunhando ainda as ferramentas do comunismo, a novidade da sua reforma não deve assustar os liberais: quando eles estiverem novamente em pé, orgulhosos e petrificados no seu entusiasmo pelo futuro do passado, o operário e a camponesa kolkosiana deverão ser postos em um pedestal ainda maior, digno dos novos tempos. Diante de um shopping center.

(Trad.: Teresa Van Acker)

1 - A imagem do casal comunista aparecia na primeira tela dos filmes dos estúdios Mosfilm.
2 - Aniversário da "Grande Revolução Socialista de Outubro de 1917"
3 - Sobre a música de Boris Alexandrov, o hino que substituiu a Internacional e foi abandonada pela URSS em 1991, foi restabelecido pelo Duma em 8 de dezembro de 2000, com uma nova letra "patriótica" composta por Serguei Mikhalkov, que já havia escrito a do hino soviético.
4 - Andréi Koslesnikov, Izvestia, Moscou, 5 de junho e 14 de agosto de 2001.
5 - 48% dos russos vêm no fracassado golpe militar conservador e no golpe de Estado bem-sucedido de Boris Yetsin apenas um "episódio da luta pelo poder", 31% classificam os fatos como"acontecimentos trágicos", 10% somente uma "vitória da democracia". Seu segundo aniversário, em 2001, não foi celebrado.
6 - Os antigos magnatas Vladimir Goussinski (mídias), refugiado na Espanha, Boris Berezovski (automóvel, petróleo, mídias, finanças do Kremlin), "refugiado político" na Grã Bretanha, Mikhail Klodorkovski (petróleo Yukos), preso.
7 - O Comissariado do povo nos Negócios do Interior (NKVD) era a polícia política no período de Stalin. Foi substituído, em 1954, pelo Comitê de Segurança do Estado (KGB), e depois, perto do final da URSS, pelo Serviço Federal da Segurança (FSB).
8 - Esta denominação é dada a grupo de homens das forças armadas, das polícias e da informação.
9 - O partido liberal União das forças de direita e a Fundação Soros promoveram uma edição do Livro Negro do Comunismo, do francês Stéphane Courtois.
10 - Ler , URSS, une société em mouvement, L’Aube, La-Tour-d’Aigues, 1988.
11 - Izvestia, 26 de março de 2002. Falava da re-abilitação, na Ucrância, da divisão SS Galitchina
12 - Ten ’Pobedy, Moscou, 2002.
13 - Nezavíssimaïa Gazeta, Moscou, 9 de novembro de 1995
14 - Ler Karine Clément, Les Ouvriers russes dans la tourmente du marché, Syllepse, Paris, 2000.
15 - Ler Pierre Lepape, " Le goulag selon Chalamov ", Le Monde diplomatique, dezembro de 2003
16 - Les Années vingt, éditions Verdier (Paris), que também publicam integralmente os Récits de la Kolyma (2003).
17 - Lioudmila Boulavka, une Russe dans le siécle, La Dispute, Paris, 1998.. Les Années vingt, éditions Verdier (Paris), que também publicam integralmente os Récits de la Kolyma (2003).
18 - Golosa Krest’ian, Selskaïa Rossia XX veka v krest íanskikh memuarakh, Aspekt Press, Moscou, 1996.
19 - Ler Pierre Broué Communistes contre Staline. Massacre d’une génération, Fayard, Paris, 2003.
20 - Litteraturnaüa Gazeta, Moscou, 6-12, março de 2002.
21 - Entrevista sobre seu livro Le Pingouin (Liana Levi, Paris, 2000), in " Le matricule des anges", www

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