terça-feira, 9 de abril de 2013

Joel Silveira e "A Feijoada que derrubou o governo"

“Quando Sergipe acerta, é assim. Acertou com Tobias (Barreto), com Sílvio (Romero), com João Ribeiro e com Seixas Dória”, escreveu uma vez Joel Silveira, considerado por muitos o maior repórter que o Brasil já teve. E que é também, evidentemente, merecedor de constar na lista por ele mesmo elencada, gerado que foi no ventre do menor estado da federação.

Natural de Lagarto, município localizado na região centro-sul do estado, Joel partiu muito cedo, aos 19 anos, para o Rio de Janeiro, onde desenvolveu seus dotes de escritor e teve uma brilhante carreira como jornalista. Escreveu na revista Diretrizes, semanário de propriedade de Samuel Wainer, onde permaneceu até a redação ser fechada pelo DIP, em 1944, e também para os Diários Associados, Última Hora, O Estado de S. Paulo, Diário de Notícias, Correio da Manhã e Manchete. Publicou cerca de 40 livros. Foi agraciado com o prêmio Machado de Assis, o mais importante da Academia Brasileira de Letras, em 1998, pelo conjunto de sua obra. Foi ganhador dos prêmios Líbero Badaró, Prêmio Esso Especial, Prêmio Jabuti e o Golfinho de Ouro. Pouco antes de falecer, foi homenageado do Segundo Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, realizado entre os dias 17 e 19 de maio de 2007 pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Por conta de problemas de saúde, foi representado pela filha. Morou em Copacabana, no Rio de Janeiro, até sua morte, em 2007.

Tinha um estilo próprio - literário, intimista, poético até. Frequentemente externava, em suas reportagens, seus sentimentos interiores quanto a determinado acontecimento, como em “A Feijoada que derrubou o governo”, que dá título a uma coletânea de seus escritos lançada há cerca de 9 anos. Nela, ele descreve seu pesar diante dos fatos acontecidos no dia primeiro de abril de 1964, quando o golpe militar gestado por décadas pelas forças conservadoras e reacionárias finalmente triunfa. Caminhando a esmo, desiludido, pelas ruas do Rio de janeiro, já então tomadas pelos milicos, não consegue entender o retumbante fracasso dos que defendiam o governo de João Goulart, tão confiantes de seu poder de fogo apenas alguns dias antes, numa festa à qual comparecera e na qual fora servida uma robusta feijoada.

Joel era um homem de esquerda. Foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro. E é com este olhar, aliado a um afiado senso crítico e estético, que ele nos presenteia com textos emocionantes, como o que retrata outra data pesarosa: o dia em que foi revelado ao mundo o vergonhoso pacto de não-agressão entre a União Soviética e a Alemanha nazista. O final da narrativa é antológico: nele, respondendo a um amigo que o convida a ficar na praia até o raiar do sol, ele responde com uma pergunta: “que sol?”.

Destaco também a reportagem em que o sergipano auto-exilado (fugiu do reacionarismo do pai) enfoca o torpedeamento de navios brasileiros por submarinos alemães na costa de seu estado natal; a que descreve uma viagem feita por ele ao país Basco, que serve como ponto de partida para uma brilhante análise sobre a origem e a conjuntura na qual se encontrava a luta pela emancipação daquela região da Espanha; sua passagem pelo campo de batalha da FEB na Itália, para o qual foi enviado por Assis Chateaubriend com a recomendação de que “não morresse”; o registro da decadência do movimento integralista brasileiro, visto através de uma reunião do que restou dos “camisas verdes” numa tarde modorrenta do Rio de janeiro durante o regime do Estado Novo de Getúlio; e o antológico único encontro que teve com o próprio, Vargas. O presidente, que já não era de conceder entrevistas, estava acossado pela mídia conservadora, portanto ainda mais arredio às investidas da imprensa. Joel, às voltas com a editoria de uma publicação à beira da falência, chega à conclusão de que uma exclusiva com “o velho” seria uma boa saída para seus problemas financeiros, e se utiliza da amizade que tinha com o ex-Ministro da propaganda (uma espécie de Joseph Goebbels tupiniquim) e então Chefe da casa civil, Lourival Fontes, também sergipano, para marcar o encontro, dando a entender que se tratava de um outro assunto qualquer, muito provavelmente um pedido de emprego. A sós com o ex-ditador, ele finalmente saca de seu caderninho de anotações e dispara as primeiras perguntas, abruptamente interrompidas por seu irritadíssimo interlocutor, que se retira batendo a porta e sem se despedir. O jornalista, no entanto, faz do fracasso um triunfo, e escreve uma brilhante reportagem que narra toda a trama de sua mal sucedida empreitada, encerrada com um porre no bairro boêmio da Lapa.

Mas as cerejas do bolo são, sem sombra de dúvidas, os perfis de personalidades redigidos pelo escriba ao longo do tempo. O livro começa com o resgate de alguns personagens hoje secundários e mais ou menos esquecidos, porém bastante interessantes e relevantes em sua época , a da revolução de 30, e avança com a descrição de encontros que teve com os ex-presidentes João Goulart, Janio Quadros e Juscelino Kubitcheck.

Do primeiro, destaca seu jeito pacato e cordato: era um estancieiro, grande proprietário de terras, que no entanto vivia o dia-a-dia da labuta no campo junto aos vaqueiros e demais empregados. Quando entrou na política, a partir da indignação que teve ao notar o abandono ao qual foi relegado seu vizinho e amigo de longa data, o ex-presidente Getulio Vargas, então alijado do poder, era de trato igualmente simples, recebendo as pessoas – dentre elas o próprio Joel - em seu apartamento de forma absolutamente despojada: com os pés descalços, sem meias, e com a prataria esperando por limpeza na pia, de onde ele mesmo preparava o cafezinho para os visitantes.

Joel foi mais próximo de Janio Quadros, e talvez por isso se esforce – sem muito sucesso – em desvendar os meandros labirínticos do pensamento eminentemente contraditório do esquivo mandatário. Os motivos da renuncia são insistentemente analisados, mas continuam, depois da leitura, um dos maiores mistérios da História política do Brasil. Foi mais fácil lidar com Juscelino, que não parecia querer muito mais do que tocar sua fazenda nos arredores de Brasilia, visitada por Joel poucos dias antes do suspeito acidente que resultou na morte do “presidente bossa-nova” – menos um calo no pé dos generais encastelados no poder.

Já havia lido o volume que reúne algumas de suas mais memoráveis crônicas de comportamento, como a que lhe dá título, "A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista". Admirava também a velha víbora pelas muitas entrevistas por ele concedidas que li ao longo do tempo (algumas delas reproduzo abaixo), mas foi este “A Feijoada que derrubou o governo” (2004, Companhia das Letras, brochura, 216 páginas) que me fisgou de vez. Virei fã.

Estou apaixonado por Joel Silveira.

por Adelvan k.


* * *

É verdade que o presidente Getúlio Vargas só recebeu você no Palácio do Catete porque pensava que você iria pedir um emprego?
Joel Silveira: “Certamente, porque, como já estava no final do governo, ele não daria entrevista de maneira nenhuma. Getúlio não era de dar entrevista: mandava Lourival Fontes (chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda) dar. Nunca deu entrevista, a não ser aquela ao Samuel Wainer. Aliás, Samuel praticamente escreveu aquela entrevista. A verdade é que Getúlio Vargas era intelectualmente preguiçoso. Gostava era de assinar papel, nomear, demitir. Mas me recebeu muito bem, no gabinete presidencial, no Palácio do Catete. Chamou-me de “doutor”. Eu disse: “Presidente, não sou doutor; só fiz o primeiro ano de Direito.” E ele: “Não”! O senhor é doutor! Os padres de São Leopoldo, onde estudei, diziam que doutor é quem é douto em alguma coisa. O senhor é douto em jornalismo.” Já estava me corrompendo… Tinha uma conversa amena, agradável. Era limpo. Nunca vi um sujeito tão limpo em minha vida. A camisa, branca, era imaculada. “Aliás, ele estava todo de branco, em penteado, bem barbeado”. 

Por que é que você prestou atenção nas mãos do presidente?
Joel Silveira: “Notei que as mãos do presidente eram macias, fofas. Getúlio só me cumprimentou na entrada. Terminou me dando as costas na saída. Simplesmente foi embora. Quando eu lhe passei um questionário – e ele viu que o que eu queria era uma entrevista – Getúlio se transfigurou. Aquela cara risonha despareceu. O homem virou uma fera. Jogou o papel assim, na mesa: “O senhor entrega isso ao doutor Lourival”. Em seguida, levantou-se daquela cadeirona pesada – e sumiu”. 

Você acompanhou do início ao fim os horrores da ditadura do Estado Novo. A imagem de Getúlio, pessoalmente, confirmou ou desmentiu tudo o que você esperava?
Joel Silveira:
“Confirmou. Vi que ele tinha empatia, era simpático. Ficava de vez em quando vesguinho quando fumava aquele charuto. Era um malandro, um filho da mãe de uma habilidade política terrível.”. 

Você sentiu, neste contato com Getúlio, que ele sabia ser envolvente?
Joel Silveira: “Getúlio envolveu todo mundo. Não era corrupto: era corruptor! Era pessoalmente um homem honesto – tanto assim que morreu pobre, não deixou fortuna nenhuma, não deixou dinheiro, não deixou propriedade, não deixou nada. Mas corrompia. Era um craque na maneira de corromper. Também era muito cioso do dinheiro público. As pessoas tinham que prestar contas. Saí do Palácio de mão abanando, sem a entrevista, mas pelo menos aquele encontro me rendeu uma matéria: conheci Getúlio Vargas”. 

Que imagem você guardou de Juscelino Kubitscheck?
Joel Silveira: ”Era um sujeito extremamente simpático”. Um mês antes de Juscelino morrer, fui fazer uma entrevista com ele em Luziânia, perto de Brasília, onde ele tinha uma fazendinha, um sítio que ele chamava de fazenda. Juscelino era muito vaidoso, cuidava da imagem, pintava o cabelo. Dona Sara Kubitscheck me contou uma coisa tristíssima. Numa hora, durante minha permanência na fazenda, Juscelino teve de sair. Eu e Dona Sara ficamos conversando, na varanda. Neste momento, ela me disse que, logo depois do golpe militar, numa das prisões, os militares deixaram Juscelino
Vinte dias sem aquela tinta que ele usava para pintar os cabelos. Porque ele pintava diariamente. Fotografaram Juscelino com o cabelo com cores indistintas, marrom, um monstro. Fizeram de propósito – uma sordidez. “Era uma revolução de pequenos”. 

É verdade que você roubou uma namorada de Juscelino?
Joel Silveira (de repente, monossilábico):
“Foi”. 

Você pode contar como foi?
Joel Silveira: “Ela era taquígrafa da Câmara. Ele queria levá-la para Minas…”. 

Juscelino namorava com ela?
Joel Silveira: “Namorava”. 

Você tomou a namorada de JK?
Joel Silveira (com voz sumida): “Tomei” 

Por quê?
Joel Silveira:
“Porque ela simpatizou comigo, essas coisas”. 

Juscelino soube disso?
Joel Silveira: “Soube; ela foi a ele”. 

Isso teve alguma influência no tratamento que Juscelino dispensou a você quando chegou á presidência?
Joel Silveira: “Não. Uma vez, numa conferência de chefes de estado latino-americanos no Panamá, eu estava sentado, num hotel bonito. De repente, quem aparece? Juscelino. Veio em minha direção. Ficou falando da inutilidade da reunião. Lá pelas tantas, ele disse: “Como vai a nossa Fulana?”. Eu disse: “Nossa não, presidente.” E ele:” Não, a nossa amiga.” Foi só isso. Porque tinha sido muito recente”. 

Você viajou com Jânio Quadros de navio para a Europa, quando ele era apenas presidente eleito. A fama que ele tinha-se ser um beberrão – é justa?
Joel Silveira:
“Completamente injusta! Que ele bebia, bebia- e muito! – mas nunca o vi bêbado. Quando estava nos palanques, Jânio fazia aquela encenação do cabelo despenteado, caído no olho, caspa no paletó… Mas vi na viagem á Europa com ele, que aquilo tudo era teatro, uma maneira de ganhar voto. Eu estive dez dias com ele no navio. Bebíamos toda noite. Jânio bebia três vezes mais do que eu, misturava uísque com uma cerveja – Guiness -, forte pra burro. Mas, na intimidade, ao contrário do que ocorria no palanque, estava sempre bem-vestido, limpo, bem penteado, lúcido, bem articulado. Quando bebia, Jânio nem a fisionomia mudava. Era do ramo”. 

Há um descompasso entre a figura pública e a figura pessoal desses grandes nomes da história republicana brasileira. Partidários de João Goulart, como o escritor Antônio Callado, diziam que ele não tinha estatura para ser presidente: ele seria no máximo presidente do PTB. Que avaliação você faz sobre João Goulart, hoje, quatro décadas depois de 64?
Joel Silveira: “Jango era um pobre homem, um estancieiro de poucas, pouquíssimas letras. Não era um político, foi invenção do Getúlio. Nem gostava do Rio de Janeiro, mas soube se cercar de gente boa. O ministério que Jango formou tinha um Evandro Lins e Silva, um Hermes Lima, um Celso Furtado, um Santiago Dantas, Tancredo Neves, eram pessoas da maior qualidade. Mas Jango não tinha consistência, não tinha habilidade política, não era um Getúlio. Depois, criou a fama de comunista. Um encontro longo que tive com Jango ocorreu no apartamento que ele tinha na rua rainha Elizabeth, no Rio. O que encontrei foi um sujeito extremamente simpático – simplório, até. O apartamento era modesto. Lá estava Jango bebendo uísque com aquela perna sempre estirada. Não conseguia dobrar a perna, tinha tido gonorreia óssea, ficou com um defeito. Neste dia, Jango me contou que, no final do governo de Getúlio, em 1954, quando a crise engrossou de verdade mesmo, Getúlio o chamou para um canto e mandou que ele, Jango, fosse embora: “És o segundo visado. Então, vá embora.” Deu a ordem. Em seguida, deu a Jango um envelope fechado. “Só abras isso quando chegares lá.” Jango, então, foi embora. Um amigo o acordou na manhã seguinte: “Tenho uma péssima notícia para te dar. Getúlio se matou”. Somente aí é que Jango se lembrou do papel que Getúlio tinha lhe dado. Abriu o envelope. Lá estava uma cópia da carta-testamento. Getúlio esperava que Jango divulgasse a carta no Rio Grande”. 

Com quais dos presidentes militares você teve contato?
Joel Silveira: “Tive com Castelo Branco, na FEB, durante a guerra, na Itália. Diariamente eu me encontrava com ele. Eu recebia jornais daqui do Rio que chegavam á Itália com atrasos de um mês, cinco semanas. Castelo me pediu jornal emprestado. Quando ele foi entronizado como ditador, em 1964, mandou, através de Rachel de Queiroz, um recado para mim e para Rubem Braga, que também esteve na guerra na Itália: gostaria muito de nos ver. Mas eu e Braga conversamos. Chegamos á conclusão de que não dava. Não tínhamos nada a fazer lá”. 

Você testemunhou um encontro secreto de Tancredo Neves -já presidente eleito – com um general de quatro estrelas, aqui na sua casa, mas não publicou nada sobre o assunto. Por quê?
Joel Silveira:
“O que aconteceu foi o seguinte: eu era, desde os tempos da FEB, na guerra, muito amigo do general Ernani Ayrosa – que chegou a ocupar o ministério do exército durante o regime militar. O general frequentava a minha casa. Um dia, quando o Tancredo já tinha sido eleito presidente, o general veio á minha casa: “Preciso falar muito com o presidente! Você o conhece?”Eu disse: “Conheço de vista, mas não tenho intimidade. Mas tenho uma pessoa que o conhece bem”. Era José Aparecido de Oliveira, a quem avisei imediatamente. José Aparecido me ligou de volta, depois de falar com Tancredo: “Pode marcar o encontro.” Eu perguntei: “Mas em que lugar?” Ele disse: “Em sua casa.” Eu me assustei: “Mas não tenho condições de receber um presidente da república e um general de quatro estrelas.” E ele: “Mas tem que ser aí. Não fale com ninguém.” Aliás, foi um pedido que Ayrosa também fez. Arrumei, então, o quarto onde trabalho. Eu sabia que Tancredo bebia uísque, sabia que Airosa só bebia leite. Arrumei uma mesinha, botei salgadinhos – e os dois se trancaram lá, sozinhos. Tancredo só saiu do quarto para ir ao banheiro. De repente, quem irrompe no apartamento? Quem? Paulo Francis! Ninguém sabe até hoje como é que Paulo Francis soube. Logo Paulo Francis começou a ditar regras sobre o que é que Tancredo devia ou não devia fazer. Ficou aquele mal estar…José Aparecido olhava para mim como se eu é que tivesse avisado ao Paulo Francis, a quem eu não via há tempos. E eu pensando que José Aparecido é que tinha avisado. É um dos mistérios da minha vida essa história do Paulo Francis. Não tenho a menor ideia sobre o que é que Tancredo Neves conversou em sigilo com o general. Tenho a impressão de que nem Aparecido sabe”.

Em algum momento, você, que sempre foi repórter, sentiu aquele impulso de publicar a notícia do encontro?
Joel Silveira: “Não. Porque ali eu não estava os recebendo na qualidade fde repórter, mas de anfitrião. Eu jamais faria isso! Um dia depois, e ligaram não se foi do Jornal do Brasil. Perguntaram: “O que Tancredo foi fazer em sua casa?”. E eu: “Quem me dera…”. 

Que tal Fernando Henrique Cardoso?
Joel Silveira: “É o tipo do presidente que sabe falar, mas não sabe dizer. Fala, mas não diz. Nunca vi falar tanto, sobre qualquer assunto. Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola. Tenho a impressão de que todo dia, ao acordar, logo de manhã, Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta: “Por favor, qual é o mote de hoje?”. O assessor diz -por exemplo- “indústria siderúrgica”. E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo. Um dia depois, muda de mote. E assim por diante, até o fim dos tempos”.

Você gosta de citar uma tirada do poeta Murilo Mendes, católico, que dizia: “Deus existe, mas não funciona.” Você, que se declara ateu, teve a chance de conhecer pessoalmente pelo menos três papas. O que é que ficou desses encontros?
Joel Silveira:
“Conheci Pio XII quando ele já era papa, conheci João XXIII – quando ele era cardeal de Veneza-, conheci Paulo VI, quando ele era cardeal em Milão. Com Pio XII eu tive uma decepção terrível. Fui levado ao Vaticano pelo marechal Mascarenhas de Moraes, durante a guerra. O comando da FEB pediu uma audiência ao Papa. Mascarenhas me perguntou: “Você não quer ir? “E eu: “Quero conhecer um Papa! Eu nunca tinha visto um, pessoalmente “Aquela coisa austera, aristocrática. O Papa – que era poliglota – disse assim: “Brasileiros? Língua muito rica! Sábia é a mulher do sábio. Sabia é tempo de verbo. Sabiá é passarinho – pi, pi, pi, pi, pi, pi.” E foi embora! “Poliglota”! É como esse Woytila-que decora aquelas coisas, diz que sabe 800 idiomas. Não sabe. Mal sabe o italiano. Fala um italiano horroroso, com sotaque polonês. Já o meu encontro com o cardeal Montini, que viria a ser o Papa Paulo VI, ocorreu na Nunciatura de Milão. Fui entrevistá-lo não porque ele era cardeal de Milão, mas porque era candidato a Papa, um “papabile”, como se diz. Fez, sobre o Brasil, aqueles comentários que todo mundo faz, “país grande e belo”. João XXIII era uma simpatia, largadão, barrigudão. Eu ouvia sobre ele, em Veneza, comentários interessantes. Quando ele foi para o conclave que escolheria o novo Papa, ele só levou uma muda de roupa e a escova de dente, porque pensava em voltar no dia seguinte. Mas terminou eleito – um sujeito fabuloso. Quando estive com ele, notei como era tranquilo, bonachão, com orelhas enormes, deixa você logo á vontade. Queria saber de tudo. Perguntava mais do que ouvia. Queria conhecer a floresta amazônica. Ele é que me entrevistou”.

O que é que ficou da convivência com Nélson Rodrigues?

Joel Silveira: “Uma vez, na redação da Última Hora, eu estava escrevendo à máquina, depressa, porque, no fundo, o que sou mesmo é um bom datilógrafo. Lá estava eu escrevendo, com os dez dedos. Nélson chega, fica em pé diante de minha mesa, em silêncio. De repente, diz: “Patético!”. E vai embora. Eu, então, fui até a mesa onde ele trabalhava, fiquei uns dois ou três minutos olhando em silêncio e disse: “Dramático!”. Eu não tinha nada contra Nelson Rodrigues, mas não gosto daquela coisa escatológica que ele cultivava. Nelson Rodrigues, no fundo, era, na vida pessoal, um homem de um moralismo atroz. Não bebia, não fazia farra, não tinha amantes. 

Você escreveu que “o cúmulo do ridículo, beirando o grotesco, é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”…
Joel Silveira: “É de um ridículo atroz, uma coisa horrorosa, meu Deus do céu…”.

Depois de conhecer tanta gente, inclusive famosa, que outros tipos você incluiria na antologia do ridículo?
Joel Silveira: “Todo turista é ridículo, com aquelas bermudas, fotografando tudo. Turista japonês, então, é o cúmulo do ridículo, com cinco máquinas fotográficas. Há duas espécies humanas que acho de um ridículo atroz: primeiro, é o turista, universal, em qualquer lugar. Depois, é o torcedor fanático, aquele que chora e come o dedo: é de um ridículo absoluto”.

Que tal um ônibus cheio de turistas, no exterior, cantando “ô-lê- lê,ô-lá-lá,…”
Joel Silveira : …”Pega no ganzê, pega no ganzá”…Vi um dia duas velhas mineiras, senhoras de uns cinquenta anos, conversando na loja da Varig, em Paris, na Champs Elysée. Uma dizia á outra : “Fulana, tem tido notícias de Juiz de Fora?” A outra: “Não.” “E o que é que você tem achado de Paris?” “Ah, uma cidade bonita, mas não é a nossa Juiz de Fora.” Você ter de ouvir isso: “Não é a nossa Juiz de Fora !.”

Você também escreveu: “Pode haver algo mais idiota do que um alpinista? “
Joel Silveira : “Não pode ! Precisa ser um débil mental. Para que subir aquela montanha, se de avião você vê tudo aquilo ? Por que não vai de helicóptero ? O que é que o alpinista quer provar com aquilo? Você não viu aquela mulher que despencou lá de cima de uma montanha ? Não tive pena nenhuma. Só lamento porque ela deixou um filho. Mas ela queria provar o quê? O alpinista se mata para chegar ao cume do Everest, mas vai encontrar o quê? Chegou lá, o que é que tinha? “Ah, tinha o cume do Everest”. Para ver, basta passar de avião, qualquer Boeing de carreira passa por cima, tranquilamente. Aliás os esportes – de certo modo – têm o seu lado ridículo : querer disputar, jogar uma flecha mais longe, dar um pulo maior do que outro. Isso é coisa de bicho de floresta. É coisa de macaco”. 

Um dos seus amigos, que você cita num livro que vai sair agora como um “bom escritor”, disse que não conseguia de jeito nenhum passar da página noventa e dois do romance “Vermelho e o Negro”, porque a história “tinha gente demais e ninguém ficava parado”. Que amigo escritor era esse ?
Joel Silveira :
“Rubem Braga – que escrevia muito bem, era um prosador nato. E todo prosador nato vai querer ler Stendhal. Eu não estava pedindo a ele que fosse ler “Guerra e Paz” em russo. Pedi que lesse Stendhal. Comprei uma edição bonita de “O Vermelho e o Negro”. Quinze dias depois, ele me disse: “Parei. É gente demais”. Não conseguiu terminar”. 

Qual foi o grande livro que você não conseguiu terminar?
Joel Silveira : “Eu li muito Dostoievski, mas nunca consigo chegar até o fim de os “Irmãos Karamazov” .Os outros eu li, “Crime e Castigo”, “O Jogador” é fantástico, maravilha de síntese. Mas” Irmãos Karamazov” não dá “… 

Quem é o grande escritor chato?
Joel Silveira : “Um grande escritor chato é esse Günter Grass. Terminou ganhando o Prêmio Nobel. É chato de doer, complicado, tortuoso. Mas, quando lê com atenção, você vê que aquilo é literatura mesmo. Outro que é muito chato é Thomas Mann. Eu leio, mas é difícil”. 

João Gilberto, o cantor, disse que “vaia de bêbado não vale”. Você -que já bebeu mas hoje é um primor de sobriedade – vaiaria quem no Brasil de hoje, já que vaia de sóbrio vale ?
Joel Silveira : “Em primeiro lugar, quero dizer que acho João Gilberto uma das sete pragas do Egito – e do Brasil. Só diz besteira, porque é analfabeto. Nunca leu um livro. Disse: “Vaia de bêbado não vale.” Ora, só vale ! “In vino, veritas.” O provérbio romano diz que é no vinho que se encontra a verdade. Só vale ! É um cretino. Quanto ás vaias, as minhas vão para João Gilberto, o primeiro de todos, sempre. Depois, para Gilberto Gil, Caetano Veloso. Bote aí : Fafá de Belém, essa escória musical toda. Aliás, eu nem gostaria de vaiar. Gostaria de apupar. É o termo. Acho-os uma porcaria”

Você – que foi o fundador do Partido Socialista Brasileiro – permanece fiel ao partido depois do fim do socialismo ?Joel Silveira : “Fui um dos trinta e dois fundadores do Partido. Para mim, o socialismo acabou. O que entendo como socialismo é a esquerda democrática, é não ser da direita, é querer uma divisão de renda justa e equânime, é ter todos os direitos que o Estado puder dar, em troca do dinheiro que você dá ao Estado, como existe na Suécia, nos países nórdicos. Para mim, o socialismo é isso”. 

O socialismo não animaria você nem como alternativa quixotesca ?
Joel Silveira : ‘’O problema do socialismo é o problema de estrutura econômica. Aqui no Brasil o regime é o capitalismo mesquinho, feroz, injusto. É impossível, então, estabelecer um socialismo democrático num país que caiu na mão de uma elite que só quer tudo pra ela, não divide, não cede, inclusive por burrice. O PT do Lula é o que mais se aproxima do programa do Partido Socialista”. 

Por que você foi o primeiro preso pelo Ato Institucional nº 5?
Joel Silveira : “Porque eu estava com uma gripe violentíssima, em casa. Os agentes vieram aqui, me levaram. Quem foi prevenido conseguiu fugir. Cada um deu no pé. Eu não. Se soubesse que ia ser preso, eu teria caído fora. Por que é que eu iria me deixar ser preso? Isso seria um quixotismo burro. Carlos Heitor Cony – que já não gosta que se fale nisso – foi meu companheiro de cela”. 

Circulou uma história – não sei se é folclórica – dizendo que você protestou porque um ladrão iria fazer companhia a vocês na sala. É verdade ?
Joel Silveira : “Eu disse: “Aqui não ! Aqui é lugar de subversivo ! Ladrão é lá.” Eu sabia que do outro lado do quartel tinha a ala de ladrão”. 

Qual foi, afinal, a grande entrevista que você teve a chance de fazer mas não fez, por timidez?
Joel Silveira : “A grande entrevista que não fiz foi com Ernest Hemingway, em Paris. Samuel Wainer estava lá. Perguntou : “Você sabe quem está aí ? Hemingway !.
Você não vai fazer a entrevista ele?”. Um jornal trazia o nome do café que Hemingway frequentava todo dia. Ficava lendo jornal de turfe ; não queria ser chateado. De repente, chega o sujeito, muito maior do que eu pensava. Fiquei pensando: “O que é que um jornalista do Brasil, que não sabe falar inglês, vai perguntar a ele ?“. Fui para o banheiro, enchi a cara, disse a mim mesmo : “Agora, vou direto á mesa do Hemingway…”. Quando saí do banheiro, Hemingway já tinha ido embora. Que fracasso, este meu !”. 

Qual seria a primeira pergunta que você faria a ele ?
Joel Silveira : “Eu iria perguntar se ele não tinha vontade de caçar na Amazônia. Eu deveria ter abordado Hemingway quando o vi pela primeira vez. Eu deveria ter ido. O pior que poderia acontecer seria eu levar um soco. Neste caso, o soco renderia uma matéria :” o dia em que levei um soco de Hemingway”. Qualquer coisa que ele fizesse renderia assunto. Mas não pedi a ele a entrevista. Um fracasso absoluto”. 

Se você fosse escrever uma “Enciclopédia Joel Silveira”, o que é que você diria num verbete sobre – por exemplo – Graciliano Ramos…
Joel Silveira : “Uma vez, levei um conto pra ele ler. Graciliano era muito seco, nos atos. Começou a ler o meu conto. De repente, dobrou o papel, começou a rasgar, picotou tudo, virou confete. Não dava para emendar. Eu nem tinha cópia. Depois de rasgar, ele jogou na cesta. Não disse nada ! Preferiu me convidar para ir ao Café Mourisco, para beber uma cachacinha e um café”. 

Você não perguntou nada a ele ?
Joel Silveira :
“Não perguntei nada, porque, com o gesto, ele já tinha dito o que queria dizer. Quer resposta mais explícita do que aquela – rasgar o conto? Anos depois, eu disse: “Ô Graça, mas aquele meu conto era muito ruim mesmo?” E ele: “Horroroso !”. 

O verbete sobre Monteiro Lobato na Enciclopédia Joel Silveira seria como ?
Joel Silveira : “Fiz com Monteiro Lobato uma entrevista fatídica, para “Diretrizes”. Fui ao chalezinho de Monteiro Lobato, no Pacaembu. Ficamos a manhã inteira conversando. Pequenino, de pijama, ele falava violentamente contra a ditadura de Getúlio Vargas. Tinha horror ao Getúlio. Lá no meio da entrevista, soltou esta frase : “O Governo deve sair do povo, como a fumaça da fogueira.” Isso em plena ditadura do Estado Novo ! Samuel Wainer transformou esta frase de Monteiro Lobato em manchete. A revista foi imediatamente fechada pela polícia. Samuel se mandou para uma embaixada, acho que do Chile. Eu fui para Sergipe”. 

E Oswald de Andrade ?
Joel Silveira : “Para mim, Oswald de Andrade era um moleque. Eu tinha a maior antipatia por ele. Era um sujeito ruidoso, cheio de frases feitas, um vagabundo, nunca fez nada na vida. Torrou a fortuna da família toda. Gastava dinheiro da Europa, por conta da burguesia, num gesto antipático e hipócrita”. 

Sobre Mário de Andrade, o que é que você escreveria ?
Joel Silveira : “Era insuportável, um viadão, vivia cercado de garotos, todo pachola. Uma vez, escreveu uma crítica sobre um livro. Disse : “Este realmente é um bom contista, não é um Joel Silveira qualquer”. Aliás, devo ser a única pessoal do Brasil que nunca recebeu uma carta de Mário de Andrade. Todo mundo recebeu. Não me empolga. A poesia de Mário de Andrade é muito ruim, os contos são uma coisa tradicional, aquele negócio de folclore. Detesto folclore !”. 

Há quanto tempo não chamam você para escrever num grande jornal brasileiro?
Joel Silveira : “Há séculos, meu Deus do céu ! Não há por que chamar”. 

Faz de conta que você é o chefe de reportagem. Se chegasse aqui um jovem repórter cheio de entusiasmo e pedisse a você uma grande pauta para fazer hoje no Brasil, que assuntos você indicaria?
Joel Silveira : “Que tal o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva durante o governo militar ? Já se cavou uma cova. Vamos cavar outras, então ! E a morte da figurinista Zuzu Angel num acidente que não entra na cabeça de ninguém ? E a explosão da bomba no Riocentro ? Qual foi a intenção verdadeira ? Era causar um massacre ? Ou dar um susto ? A morte de Juscelino ficou mal contada. A mim, não me convenceu. Eu não sou um juscelinista. Sou um leitor de jornal. E o atentado à OAB ? Quem mandou ? E a morte de Lamarca ? E a de Marighela – um sujeito astuto e conspirador, como ele era, ia sair idiotamente daquele jeito ? E aquele operário que morreu no DOI-CODI em São Paulo? E a morte de Herzog – que não tinha motivo nenhum para se suicidar? Isso tudo daria uma série fantástica”. 

Você conseguiria descrever Joel Silveira em uma só palavra?
Joel Silveira: “Teimoso. Eu não pedi para vir ao mundo. Agora, aos oitenta anos, não vou pedir para sair”.

Fonte: http://www.geneton.com.br/archives/000104.html

por Geneton Moraes Neto

Ano 2000

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O ESTADO NOVO E O GETULISMO

São Paulo, terça-feira, 9 de janeiro de 1979 

Depoimento de JOEL SILVEIRA
ao repórter Gilberto Negreiros

A história das ditaduras é também a da resistência ao arbítrio, à prepotência e à sedução do poder. Nesta verdade elementar, um ensinamento profundo: nem sempre a melhor atitude diante do inevitável é ceder e desfrutar. "É lamentável que o exemplo de "O Estado de S. Paulo" não tenha sido imitado pelos outros jornais. Uma reação geral da imprensa teria apressado a queda da ditadura".

Quem afirma é Joel Silveira, que aos 18 anos chegava ao Rio de Janeiro e ingressava na imprensa carioca 9 meses antes do golpe desfechado por Getúlio no dia 10 de novembro de 1937.

Por paradoxal que tenha sido, o período do Estado Novo permitiu que ele e mais um grupo de jovens jornalistas, em que se destacaram também David Nasser, Edmar Morel e Samuel Wainer, viesse a alcançar a notoriedade na fase da chamada "grande reportagem" dos anos 40. Esta, na realidade, foi a forma encontrada pelos jornais para sobreviver à censura imposta pela ditadura.

O resultado dessa transformação imposta pelas circunstâncias foi a valorização do repórter como principal figura da redação, onde até então pontificavam editorialistas e articulistas.

Para Joel Silveira, a fama viria com a reportagem "Grã-finos em São Paulo", feita em 1943 para o "Diário da Noite", na qual ele —um sergipano mais para o tipo rude e de sotaque nordestino inescondível— contou suas incursões, disfarçado de "gentleman", pelos salões das famílias quatrocentonas paulistas.

No Palácio do Catete, Getúlio Vargas, que tinha pela burguesia um desprezo especial, conta Joel Silveira, "delirava com a reportagem". Lembrando essa faceta do caráter do "chefe do governo", como era chamado Getúlio pelos áulicos do Estado Novo, observa que "todos os ditadores têm seus caprichos".

Nem mesmo tendo Getúlio como leitor, Joel Silveira ficou imune ao crivo do DIP. "Quando me inscrevi para seguir com a FEB como correspondente de guerra, eles fizeram de tudo para que eu não embarcasse. A acusação era a de sempre: comunista."


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Proponho que você comece falando sobre como a imprensa recebeu o Estado Novo, o golpe do Estado Novo.

JOEL SILVEIRA — Cheguei ao Rio de Janeiro no dia 13 de fevereiro de 1937, eu tinha 18 anos. O Estado Novo foi no dia 10 de novembro, de maneira que o peguei logo no começo. Quando o Getúlio deu o golpe, com o apoio das Forças Armadas, eu já estava no Rio. Recebeu apoio do general Dutra, do general Góes Monteiro e do general Milton Cavalcanti, que era integralista; general Dutra e general Góes Monteiro eram simpatizantes do nazismo. O general Góes Monteiro inclusive foi condecorado por Hitler.

Eram simpatizantes.

JOEL — Sim. O Góes Monteiro não perdia uma recepção na embaixada alemã. Foi condecorado pelo embaixador. E foi ele que, num dos primeiros atos, baixou a censura total e absoluta à imprensa. E a seguir o DIP foi ampliado, quase que com dimensão de Ministério, e controlado por um teórico do fascismo, chamado Lourival Fontes. Homem fabulosamente inteligente, cultíssimo, mas fascista. Ele mesmo me confessou: "Eu sou fascista". Ele já era fascista há muito tempo, desde 1924/25, quando foi diretor de uma revista chamada "Hierarquia", de orientação fascista, inclusive subvencionada pela embaixada italiana. Isso também ficou provado.

Bem, mas ele assumiu o controle total da imprensa. Um ou outro jornal que tentou se rebelar foi imediatamente fechado. Mas a grande imprensa daquele tempo imediatamente aderiu ao Estado Novo. Toda. Com exceção de "O Estado de S. Paulo". É só você pegar as manchetes do dia 28.

Mesmo o "Correio da Manhã"?

JOEL — O "Correio da Manhã" aderiu, não podia ser contra. Mas os elogios eram magros. O grosso da imprensa ficou do lado do Estado Novo e assim se conservou ou compulsoriamente ou gostosamente. Até que o próprio "Correio da Manhã" rompeu essa asfixia, esse sufoco, com a entrevista do José Américo, feita pelo Carlos Lacerda.

Então, eu era secretário do jornal literário "Dom Casmurro", um jornal de propriedade do Brício de Abreu e do Álvaro Moreira. Depois fui repórter e secretário da revista "Diretrizes", um semanário de propriedade do Samuel Wainer. Então, diariamente a gente recebia, lá pelas nove e meia dez horas, um telefonema com aquela vozinha: "Silveira, olha aqui, está falando fulano (geralmente dava só o primeiro nome), não pode sair aquilo, evite comentários...". Eram as coisas mais desagradáveis. Era a briga do Beijo. Vargas que se embriagava no Cassino da Urca, dava um bofetão em alguém e a vozinha: "nenhum comentário sobre a briga do Beijo, heim".

E essas ordens da censura eram plenamente acatadas?

JOEL — Ah, claro, plenamente. Se a gente não acatasse, eles fechavam. E você vai ver como fecharam "Diretrizes". Está lá o Samuel na "Folha" e pode dizer isso. Mas a gente dizia: um momentinho. Botava o papel na máquina e pedia para repetir a ordem. Datilografava e pregava numa cartolina. Anos seguidos eu guardei aquilo. Você veja que até esse processo de censurar a imprensa foi copiado do Ministério da Cultura Popular do Mussolini.

A Constituição do Estado Novo, que dizem ser do Chico Campos, não é. Ele apenas traduziu do polaco. Você lê hoje e é exatamente igual, com uns laivos corporativistas, que era o negócio do Mussolini e do Salazar. Todos eles aqui estavam certos de que o Hitler e o Mussolini, o nazi-fascismo, iam ganhar. O Dutra era um nazista fervoroso, admirador, o Góes Monteiro, a mesma coisa.

Ficando por enquanto no DIP, ele exercia também controle sobre a publicidade?

JOEL — O DIP exercia um duplo controle: um controle autoritário proibitivo, da censura propriamente dita. E tinha o controle através da corrupção. O caso da isenção para a importação do papel da imprensa. Você importava o papel da Finlândia, do Canadá, mas tudo sob o controle do DIP. E tinha o derrame de dinheiro, que era tentador. Por exemplo, o DIP criou uma série de livros pequenos, tudo sobre o Getúlio: "Vargas e o Teatro", "Vargas e o Cinema", "Vargas e a Literatura". Pagavam um dinheirão, em termos de época. Um pobre intelectual que ganhava, vamos dizer, Cr$ 1.500,00 com a edição de um romance, eles botavam dez mil cruzeiros no bolso dele para escrever quarenta páginas sobre a coisa. Isso era um negócio terrível. Poucos resistiram.

Poderia citar alguns nomes?

JOEL — Não é bom porque a maioria são meus amigos (sic). A fraqueza humana é terrível. Eu sei, por exemplo, que o Graciliano Ramos resistiu. Osório Borba e Carlos Drummond de Andrade também. Resistiram, particularmente, os intelectuais de esquerda, o pessoal ligado ao Partido Comunista, por motivos conhecidos, né?

Sobre essa coisa de corrupção, o Lourival Fontes criou uma revista chamada "Cultura". Uma revista maravilhosamente bem feita, porque ele era muito inteligente, muito culto, escrevia muito bem. Terminou meu amigo, há três ou quatro anos, porque ele é sergipano e eu também. Sergipe tem coisas engraçadíssimas. Veja você, a terra de João Ribeiro, de Tobias Barreto, dois sujeitos liberais, e Silvio Romero, que era um rebelde, deu os dois maiores teóricos do fascismo do Brasil: Lourival Fontes e Jackson Figueiredo. Coisa esquisita, não? Pois bem. O Fontes criou a revista e dava, para cada colaboração, cinco mil cruzeiros, dinheiro da época. E o suplemento literário do "Diário de Notícias", do velho Dantas, pagava duzentos cruzeiros.

O mercado de trabalho era limitadíssimo, porque os jornais tinham tudo pronto da Agência Nacional. Vinha tudo mastigado. As redações tinham quatro ou cinco pessoas que faziam o jornal todo. Vinha tudo pronto, com ordem, inclusive, de publicar em tal página, com tal destaque. O DIP chegava ao ponto de dizer que tipo devia ser usado: negrito, corpo 9, à esquerda. Entendeu? E qualquer sinal de rebeldia cortavam o papel e a publicidade. A publicidade o governo controlava, vamos dizer, 60% e ao mesmo tempo intimidava as empresas privadas. Ninguém queria ficar contra o Banco do Brasil. Sob o ponto de vista da censura, eu considero o Estado Novo mais tenebroso, porque não tinha saída. Hoje existe o recurso de você deixar o espaço em branco. Naquele tempo, se fizesse isso, fechavam o jornal.

Quando o Lourival Fontes saiu, botaram lá um homem chamado Coelho dos Reis, que era coronel. Quando o Brasil declarou guerra, então, os militares acharam que à frente do DIP não poderia ficar um civil. É aquele negócio, sempre o negócio da segurança nacional. Sempre o velho pretexto. O Coelho dos Reis era um homem sério, um coronel burocrata. Mas ficou pouco. Botaram então um capitão chamado Amilcar Dutra de Menezes. Esse era de uma ignorância total e absoluta. Eu tenho a impressão que botaram até como piada. Mas tinha veleidades de literatura.

Mas há registros da história da época que falam da preocupação do governo do Estado Novo com os jornalistas...

JOEL — Mas isso está no capítulo do suborno; da corrupção. Isentavam o jornalista do Imposto de Renda, o dono do jornal não pagava o papel. Mas tudo isso era o lado corrupto da ditadura.

Mas tinha aquele círculo...

JOEL — Tinha, mas eram todos de quinta categoria. Tinha, por exemplo, o assessor de imprensa, o que ficava do lado dele, era um homem chamado Hugo Mosca. Está vivo até hoje o pobre do Mosca, bom sujeito, mas era assim uma espécie de "Bobo da Corte" do Getúlio. Era o Gregório de um lado e o Mosca de outro.

Não precisava de lei, não tinha Congresso, não havia justiça, não havia nada. É como o Geisel, se quiser mandar prender a mim e a você, manda. Na maior tranquilidade. Como já me prenderam cinco vezes, me prendem a sexta. E o autocrata, compreendeu, é o dono do poder absoluto. Getúlio fazia isso rindo.

O Conselho Nacional de Imprensa...

JOEL — O Conselho Nacional de Imprensa era o Roberto Marinho. É isto que eu estou dizendo. O Conselho se reunia uma vez por semana.

Quem mais fazia parte do Conselho?

JOEL — Que eu me lembro, Oséas Bota e o Chateaubriand. Este nunca ia diretamente. Mandava um. Tenho a impressão que era o Astregésilo de Athayde, que é um velho pau pra toda obra. Mas tomando dinheiro do Banco do Brasil e tudo, aquela coisa.

A distribuição era feita através do Conselho?

JOEL — Tudo ali no Conselho. O Conselho era formado por diretores de jornais. Você veja o papel da imprensa durante o Estado Novo. Foi o mais escabroso possível. Foi a rendição total.

"Diretrizes" e "Voz Operária", que era dos comunas, aguentaram. O resto se entregou mesmo. E "O Estado de S. Paulo", aquela coisa do Júlio Mesquita, invasão do Estado Novo, compreendeu? E tudo isso não teve graça. Isso precisa ser contado um dia.

Mas, a propósito de "Diretrizes", do Samuel Wainer, por que ele...

JOEL — Não, a "Diretrizes" fez um papel fabuloso.

Pois é, como ele conseguiu driblar a censura?

JOEL — Exatamente. Ele conseguiu porque tinha uma grande habilidade. Ele é muito inteligente e chegou um momento que a revista foi fechada. Foi por causa de uma entrevista com o Monteiro Lobato, que não passou pela censura e eu publiquei. Aí fecharam a revista.

Mas houve um momento que todo mundo começou a conspirar, nas vésperas do "Manifesto dos Mineiros". E, logo em seguida, a partir de fins de 42, os mineiros começaram a conspirar contra Getúlio, liderados por Virgílio de Melo Franco. Ele se ligou muito a nós. Praticamente era homem de "Diretrizes". Era o homem que traçava a estratégia —recua aqui, avança ali. Ele era muito amigo do Góes Monteiro e estava sempre bem informado.


Agora, fale sobre os casos de torturas.

JOEL — A tortura no Brasil começou depois de 35, depois da repressão violenta, depois da burrada do Prestes. Aquela repressão desfechada pelo Filinto Muller. A coisa virou um acordo. Criou-se o primeiro acordo internacional de torturadores: a Alemanha mandou para cá elementos da Gestapo. Então começou a surgir a tortura científica. Porque até aquela época era na base do cassetete mesmo. Logo depois do golpe a coisa foi terrível, vários morreram, tem gente mutilada.

Mas em todo esse episódio, quem ficou com toda a carga, toda apecha da história, foi o Filinto Muller...

JOEL — Sim. Mas ele era o chefe. Você vai ver no dia em que fizerem um processo contra a Gestapo. Ele realmente empolgava a Polícia. E de tal maneira ele se imaginou um superministro e achava que acima dele só estava o Getúlio. E desacatou o Vasco Leitão da Cunha, que era o ministro da Justiça em 1943. E, para surpresa dele, o Vasco o prendeu e o pôs fora da polícia. Criou um caso para o Getúlio. O Vasco disse: "Sr. major, recolha-se à sua casa, está preso e destituído".

Como é que você vê hoje, já distante, o papel do Exército como sustentáculo do regime?

JOEL — Eu acho que é o único responsável. Não o Exército. As Forças Armadas. Não há dúvida. Mesmo durante o Estado Novo, o Exército —Dutra, Góes, essa gente toda, até mesmo o Milton Cavalcanti, que era um integralista— sempre se pôs distante disso, nunca desempenhou um papel policial. Hoje as Forças Armadas estão comprometidas com essa repressão policial. Isso é que é profundamente triste. Porque as classes armadas sempre gozaram da mais alta simpatia junto ao povo, mesmo durante o Estado Novo, devido a sua equidistância, fator de equilíbrio...

Eu digo equidistante das manobras políticas do Getúlio. Elas apoiavam, mas era de maneira mais sutil, não tão ostensiva. Colocavam-se em posição de pouco realce. E então o grosso da população, evidentemente, não notava essa participação. Não era nem ostensiva, nem onipresente, nem onisciente. E hoje é. Você pegue por exemplo: onde é que as Forças Armadas, hoje, em que setor da vida brasileira não há predomínio das Forças Armadas? Até nas empresas privadas, ou seja, 60, 50% das empresas têm um coronel, um general, um brigadeiro da reserva...

Quer dizer, hoje a presença é total e absoluta, para não falar do Serviço Nacional de Informações, que deve saber mais coisas de mim do que eu mesmo. Se eu quiser disputar, amanhã, qualquer coisa, em suma, uma pretensão qualquer, que dependa da aprovação do SNI, evidentemente que eu não serei nada, nunca. Eu me lembro da segunda vez que fui preso, até hoje não sei porquê, estou doido pra saber, não tenho a menor idéia: eu fiz um depoimento, eu mesmo escrevi, entreguei e de repente me tiram fotografias e pela primeira vez sujei o dedo. Eu e o Carlos Heitor Cony...

Quando foi isso?

JOEL — Isso foi logo depois de 68, 69, no terror.

Voltando um pouco, como foi a questão do Estado Novo, porque hoje em dia se aponta o Exército como o grande beneficiário do Estado Novo, funcionando pelos bastidores...

JOEL — Mas é evidente que é. Não haveria o Estado Novo sem o apoio do Exército. Naquele tempo não eram nem as Forças Armadas, era o Exército. Hoje, são as Forças Armadas. Tem a Aeronáutica, que tem poder de fogo, tem a Marinha, que tem poder de fogo. Naquele tempo não dava porque praticamente não existia, era o Campo dos Afonsos, uns teco-teco do CAN (Correio Aéreo Nacional). A Aeronáutica só tinha fama de liberal, era o brigadeiro Eduardo Gomes, aquela coisa. Era o Exército. E, sem o Exército, o apoio do Exército, Getúlio não teria dado o golpe, claro.

Houve algum caso de dissidência entre os militares?

JOEL — Que eu me lembre, não. O Exército em peso apoiou o Getúlio. Se houve, foi caso sem maior relevância. Houve dissidência civil, de gente do governo. O Osvaldo Aranha, por exemplo, ficou violentamente contra o Estado Novo, deixou de ser ministro e foi ser embaixador em Washington.

No caso da censura, como foi que a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) se comportou na época?

JOEL — A ABI era o Herbert Moses, homem do Getúlio. Era todo paternal quando falava do Getúlio, um áulico. Onde o Getúlio ia, ele ia atrás, não tinha nenhuma expressão.

Bem, quando o Brasil declara guerra, a situação sofre uma mudança radical...

JOEL — Mudança muito pouca. A única mudança que sofreu, sob o ponto de vista interno, foi a permissão para se falar mal do Hitler, do Mussolini e do Hiroito. Somente.

Esse foi o abrandamento?

JOEL — Foi o único, o único. Claro, se a gente estava em guerra contra esses cavalheiros, era o mínimo que o governo tinha que permitir, senão era uma fraude. O resto não mudou coisa nenhuma. Abrandou um pouquinho em relação às esquerdas, quando o nosso querido Luís Carlos Prestes, essa cavalgadura, em 1943, depois de o Getúlio declarar guerra ao Eixo, manda um telegrama, da cadeia, onde ele estava confinado desde 36, depois da mulher ter sido exterminada no campo de concentração pelo Himmell, pelo Hitler, ele manda um telegrama de apoio à política - como é que ele chamava? Política, não é realista não - liberal. Apoiar o Getúlio porque tinha declarado guerra. Não foi Getúlio quem declarou. Quem declarou guerra foi o povo na rua, meu Deus do Céu. E tanto assim que no discurso dele ele se virou pro povo e disse assim: "Vocês estão me obrigando a isso". Ele próprio reconheceu. Depois que Prestes passou esse telegrama vergonhosíssimo - uma das coisas mais vergonhosas que eu já vi na minha vida.


Na Itália, acompanhando a FEB, como foi?

JOEL — Bom, havia duas alas. O comandante da FEB era um homem muito decente, muito honesto, o velho Mascarenhas de Morais, homem sério, compreendeu? Sem grande brilho, mas muito competente, inclusive bom comandante, apesar de um pouco duro. Mas ele era fanaticamente getulista. Ele tinha adoração pessoal pelo Getúlio, era amigo pessoal do Getúlio. Mas havia a ala liberal do Exército. Com essa é que nós correspondentes nos entendíamos melhor. Liberal naquele tempo, né? Era o Cordeiro de Farias, era o Nelson de Melo, o Castelo Branco. Não me lembro do Castelo Branco, apenas que ele procurava a gente pra perguntar se tinha jornal do Rio e gostava de falar com o Rubem Braga sobre Anatole France. Não cheguei a notar o Castelo Branco, não. Talvez lá dentro, mas assim como personalidade, com ponto-de-vista firmado era um homem calado, quieto.

Agora um paralelo entre o regime de 37 e esse de 64.

JOEL — Bom, eu acho este muito pior. Eu acho este muito pior porque este é consciente. É a ditadura que eles imaginam pra mil anos, porque não é propriamente uma ditadura efêmera. Eles imaginam um Estado, um Reich, que dure eternamente. É o que eles chamam Sistema. É evidente que não vai durar, são os sonhos idiotas. Todo ditador tem desses sonhos: César teve, Napoleão e...

Você admite as reformas?

JOEL — Ah, as reformas são vigiadas, policiadas e superintendidas, editadas, proclamadas e publicadas pelo Sistema. Nenhuma reforma que arranhe ou que tire um pouco da força centrífuga do Sistema, da força do Poder. Isso não é reforma, bobagens. Reforma de Petrônio Portela, meu Deus do Céu. Eu conheci Petrônio Portela, em 1963, bajulando João Goulart. Ele e Virgílio Távora não saiam daqui do Palácio das Laranjeiras. Na véspera da revolução ele deitou um manifesto e depois recolheu. E eles pensam que a gente perde a memória e não sabe disso. São uns cínicos deslavados. Está aí, eu tenho cópia do manifesto dele. Tenho aí, tenho aqui, guardado, dele e do Lomanto. Fizeram dois manifestos, um contra e outro a favor. Virgílio Távora chamava o Jango Goulart de meu compadre.

Como você está vendo o papel da imprensa nessa fase que nós estamos vivendo?

JOEL — Está muito bom. Eu estou achando formidável. Não tem dúvida, está perfeito, porque é toda. Quem é que não está contra? Mas a imprensa tem que ter inteligência, a imprensa não vai ficar contra os leitores. Um jornal que apareça aí pra defender o governo não vende 500 exemplares. E, se não vende 500 exemplares, não tem anúncio nem da Coca-Cola, que dá pra todo mundo. Tem que estar, é evidente, não tem saída.

Fonte: Almanaque Folha de S. Paulo



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