domingo, 27 de julho de 2014

DON´T MAKE MUSIC, MAKE NOISE !!!!!!!!

“Isso não é coisa de Deus não”, foi o que me veio à cabeça quando a cabecinha vermelha do braço do meu pick up repousou sobre a bolachinha de vinil também vermelha que me foi enviada por minha amiga de longa data Marli, do No Sense. Os sulcos transmitiram aos alto-falantes o monstruoso som de uma banda cearense da qual já tinha ouvido falar, mas nunca ouvido o som: Obskure. “Uterus and grave”, sua primeira demo-tape, de 1990, foi relançada em vinil num belíssimo split com o “debut” dos pioneiros do grind core de Santos, “Confused Mind”.

As capas e encartes reproduzem fielmente o design original xerocado – com uma ligeira adptação ao novo formato, evidentemente – obra do gigante George Frizzo! Como a do Obskure ficou na frente, consideirei-a o lado A e ouvi primeiro. Me impressionei: trata-se de uma musica sombria e extremamente barulhenta, com três faixa relativamente longas – para o padrão do “grind” – que combinam um instrumental poderoso a letras opressivas vociferadas por um vocal pra lá de gutural.


Já a do No Sense, do mesmo ano, é uma velha conhecida, mas que tomou uma nova dimensão ao ser ouvida assim, em pleno século XXI e em glorioso vinil colorido. Tem 20 faixas(!!!!), sendo as 10 primeiras barulhinhos “from hell” intitulados “noise song”. A primeira coisa mais parecida com uma musica é a faixa título, “confused mind”, na qual já podemos sentir o vocal de Marly ainda “verde” – se comparado aos dias de hoje e mesmo ao que foi gravado na época, posteriormente – e com uma pronuncia em inglês pra lá de tosca, beirando o risível – “Devastation and massacre”, em suas palavras, virou “devastation and massêicre”! Normal, ela tinha apenas 13 anos quando gravou esta pérola! Era, aliás, uma das peculiaridades que mais contribuíram para chamar a atenção para a banda, na época. Isso e o fato de que eram REALMENTE bons, com um som que fugia do barulho óbvio e monocórdico, como pode ser constatado na própria faixa citada, um pequeno clássico que se destacava do conjunto por ter um ritmo mais cadenciado e uma melodia mais reconhecível.

Grande resgate de uma página gloriosa – e obscura! – de nossa música feita à margem dos padrões pré-estabelecidos pela ditadura do “bom gosto” – ênfase nas aspas. Por obra e graça de um selo alemão, “Winter productions”, sediado em Hamburgo.

DON´T MAKE MUSIC, MAKE NOISE !!!!!!!!


A.


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EVACUEM ESSA ÁREA !!!!!!

Câmbio Negro HC., pioneira banda punk/Hard Core recifense, já tinha 7 anos de formada quando conseguiu, finalmente, gravar e lançar, em 1990, seu primeiro LP, "O Espelho dos deuses". Que foi, também, o primeiro disco (EM VINIL) de Hard Core lançado por uma banda nordestina ... 

Eram outros tempos, claro. Tecnicamente, ainda estávamos na década de oitenta do século passado. Nada de internet e todas as facilidades de gravação e comunicação que temos hoje em dia. Tudo era feito na raça, na base da força de vontade pura e simples. O disco, lançado de forma independente pela banda, sem nenhum suporte de gravadora, foi totalmente produzido no Recife e é uma verdadeira pedrada! A potencia de sua sonoridade permanece, mesmo quando ouvido hoje, tanto tempo depois. É um clássico, portanto. Não fosse um produto de "fora do eixo" - de um tempo em que o termo ainda não havia sido apropriado por entidades de procedência e finalidade duvidosa - constaria, sempre, de todas as listas, ao lado de outros clássicos do cancioneiro punk nacional, como os discos do Cólera, coletâneas como "Sub" e "crucificados pelo sistema", do Ratos de Porão.

Ratos de Porão é, aliás, a influência mais óbvia, até mesmo pela presença do vocalista "Pesado", que não tinha esse apelido por acaso. Seu som era, no entanto, bem mais elaborado - do que o do Ratos dos primórdios. Graças, principalmente, à excelência de seus músicos, o guitarrista Pedrito, o baixista Ricardo "Paredes", e Nino, na bateria. Pesado tinha um vocal bastante característico, potente sem ser gutural ou excessivamente gritado. E o mais importante: eles sabiam COMPOR! As músicas são todas ótimas, com refrões fortes e um excelente senso de ritmo e melodia. Nas letras, o de sempre: críticas às principais instituições que regem o destino dos homens, como a igreja, o exército, a polícia e a política. Mas feitas de forma pensada, inteligente, sem o panfletarismo pueril presente em muitos de seus pares.

O disco tem pelo menos dois clássicos absolutos do Hard Core nordestino, as músicas "Meu Filho" e "A Ordem". Dois verdadeiros "hits" subterrâneos - quem viveu a época e teve a oportunidade de vê-los ao vivo sabe a catarse que a frase "Evacuem essa área", berrada a plenos pulmões por Pesado depois da abertura com um riff básico porém pra lá de eficiente, provocava na audiência. Mas TODAS as faixas, sem excessão, são muito boas. Da "pancada" que abre o disco, "programados pra morrer", até o final, com "consciência inválida", passando por momentos antológicos e de forte apelo imagético, como na letra de "vaticano", que sentencia: "o vaticano late e o povo levanta as mãos pro céu". Ou em "O ecologista morto", um belíssimo libelo em memória de Chico Mendes - chega a ser arrepiante a intensidade com que seu nome é pronunciado na música, em tom de lamento e, ao mesmo tempo, exaltação.

A Câmbio Negro gravou um segundo disco - "Terror nas ruas" - mais bem produzido - por Redson, do Cólera - porém mais fraco, irregular, dois anos depois. Depois, só mais uma demo-tape, "De volta às ruas", de 1997, que parecia prenunciar bons ventos para o futuro. Prognóstico que, infelizmente, não se confirmou. A banda acabou pouco tempo depois. De vez em quando ensaiam uma volta, mas nada de concreto até o momento. Uma pena. Deixaram, no entanto, uma herança poderosa que segue viva na memória de todos, personificada, principalmente, nas 14 músicas que integram seu primeiro álbum.

por Adelvan

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domingo, 20 de julho de 2014

VIVA JOÃO UBALDO RIBEIRO

O único livro que li dele foi "O Sorriso do lagarto". Adorei. Lembro de um personagem que tinha câncer no cu. Homosexual, num determinado trecho da narrativa ele descreve a primeira vez em que deu o rabo com uma riqueza de detalhes tão impressionante que pensei: "não é possível, esse cara já deve ter dado, pra descrever a sensação de forma tão realista". Depois, numa entrevista, acho que na Caros Amigos, vi que não fui só eu que tive essa impressão, já que os entrevistadores lhe fizeram o mesmo questionamento. Sua resposta foi ótima: "já me disseram que eu descrevo muito bem a morte, e no entanto nunca morri".

Bom, agora ele está morto. Como homenagem, reproduzo abaixo uma entrevista conduzida por Luiz Rebinski Jr. e publicada originalmente no "CÂNDIDO - JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ". Quando ele estava vivo, evidentemente. Com 71 anos. Morreu com 73.

João Ubaldo Ribeiro conseguiu o que no Brasil parece pouco provável a um escritor: conciliar sucesso de público com a boa recepção crítica de sua literatura. O que não é pouco em se tratando de um escritor cujo maior sucesso editorial é um livro de 700 páginas que faz um recorte de quatro séculos na história da Bahia, em um texto que mistura história, memória e leves toques de literatura fantástica. Trata-se de Viva o povo brasileiro, romance com uma trajetória de quase três décadas e que se mantém atual, estudado e discutido. Ainda assim o romancista prega cautela àqueles que tratam Viva o povo brasileiro como um clássico da literatura brasileira. “Acho um pouco prematuro chamá-lo de clássico. Mas é um livro que dura desde que saiu, portanto já está durando uns 30 anos”, diz o escritor em entrevista exclusiva ao Cândido.

Autor de outros romances célebres, como Sargento Getúlio e O sorriso do lagarto, João Ubaldo também deve parte de seu sucesso com o público à sua marcante presença como cronista na imprensa brasileira. Desse trabalho, resultaram livros como O rei da noite e Um brasileiro em Berlim. A crônica como uma fonte de renda aos romancistas é uma dos assuntos abordados aqui pelo escritor, que gravou as respostas em um arquivo de áudio e as enviou à reportagem, o que permitiu ao autor divagações a cerca dos temas que lhe foram sugeridos, como a tradução que fez para o inglês de seus próprios livros, a repercussão de sua obra no exterior e sua formação como intelectual na Bahia, ao lado de figuras como Glauber Rocha.

Eloquente, João Ubaldo dá à entrevista um caráter de bate-papo com o leitor, que pode conferir um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos respondendo questões de forma franca e sem rodeios.

Nos últimos anos, o senhor tem lançado muitos livros de crônica, sempre intercalando com os romances. A crônica, além de ser uma de suas fontes de renda, é um gênero que lhe ajuda enquanto escreve romances?
Os livros de crônicas são meus porque eu escrevi essas crônicas, mas a ideia de cada volume, a data de publicação e a própria seleção das crônicas, é feita pelas editoras. Geralmente mandam me consultar sobre a seleção, mas eu tenho preguiça de ficar lendo aquele negócio todo que escrevi, e que às vezes eu gostaria de meter a mão e melhorar, porque acho que saiu ruim, mas também não quero ter esse trabalho, afinal de contas já foi publicado, então deixa como está mesmo. Enfim, não sou eu que programo meus livros de crônicas, são as editoras. Agora, se escrever crônicas é bom para um romancista? Não deixa de ser, pois haja ou não a chamada inspiração — a qual, aliás, eu não acredito muito, talvez até por causa da experiência do jornalismo —, a crônica tem que sair. Você não pode dizer “prezados leitores, ontem não aconteceu nada” e sair com um jornal em branco. É bom escrever crônica, por um lado, para quem é romancista, porque o sujeito fica sempre com a redação apurada, a intimidade com as palavras sempre aguçada pelo uso. Enfim, é bom. Mas,
claro, a felicidade não pode ser comprada, às vezes ou frequentemente, quando se está escrevendo um romance, a obrigação de interromper a concentração, quando se está absorvido pela história, em vigília ou acordado, é ruim.

Seus livros já venderam mais de 3 milhões de exemplares em um país em que nos acostumamos a dizer que não se lê. Como o senhor chegou a esses números em uma nação de poucos leitores?
Não sei como esses livros venderam tanto, não faço ideia, as coisas não acontecem repentinamente. Estou com 71 anos, escrevo há praticamente cinco décadas, até mais na verdade, porque acho que meu primeiro conto foi publicado quando eu tinha 17 anos, em 1958, não tenho certeza. Mas, de qualquer forma, são 50 anos. Então nada acontece subitamente.
Para quem tomou conhecimento de minha existência agora, parece que as coisas aconteceram rápido. Para quem lê biografias também. Fulano de tal nasceu em tanto de tanto de tanto, aos 18 anos ingressa na faculdade de tal, forma-se... Mas o que tem no meio do caminho as pessoas não leem, parece tudo fácil, uma transição não traumática. Enfim, eu não sei, não aconteceu de repente, então, nunca houve impacto. Sempre gostei que meu livro vendesse, mas nunca fui um sucesso estrondoso, acho eu. Aliás, acho não, nunca fui. Então, já tive livros que ficaram muitos anos em listas de mais vendidos — mas não estourando. Tenho essa sensação, que estouro nunca fui. Mas talvez por eu escrever em jornal, isso me popularize um pouco, amplie o número de leitores, não sei explicar.

Além das vendas expressivas de seus livros, seu romance mais famoso, Viva o povo brasileiro, é um tomo de setecentas páginas, com uma narrativa entrecortada que conta quatro séculos da história baiana. Certamente não é a sinopse de um previsível best-seller. Em sua opinião, por que o livro se tornou um clássico?
É, realmente, Viva o povo brasileiro é um livro considerado difícil. Não acho tanto assim, mas talvez, pelas circunstâncias do Brasil, seja um livro difícil. Não tenho muita condição de avaliar. Agora, acho um pouco prematuro chamá-lo de clássico. É um livro que repercute desde que saiu, portanto já está durando uns 30 anos, não tenho certeza. E até hoje é estudado, vende bem, é adotado em vestibulares, etc. Até tenho medo de os meninos ficarem com raiva de mim pelo resto da vida. Mas chamá-lo de clássico, acho um pouco prematuro, aliás, acho bastante prematuro.

A política é um traço marcante em sua literatura. De Sargento Getúlio a Diário do Farol, as ações dos personagens e as tramas sempre dão margem para uma leitura mais politizada. Há alguns anos, o senhor escreveu um ensaio sobre o tema, chamado Política. Depois de um período de repressão, mas também de bastante engajamento, hoje, com a democracia, tem-se a impressão de que viramos apolíticos. Em sua opinião, melhoramos ou pioramos nos últimos 30 anos em relação à nossa participação nas questões nacionais?
Acho que não estamos menos politizados, não. De certa forma, essa é uma pergunta muito complicada, porque envolveria uma conversa de horas ou dias, ou até mesmo um seminário sobre as contradições e os enigmas brasileiros de que nós sempre ouvimos falar e que nunca conseguimos destrinchar, nunca conseguimos compreender, por mais que grandes interpretes tenham tentado, como Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre. Mas nós, até hoje — é meio deprimente constatar isso —, nos comportamos muito mais como súditos do que como cidadãos.
Nos acostumamos, inclusive, à tutela do governo, a aspirarmos ao funcionalismo público no sentido mais lato da palavra, como segurança e garantias de benefícios muitas vezes descabidos e não encontradiços em outros países. Nós aprendemos a ser apáticos, dominados e a ter pouco senso de comunidade, ou seja, pouco senso de interesse coletivo. Nós temos uma formação que eu não sei de que buraco saiu, não tenho vontade de fazer grandes análises, mas temos uma tradição, até hoje presente, com pequenas variações, aqui e ali, de individualismo.

O senhor costuma dizer, assim como seu colega Luis Fernando Verissimo, que escreve por dinheiro. Muitos autores acham isso um sacrilégio. Esse tipo de postura denota certa falta de profissionalismo de nossos escritores?
Acho que pouca gente hoje tem essa opinião. Porque se escrever por dinheiro não tivesse importância, então só podiam escrever aqueles que tivessem recursos suficientes para dedicar seu lazer à obra literária, ou seja, escreveria quem pode, de certa maneira isso seria uma coisa discriminatória. Não conheço nenhum contemporâneo que, como aqueles poetas russos da União Soviética, como [Yevgeny] Yevtushenko, que era extraordinariamente popular, viva da poesia. Mas no mundo todo, os poetas são geralmente professores universitários, bibliotecários, enfim, exercem outras profissões porque a poesia não costuma dar camisa a ninguém. Mas os escritores de ficção, de prosa em geral, são cada vez mais remunerados, embora haja agora esses problemas de direito autoral por causa da internet, mas isso já é outra conversa. Também não acho que é falta de profissionalismo não, porque acho que cada vez mais há essa consciência dos escritores de que eles têm que ser pagos, não é nenhum favor.

Mas há certo preconceito com livros feitos por encomenda, não?
Quando digo que escrevo por dinheiro, em primeiro lugar, estou seguindo uma tradição e uma norma. Norma não, mas um exemplo, digamos assim, muito dignificante, porque foi assim que viveu [Charles] Dickens, foi assim que viveu [Honoré de] Balzac, foi assim que viveu Walter Scott. As pessoas acham que encomenda é uma coisa aviltante, quando, na verdade, a encomenda é regra. Sempre lembro isso, toda a arte da Renascença foi feita por encomenda dos mecenas da época, pelos papas, pelos homens fortes das várias repúblicas e ducados e outros tipos de organização política em que se dividia a Itália antes da unificação. Isso é uma tradição meio atrasadinha do Brasil, que já está saindo disso. É uma tradição meio romântica, e meio inspirada em tragédias chorosas, sejam escritas, sejam no cinema ou teatro, em que sempre tem aquele poetazinho tuberculoso definhando numa água furtada úmida, num frio horroroso e morrendo aos 23 anos, deixando a desiludida amada, aliás, a ingrata amada, melhor ainda, casada com um fidalgo de boas posses. Na realidade, escritor, como qualquer pessoa, gosta de dinheiro e quer.

O romance Liberdade, do escritor Jonathan Franzen, tem feito sucesso por, supostamente, ser um livro-mural, que resgata a estratégia de romancistas clássicos como Tolstói e constrói um painel de nossa época (os anos 1990 e 2000, principalmente). Entre as várias discussões que o romance suscitou, uma se refere à falta de romances similares no Brasil. Acha que faltam livros com esse tipo de ambição — como é Viva o povo brasileiro — em nossa história literária?
Não li esse romance. Tenho um problema, porque fico lendo as mesmas coisas o tempo todo, meu pai dizia que isso era um claro sintoma de loucura. Às vezes, passo lendo as mesmas páginas, dos mesmos autores, durantes meses. Então é como se eu não tivesse tempo de ler esses negócios. Acredito, também, que não ia ficar muito fascinado com esse livro. As pessoas não acreditam, mas já contei essa historia várias vezes, a gênese de Viva o povo brasileiro surgiu de um encontro casual que tive com Pedro Paulo de Sena Madureira, que na época trabalhava na Nova Fronteira, que era minha editora. Ele brincou comigo, estava saindo o Vila real [romance de João Ubaldo publicado em 1979] e ele falou assim: “vocês, escritores brasileiros, só escrevem esses livrinhos fininhos para ler na ponte aérea, que a gente traça num instante”. Aí brinquei com ele: “agora você vai ver, vou fazer um livro grosso”. A primeira coisa que pensei, claro, não foi fazer Viva o povo brasileiro, que eu não tinha na cabeça, mas fazer um livro grosso. Talvez, então, inconscientemente, eu tenha passado desse dia em diante, a construir na cabeça, sem notar, sem saber, um livro grosso, que viria a ser Viva o povo brasileiro. Mas eu não sei se faltam livros com esse tipo de edição, não sei se eles são necessários, não acompanho essas coisas.

Ainda sobre essa questão da identidade como tema de nossa ficção, o senhor consegue perceber a influência de Viva o povo brasileiro em livros que vieram depois dele?
Acho que influência mesmo, não. Tem um livro [Um defeito de cor, da autora mineira Ana Maria Gonçalves], que é enorme, acho que até maior que o Viva o povo brasileiro, em que aparecem personagens meus. Evidentemente, tomei isso como uma homenagem, uma citação, não como plágio, porque ela fala, se não me engano, em Amuleto, que é personagem meu, fala no barão de Pirapuama, que também é inventado por mim. Mas isso não chega a ser uma influência. De resto, eu nunca notei nada não, acho que nunca influenciei ninguém.

Um fato interessante em sua carreira é que o senhor traduziu uma de suas obras, Sargento Getúlio, para o inglês. Qual é a história por trás desta tradução: foi falta de confiança nos tradutores estrangeiros ou algo inusitado?
Não, eu traduzi dois. O Sargento Getúlio foi o primeiro livro traduzido, é uma história muito comprida, mas acabou batendo em uma editora que, acho eu, nem mais existe, a Houghton Mifflin, de Boston, uma editora respeitada, mas que fechou. Fechou não, foi absorvida por outra, sei lá. Essa editora encomendou uma tradução, aí me mandaram as 30 primeiras laudas, e estava uma coisa terrível. Então, como era meu primeiro livro no exterior, e logo nos Estados Unidos, após assinar o contrato com eles, choveram propostas do mundo todo para publicar o livro, e eu naquela empolgação, tinha 20 e poucos anos. Aí não resisti e me ofereci para fazer a tradução. Não tinha nenhum prestígio para eles pagarem um tradutor altamente qualificado, e assim mesmo era difícil de achar, porque aquele livro é difícil até para muitos brasileiros, quanto mais para um americano, mesmo que saiba bem português. Aí fiz a tradução, foi terrível, mas fiz. Em seguida, por uma razão semelhante, fiz a tradução de Viva o povo brasileiro. Não se achava tradutor para aquilo, e meu agente, que é muito amigo meu, Thomas Colchie, me convenceu que talvez eu fosse a única pessoa capacitada a traduzir aquilo, e aí acabei traduzindo, mas não gosto não. Passei mais tempo traduzindo o Viva o povo brasileiro do que escrevendo o romance.

A vida literária hoje se intensificou. Os escritores quase não param: são convidados para bate-papos, escrevem para jornais e revistas e participam de programas de TV. O senhor certamente foi afetado por esse assédio. Como se organiza para que sua vida de escritor não se torne um problema para a criação?
Recebo de um a dois convites por dia, e tem uns que tenho vergonha de recusar, mas é humanamente impossível. Humanamente impossível não, é até desumanamente impossível, enfim, é terrível, as pessoas não compreendem, ficam ofendidas quando recuso, insistem, insinuam discriminação, dizem que eu só quero ir à Europa ou a grandes centros, ficam chateadas. Hoje mesmo me enviaram uns dois convites, um de Ribeirão Preto e o outro de Pernambuco. E este ano, o grande Jorge Amado, meu compadre e amigo, faria 100 anos, e aí eu não posso recusar uma porção de convites para comparecer a eventos, em reverência à memória dele.
Vou viajar pelo mundo todo, com exceção do Japão e da China — lugares que tenho certa relutância de ir —, mas à Europa eu com certeza vou. Mas isso é complicado, no ano passado não consegui escrever, e neste ano também não vou conseguir. O romance, se a gente deixar, abandonar, na volta desanda, perde-se o livro. Quem me ensinou essa expressão foi o Rubem Fonseca, que é muito amigo meu. E ele tem toda razão. No ano passado, escrevi não sei quantos começos de romance, desandou tudo, era uma interrupção atrás da outra. No ano que vem, acho que vou ter que me esconder.

Recentemente o senhor disse que não gosta do “papo literário”. Em outras palavras, a literatura é fascinante, o que estraga são os escritores (quando resolvem falar fora de seus livros, em suas confrarias)?

O papo literário a que eu me refiro não é o papo com escritor, é papo com amador. Não que eu tenha algo contra, evidentemente que não, mas essa chatice raramente ocorre com profissionais. Por exemplo, não entra na cabeça de algumas pessoas que eu não tirei da vida real aqueles personagens, ou como diz aquela expressão que eu detesto, que me inspirei em alguém. É que acontece o seguinte: se meus personagens são verossímeis, é natural que eles sejam parecidos com alguém. Se estou caracterizando um personagem pão-duro, muita gente se enquadra nesse perfil. Daí porque conhecem alguém de Itaparica, ficam falando isso.
É um saco, insuportável. Outra coisa que acontece é gente que fica alugando para sugerir assuntos. A pessoa não compreende que não sai dessa forma, não vem de fora para dentro. É uma maneira meio barata de se dizer, mas não me resta outra maneira de dizer. Então, ficam dizendo “você podia escrever sobre não sei quem”. Ou acham que eu recolho histórias.

Um de seus livros de crônicas, O rei da noite, é quase todo inspirado em causos de sua época de boemia. Mas há muitos anos o senhor não bebe mais. Nesses anos de abstinência, o escritor João Ubaldo chegou a sentir saudade da bebida? Ou seja, a bebida, como tema, lhe faz alguma falta?
Não. Passei não sei se 11 ou 12 anos sem beber, não bebia absolutamente nada. Hoje não tenho mais vontade de beber uísque. Mas antes, só não bebia dormindo, mas bebia o tempo todo. Mas de um tempo em diante começou a me prejudicar de uma forma avassaladora, daí parei. Quer dizer, não foi fácil, não foi num estalar de dedos, foi aos trancos e barrancos, mas acabei parando. E fiquei 12 anos sem tocar em álcool. Hoje, não tenho vontade nenhuma de beber como bebia antigamente, a mínima vontade, nem conseguiria. Mas nos fins de semana, às duas da tarde de sábado e às duas horas no domingo, me junto com minha turma de boteco aqui no Rio, que por acaso não tem literato nenhum — podia ter também, não sou contra a presença de gente do mesmo ramo, mas não tem literato nenhum. Aí eu tomo de quatro a seis chopes, acho eu, no sábado, e outros quatro a seis no domingo. De resto, não me faz falta não. Também não sou mais notívago.
Mas isso, claro, também é da idade. Vivo dentro de casa, não gosto de sair, estou casado há 30 e poucos anos, eu e minha mulher nos damos muito bem, conversamos muito, batemos papo, e aí não posso mais ser chamado de boêmio.

Seus livros foram traduzidos para vários idiomas, mas nossa literatura ainda é pouco lida fora, no mercado de língua inglesa, principalmente nos Estados Unidos. Como tem sido a recepção de seus livros fora do país? Quais são os lugares em que sua literatura é mais aceita?

A recepção dos meus livros, criticamente, geralmente é boa, com exceção do Viva o povo brasileiro nos Estados Unidos. O Viva o povo brasileiro já nasceu um pouco errado, porque não se pagam as resenhas pelo número de páginas do livro, então acho muito compreensível que um americano, numa quinta-feira em Nova York receba, para escolher para resenhar, vamos dizer, oito livros, só podendo resenhar um. Ele olha aquele tijolo — vindo de um país cuja capital é Buenos Aires e onde se fala também francês — e na sua mesa tem outro livrinho ótimo, de um alemão fantástico que está na moda em Berlim, de 180 páginas. Você acha que ele vai encarar as 700 páginas do Viva o povo brasileiro? O pagamento é igual, então ele não encara. E, além de tudo, não gostaram do livro. Enfim, meus livros nos EUA não fizeram o mínimo sucesso, inclusive o New York Times Book Review deu uma esculhambada no romance, o que fez o deleite de muitos brasileiros. É engraçado isso, de vez em quando alguém me dizia assim, com uma cara compungida, “seu livro foi esculhambado no New York Times, que coisa”. Eu ouvi isso umas três ou quatro vezes e aí elaborei uma respostinha. Quando sentia essa hostilidade velada, esse veneno quase explícito, eu dizia “é verdade, mas e você, quantas vezes foi esculhambado no New York Times?” Dá um certo status. Mas, engraçado, meus livros se dão muito bem em países nórdicos. Na Holanda, já ganhei até prêmio, homenagens, saiu praticamente tudo que escrevi, em varias edições. Viva o povo brasileiro lá, que se chama Brazilië, Brazilië, sai reeditado praticamente todo ano, o que é uma coisa raríssima. Um dos personagens do livro, o caboclo Capiroba, meu personagem antropófago, acha muito melhor comer holandeses de que comer portugueses e espanhóis. Prefere muito a carne holandesa, e os holandeses adoram essa historia deles serem mais gostosos para comer, literalmente, do que os portugueses e espanhóis, de quem, aliás, eles nunca gostaram. Na Alemanha também, meus livros são bastante editados e lidos. Na França, sou conhecido pelo mundo acadêmico, editado prestigiosamente pela Gallimard. Enfim, minha obra está no mundo todo, está na Europa inteira, acho que só não na Grécia e no leste europeu. Mas os lugares onde meus livros são mais aceitos são Alemanha e Holanda e, criticamente, na França.

O senhor foi amigo de Glauber Rocha e é uma das principais fontes de A primavera do dragão — A juventude de Glauber Rocha, livro de Nelson Motta. O livro recebeu muitas críticas a respeito de erros sobre datas e nomes equivocados. Leu a biografia, o que achou?
Eu li mais ou menos o livro, o Nelsinho é amigo meu, gosto dele, já foi meu companheiro de viagem à Copa, em pelo menos uma ou duas, eu o conheço há muitos anos. Enfim, me dou muito bem com ele e ele realmente me ouviu sobre muita coisa. Ele misturou uns troços lá, mas acho que isso não é grave. Quer dizer, não sei, os meus contemporâneos, amigos do Glauber e meus também, ficaram indignados com o livro. Eu não fiquei. Passei os olhos, não li com muita atenção, mas ele cometeu uns enganos. Acho que ele queria fazer um retrato colorido da juventude de Glauber, onde esses detalhes não são tão essenciais quanto seriam numa biografia historiográfica com mais cuidados acadêmicos. Mas eu era amigo de Glauber, sou amigo de Nelsinho, quero paz, amor, essas coisas.

Aliás, o senhor fez parte da geração Mapa, que atuou na literatura, nas artes plásticas, no cinema e no teatro nos anos 1950 e 1960. O que mais o marcou nesse período, além de sua amizade com Glauber Rocha?
Fiz parte da geração Mapa, mas com reservas, porque nunca publiquei nada na revista Mapa, em nenhum dos dois números. Mas era amigo, sou amigo de todos, acho que muitos continuam vivos, graças a Deus. Era um período de grandes ilusões de juventude, período de efervescência cultural na Bahia, criação de escola de teatro, criação de seminários de música, colóquios internacionais, a Bahia era uma festa cultural nessa época. Grande parte devido à ação do reitor Edgar Santos, que foi certamente o reitor mais notado da história da Universidade Federal da Bahia. Essa época é ainda época da juventude cheia de ilusões, de ideais, grandiloquente, às vezes radical, cheia de planos para o futuro, esperança, projetos, amores, leituras, debates, paixões, era um tempo bom, claro que era. Mas ter 71 anos também é bom.





Sargento Getúlio foi lançado em 1971 e ganhou o Prêmio Jabuti de 1972. Ambientado no Nordeste dos anos 1950, o romance narra a história de Getúlio Santos Bezerra, homem de confiança de um poderoso coronel de Sergipe, que precisa levar um preso político de Paulo Afonso até Aracaju.

Setembro não tem sentido é o primeiro romance de João Ubaldo Ribeiro, escrito quando o autor tinha pouco mais de 20 anos de idade, mas que já revela características que o consagrariam como mestre da literatura contemporânea.

Um brasileiro em Berlim é composto por 16 crônicas escritas durante os 15 meses em que João Ubaldo permaneceu na Alemanha. O livro aborda os estereótipos associados ao brasileiro como um povo sexualmente libertino e o contrapõe à sisudez, também estereotipada, do alemão, lembrando que na Alemanha a nudez pública é tratada com mais naturalidade do que em terras tupiniquins.

Viva o povo brasileiro se desenvolve em grande parte no século XIX, mas avança até 1977. Nele, realidade e ficção se misturam para criar um épico brasileiro com passagens heroicas e cômicas, tendo como pano de fundo momentos decisivos para a história do país, como a Revolta de Canudos e a Guerra do Paraguai

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A Farra do Circo

A farra continua ...
A imagem ao lado é recente e retrata uma típica noite de rock no Circo Voador, lendária casa de espetáculos carioca cravada ao lado dos arcos da lapa. Tem muita história. Está em cartaz, nos cinemas – em Aracaju no Cine Vitória, simpática sala com uma programação diferenciada, alternativa, localizada na Rua do turista, no centro da cidade – um precioso resgate do início, revolucionário, dessa história ...

“A Farra do Circo”, documentário dirigido e magnificamente montado por Pedro Bronz e Roberto Berliner inteiramente a partir de fotos e imagens em VHS filmadas por este último na época – 1982 a 1986 –, nos dá a perfeita dimensão do que foi aquela verdadeira versão brasileira do “verão do amor”, quando uma trupe de malucos resolveu montar um circo cultural libertário e anárquico em plena praia do arpoador. Foram expulsos, mas se transferiram para o bairro boêmio da Lapa e estão lá, até hoje.

Foi importantíssimo para o surgimento e fortalecimento da geração anos 80 do rock nacional, mas sua proposta ia muito além. Sempre teve de tudo, no circo, e o filme deixa isso muito claro, com trechos de apresentações de Alceu Valença, Paralamas do Sucesso – tocando “Veraneio Vascaína”, do Aborto elétrico, depois gravada em disco pelo Capital Inicial -, Dercy Gonçalves, Barão Vermelho, Caetano Veloso, Sergei, Orquestra Tabajara, Blitz, Eduardo Dusek, Claudio Zoli e João Penca e seus Miquinhos Amestrados (com Leo Jaime na formação). Registra também a colaboração dos hoje consagrados Gringo Cardia e Deborah Colker, além da realização de recitais de poesia com Chacal e Paulo Leminsky e apresentações de diversos grupos de dança e teatro, dentre eles, e principalmente, o Asdrúbal trouxe o trombone, mítica trupe que revelou Evandro Mesquita, Luiz Fernando Guimarães e Regina Casé – que aparece, inclusive, numa das cenas, com deliciosos e durinhos peitinhos à mostra, em cima do palco ...

Ratos no circo ...
A nudez é freqüente e tratada com naturalidade – muito embora, em determinados momentos, a platéia se mostre surpresa, como quando Andréa Beltrão anuncia um streap tease e, para supresa de todos, rola mesmo, um streap tease. Não dela. Interessante também notar como os tempos eram outros, em termos de exigências quanto à segurança nos espetáculos: em vários momentos o circo é mostrado nitidamente superlotado, como num show de Gilberto Gil que parte do publico assiste perigosamente empoleirado nos diversos andaimes que sustentam o teto. Impossível não traçar um paralelo com os dias atuais, até mesmo porque um dos trechos mais interessantes é justamente o que mostra o conflito que se instaurou entre a trupe, convidada para a Copa do México de 1986, e algumas das instituições patrocinadoras do evento – a coca-cola e a prefeitura da Cidade de Guadalajara. Elas prontamente retiraram o patrocínio ao se chocar com o caos criativo porém anárquico e desorganizado protagonizado por Perfeito Fortuna e seus asseclas. Seu depoimento sobre o episódio é emblemático e merece ser reproduzido:

“Esse lance da gente com as empresas, multinacionais, toda a coisa de patrocinador, a gente nunca se entendeu direito, a gente nunca combina, pois são ideologias muito diferentes. É verdade. A gente não está atrás da grana. A gente é mais um risco no papel, não sabe direito o que vai acontecer no fim. Então é evidente que a gente não dá o resultado esperado, tudo certinho no papel. A gente tem prazer, e as organizações não têm a volta desse prazer. Então elas não estão erradas: a gente quer uma coisa, tem um objetivo, e elas têm outro. Estou totalmente de acordo que elas tenham saído fora. De verdade, acho mesmo, acho certo. A gente não vai dar aquilo que elas querem. O Circo Voador é uma energia que está no ar. Por mais que tirem nosso tapete, a gente nunca cai, porque a gente voa, ou a gente cai na nossa mãe, que é a Terra, que está voando, num salto no vazio, um salto pro desconhecido, que é o que nos interessa, não interessa fazer o que a gente já sabe.”

O filme não tem narração. Não precisa. A história é bastante conhecida. Só faltava mesmo o que está lá: ver, finalmente, as imagens – toscas, em termos de qualidade técnica, é verdade, mas bem filmadas, de forma dinâmica e com enquadramentos inventivos, por Roberto Berliner. De todo aquele povo criativo e feliz fazendo arte sem amarras, sem barreiras estéticas, culturais ou morais.

Ao final, Perfeito Fortuna anuncia para o domingo seguinte a presença de Agnaldo Timótio, não sem antes lembrar a todos que no dia seguinte Raul Seixas se faria presente.

Antológico!

Clique AQUI para ler meu relato sobre a primeira e, por enquanto, única vez em que estive no Circo Voador ...


Informações Técnicas
2014 | 01:34:00
Créditos:
Direção Pedro Bronz
produção executiva Rodrigo Letier
montagem Pedro Bronz, edt
coordenação de produção Lorena Bondarovsky e Leo Ribeiro
pós-produção Anna Julia Werneck
imagens Roberto Berliner
pesquisa Patricia Pamplona
finalização de imagem Hebert Marmo
edição de som e mixagem Denilson Campos

co-produção Canal Brasil
patrocínio SEC/RJ e Riofilme
apoio Pavê

A.

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quarta-feira, 16 de julho de 2014

DEP (*) Roberto Nunes

Ele passou mal durante a madrugada e foi ao hospital, mas se recusou a ficar internado. Apresentava um caso grave de hemorragia no sistema digestivo, e só saiu de lá depois de assinar um termo de responsabilidade. O quadro piorou quando ele voltou pra casa e em duas horas precisou voltar ao hospital, já vomitando sangue, segundo relatos de amigos. Tarde demais. O produtor cultural Roberto Nunes, responsável pela programação nacional das Sessões “Cine Cult”, do Cinemark, faleceu em Natal, Rio Grande do Norte – onde estava morando – na madrugada do último dia 15.

Não posso dizer que me surpreendi com a notícia, infelizmente. Roberto bebia e comia muito, de tudo, e não controlava nem a diabetes nem a hipertensão. Cansei de recusar convites para acompanha-lo nas madrugadas de Aracaju por botecos e biroscas. Aceitei alguns, como na noite em que degustamos uma deliciosa macaxeira com carne ensopada num treiler ao lado da rodoviávia velha, no centro, de madrugada – quem conhece o “pico” sabe que não é um ambiente freqüentado pelas famílias da alta sociedade sergipana ...

Apesar dos pesares – e foram muitos, oriundos principalmente de sua cabeça dura e instransigência que, se por um lado fazia com que as coisas acontecessem, mesmo que na marra, por outro inviabilizavam a continuidade dos projetos – ele deixou sua marca no cenário cultural da cidade que adotou e com a qual tinha uma relação conturbada, de amor e ódio. Foi aqui, em Aracaju, que o o Cine Cult nasceu. Fez tanto sucesso que acabou sendo adotado “oficialmente” pela rede cinemark e estendido para salas de cinema de todo o Brasil. Foi aqui, também, que ele desenvolveu projetos pioneiros como as sessões “Notívagos”, onde bandas de renome do cenário alternativo local e nacional se apresentavam no saguão do cinema – que fica no interior de um shopping center! Por lá passaram, dentre outros, Cidadão instigado, Eddie, Pata de Elefante, Retrofoguetes, Do Amor, Karne Krua, Plástico Lunar, The Baggios e Mamutes. Trouxe também para a cidade a “Virada Cinematográfica”, na qual três filmes eram exibidos na seqüência a partir da meia-noite. Ao final, éramos brindados com um delicioso café da manhã de confraternização. Inesquecível!

A última vez que o vi foi em mais um aniversário do Cine Cult, no qual foi exibido o clássico de Alfred Hitchcock, “Os pássaros”. Estava acompanhado de sua ex-esposa, uma pessoa queridíssima que conheci pouco, mas pela qual tenho uma grande estima. Gostaria muito de lhe transmitir meus pêsames por notícia tão triste. Deixo aqui minha pequena homenagem, com meu depoimento e o de alguns amigos que recolhi pela net. Ao final, nas palavras dele mesmo, um relato de seus últimos dias, na terra do sol. Parecia feliz. Quero crer que sim.

(*) Descanse em paz, Roberrrto ...

Conheci o Roberto no Psicodália de 2009 pra 2010. Desde então, quando coincindíamos presença em Aracaju, tentávamos combinar algumas geladas ou uma refeição em um dos lugares de seu roteiro gastrobotequeiro. A última vez que nos encontramos foi em fevereiro,em um show do Rafa's Trio no Maneco. Depois seguimos pra porta do Cook, onde ficamos papeando sobre alguns dos nossos assuntos mais recorrentes: cinema brasileiro e uma parceria que um dia faríamos em algum projeto em Porto Alegre. De lá, segui pra casa e ele pra uma das tantas saideiras. É uma pena vê-lo fechar a conta tão cedo. Para quem o conheceu, a Plástico Lunar será sempre a PRástico.

Fred Nicholson

Dia 4/7 treze anos que a mãe partiu, deixando um buraco imenso, e vc Roberto Nunes, por motivos tão seus, resolveu ir embora de Bauru, se afastando de todos, ficamos anos sem ter noticias suas, até que por um site de pessoas desaparecidas finalmente tivemos noticias suas, ai podiamos seguir mesmo a distâncias as peripecias suas no cinema, coisa que vc transformou em sua vida, vc vivia pro cinema, vc vivia pro que acreditava, ai hj recebemos a noticia do seu falecimento, vc partiu se juntou a mãe ao pai e aos seus irmãos, o que poderia te dizer hj, que ficou a saudade dos tombos que te dava quando pequeno, das surras que eu dava nos meninos no caminho da escola quando mexiam com vc, e até do dia que fiz o pai te bater, por causa do maracuja que jogou em mim e nem tinha doido kkkk, vc foi cedo dia 31 agora ia fazer só 46 anos, mas espero que sua vida tenha valido a pena, descanse em paz meu irmão, mesmo não estando ai pra te dar o ultimo adeus, mas vc era meio aveso a vélorios, então mais uma vez descanse em paz e fique com Deus.

Bel Nunes

Num rodízio de massas no final da Rua Augusta, na Cantina Piolin, Roberto Nunes me pede algumas artes. Iria aplicar em camisetas comemorando os 6 anos do Cine Cult.
Achou estranho pq não cobrei o serviço. Falei que tava precisando elaborar um portfolio com artes mais conceituais e que pra mim bastava assinar as ilustrações. Pedi apenas pra ele me indicar como designer gráfico enquanto eu estivesse em SP. Alguns meses depois, nem camisetas, nem portfolio, nem porra nenhuma, apenas uma amizade gorducha, regada a base de cerveja e feijoada no Arouche. Não qualquer feijoada, a melhor feijoada que comi em São Paulo. Quando voltei pra João Pessoa, ele ficava me mandando fotos na hora do almoço no sábado, alimentando minha inveja. Também mandava fotos dos Bolinhos de Risoto do Boteco Dona Teresa. Safado.

É cara, só foi 1 ano de troca, de conversas engraçadas e encontros ligeiros.
A saudade vai durar bem mais tempo. Pode ter certeza.”

Jonathas Pereira Falcão

“Hoje partiu um dos melhores produtores culturais que tive o prazer de conhecer. Roberto Nunes foi o responsável por levar a Tess, eu e o Fabio à Natal/RN, para um debate com o público do Cine Cult Natal-rn após a exibição do longa Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Muitos já tinham pedido que fôssemos à Natal e foi ele quem viabilizou nossa ida até lá. Fomos recebidos por ele com um largo sorriso (às 4h30am), e assim foi o fim de semana que passamos em Natal. Conhecendo pontos turísticos, passeando na praia e curtindo ao máximo. E Roberto fazia questão que estivéssemos bem e confortáveis. Mal dava tempo de sentir falta de alguma coisa, pois ele providenciava tudo antes que houvesse a necessidade de pedir.

Além disso tudo, além do conforto e praticidade, as conversas. Variados temas, com alto respeito a opiniões contrárias às dele. Ironizava sem ridicularizar, contra argumentava sem faltar com respeito. Um exemplo de como tratar seus convidados.

Descanse bem. E Vida Longa ao CINE CULT!!
Guilherme Lobo

Meu querido amigo Roberto Nunes. Grande amante do cinema, da música, da vida, da Boemia, dos bons papos. Seu amor pela arte e pela estrada sempre foi contagiante e inspirador. Idealizadou e coordenou com paixão o belo projeto Cine Cult. Vimos muitos filmes no cine. Curtimos muitos shows. Biritas & Filosofia. Assistimos juntos nosso Corinthians ser campeão da libertadores. Sua paixão pelo cinema, pela música e pela estrada inspirará a gente pra gente.

Descanse em paz meu querido amigo

Tatá Aeroplano

“Eu tenho um saco cheio de histórias pra contar sobre Roberto Nunes. A maioria não fala bem do personagem. Roberto era capaz de acordar um amigo com os punhos na porta do apartamento em plena madrugada. A mulher o havia expulsado de casa mais uma vez. Mulher desalmada. Numa segunda-feira. Nesse ritmo, eu acabaria sem teto também.

Não me arrependo de ter mandado Roberto tomar no cu, pagar a conta e sair sem olhar pra traz. Foi ele, no entanto, quem me apresentou à cidade de meus pecados e minha vida inteira. O bicho tinha faro. Macaxeira com carne na rodoviária velha; leitão à pururuca, com direito a baralho, jogo de truco e cachaça pingada de um barril de madeira depois de o restaurante fechar as portas, na Atalaia. Posso dormir o resto de meus dias e não vou recuperar as noites que perdi e ganhei ouvindo Roberto reclamar da vida e dos homens num trailer enferrujado, ao lado da catedral.

Roberto era um cara passional. Só assim pra aturar a relação complicada, pontuada por tantos conflitos de interesses, que o homem por traz do Cine Cult mantinha com o Cinemark. Só assim pra amargar os prejuízos recorrentes da Sessão Notívagos. Era investimento na marca da produtora, mas parecia filantropia. Ele ficava devendo a Deus e o mundo (a mim, sempre pagou direitinho), mas botava as caras e fazia.

Morreu como vivia: Cabeça dura. Dizem que os amigos de verdade nunca vão embora. Eu levantei da mesa e não me arrependi. Nunca mais bebemos juntos. Tinha de ser assim.

Rian Santos

Roberto Nunes, produtor cultural. Idealizador do CINE CULT, projeto que há 7 anos inclui nas salas de exibição do Brasil os filmes que o "circuitão" deixa de fora - basicamente tudo que não for da Globo ou de Hollywood. Entusiasta do cinema autoral.

Paulista de Bauru, morou um tempo em Aracaju e promoveu na cidade belas noitadas regadas a cinema & música com as sessões Notívagos e Virada Cinematográfica. Quem foi lembra dos shows de Autoramas, Karne Krua e Banda Eddie, pra não citar títulos como "A Fita Branca", "Valsa com Bashir", "Gomorra" e tantos outros. Numa dessas, eu e Bebegás estreamos o clipe de "Gargantas do Deserto" da Plástico Lunar.

Robertão, meu amigo. Radicado em Natal (RN), fez questão que eu estivesse presente na pré-estreia do longa "Aos Ventos que Virão" aqui em Sergipe. Polêmico e considerado um cara "difícil" por muita gente, sempre teve todo meu respeito por não fazer média e produzir suas histórias através da iniciativa privada.

Acabo de saber que ele morreu nesta madrugada em decorrência de uma hemorragia interna. Tinha apenas 47 anos e vai fazer falta.

Fica em paz, irmão.

Adolfo Sá

Reza a lenda que uma vez existiu uma história chamada: "Dias Difíceis no Suriname". A Plástico Lunar era Prástico, Julico (Julio Andrade) era Jurico, o Rei do Brues, os filmes eram da Grobo Filmes e o celular meu amigo, só podia ser da Craro.

Nesse longo rio da vida, passado nesse país fantástico, existiam filmes imprescindíveis e shows em num cinema, lançamento de clipes, pessoas fumando e provando que o sistema de incêndio precisava ser revisto e, principalmente, um louco, sim amigos um louco daqueles que era tão chato que arrumava confusão com você do nada.

Um cara daqueles que, por aprontar todas sendo como ele é, deixaria um dia uma série de histórias que você pode contar como a piada do tio chato da festa de Natal, sem que perca a graça: "Ah! Vai lá meo!" "O Júniorrrrrrr...." "Conrintxia mano!" "Se você for pra São Paulo leve sempre cuscuz, ninguém lá vai te ajudar".

Nesses dias difíceis e polêmicos no Suriname, existia uma alma desencontrada por gerações que vagava arengueiro por um certo circulo de jovens com idades aproximadas. Talvez ele fosse tão desencontrado que às vezes assumia posições bi-polares de idades discrepantes. E quem nunca se sentiu assim? Mas nesse lugar, com certeza, a mágica aconteceu e o rock era EXPROSIVO!

Vida longa ao Robeeerrrtto! (só vale ler isso com um sotaque bem característico).

Werden Tavares Pinheiro

Pode-se dizer que o idealizador do Cine Cult, o cara que trouxe para Aracaju, a possibilidade dos cinéfilos sergipanos não ficarem tão desatualizados em matéria de estreias do dito “cinema independente” ou “de arte”, deixou uma parcela considerável de órfãos. Através da Cine Video Educação, iniciou suas atividades na capital sergipana, em setembro de 2005, quando implantou no extinto Moviecom, do Riomar Shopping, o Cinema de Arte. O projeto proporcionou ao público carente de bons filmes no cinema, o prazer de conferir produções da estirpe de “Dogville”, “O Leopardo”, “2046”, “Pai e Filho”, “Time”, entre outros, até 2007, quando o cinema fechou suas portas. Depois, Roberto Nunes levou a ideia ao Cinemark, que a abraçou. Nascia, assim, o Cine Cult, que deu tão certo na pequena Aracaju- a estreia por aqui foi com o filme “O Hospedeiro” de Joon-ho Bong – que aos poucos foi sendo levado para outras praças e, atualmente, contemplava 18 cidades e 26 complexos. Para quem pensava que a capital sergipana só tinha plateia para o cinemão, os projetos coadjuvantes que Roberto Nunes implementou- como a “Virada Cinematográfica” e a “Sessão Notívagos”- só mostrava o contrário. Quanto mais cinema, melhor. E foi assim, durante sete anos.


“Bubble”, “A Criança”, “A Culpa é do Fidel”, “Marie –Jo e Seus Dois Amores”, “O Fantástico Sr. Raposo”, “O Anti-cristo”, “Sede de Sangue”, “Incêndios”, “O Garoto da Bicicleta”, “O Homem que Grita”, “Amor”, “Moonrise Kingdom” , A Vida dos Outros”, “Infância Roubada”, “A Casa de Alice”, “A Via Láctea”, “Hércules 56”, “Vermelho como o Céu”, “O Pequeno Italiano”, “Amor”, “Pelo Malo” foram algumas das pérolas que tivemos a oportunidade de assistir e debater.


Mas algumas sessões foram emblemáticas como a do filme “O Violino” de Francisco Vargas, já que só existia uma cópia em 35 mm, circulando no Brasil e não foi fácil para Roberto Nunes consegui-la; “Do Começo ao Fim” de Aluizio Abranches, que teve sessões bem concorridas, sendo um dos filmes com maior número de espectadores do projeto, ainda que seja um desastre cinematográfico; a do filme francês “O Papel da Sua Vida” de François Favrat que teve direito até ao alarme de incêndio tocando, indevidamente, no meio da exibição; “Incêndios” de Denis Villeneuve que foi exibido no 4º aniversário do projeto, na sala 8 (a maior do complexo Jardins) e deixou muita gente “grudada” na poltrona após os créditos finais.


A troca de ideias podia ser com os frequentadores assíduos, logo após a sessão, ou com os convidados que o produtor trazia, a exemplo dos diretores Lina Chamie, Silvio Da-Rin e Vladimir Carvalho. Num dos últimos projetos que Roberto Nunes havia iniciado -“Conversas Cine Cult”- ele trouxe a Aracaju, em janeiro, o premiado diretor de “O Som ao Redor”, Kléber Mendonça Filho. Para esse segundo semestre, ele já havia sinalizado a possibilidade de trazer para cá, o cineasta Júlio Bressane.


Os últimos filmes em cartaz no Cine Cult Aracaju foram “Inch'Allah" de Anaïs Barbeau-Lavalette e “Que Estranho Chamar-se Federico!” de Ettore Scola. Torço para que a rede de multiplex não acabe com o projeto que deu tão certo e arregimentou um novo público frequentador das salas de cinema.


Notívago de “carteirinha”, workaholic, mal humorado prá uns e boa praça para outros, apreciador das obras de Bresson, Polanski e Bergman e leitor do sergipano Francisco Dantas,  Roberto Nunes deverá ser sepultado na cidade de Bauru (SP), onde nasceu.

Suyene Correia


O produtor cultural Roberto Nunes faz a alegria dos mais exigentes nas salas de cinema. Ele está à frente do projeto Cine Cult desde 2007, trazendo filmes do circuito não comercial para a rede Cinemark. Há 18 anos Roberto desenvolve projetos de exibição de filmes diferenciados para mostras, festivais, programações especiais para exibidores e institutos culturais. Paulista, workaholic idealista, veio passar um tempo em Natal e, como bom “turista”, resolveu estender o prazo. “No início do ano vim para acompanhar as sessões mais de perto, uma estadia prevista de dois meses já está no sexto mês...e sem prazo de terminar”, diz. A natureza de Natal é cinematográfica. 

“Moro na vila de Ponta Negra,  muito próximo ao mar. Ele está na minha varanda, e como durmo sempre das 8 às 10h, eu vejo o sol nascer no mar.... e ai está o meu passeio favorito, ver o sol nascer no oceano imenso que banha o Morro do Careca. Então é assim: eu trabalho até a madrugada,  desço para a praia para tomar um banho de mar, desses de quase se afogar, volto e durmo.

Pipa é um destino que gosto muito. Uma pousada que recomendo é a Chácara do Madeiro, boa para trilhas, descer na baia onde sempre aparecem uns golfinhos e vir caminhando até a Praia do Amor. Para um potiguar isso deve ser trivial, mas para quem vive em São Paulo, morando a duas quadras da Avenida Paulista, é outro mundo. 

Em Natal curto sempre dar uma passada pela Ribeira, tomar uma cerveja num bar sem nome, sempre com um bloco de anotações no bolso para registrar algum pensamento que será incorporado num livro que estou escrevendo - meio ficção, meio autobiográfico - sobre um mascate do cinema, tipo ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’ com o ‘L’uomo Delle Stelle’. 

Gosto de conhecer bares. O Bar do Ku, minha primeira referência em Natal,  cai bem com uma Heineken (nunca só uma), carne de sol com macaxeira, e a pimenta que é muito boa. Posso dizer que fui no Bar do Cobra Choca - a maioria nem sabe onde fica. Pesquisem no Google e se não tiverem frescuras peçam um  chambaril e se deliciem. Em Ponta Negra vou na Cipó Brasil quando quero uma pizza legal, e no  Galo do Alto para um jantar mais elaborado. No dia a dia prefiro minha cozinha, sou um amante das panelas.

Como passo bastante tempo em casa, vejo filmes. É trabalho e prazer juntos. Algumas dicas: Bergman, Bresson e Polanski são autores geniais, do primeiro indico sempre ‘Morangos Silvestres’, ‘Pickpocket’ de Bresson, e ‘Tess’ de Polanski, são sugestões que qualifica um olhar menos focado em efeitos especiais ou cinema pipoca. Também os nacionais, como ‘O Som ao Redor’ e ‘Febre do Rato’ merecem ser vistos, podendo ser acompanhados de filmes mais recentes como ‘Alabama Monroe’, ‘Tabu’ e ‘Philomena’.

Três dicas de livros que estão aqui, um terminando, outro iniciando e outro esperando: ‘Firmin’, de Sam Savage, ‘Caderno de Ruminações’, do Sergipano Francisco J. C Dantas, e ‘O Sonâmbulo Amador’, do pernambucano José Luiz Passos.

Em Natal tudo fecha muito cedo, e aí está um dos motivos que me impedem de sair mais. Deveria ter um belo pub, com várias cervejas e um rock inglês tocando até o dia amanhecer...uma Rua Augusta aqui em Ponta Negra seria pedir demais?”

FIM

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Leo, de "Aldebaran"

Fui surpreendido há alguns anos com a publicação no Brasil, via Panini, de uma História em quadrinhos de fantasia e ficção científica soberba produzida na França por um brasileiro do qual nunca tinha ouvido falar: “Aldebaran”, de Leo – Luis Eduardo Oliveira. Nela, somos levados a um admirável mundo novo fictício, com toda uma flora e fauna própria descrita em detalhes numa trama muito bem amarrada que prende a atenção do leitor da primeira à última página. Conta uma história do amor entre dois adolescentes em meio à colonização por terráqueos de um planeta distante, com as virtudes e viscissitudes oriundas do processo. Com direito, inclusive, a um forte cunho político, naturalmente, já que o autor tem uma história de vida rica neste sentido: ele saiu do Brasil como exilado pela ditadura militar.

Infelizmente a edição passou despercebida nas bancas e nunca mais foi lançado nada dele por aqui. Merece muito, no entanto, ser redescoberta. CLIQUE AQUI para baixar scans das revistas. AQUI você conhece os mundos de Aldebaran em detalhes num site interativo com trilha sonora produzido pela editora que publica os quadrinhos na França, a Dargaud. Abaixo, uma entrevista com o autor, publicada originalmente no site português Blogue De Banda Desenhada.

Formou o seu nome artístico, Leo, com as iniciais do seu nome real: Luís Eduardo Oliveira. Nasceu no Rio de Janeiro a 13 de Dezembro de 1944. Residindo em Paris desde 1981 e casado com uma portuguesa (Isabel) da Ilha da Madeira, onde passa largo tempo do ano, sobretudo para se escapar às agruras do Inverno da continental Europa. Hoje muito conceituado no mundo das HQs, sobretudo entre os francófonos, dedica-se muito (quase que exclusivamente) ao tema da ficção-científica. E tanto funciona só enquanto desenhista, como, outras vezes, como argumentista e, outras ainda, como autor total. Foi homenageado ao vivo no Salão Internacional "Sobreda-BD / 2000", tendo então recebido o Troféu Sobredão.

Porém, se hoje está tranquilo a narrar aventuras através da 9.ª Arte, foi antes uma aventura de si próprio que viveu e sofreu. Sempre inclinado para o desenho, após terminar o seu curso de engenheiro mecânico enveredou um tanto pela militância política. Em 1971, para escapar à ditadura militar brasileira, fugiu para o Chile. Dali torna a fugir, desta vez para a Argentina, quando o general Pinochet tomou o poder. Em 1974, regressa clandestinamente ao seu Brasil, onde se dedica ao desenho publicitário em S.Paulo.

Em 1981 abalou-se à aventura para a Europa, estabelecendo-se em Paris, sonhando com a carreira nas HQs. Foi uma época de angústias pois a 9.ª Arte franco-belga atravessava então uma das suas piores crises. Mesmo assim, publica alguma coisa nas revistas "L'Echo des Savanes" (1982) e "Pilote" (1985). Com o apoio de Jean-Claude Forest, em 1986 publica algumas histórias realistas na "Okapi" e, em 1989, é editado o seu primeiro álbum, "Gandhi, le Pélerin de la Paix", com roteiro de Benoît Marchon. No entanto, algum tempo depois começa uma parceria com o roteirista Rodolphe, com as séries "Trent" (um western em oito livros), "Kenya" (em cinco livros) e "Namibia" (a decorrer), mas agora como co-roteirista, e Marchal sendo o desenhista.

Além de ter participado em álbuns coletivos, Leo foi roteirista das séries "Dexter London" (arte de Sergio Garcia), "Terres Lointaines" (arte de Icar) e "Mermaid Project" (arte de Fred Simon). Todavia, pelo seu encantador talento, o que podemos considerar como a sua notável criação (até agora) é a série "Os Mundos de Aldebaran", dividida em quatro ciclos: "Aldebaran", "Betelgeuse", "Antares" e "Survivants (Sobreviventes)", estando estes dois últimos ainda em curso na Europa. Pois aí vai a entrevista com Leo:

Nota: Banda Desenhada (BD) = Histórias em Quadrinhos (HQ)

BDBD -  Foi dura a tua caminhada pela Banda Desenhada, sobretudo na América do Sul, mas hoje tens um justo estatuto de autor-BD confirmado. Porquê a França como tua opção?
LEO - No Brasil eu fiz umas tentativas de trabalhar em BD, mas não deu certo. Não há mercado para BD's adultas. Foi o que me levou a vir para a França. No Chile e na Argentina, eu não trabalhei com a BD e, na época, eu não pensava nisso. Eu era um refugiado político, fugindo à ditadura brasileira, e me dedicava à ação política.

BDBD - E voltares a viver no teu Brasil, está fora de questão?
LEO - Sim, foi tão difícil conseguir estabelecer-me em França, onde passei vários anos como imigrante clandestino, que não tenho nenhuma vontade de sair daqui. Ainda mais porque profissionalmente é aqui que eu construí toda a minha carreira na BD.

BDBD - Curiosamente, tens ligações a um outro país do nosso idioma, precisamente Portugal. Para além de teres sido homenageado no salão "Sobreda-BD /2000", és casado com uma portuguesa (da Madeira)... Portugal será um dia o território para residires em definitivo?
LEO - Não creio, pelos mesmos motivos que exponho acima. Mas pretendo passar longos períodos na Madeira, principalmente no Inverno. Acho a Madeira um lugar fantástico!

BDBD - Estranhamente, da tua vasta obra nada está editado em Portugal!... É um fato pouco simpático e desatento em relação à tua obra, não achas?
LEO - Alguns dos meus álbuns foram editados em Portugal alguns anos atrás, mas, infelizmente, a eterna questão do mercado pequeno para a BD adulta não permitiu que a coisa se renovasse. A mesma coisa aconteceu no Brasil, onde o fato de eu ser brasileiro não ajudou em nada as vendas. É uma pena!...

BDBD - Para além de desenhares, também tens sido, às vezes, roteirista. O que preferes: desenhar ou escrever?
LEO - Não dá para escolher uma ou outra, pois são coisas bem diferentes e ficaria muito  frustrado se tivesse que abandonar uma dessas atividades. É claro que, quando eu desenho - e atualmente eu só o faço quando eu mesmo escrevi o roteiro e, com isso, o resultado é bem pessoal - é mais forte. Como roteirista, escrevendo sozinho ou em parceria com outros, eu posso expressar a minha imaginação de outra maneira e é uma atividade fascinante.

BDBD - "Gandhi, o Peregrino da Paz" foi um interessante trabalho teu enveredado pela biografia. O que sentes por Gandhi para teres pegado neste projeto? Pensas repetir a experiência versando biografias?
LEO - Devo confessar que esse trabalho foi feito numa época em que eu aceitava qualquer coisa que surgisse para que a minha conta bancária saísse do negativo! Felizmente, o Gandhi foi um personagem interessante mas fazer BD's históricas não é o meu terreno, pois sempre preferi a ficção-científica.

BDBD - Ora aqui está!... Excluindo a bela série "Trent", o teu tema favorito é a ficção científica, cheia de hipóteses no futuro e de maravilhosos aspectos insólitos. É mesmo o tema que mais te entusiasma?
LEO - É o meu universo preferido. Desde sempre. Ele permite toda a liberdade criativa, onde tudo se pode inventar. Todos os roteiros que escrevi até hoje são de ficção-científica, o que é bem sintomático...

BDBD - Acreditas nos distantes aspectos futuristas que propões nas tuas séries?
LEO - Infelizmente, não. É o meu lado engenheiro bem racional...

BDBD - O Salão da Sobreda, onde foste homenageado em 2000, parece que se finou de vez. Mas, em Portugal, existem dois anuais (Amadora e Beja) e mais dois bienais (Moura e Viseu). Estarias disposto em participar em algum deles?
LEO - Nos últimos tempos tenho trabalhado tanto que evito os festivais. Especialmente quando incluem viagens. Mas eu gosto muito de Portugal, então, quem sabe?...

BDBD - A terminar, deixa aqui uma breve mensagem aos bedéfilos portugueses, em especial aos que te admiram... Desde já, muito obrigado, Leo.

LEO - Evidentemente eu fico muito orgulhoso e contente de saber que portugueses conhecem as  minhas histórias, apesar delas não serem atualmente traduzidas na minha língua materna. Portugal possui uma cultura de BD's adultas que, infelizmente, meu país ignora. E, meu caro Luiz Beira, sou eu que agradeço!

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terça-feira, 8 de julho de 2014

DEP* Plínio de Arruda Sampaio

O ex-deputado federal Plínio de Arruda Sampaio morreu nesta terça-feira 8, em São Paulo, aos 83 anos. Membro da direção nacional do PSOL, ele estava internado no Hospital Sírio Libanês desde maio, em função do tratamento de um câncer ósseo, mas não resistiu à doença.

Plínio ficou conhecido nacionalmente depois de se candidatar à Presidência da República pelo PSOL em 2010. O socialista, no entanto, teve um papel mais importante na militância pela reforma agrária. Presidente de honra da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), fundada em 1967, Plínio foi o relator do projeto de reforma agrária do governo João Goulart e, por anos, atuou desenvolvendo trabalhos para a causa na Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO/ONU).

Nascido em São Paulo, em 1930, Plínio fez o colegial no Rio Branco e depois se formou em direito no Largo São Francisco, faculdade da USP (Universidade de São Paulo). O contato com a política veio ainda quando jovem, na época em que atuou na Juventude Estudantil Católica. Mais tarde, a militância o levou a ser presidente da Juventude Universitária Católica.

Depois de trabalhar como promotor público, foi eleito deputado federal pelo antigo Partido Democrata Cristão, em 1962. Tinha orgulho de dizer que relatou o projeto de reforma agrária do Governo João Goulart, o que lhe rendeu a cassação do mandato em 9 de abril de 1964. Nos anos 1970, em função do regime militar, teve de se exilar no Chile, onde trabalhou na Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO/ONU), desenvolvendo projetos de reforma agrária.

De lá, ele foi transferido para os Estados Unidos e, só em 1976, voltou ao Brasil. Ao chegar, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores e foi deputado federal em 1985. Na Constituinte, em 1988, foi relator do capítulo do Poder Judiciário. Dois anos depois, Plínio foi indicado pelo PT para ser candidato ao governo do Estado de São Paulo, mas perdeu. Em 2005, após o escândalo do “mensalão”, ele deixou a legenda.

“Era impossível reverter o curso de adaptação à ordem. Não foi uma ruptura feliz. O PT foi o primeiro partido de massas criado longe dos tapetes e palácios no Brasil, gestado nas comunidades de base da igreja católica e nos sindicatos. Mas, como costumo dizer, não fui eu que saí do PT. Foi o PT que saiu de mim”, explicou, certa vez, em texto no seu blog pessoal.

No mesmo ano ele ingressou no PSOL, com outros ex-petistas, e passou a integrar a direção nacional do partido socialista. Plínio também foi escolhido candidato ao governo de São Paulo, em 2006, e à Presidência da República, em 2010, quando se destacou em debates televisivos contra Dilma Rousseff, a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva e o ex-governador de São Paulo José Serra. Nos últimos anos, voltou a se manifestar publicamente depois das manifestações de junho de 2013, que ele apoiou ao participar de passeatas em São Paulo. Sem cargos públicos ou planos de se candidatar, ele se dedicava, ultimamente, ao jornal eletrônico Correio da Cidadania. (#)

(#*) Parlamentares e políticos comentaram nesta terça-feira (8) a morte do ex-deputado federal Plínio de Arruda Sampaio (PSOL-SP), que morreu aos 83 anos, em São Paulo. Ele estava internado para tratar um câncer ósseo. Confira abaixo repercussão. 

Chico Alencar (PSOL-RJ), deputado federal: "A vida de Plínio foi plena. Nosso Plínio de Arruda Sampaio partiu no exato momento em que havia um Brasil inteiro reunido em torno de uma mesma expectativa. Ele queria ainda mais: um povo que pudesse transitar de seus desejos individuais, pequenos, para um sonho coletivo, de justiça e igualdade, realmente duradouro. Temos o dever de continuá-lo. Plínio e a luta por um Brasil solidário e fraterno vivem!" (pelo Facebook) 

Cristovam Buarque (PDT-DF), senador: "Eu conheci Plínio no exlílio, em Honduras. Eu morava lá e ele passou fazendo um trabalho pelo Banco Interamericano. Criei uma admiração muito especial por ele. É um dos políticos com mais consciência dos problemas brasileiros e com propostas para fazer um país mais eficiente e mais justo. Eu senti muito." 

Eduardo Braga (PMDB-AM), líder do governo no Senado: "O Brasil perde um grande homem público, um patriota acima de tudo, com espírito de nacionalidade muito grande. Tenho uma grande admiração por ele, foi um homem com momentos marcantes na vida política brasileira." 

Eduardo Suplicy (PT-SP), senador: “Visitei ele anteontem, e estive com a esposa e filhos. Ele estava numa situação bastante grave. Ele é uma pessoa extraordinária, foi um excelente deputado federal, uma pessoa de extraordinário valor. Sinto muito por isso e expresso a minha solidariedade. Eu vou logo estar no velório e farei um discurso em homenagem a ele no Senado.”

Eunício Oliveira (CE), líder do PMDB no Senado: "Foi um grande brasileiro, homem íntegro, com uma historia belíssima. Vai fazer muita falta à questão política e da ética no Brasil." 

Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo: "Plínio de Arruda Sampaio dedicou sua vida a um Brasil justo, solidário e democrático. Foi um promotor de Justiça exemplar; um deputado constituinte vibrante; um homem público de convicções. Em nome dos paulistas, deixo meus sentimentos à sua família." (por nota oficial) 

Ivan Valente (SP), líder do PSOL na Câmara: "Para mim, que fui companheiro do Plínio, desde a fundação do PT, e depois na ida para o PSOL, nós travamos uma luta na saída do PT, e sem dúvida é uma perda muito grande. Um grande companheiro, que foi, assim, um camarada que prestou grandes serviços ao povo brasileiro. E mais do que isso, é uma referencia para a juventude brasileira, aos 83 anos, fez coisas memoráveis para o PSOL. Além de ser um amigo, camarada, irmão." 

José Agripino Maia (RN), líder do DEM no Senado: "Fui colega dele na Constituinte, quando [Plínio] era do PT. Era uma figura moderna naquela época do PT radical. É um político de qualidade e teve destaque especial na Constituinte. Na época que o PT votava contra tudo, ele votava pela racionalidade. É uma perda lamentável para o mundo político." 

José Serra (PSDB), ex-governador de São Paulo: "Plínio de Arruda Sampaio foi um grande amigo. Isso resume minha relação com ele. Nos longos anos de exílio convivemos intensamente, em Santiago do Chile, em Washington, e na Universidade de Cornell. Dele e de sua mulher, Marietta, sempre recebi afeto e, quando foi necessário, solidariedade. Depois que voltamos ao Brasil, tomamos rumos diferentes na política, mas a relação básica de amizade sempre permaneceu. A mesma relação que tenho com seus seis filhos, que conheci desde que eram crianças. Plínio foi um político estudioso e coerente na prática de suas ideias. Ou seja, um político incomum." (por nota oficial) 

Luciana Genro, candidata do PSOL à Presidência da República: “Eu estava lá com a família dele, e justamente ele havia falecido alguns minutos antes. É uma notícia muito triste para todos nós do PSOL. Ele foi uma pessoa que se dedicou imensamente às causas em defesa do nosso povo. Fez um esforço enorme para representar PSOL nas eleições de 2010 e tenho muito orgulho de contar com o nome dele no manifesto em apoio a minha candidatura. Ele estava lúcido quando foi consultado para dar esse apoio. A gente tem muito orgulho de ter tido ele no PSOL e ele vai fazer muita falta." 

Luiz Araújo, presidente nacional do PSOL: "O PSOL se solidariza com os familiares de Plínio e ressalta que sentirá a ausência de um dos maiores lutadores socialistas e colaboradores do partido. Certamente, continuaremos levando adiante os ideais por justiça social, defendidos incansavelmente por ele." (por nota oficial) 

Luiza Erundina (PSB-SP), deputada federal: "A partida do Plínio Sampaio nos causa a nós, seus amigos e companheiros, uma profunda tristeza e ao Brasil, uma enorme perda." (pelo Twitter) 

Marina Silva (PSB-AC), candidata a vice-presidente: "Morreu hoje o ex-deputado federal Plínio de Arruda Sampaio, aos 83 anos. Um homem de ideias, de caráter, a quem sempre respeitei por sua longa trajetória política em favor de um Brasil mais democrático, justo e fraterno. Que Deus console seus familiares, amigos e admiradores neste momento." (pelo Facebook) 

Pedro Simon (PMDB-RS), senador: "Éramos muito amigos. Era um grande homem, daqueles que eu tinha o maior respeito. O Plínio é do grupo de brasileiros que foi se afastando dos governos porque não cumpriam com o que se esperava. Uma pena. Eu ainda disse várias vezes que os ‘Plínios’ deveriam ter ficado no governo Lula e outros deveriam ter saído. O grupo do Plínio se afastou porque não se identificou." 

Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), senador: "Eu estava acompanhando o estado de saúde dele. Ele teve uma pequena recuperação, mas nós já sabíamos que o estágio dele era de irreversibilidade. O Brasil perde um dos seus principais guerreiros do século XX e do início do século XXI. Era alguém que, no PSOL, e desde o PT, inspirada a todos nós. No PSOL era, com seus mais de 80 anos, o mais jovem de nós. [...] É uma notícia muito triste, uma perda muito grande." 

Roberto Requião (PMDB-PR), senador: "Ficará grande saudade amigo velho." (pelo Twitter) 

Rubens Bueno (PR), líder do PPS na Câmara: "É uma figura exemplar do mundo político brasileiro. Muito respeitado, com posições muito firmes. Ele ajudou o Brasil, os brasileiros a pensarem grande. Eu convivi com ele, tivemos debates, e o Plínio é um símbolo da ética na política."

Tarso Genro (PT), governador do Rio Grande do Sul: "O Brasil perde um grande brasileiro e a democracia um incansável lutador: faleceu Plínio Arruda Sampaio." (pelo Twitter)

NOTA DO BLOG: Mesmo discordando de  muito do que ele dizia, admirava seu entusiasmo e sua integridade. Fui, orgulhosamente, um dos menos de 1% do eleitorado que votou nele para presidente no primeiro turno da eleição de 2010.

(*) Descanse em paz.

(#) Carta Capital
(#*) g1

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terça-feira, 1 de julho de 2014

Eu, Waldir Pires e o último suspiro da democracia ...

Nasci em 1971, já em pleno regime militar. Em Itabaiana, interior do estado de Sergipe. Minhas lembranças do regime em si, portanto, são poucas. Mas lembro de algumas peculiaridades da época que, vistas do ponto de vista de hoje, podem parecer de um nacionalismo exacerbado, até mesmo “exótico”. Lembro, por exemplo, que tínhamos que hastear a bandeira nacional, cantar o hino e rezar o pai nosso e a ave-maria todos os dias, perfilados, antes de entrar na escola. Os desfiles de 7 de setembro eram o acontecimento mais importante do ano, para o qual toda a cidade, notadamente as escolas, se preparavam cuidadosamente. O comunismo era como uma sombra pairando o tempo todo no ar à espreita. Todo mundo já tinha ouvido falar a respeito, sabia que era algo ruim e perigoso, mas ninguém sabia explicar exatamente do que se tratava. Meu pai, que chamava o golpe de “revolução”, sempre dizia que os militares tomaram o poder para livrar o Brasil dos comunistas, que queriam tomar as coisas de quem tinha para dar a quem não tinha, o que ele, evidentemente, não achava justo, porque quem tinha era porque tinha trabalhado para ter. E os jornais da televisão repetiam a todo momento algo sobre gás, que eu não entendia muito bem o que era – hoje sei que falavam do general-presidente Ernesto Geisel.

Lembro mais do tempo da transição, na década de 1980, quando o regime já agonizava e eu já era mais “grandinho”. Lembro que o programa eleitoral na televisão era ainda mais insuportável que hoje em dia, porque se limitava a expor uma foto do candidato com um locutor informando de quem se tratava e ao que concorria. Os cadernos escolares, fornecidos pelo governo, tinham todos no fundo uma reprodução da bandeira e da letra do Hino Nacional. E todo programa de televisão, antes de começar, tinha que exibir na tela um certificado de liberação da Censura Federal.

Não são muito excitantes, portanto, minhas histórias pessoais com o regime militar de 1964. Ainda bem! Não sou herói, não sei se teria resistido a uma sessão de tortura. Mas sei que admiro muito quem resistiu àqueles “anos de chumbo”. Os que passaram pela tortura e conseguiram sobreviver terão, para sempre, o meu respeito e admiração. Mais ainda os que sobreviveram e deram a volta por cima, como nossa presidenta da republica – essa o fez em grande estilo, já que é, hoje, a comandante suprema das Forças Armadas, para quem o militar da mais alta patente deve bater continência.

Abaixo, uma entrevista concedida por Waldir Pires a Hélio Campos Mello em que ele conta como foram seus últimos momentos no poder, ao lado de Darcy Ribeiro, e como, juntos, redigiram e assinaram o último ato oficial do governo democrático. Cortesia da ™Escarro Napalm Unauthorized reproductions inc.

QUANDO AS TROPAS que desencadearam o golpe civil-militar de 1964 já ocupavam as ruas do Rio de Janeiro, dois homens ficaram encarregados de defender o processo democrático no Palácio do Planalto, em Brasília: Waldir Pires, consultor-geral da República, e Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil. Nos primeiros instantes do dia 2 de abril, eles foram os protagonistas do último ato do Estado Democrático de Direito do governo Jango, como o presidente era chamado. O comunicado oficial, redigido por Waldir Pires e assinado por Darcy Ribeiro, avisava que o presidente tinha viajado para Porto Alegre, onde se encontrava “à frente das tropas militares legalistas e no pleno exercício dos poderes constitucionais, com o seu Ministério”.

Lido na tribuna, o comunicado entrou para os anais do Congresso, mas não impediu que a Constituição fosse rasgada. Pouco depois, o presidente da Câmara, Auro de Moura Andrade, declarou a Presidência vaga, alegando que o presidente tinha abandonado o governo. Waldir Pires e Darcy Ribeiro ainda estavam no palácio quando o deputado Ranieri Mazzilli foi empossado, no terceiro andar, onde fica o gabinete presidencial.

Aos 87 anos, Waldir Pires relembra em detalhes momentos cruciais do golpe e de como, junto com Darcy Ribeiro, teve de sair de forma clandestina do Brasil, em logística preparada pelo então deputado Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971. Baiano de Acajutiba, criado na cidade de Amargosa, Waldir Pires entrou para a política aos 15 anos, no movimento estudantil. Aos 24, assumiu a Secretaria de Estado do governo da Bahia. Depois, foi deputado, vice-líder do governo JK, consultor-geral da República, professor e coordenador dos cursos jurídicos da UNB, governador da Bahia, ministro do governo Lula. Ele falou à Brasileiros em sua casa, em Salvador, onde é vereador pelo PT. NOTA: para ler na postagem original, clique aqui.

BrasileirosO que o senhor fez no sábado dia 4 de abril de 1964?
Waldir Pires – O 4 de abril foi uma obra de Rubens Paiva. Na realidade, as coisas já tinham se tornado bastante difíceis. Até o dia 1o, estávamos com muita esperança de sairmos em condições de impedir o golpe de Estado. Quando o golpe se tornou absolutamente claro, as informações do conjunto militar eram muito escassas. O próprio presidente não tinha informações. De forma que foram dias muito tensos. Quando estava quase saindo do dia 1o, o Doutel de Andrade, líder do governo no Congresso Nacional, chegou ao Palácio do Planalto. Da estrutura do governo, só estavam lá o Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, e eu, que era o consultor-geral da República, uma coisa muito respeitosa. 

Equivaleria a algum cargo hoje?
Advogado-geral da União. Tinha todas as características de ministério. Era o procurador e consultor-geral da República, para todo o controle da constitucionalidade do País, no plano do governo. Era a visão definitiva no plano executivo, que poderia ser, evidentemente, contestada ou alterada por decisão do Supremo. Minha sede de trabalho ficava no terceiro andar do Palácio do Planalto. Quatro salas no palácio, além da base administrativa, que ocupava metade de um andar alugado, próximo ao Hotel Nacional. 

O senhor estava no palácio no momento do golpe.
Doutel chegou lá por volta da meia-noite. Saiu do plenário do Congresso, que é a Câmara dos Deputados, atravessou a Praça dos Três Poderes e foi para o Planalto. Ele chegou lá ansioso, quase sem poder falar, porque veio correndo. Eu disse: “Senta, Doutel”. Ele respondeu: “Eles vão dar o golpe. Eu vim correndo para conversar com o Darcy e com você. Eles vão dar o golpe. Vão dizer que o presidente fugiu”. 

O presidente já tinha ido para o Rio Grande do Sul?
O presidente tinha viajado por volta das 20 horas. Desde o final da tarde, as notícias do Rio de Janeiro já faziam referência ao fato de o presidente estar pensando em ir para o Rio Grande. Teve antes um pronunciamento do general Ladário Telles, comandante do III Exército, pedindo ao presidente que fosse para o Rio Grande. O general não estava de acordo com a posição de seus colegas, disse que era preciso manter as instituições democráticas. O presidente tinha acabado de chegar do Rio. Aterrissou em Brasília mais ou menos às 13 horas. Ficamos conversando com o presidente na Granja do Torto. Todos o aconselhamos a ir embora. Ele ficou de acordo, autorizou as medidas para que a senhora dele e os filhos viajassem. E fez um pronunciamento para a nação no final da tarde. Foi para o aeroporto por volta das 19 horas, 19h30. Lá, entrou no Coronado da Varig e nada de o avião sair. Esperou 20, 30 minutos mais ou menos. 

Ele estava sozinho?
A família já tinha viajado no avião dele, direto para São Borja, para Porto Alegre, o que fosse. Com o presidente estavam Wilson Fadul, ministro da Saúde; Amauri Silva, ministro do Trabalho; e Oswaldo Lima Filho, ministro da Agricultura. 

E o avião da Varig não funcionou?
Não. O Coronado da Varig não funcionou, porque sabotaram as turbinas. Então todos desceram e embarcaram em um avião da Força Aérea. 

O senhor e Darcy Ribeiro estavam na Base Aérea?
Eu e Darcy fomos à Base Aérea. Tinha muita gente. Almino Affonso estava lá, Tancredo Neves estava, além dos comandantes militares, devidamente perfilados. Quando o presidente decolou, nós voltamos para o palácio. Nossa expectativa é de que não haveria reunião do Congresso. 

Como foi?
Quando voltamos do aeroporto, vimos o Congresso iluminado de cima a baixo. Entramos no Palácio do Planalto. Estávamos lá, quando Doutel entrou à meia-noite, meia-noite e pouco, dizendo que iam dar o golpe, falar que o presidente tinha fugido e deixado a nação abandonada. Era mais ou menos a frase que falou depois Auro de Moura Andrade, como presidente do Congresso. Esse é um bandido, um traidor das instituições democráticas do Brasil. O presidente da República não precisava comunicar ao Congresso Nacional que viajaria a qualquer parte do território nacional. 

Dá até para ver o Congresso iluminado, estranhamente iluminado.
Exatamente, totalmente iluminado. Pelas vidraças do quarto andar do palácio, nós chegamos a ver quando eles saíram pela parte traseira do Congresso Nacional, pegaram a Praça dos Três Poderes e foram em direção ao Supremo Tribunal Federal. O Auro de Moura Andrade, o Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, o pessoal que estava fazendo a maioria. 

E o Supremo?
O Supremo estava aberto, acompanhando as coisas. Eles foram lá buscar o Ribeiro da Costa, o presidente do Supremo. E ele não cumpriu seus deveres elementares de presidente do Supremo. 

O que aconteceu?
Quando o Doutel chegou dizendo que iam dar o golpe, botei um papel na máquina e fiz a última comunicação do Estado Democrático daquela fase. Assinada por Darcy. Só o Darcy poderia aprovar.
Está nos anais do Congresso. Entrou para os anais porque Doutel levou para a sessão conjunta da Câmara e do Senado. Eles saíram do Congresso com o golpe dado, passaram pelo Supremo, pegaram o Ribeiro da Costa, e empossaram o Ranieri Mazzilli na Presidência da República. Foi uma coisa articulada, presidente do Supremo, presidente do Senado, presidente da Câmara dos Deputados. 

O senhor e o Darcy foram os últimos no palácio, quando os golpistas fecharam a porta da democracia e abriram a da ditadura. É isso?
Os dois últimos a sair do Palácio do Planalto. Na hora em que eles chegaram, foram direto para o terceiro andar e deram posse ao Ranieri Mazzilli. Quando isso aconteceu, nós saímos e eu disse ao Darcy: “Nós vamos para o Rio Grande, não é? Vou passar em casa, dar um beijo na mulher e nos meus filhos, pegar um camisa e ir direto para o aeroporto”. Darcy respondeu: “Eu também”. Marcamos de nos encontrar em 20 minutos. Cheguei um minuto antes do Darcy. Um major da Aeronáutica me viu: “Doutor Waldir, o senhor aqui? Mas se o virem, o senhor está preso”. 

Foi na Base Aérea?
Sim. Disse ao major que estava esperando o Darcy e iríamos decolar em seguida. E o major: “Mas daqui não sai mais nada. Está tudo ocupado. Não tem nenhum avião disponível, não tem coisa nenhuma mais”. Nisso, o Darcy chegou e o major foi nos conduzindo: “Saiam por aqui, senão os senhores estão presos”. Nós saímos e paramos para conversar 500 m adiante, porque estávamos em carros distintos. Já eram duas e tanto da manhã. Eu falei para o Darcy: “Vou bater na porta de uma casa e pedir um colchão”. Darci fez a mesma coisa. No dia seguinte, tivemos uma reunião de companheiros, entre as 23 horas e a meia-noite, para analisar a situação, o golpe. Almino Affonso estava lá, os deputados Temperani Pereira e Fernando Santana também. Era um grupo de 15 a 20 companheiros. 

Qual foi a conclusão?
Disseram que eles, que tinham mandato, deveriam ficar em Brasília para salvar o que fosse possível daquele processo: “Você e Darcy têm que ir embora, encontrar o presidente porque ele, inclusive, está precisando de pessoas para conversar, para analisar a situação”. Nessa hora, levantou-se o Rubens Paiva: “Essa tarefa é minha, eu assumo a logística”. Rubens era um D’Artagnan, uma figura extraordinária. Ele pôs alguns companheiros, os mais ameaçados, fora de Brasília. Era excepcional o Rubens. Na madrugada seguinte, fomos com o Rubens para o aeroporto: “Olha, você e Darcy vão viajar em um aviãozinho monomotor. Terão de sair depois das 6 horas, quando o aeroporto abrir. O resto, o piloto vai dizer. Vocês ficam nessa moita. Estão vendo a pista?”. 

Moita mesmo?
Moita com pouco capim, que é escasso no serrado. O Rubens havia passado à tarde e escolhido o local, a uns 30, 40 m da pista. Disse que, quando ouvíssemos o som do aviãozinho, era para sair detrás da moita, correr e entrar no avião. E assim fomos para uma fazenda do Jango, na fronteira da Bolívia com o Mato Grosso. 

Quanto tempo esperaram na moita?
Ficamos desde as 4 horas da manhã, com uma malinha. Tinha que chegar ainda no escuro. O Rubens advertiu muito que não era para levantar a cabeça depois que o dia amanhecesse. Por volta das 6h30, ouvimos o barulho e corremos para o avião.

E na fazenda?
Chegamos por volta das 11 horas da manhã e ficamos aguardando um outro avião, trazendo gasolina para nossa viagem até Porto Alegre. Instruímos o administrador da fazenda a dizer que não tinha chegado ninguém. Antes de eu sair de Brasília, na última hora, Yolanda tinha me dado um litro de Old Parr e uma porção de chocolate, pensando que poderíamos pegar tempo frio. Então, nós sentamos e começamos a tomar o Old Parr e a comer o chocolate. 

Isso na moita ou na fazenda?
Já na fazenda. À noite, nós dormimos no campo. Tudo isso se dá no dia 4 de abril. Por volta das 9 horas da noite, por um rádio de pilha, chegou a notícia de que o presidente João Goulart tinha chegado a Montevidéu e pedido asilo político. 

O que os senhores pensaram?
Pensamos que não tinha mais como ir para Porto Alegre. E que não podíamos voltar, porque estávamos sendo procurados por toda parte. Então, a alternativa era o exílio, encontrar o presidente em Montevidéu. 

Foram direto para Montevidéu?
Não. Fomos para Salto, uma cidadezinha que tinha aeroporto, mais ao norte do Uruguai. Quando nos aproximávamos, o tempo fechou. O piloto, o Valmir, disse: “Não dá para entrar nessa tempestade com esse aviãozinho. Eu vou dar dois sobrevoos rasteiros, vou afastar aqueles carneiros e ovelhas que estão lá embaixo e vou descer”. E fez isso. Descemos. Ele ficou guardando o avião. Darcy e eu saímos andando. Não sabíamos onde estávamos. Uns 200 ou 300 m adiante já havia algumas pessoas. 

Queriam saber do avião?
Perguntavam em espanhol se o avião tinha caído. Estávamos em Arapey, uma estação de águas do Uruguai. Tinha um pequeno hotel. Chegando lá, olhamos a piscina e perguntei: “Vocês têm um calção, alguma coisa para comer?”. A sorte começou a mudar. Comemos alguma coisa e entramos na piscina. Ficamos naquela água tépida, admirável, esvaziando todas as tensões. 

O senhor tinha quantos anos?
Trinta e sete. Daí a pouco, vimos que se aproximava um cabo da polícia, com espada e tudo. Eu disse para o Darcy que iria me levantar e pedir asilo político. 

De calção?
Sim. Eu me levantei de calção. O cabo bateu continência e pedi o asilo político, com os fundamentos do Acordo Internacional de Havana, que controla as relações latino-americanas. O cabo bateu continência de novo: “Vou comunicar a meus superiores”. Duas horas depois, ele voltou dizendo que o asilo político seria concedido. Estávamos com audiência marcada no Ministério da Justiça, em Montevidéu. 

E no dia seguinte?
Liberamos o piloto e pegamos um ônibus para Montevidéu. Chegamos um pouco tarde, entramos no primeiro hotelzinho que encontramos. No outro dia, fomos ver o presidente João Goulart, que estava hospedado na casa de um amigo dele. 

Nessa época, ele já tinha fazenda no Uruguai?
Ele comprou a fazenda depois, no mês de junho ou julho. Eu me lembro bem porque nessa ocasião ele teve um problema cardíaco. 

Foi quando ele se tratou na França?
Não, foi em outra oportunidade. Esse foi mês de junho ou julho, quando ele teve um infarto em Montevidéu. Ele teve um primeiro problema no México, algo ligeiro. Em Montevidéu foi mais avançado. Nessa ocasião, ele chegou a me contar: “O médico me disse que eu não podia ficar andando para lá e para cá dentro de um apartamento, que tinha de arrumar a minha vida. Eu só sei fazer duas coisas: política e cuidar de boi. De modo que vou ter de comprar uma fazenda por aqui”. E comprou uma fazenda em Taquarembó. Ele era um homem muito rico, tinha uma média de 20 mil cabeças que ele engordava nas fazendas dele. E saiu do governo muito menos rico. 

Na sua visão, qual o papel de San Tiago Dantas na decisão do Jango de não resistir ao golpe? San Tiago foi ministro das Relações Exteriores do Jango, tinha bom trânsito nos Estados Unidos.
Ele era advogado, muito bem informado. Logo depois desse enfarte em Montevidéu, o presidente me chamou porque queria fazer uma mensagem para o País. Ficamos alguns dias conversando, escrevendo e compondo a mensagem, a ser enviada ao Doutel, que ainda não tinha sido cassado. O Doutel leu essa mensagem no Congresso Nacional, no dia em que o Jango queria, 24 de agosto de 1964, quando completava dez anos da morte de Getúlio Vargas. 

O senhor participou da produção desse texto.
Nesses dias que a gente estava conversando, Jango me contou, com muito sentimento, a conversa de San Tiago com ele, uns três ou quatro dias antes de sair do Rio. O San Tiago já estava doente, com câncer, morreu pouco tempo depois. Disse assim: “Presidente, eu quero lhe dar uma palavra para o senhor refletir. Se porventura for necessário que haja uma revolução civil no Brasil, dá para sustentar muito bem, se o senhor sentir que é possível ser vitorioso. Se for uma coisa um pouco aventureira, presidente, não permita isso. Quero lhe dizer que estou informado de que uma esquadra americana já está descendo o Atlântico Sul e o propósito dela é de vir em direção a Vitória do Espírito Santo. Se prepara, presidente. É uma tentativa de desestabilizar completamente o Brasil. Se houver uma participação dos Estados Unidos, no nível de presença física, de força, eles vão dividir o Brasil. A política do Pentágono é dividir o Brasil. É inconveniente para o pensamento militar estratégico americano que o Brasil continue sendo esse continente e que permaneça em uma posição distinta da pulverização havida na América do Sul”. 

Isso se comprovou mais tarde com a liberação de documentos do Departamento de Estado americano. Tem a gravação de uma conversa do presidente Lyndon Johnson sobre a força naval enviada para o Brasil.
E essa conversa com San Tiago foi importantíssima na cabeça do Jango. O golpe de Estado já tinha sido dado, digamos assim, em setembro de 1961. Quando Jânio Quadros renunciou, os três ministros militares fizeram um pronunciamento de que o vice-presidente não assumiria. E Jango tinha uma força extraordinária. 

Na época, a votação do vice era separada.
Completamente. Quando dizem que João Goulart não tinha o apreço da população, é uma mentira completa. Em 1955, ele se elegeu vice com meio milhão de votos acima de Juscelino Kubitschek. Cinco anos depois, também de forma independente, ele foi eleito vice de Jânio Quadros. 

Por que ele saiu do Rio de Janeiro no dia 31?
Porque o Rio tinha caído. Do ponto de vista militar, o Jango tinha um ministro da Guerra muito participativo, mas que estava internado em um hospital, morrendo. O Jango era um homem de grande sensibilidade humana. Era difícil ele fazer grosserias. De modo que, com esse temperamento, Jango não demitiria um amigo que estava doente, morrendo. Mas foi um erro gigantesco, porque ele ficou sem ministro da Guerra, sem o Rio de Janeiro. 

E aconteciam outras mobilizações contra o governo.
Havia uma conspiração geral dos interesses, inclusive dos interesses fundamentais dos Estados Unidos, dos quais o embaixador Lincoln Gordon era um agente. Tive um episódio com ele, quando o presidente me incumbiu de estudar e disciplinar as remessas de lucros para o Exterior. Foi em um momento que eu tinha uma vida muito trabalhosa. Era professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília. Entrava na universidade por volta das 7 da manhã e saía 9h30, 10 horas, direto para a base administrativa da Consultoria-Geral da República. 

Perto do Hotel Nacional?
Isso mesmo. Lá, eu não recebia ninguém nem atendia telefonemas. Dava instrução para o pessoal de que só atenderia ligação de minha mulher e do presidente da República. E me concentrava nos pareceres, no que precisava ser feito. Às 16 horas, invariavelmente, eu ia para o meu gabinete na Presidência da República e ficava por conta do presidente, às vezes até as 22, 23 horas. Chegava em casa, os meninos já estavam dormindo. Era uma loucura. Um belo dia eu cheguei ao gabinete às 4 horas da tarde e o meu secretário me disse: “Dr. Waldir, o embaixador Lincoln Gordon está procurando o senhor desde manhã, está meio assim zangado, e pede que o senhor dê um pulo na embaixada, para tomar um drinque com ele, às 17 horas”. Imagine… 

Embaixador convocando o consultor da República.
Eu pedi ao secretário que telefonasse para a embaixada: “Diz que estou muito ocupado e o recebo no meu gabinete, para ele tomar um café comigo às 5 horas da tarde, a hora disponível dele”. Às 5 horas, ele chegou. Começou a conversar sobre um assunto, uma conferência, para depois passar para o outro, que era o mais importante para ele. Então me disse que os jornais estavam noticiando que o presidente havia me encarregado de informar a ele sobre as remessas para o exterior de lucros oriundos de juros e dividendos. Eu respondi a Lincoln Gordon: “Olha, embaixador, isso eu não converso com o senhor, não converso com embaixador da Inglaterra, da França, com embaixador nenhum. Esse assunto, eu só converso com uma pessoa, o presidente”. Aí, o embaixador se empertigou todo: “Passar bem”. E foi embora. 

Os Estados Unidos foram fundamentais para o golpe.
A origem mais profunda do golpe era a posição dos Estados Unidos. Eles tinham um projeto de poder para o mundo. E não perdoaram a carta de Jango ao presidente Kennedy. Foi uma carta linda, em que Jango disse que o Brasil não concordava com a negação dos princípios da autodeterminação dos povos. Essa carta é do período em que os Estados Unidos identificaram que em Cuba existia um começo de instalação de materiais atômicos.

A crise dos mísseis.
Isso. No Brasil, a orientação que levou ao golpe de Estado é inequívoca. Na Guerra Fria, eles precisavam do apoio brasileiro. Tanto que, depois do Brasil, eles instituíram ditaduras no resto da América do Sul.

Como o senhor, que viveu a agudização da direita nos anos 1960, vê o crescimento da direita hoje?
Esse crescimento está muito nítido, sobretudo porque a imprensa é monopolizada pelos donos do poder econômico. Eu não tenho a menor dúvida de que a mídia brasileira está hoje onde sempre esteve. É atroz. Fazer a democracia é alterar a natureza das relações humanas. 

Como o senhor conheceu o Jango?
Na campanha de 1955. Eu apoiei o Jango. Comecei a vida política muito cedo, no interior da Bahia. Nasci em Acajutiba, na Bahia, mas meu pai foi trabalhar em Amargosa quando eu tinha 2 anos. De forma que Amargosa foi a terra da minha infância, mas não tinha ginásio. Estudei em uma cidade do Recôncavo, Nazaré das Farinhas, em um ginásio dirigido por um poeta admirável, Anísio Melhor, uma pessoa humana extraordinária. Fiz o ginásio até os 15 anos. No quinto ano, meu pai me chamou. 

Em Nazaré das Farinhas?
Em Nazaré ficava o internato. Meu pai me chamou e disse que eu teria de voltar para Amargosa, pois meu irmão tinha passado no vestibular em Salvador: “Não posso manter dois estudantes, você volta para Amargosa, depois a gente vê”. 

Eram quantos filhos?
Quatro. Meu pai era funcionário público. Não dava para pagar estudo para os dois. Quando terminei o curso, o diretor, Anísio Melhor, virou para mim e disse: “Quero lhe fazer uma proposta. Você fica em Nazaré, aqui no colégio. Você vai ensinar datilografia, porque o meu professor de datilografia foi embora, nem me deu notícia”. 

Assim o senhor virou professor de datilografia.
Ganhava 20% da renda do setor de datilografia. Fazia também a banca (dava aulas de reforço) dos internos e organizava o dormitório. Com isso, tinha a comida, a dormida e os 20% do curso de datilografia. Disse ainda que iria escrever para meu pai. 

Seu pai concordou?
Concordou. Então, em 1942 eu continuei em Nazaré das Farinhas. No começo do ano, chegou uma equipe de estudantes do Colégio Público da Bahia, com a tarefa de dizer que o Brasil tinha de entrar na guerra. Eu fiz um aparte. Depois, me convidaram seguir na tarefa com eles, descendo a estrada de ferro. O diretor da ferrovia cedeu um trole. O difícil era só nas subidas. Tinha de ser na base do empurra. Levamos uma semana descendo o Sudoeste. Passei inclusive por Amargosa. De forma que eu tinha 15 anos quando entrei na política. 

Em qual partido?
Não tinha partido. E 1942 foi um ano extraordinário. Logo no começo do ano, o ministro da Educação, Gustavo Capanema, fez uma reforma no sistema educacional. Uma das loucuras do Capanema é que tinha de estudar latim em todos os cinco anos do ginásio. Em uma cidade como Nazaré das Farinhas, foi o caos. Não tinha professor de latim. Mas meu pai tinha sido seminarista no Caraça, em Minas Gerais, como órfão. 

Como órfão?
Passou nove anos lá, como órfão. Teve uma formação extraordinária. Como o velho sabia muito latim, nas férias eu e meu irmão fazíamos banca de latim com ele. Nós éramos campeões de latim. Aprendi latim para traduzir Cícero. 

Ele ensinava o ativo, o vocativo, todas as declinações?
Todas elas e a arrumação léxica. O resultado é que, no mês de fevereiro, a cidade de Nazaré passava por uma certa crise. Quase não teve estudante matriculado no curso de datilografia. Meus 20% não davam para comprar um pão por dia. Mas o diretor permitiu que eu desse um curso particular de latim das 17 às 18 horas. Eu deixava a sala arrumadinha. Abri o curso, dez cruzeiros por mês, três vezes por semana. Segundas, quartas e sextas, uma turma. Terças, quintas e sábados a outra turma. Fiquei com a média de 60, 70, 75 alunos. 

Isso aos 15 anos.
Isso. De forma que, no fim de 1942, eu estava com dinheiro. Em 1943, eu vim para Salvador. Como era bom datilógrafo, consegui emprego. Trabalhava de manhã e de tarde, e fazia o curso clássico à noite, no Colégio da Bahia. Na política estudantil, a questão política essencial era tentar mudar o setor de energia. Na Bahia, a energia era controlada por uma companhia estrangeira, a Bond and Share. 

O senhor foi secretário de Estado aos 24 anos. Depois, foi deputado, vice-líder do governo JK, consultor-geral da República, professor e coordenador dos cursos jurídicos da UNB, governador da Bahia, ministro do governo Lula. Agora é vereador. Por quê?
Para poder continuar a lutar, ser solidário. A humanidade sempre trabalhou na base do poder sem critérios e sem valores. Isso não é mais possível. Chegamos a um nível extraordinário de ciência e tecnologia, mas não somos capazes de assegurar que todas as pessoas possam comer. O mundo precisa de uma ética generalizada para todos.

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