terça-feira, 1 de julho de 2014

Eu, Waldir Pires e o último suspiro da democracia ...

Nasci em 1971, já em pleno regime militar. Em Itabaiana, interior do estado de Sergipe. Minhas lembranças do regime em si, portanto, são poucas. Mas lembro de algumas peculiaridades da época que, vistas do ponto de vista de hoje, podem parecer de um nacionalismo exacerbado, até mesmo “exótico”. Lembro, por exemplo, que tínhamos que hastear a bandeira nacional, cantar o hino e rezar o pai nosso e a ave-maria todos os dias, perfilados, antes de entrar na escola. Os desfiles de 7 de setembro eram o acontecimento mais importante do ano, para o qual toda a cidade, notadamente as escolas, se preparavam cuidadosamente. O comunismo era como uma sombra pairando o tempo todo no ar à espreita. Todo mundo já tinha ouvido falar a respeito, sabia que era algo ruim e perigoso, mas ninguém sabia explicar exatamente do que se tratava. Meu pai, que chamava o golpe de “revolução”, sempre dizia que os militares tomaram o poder para livrar o Brasil dos comunistas, que queriam tomar as coisas de quem tinha para dar a quem não tinha, o que ele, evidentemente, não achava justo, porque quem tinha era porque tinha trabalhado para ter. E os jornais da televisão repetiam a todo momento algo sobre gás, que eu não entendia muito bem o que era – hoje sei que falavam do general-presidente Ernesto Geisel.

Lembro mais do tempo da transição, na década de 1980, quando o regime já agonizava e eu já era mais “grandinho”. Lembro que o programa eleitoral na televisão era ainda mais insuportável que hoje em dia, porque se limitava a expor uma foto do candidato com um locutor informando de quem se tratava e ao que concorria. Os cadernos escolares, fornecidos pelo governo, tinham todos no fundo uma reprodução da bandeira e da letra do Hino Nacional. E todo programa de televisão, antes de começar, tinha que exibir na tela um certificado de liberação da Censura Federal.

Não são muito excitantes, portanto, minhas histórias pessoais com o regime militar de 1964. Ainda bem! Não sou herói, não sei se teria resistido a uma sessão de tortura. Mas sei que admiro muito quem resistiu àqueles “anos de chumbo”. Os que passaram pela tortura e conseguiram sobreviver terão, para sempre, o meu respeito e admiração. Mais ainda os que sobreviveram e deram a volta por cima, como nossa presidenta da republica – essa o fez em grande estilo, já que é, hoje, a comandante suprema das Forças Armadas, para quem o militar da mais alta patente deve bater continência.

Abaixo, uma entrevista concedida por Waldir Pires a Hélio Campos Mello em que ele conta como foram seus últimos momentos no poder, ao lado de Darcy Ribeiro, e como, juntos, redigiram e assinaram o último ato oficial do governo democrático. Cortesia da ™Escarro Napalm Unauthorized reproductions inc.

QUANDO AS TROPAS que desencadearam o golpe civil-militar de 1964 já ocupavam as ruas do Rio de Janeiro, dois homens ficaram encarregados de defender o processo democrático no Palácio do Planalto, em Brasília: Waldir Pires, consultor-geral da República, e Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil. Nos primeiros instantes do dia 2 de abril, eles foram os protagonistas do último ato do Estado Democrático de Direito do governo Jango, como o presidente era chamado. O comunicado oficial, redigido por Waldir Pires e assinado por Darcy Ribeiro, avisava que o presidente tinha viajado para Porto Alegre, onde se encontrava “à frente das tropas militares legalistas e no pleno exercício dos poderes constitucionais, com o seu Ministério”.

Lido na tribuna, o comunicado entrou para os anais do Congresso, mas não impediu que a Constituição fosse rasgada. Pouco depois, o presidente da Câmara, Auro de Moura Andrade, declarou a Presidência vaga, alegando que o presidente tinha abandonado o governo. Waldir Pires e Darcy Ribeiro ainda estavam no palácio quando o deputado Ranieri Mazzilli foi empossado, no terceiro andar, onde fica o gabinete presidencial.

Aos 87 anos, Waldir Pires relembra em detalhes momentos cruciais do golpe e de como, junto com Darcy Ribeiro, teve de sair de forma clandestina do Brasil, em logística preparada pelo então deputado Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971. Baiano de Acajutiba, criado na cidade de Amargosa, Waldir Pires entrou para a política aos 15 anos, no movimento estudantil. Aos 24, assumiu a Secretaria de Estado do governo da Bahia. Depois, foi deputado, vice-líder do governo JK, consultor-geral da República, professor e coordenador dos cursos jurídicos da UNB, governador da Bahia, ministro do governo Lula. Ele falou à Brasileiros em sua casa, em Salvador, onde é vereador pelo PT. NOTA: para ler na postagem original, clique aqui.

BrasileirosO que o senhor fez no sábado dia 4 de abril de 1964?
Waldir Pires – O 4 de abril foi uma obra de Rubens Paiva. Na realidade, as coisas já tinham se tornado bastante difíceis. Até o dia 1o, estávamos com muita esperança de sairmos em condições de impedir o golpe de Estado. Quando o golpe se tornou absolutamente claro, as informações do conjunto militar eram muito escassas. O próprio presidente não tinha informações. De forma que foram dias muito tensos. Quando estava quase saindo do dia 1o, o Doutel de Andrade, líder do governo no Congresso Nacional, chegou ao Palácio do Planalto. Da estrutura do governo, só estavam lá o Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, e eu, que era o consultor-geral da República, uma coisa muito respeitosa. 

Equivaleria a algum cargo hoje?
Advogado-geral da União. Tinha todas as características de ministério. Era o procurador e consultor-geral da República, para todo o controle da constitucionalidade do País, no plano do governo. Era a visão definitiva no plano executivo, que poderia ser, evidentemente, contestada ou alterada por decisão do Supremo. Minha sede de trabalho ficava no terceiro andar do Palácio do Planalto. Quatro salas no palácio, além da base administrativa, que ocupava metade de um andar alugado, próximo ao Hotel Nacional. 

O senhor estava no palácio no momento do golpe.
Doutel chegou lá por volta da meia-noite. Saiu do plenário do Congresso, que é a Câmara dos Deputados, atravessou a Praça dos Três Poderes e foi para o Planalto. Ele chegou lá ansioso, quase sem poder falar, porque veio correndo. Eu disse: “Senta, Doutel”. Ele respondeu: “Eles vão dar o golpe. Eu vim correndo para conversar com o Darcy e com você. Eles vão dar o golpe. Vão dizer que o presidente fugiu”. 

O presidente já tinha ido para o Rio Grande do Sul?
O presidente tinha viajado por volta das 20 horas. Desde o final da tarde, as notícias do Rio de Janeiro já faziam referência ao fato de o presidente estar pensando em ir para o Rio Grande. Teve antes um pronunciamento do general Ladário Telles, comandante do III Exército, pedindo ao presidente que fosse para o Rio Grande. O general não estava de acordo com a posição de seus colegas, disse que era preciso manter as instituições democráticas. O presidente tinha acabado de chegar do Rio. Aterrissou em Brasília mais ou menos às 13 horas. Ficamos conversando com o presidente na Granja do Torto. Todos o aconselhamos a ir embora. Ele ficou de acordo, autorizou as medidas para que a senhora dele e os filhos viajassem. E fez um pronunciamento para a nação no final da tarde. Foi para o aeroporto por volta das 19 horas, 19h30. Lá, entrou no Coronado da Varig e nada de o avião sair. Esperou 20, 30 minutos mais ou menos. 

Ele estava sozinho?
A família já tinha viajado no avião dele, direto para São Borja, para Porto Alegre, o que fosse. Com o presidente estavam Wilson Fadul, ministro da Saúde; Amauri Silva, ministro do Trabalho; e Oswaldo Lima Filho, ministro da Agricultura. 

E o avião da Varig não funcionou?
Não. O Coronado da Varig não funcionou, porque sabotaram as turbinas. Então todos desceram e embarcaram em um avião da Força Aérea. 

O senhor e Darcy Ribeiro estavam na Base Aérea?
Eu e Darcy fomos à Base Aérea. Tinha muita gente. Almino Affonso estava lá, Tancredo Neves estava, além dos comandantes militares, devidamente perfilados. Quando o presidente decolou, nós voltamos para o palácio. Nossa expectativa é de que não haveria reunião do Congresso. 

Como foi?
Quando voltamos do aeroporto, vimos o Congresso iluminado de cima a baixo. Entramos no Palácio do Planalto. Estávamos lá, quando Doutel entrou à meia-noite, meia-noite e pouco, dizendo que iam dar o golpe, falar que o presidente tinha fugido e deixado a nação abandonada. Era mais ou menos a frase que falou depois Auro de Moura Andrade, como presidente do Congresso. Esse é um bandido, um traidor das instituições democráticas do Brasil. O presidente da República não precisava comunicar ao Congresso Nacional que viajaria a qualquer parte do território nacional. 

Dá até para ver o Congresso iluminado, estranhamente iluminado.
Exatamente, totalmente iluminado. Pelas vidraças do quarto andar do palácio, nós chegamos a ver quando eles saíram pela parte traseira do Congresso Nacional, pegaram a Praça dos Três Poderes e foram em direção ao Supremo Tribunal Federal. O Auro de Moura Andrade, o Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, o pessoal que estava fazendo a maioria. 

E o Supremo?
O Supremo estava aberto, acompanhando as coisas. Eles foram lá buscar o Ribeiro da Costa, o presidente do Supremo. E ele não cumpriu seus deveres elementares de presidente do Supremo. 

O que aconteceu?
Quando o Doutel chegou dizendo que iam dar o golpe, botei um papel na máquina e fiz a última comunicação do Estado Democrático daquela fase. Assinada por Darcy. Só o Darcy poderia aprovar.
Está nos anais do Congresso. Entrou para os anais porque Doutel levou para a sessão conjunta da Câmara e do Senado. Eles saíram do Congresso com o golpe dado, passaram pelo Supremo, pegaram o Ribeiro da Costa, e empossaram o Ranieri Mazzilli na Presidência da República. Foi uma coisa articulada, presidente do Supremo, presidente do Senado, presidente da Câmara dos Deputados. 

O senhor e o Darcy foram os últimos no palácio, quando os golpistas fecharam a porta da democracia e abriram a da ditadura. É isso?
Os dois últimos a sair do Palácio do Planalto. Na hora em que eles chegaram, foram direto para o terceiro andar e deram posse ao Ranieri Mazzilli. Quando isso aconteceu, nós saímos e eu disse ao Darcy: “Nós vamos para o Rio Grande, não é? Vou passar em casa, dar um beijo na mulher e nos meus filhos, pegar um camisa e ir direto para o aeroporto”. Darcy respondeu: “Eu também”. Marcamos de nos encontrar em 20 minutos. Cheguei um minuto antes do Darcy. Um major da Aeronáutica me viu: “Doutor Waldir, o senhor aqui? Mas se o virem, o senhor está preso”. 

Foi na Base Aérea?
Sim. Disse ao major que estava esperando o Darcy e iríamos decolar em seguida. E o major: “Mas daqui não sai mais nada. Está tudo ocupado. Não tem nenhum avião disponível, não tem coisa nenhuma mais”. Nisso, o Darcy chegou e o major foi nos conduzindo: “Saiam por aqui, senão os senhores estão presos”. Nós saímos e paramos para conversar 500 m adiante, porque estávamos em carros distintos. Já eram duas e tanto da manhã. Eu falei para o Darcy: “Vou bater na porta de uma casa e pedir um colchão”. Darci fez a mesma coisa. No dia seguinte, tivemos uma reunião de companheiros, entre as 23 horas e a meia-noite, para analisar a situação, o golpe. Almino Affonso estava lá, os deputados Temperani Pereira e Fernando Santana também. Era um grupo de 15 a 20 companheiros. 

Qual foi a conclusão?
Disseram que eles, que tinham mandato, deveriam ficar em Brasília para salvar o que fosse possível daquele processo: “Você e Darcy têm que ir embora, encontrar o presidente porque ele, inclusive, está precisando de pessoas para conversar, para analisar a situação”. Nessa hora, levantou-se o Rubens Paiva: “Essa tarefa é minha, eu assumo a logística”. Rubens era um D’Artagnan, uma figura extraordinária. Ele pôs alguns companheiros, os mais ameaçados, fora de Brasília. Era excepcional o Rubens. Na madrugada seguinte, fomos com o Rubens para o aeroporto: “Olha, você e Darcy vão viajar em um aviãozinho monomotor. Terão de sair depois das 6 horas, quando o aeroporto abrir. O resto, o piloto vai dizer. Vocês ficam nessa moita. Estão vendo a pista?”. 

Moita mesmo?
Moita com pouco capim, que é escasso no serrado. O Rubens havia passado à tarde e escolhido o local, a uns 30, 40 m da pista. Disse que, quando ouvíssemos o som do aviãozinho, era para sair detrás da moita, correr e entrar no avião. E assim fomos para uma fazenda do Jango, na fronteira da Bolívia com o Mato Grosso. 

Quanto tempo esperaram na moita?
Ficamos desde as 4 horas da manhã, com uma malinha. Tinha que chegar ainda no escuro. O Rubens advertiu muito que não era para levantar a cabeça depois que o dia amanhecesse. Por volta das 6h30, ouvimos o barulho e corremos para o avião.

E na fazenda?
Chegamos por volta das 11 horas da manhã e ficamos aguardando um outro avião, trazendo gasolina para nossa viagem até Porto Alegre. Instruímos o administrador da fazenda a dizer que não tinha chegado ninguém. Antes de eu sair de Brasília, na última hora, Yolanda tinha me dado um litro de Old Parr e uma porção de chocolate, pensando que poderíamos pegar tempo frio. Então, nós sentamos e começamos a tomar o Old Parr e a comer o chocolate. 

Isso na moita ou na fazenda?
Já na fazenda. À noite, nós dormimos no campo. Tudo isso se dá no dia 4 de abril. Por volta das 9 horas da noite, por um rádio de pilha, chegou a notícia de que o presidente João Goulart tinha chegado a Montevidéu e pedido asilo político. 

O que os senhores pensaram?
Pensamos que não tinha mais como ir para Porto Alegre. E que não podíamos voltar, porque estávamos sendo procurados por toda parte. Então, a alternativa era o exílio, encontrar o presidente em Montevidéu. 

Foram direto para Montevidéu?
Não. Fomos para Salto, uma cidadezinha que tinha aeroporto, mais ao norte do Uruguai. Quando nos aproximávamos, o tempo fechou. O piloto, o Valmir, disse: “Não dá para entrar nessa tempestade com esse aviãozinho. Eu vou dar dois sobrevoos rasteiros, vou afastar aqueles carneiros e ovelhas que estão lá embaixo e vou descer”. E fez isso. Descemos. Ele ficou guardando o avião. Darcy e eu saímos andando. Não sabíamos onde estávamos. Uns 200 ou 300 m adiante já havia algumas pessoas. 

Queriam saber do avião?
Perguntavam em espanhol se o avião tinha caído. Estávamos em Arapey, uma estação de águas do Uruguai. Tinha um pequeno hotel. Chegando lá, olhamos a piscina e perguntei: “Vocês têm um calção, alguma coisa para comer?”. A sorte começou a mudar. Comemos alguma coisa e entramos na piscina. Ficamos naquela água tépida, admirável, esvaziando todas as tensões. 

O senhor tinha quantos anos?
Trinta e sete. Daí a pouco, vimos que se aproximava um cabo da polícia, com espada e tudo. Eu disse para o Darcy que iria me levantar e pedir asilo político. 

De calção?
Sim. Eu me levantei de calção. O cabo bateu continência e pedi o asilo político, com os fundamentos do Acordo Internacional de Havana, que controla as relações latino-americanas. O cabo bateu continência de novo: “Vou comunicar a meus superiores”. Duas horas depois, ele voltou dizendo que o asilo político seria concedido. Estávamos com audiência marcada no Ministério da Justiça, em Montevidéu. 

E no dia seguinte?
Liberamos o piloto e pegamos um ônibus para Montevidéu. Chegamos um pouco tarde, entramos no primeiro hotelzinho que encontramos. No outro dia, fomos ver o presidente João Goulart, que estava hospedado na casa de um amigo dele. 

Nessa época, ele já tinha fazenda no Uruguai?
Ele comprou a fazenda depois, no mês de junho ou julho. Eu me lembro bem porque nessa ocasião ele teve um problema cardíaco. 

Foi quando ele se tratou na França?
Não, foi em outra oportunidade. Esse foi mês de junho ou julho, quando ele teve um infarto em Montevidéu. Ele teve um primeiro problema no México, algo ligeiro. Em Montevidéu foi mais avançado. Nessa ocasião, ele chegou a me contar: “O médico me disse que eu não podia ficar andando para lá e para cá dentro de um apartamento, que tinha de arrumar a minha vida. Eu só sei fazer duas coisas: política e cuidar de boi. De modo que vou ter de comprar uma fazenda por aqui”. E comprou uma fazenda em Taquarembó. Ele era um homem muito rico, tinha uma média de 20 mil cabeças que ele engordava nas fazendas dele. E saiu do governo muito menos rico. 

Na sua visão, qual o papel de San Tiago Dantas na decisão do Jango de não resistir ao golpe? San Tiago foi ministro das Relações Exteriores do Jango, tinha bom trânsito nos Estados Unidos.
Ele era advogado, muito bem informado. Logo depois desse enfarte em Montevidéu, o presidente me chamou porque queria fazer uma mensagem para o País. Ficamos alguns dias conversando, escrevendo e compondo a mensagem, a ser enviada ao Doutel, que ainda não tinha sido cassado. O Doutel leu essa mensagem no Congresso Nacional, no dia em que o Jango queria, 24 de agosto de 1964, quando completava dez anos da morte de Getúlio Vargas. 

O senhor participou da produção desse texto.
Nesses dias que a gente estava conversando, Jango me contou, com muito sentimento, a conversa de San Tiago com ele, uns três ou quatro dias antes de sair do Rio. O San Tiago já estava doente, com câncer, morreu pouco tempo depois. Disse assim: “Presidente, eu quero lhe dar uma palavra para o senhor refletir. Se porventura for necessário que haja uma revolução civil no Brasil, dá para sustentar muito bem, se o senhor sentir que é possível ser vitorioso. Se for uma coisa um pouco aventureira, presidente, não permita isso. Quero lhe dizer que estou informado de que uma esquadra americana já está descendo o Atlântico Sul e o propósito dela é de vir em direção a Vitória do Espírito Santo. Se prepara, presidente. É uma tentativa de desestabilizar completamente o Brasil. Se houver uma participação dos Estados Unidos, no nível de presença física, de força, eles vão dividir o Brasil. A política do Pentágono é dividir o Brasil. É inconveniente para o pensamento militar estratégico americano que o Brasil continue sendo esse continente e que permaneça em uma posição distinta da pulverização havida na América do Sul”. 

Isso se comprovou mais tarde com a liberação de documentos do Departamento de Estado americano. Tem a gravação de uma conversa do presidente Lyndon Johnson sobre a força naval enviada para o Brasil.
E essa conversa com San Tiago foi importantíssima na cabeça do Jango. O golpe de Estado já tinha sido dado, digamos assim, em setembro de 1961. Quando Jânio Quadros renunciou, os três ministros militares fizeram um pronunciamento de que o vice-presidente não assumiria. E Jango tinha uma força extraordinária. 

Na época, a votação do vice era separada.
Completamente. Quando dizem que João Goulart não tinha o apreço da população, é uma mentira completa. Em 1955, ele se elegeu vice com meio milhão de votos acima de Juscelino Kubitschek. Cinco anos depois, também de forma independente, ele foi eleito vice de Jânio Quadros. 

Por que ele saiu do Rio de Janeiro no dia 31?
Porque o Rio tinha caído. Do ponto de vista militar, o Jango tinha um ministro da Guerra muito participativo, mas que estava internado em um hospital, morrendo. O Jango era um homem de grande sensibilidade humana. Era difícil ele fazer grosserias. De modo que, com esse temperamento, Jango não demitiria um amigo que estava doente, morrendo. Mas foi um erro gigantesco, porque ele ficou sem ministro da Guerra, sem o Rio de Janeiro. 

E aconteciam outras mobilizações contra o governo.
Havia uma conspiração geral dos interesses, inclusive dos interesses fundamentais dos Estados Unidos, dos quais o embaixador Lincoln Gordon era um agente. Tive um episódio com ele, quando o presidente me incumbiu de estudar e disciplinar as remessas de lucros para o Exterior. Foi em um momento que eu tinha uma vida muito trabalhosa. Era professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília. Entrava na universidade por volta das 7 da manhã e saía 9h30, 10 horas, direto para a base administrativa da Consultoria-Geral da República. 

Perto do Hotel Nacional?
Isso mesmo. Lá, eu não recebia ninguém nem atendia telefonemas. Dava instrução para o pessoal de que só atenderia ligação de minha mulher e do presidente da República. E me concentrava nos pareceres, no que precisava ser feito. Às 16 horas, invariavelmente, eu ia para o meu gabinete na Presidência da República e ficava por conta do presidente, às vezes até as 22, 23 horas. Chegava em casa, os meninos já estavam dormindo. Era uma loucura. Um belo dia eu cheguei ao gabinete às 4 horas da tarde e o meu secretário me disse: “Dr. Waldir, o embaixador Lincoln Gordon está procurando o senhor desde manhã, está meio assim zangado, e pede que o senhor dê um pulo na embaixada, para tomar um drinque com ele, às 17 horas”. Imagine… 

Embaixador convocando o consultor da República.
Eu pedi ao secretário que telefonasse para a embaixada: “Diz que estou muito ocupado e o recebo no meu gabinete, para ele tomar um café comigo às 5 horas da tarde, a hora disponível dele”. Às 5 horas, ele chegou. Começou a conversar sobre um assunto, uma conferência, para depois passar para o outro, que era o mais importante para ele. Então me disse que os jornais estavam noticiando que o presidente havia me encarregado de informar a ele sobre as remessas para o exterior de lucros oriundos de juros e dividendos. Eu respondi a Lincoln Gordon: “Olha, embaixador, isso eu não converso com o senhor, não converso com embaixador da Inglaterra, da França, com embaixador nenhum. Esse assunto, eu só converso com uma pessoa, o presidente”. Aí, o embaixador se empertigou todo: “Passar bem”. E foi embora. 

Os Estados Unidos foram fundamentais para o golpe.
A origem mais profunda do golpe era a posição dos Estados Unidos. Eles tinham um projeto de poder para o mundo. E não perdoaram a carta de Jango ao presidente Kennedy. Foi uma carta linda, em que Jango disse que o Brasil não concordava com a negação dos princípios da autodeterminação dos povos. Essa carta é do período em que os Estados Unidos identificaram que em Cuba existia um começo de instalação de materiais atômicos.

A crise dos mísseis.
Isso. No Brasil, a orientação que levou ao golpe de Estado é inequívoca. Na Guerra Fria, eles precisavam do apoio brasileiro. Tanto que, depois do Brasil, eles instituíram ditaduras no resto da América do Sul.

Como o senhor, que viveu a agudização da direita nos anos 1960, vê o crescimento da direita hoje?
Esse crescimento está muito nítido, sobretudo porque a imprensa é monopolizada pelos donos do poder econômico. Eu não tenho a menor dúvida de que a mídia brasileira está hoje onde sempre esteve. É atroz. Fazer a democracia é alterar a natureza das relações humanas. 

Como o senhor conheceu o Jango?
Na campanha de 1955. Eu apoiei o Jango. Comecei a vida política muito cedo, no interior da Bahia. Nasci em Acajutiba, na Bahia, mas meu pai foi trabalhar em Amargosa quando eu tinha 2 anos. De forma que Amargosa foi a terra da minha infância, mas não tinha ginásio. Estudei em uma cidade do Recôncavo, Nazaré das Farinhas, em um ginásio dirigido por um poeta admirável, Anísio Melhor, uma pessoa humana extraordinária. Fiz o ginásio até os 15 anos. No quinto ano, meu pai me chamou. 

Em Nazaré das Farinhas?
Em Nazaré ficava o internato. Meu pai me chamou e disse que eu teria de voltar para Amargosa, pois meu irmão tinha passado no vestibular em Salvador: “Não posso manter dois estudantes, você volta para Amargosa, depois a gente vê”. 

Eram quantos filhos?
Quatro. Meu pai era funcionário público. Não dava para pagar estudo para os dois. Quando terminei o curso, o diretor, Anísio Melhor, virou para mim e disse: “Quero lhe fazer uma proposta. Você fica em Nazaré, aqui no colégio. Você vai ensinar datilografia, porque o meu professor de datilografia foi embora, nem me deu notícia”. 

Assim o senhor virou professor de datilografia.
Ganhava 20% da renda do setor de datilografia. Fazia também a banca (dava aulas de reforço) dos internos e organizava o dormitório. Com isso, tinha a comida, a dormida e os 20% do curso de datilografia. Disse ainda que iria escrever para meu pai. 

Seu pai concordou?
Concordou. Então, em 1942 eu continuei em Nazaré das Farinhas. No começo do ano, chegou uma equipe de estudantes do Colégio Público da Bahia, com a tarefa de dizer que o Brasil tinha de entrar na guerra. Eu fiz um aparte. Depois, me convidaram seguir na tarefa com eles, descendo a estrada de ferro. O diretor da ferrovia cedeu um trole. O difícil era só nas subidas. Tinha de ser na base do empurra. Levamos uma semana descendo o Sudoeste. Passei inclusive por Amargosa. De forma que eu tinha 15 anos quando entrei na política. 

Em qual partido?
Não tinha partido. E 1942 foi um ano extraordinário. Logo no começo do ano, o ministro da Educação, Gustavo Capanema, fez uma reforma no sistema educacional. Uma das loucuras do Capanema é que tinha de estudar latim em todos os cinco anos do ginásio. Em uma cidade como Nazaré das Farinhas, foi o caos. Não tinha professor de latim. Mas meu pai tinha sido seminarista no Caraça, em Minas Gerais, como órfão. 

Como órfão?
Passou nove anos lá, como órfão. Teve uma formação extraordinária. Como o velho sabia muito latim, nas férias eu e meu irmão fazíamos banca de latim com ele. Nós éramos campeões de latim. Aprendi latim para traduzir Cícero. 

Ele ensinava o ativo, o vocativo, todas as declinações?
Todas elas e a arrumação léxica. O resultado é que, no mês de fevereiro, a cidade de Nazaré passava por uma certa crise. Quase não teve estudante matriculado no curso de datilografia. Meus 20% não davam para comprar um pão por dia. Mas o diretor permitiu que eu desse um curso particular de latim das 17 às 18 horas. Eu deixava a sala arrumadinha. Abri o curso, dez cruzeiros por mês, três vezes por semana. Segundas, quartas e sextas, uma turma. Terças, quintas e sábados a outra turma. Fiquei com a média de 60, 70, 75 alunos. 

Isso aos 15 anos.
Isso. De forma que, no fim de 1942, eu estava com dinheiro. Em 1943, eu vim para Salvador. Como era bom datilógrafo, consegui emprego. Trabalhava de manhã e de tarde, e fazia o curso clássico à noite, no Colégio da Bahia. Na política estudantil, a questão política essencial era tentar mudar o setor de energia. Na Bahia, a energia era controlada por uma companhia estrangeira, a Bond and Share. 

O senhor foi secretário de Estado aos 24 anos. Depois, foi deputado, vice-líder do governo JK, consultor-geral da República, professor e coordenador dos cursos jurídicos da UNB, governador da Bahia, ministro do governo Lula. Agora é vereador. Por quê?
Para poder continuar a lutar, ser solidário. A humanidade sempre trabalhou na base do poder sem critérios e sem valores. Isso não é mais possível. Chegamos a um nível extraordinário de ciência e tecnologia, mas não somos capazes de assegurar que todas as pessoas possam comer. O mundo precisa de uma ética generalizada para todos.

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