segunda-feira, 27 de março de 2023

Radio gaga


Minha formação musical “primordial”, digamos assim, veio basicamente do rádio e das fitas de musica “brega” que meu irmão, caminhoneiro, gravava em
Gud Gud, de Itabaiana, uma loja que funcionava num esquema de pirataria pré-internet: tinha um grande acervo de LPs e lá você podia passar horas selecionando faixas para coletâneas em fitas k7. Vem daí que curto, até hoje, o “brega” da década de 1970, principalmente – Marcio Greick, Fernando Mendes, Odair José – e as baladas românticas dos artistas brasileiros que se travestiam de “gringos” – quase chorei quando o Mopho, num show no Che, tocou um cover de “We say goodbye”, de “Dave McLean”.

 

Sempre curto, também, quando rola algum hit de FM da década de 1980. Me remete a uma época muito boa, de descoberta do mundo – nasci em 1971. Tipo “Captain of the heart”, do Double(quem?). Era o que eu ouvia antes de virar “roqueiro”: radio FM. E AM por tabela, via meu pai.

 

Porque virei “roqueiro” praticamente parei de ouvir radio – voluntariamente, no caso – e perdi de curtir quando tocava coisas que hoje curto, como Teas for fears e Pet Shop Boys. Passei a levar uma “vida imbecil, zanzando atrás do que é bom” e controlando o que vai no meu som – acredite, John, do pato Fu, dedicou essa musica pra mim uma vez, num show. Tínhamos contato por carta, quando eu era fanzineiro.

 

Em todo caso, tocava rock no rádio na década de 1980. Muito, até. Eu diria inclusive que comecei a virar “roqueiro” ouvindo U2, Dire Straits, Ira!, Camisa de Vênus, Replicantes e Hojerizah na Atalaia FM, principalmente. Mas em 1986 eu ouvi os acordes iniciais de “Caught somewhere in time” do iron Maiden – não no radio, no caso, numa vitrola mesmo, direto dos sulcos de um LP  – e fudeu: virei “metaleiro”. E, pelo menos em Aracaju, metal não tocava no radio.

 

Assinei a revista Rock Brigade, especializada em Heavy metal, mas lia também a Bizz, que era mais “pop” e chegava em Itabaiana, na Livraria Cunha – que na verdade era uma papelaria, mas funcionava também como banca de revistas. Sempre fui “eclético”. E graças a um programa de rádio da mesma Atalaia FM produzido de forma independente por Antonio Passos e Roberto Aquino, donos da primeira loja especializada em rock e música independente do estado, a Disturbios Sonoros, pude finalmente ampliar significativamente meus horizontes musicais ouvindo coisas que eu só conhecia de ler a respeito na clássica publicação da Editora Abril. Tipo Fellini, Harry, e clássicos como Mutantes e Casa das máquinas – da primeira a primeira que ouvi, no programa de Passos e Roberto, foi “O meu refrigerador não funciona”, e da segunda foi “vou morar no ar”. Lembro bem porque sempre gravava tudo em fitas k7 para ouvir depois, “n” vezes. Pena que não guardei essas fitas, hoje em dia seriam relíquias. Detalhe: acho que cheguei a ligar para a radio umas duas ou três vezes pra reclamar porque eles não tocavam Iron Maiden ...

 

Muito por conta dessa minha relação de afeto pelo Rock Revolution – era o nome do programa – sempre tive vontade de fazer também o meu. Aconteceu, em parte, na década de 1990, lá em Itabaiana mesmo. Eu já morava em Aracaju, mas despencava pra lá a cada 15 dias com a mala do carro cheia de LPs para dar minha contribuição ao Guilhotina, o programa que um amigo, Ademir Pinto, tinha na Itabaiana FM. Ele era operador e havia sugerido ao dono da radio ocupar um espaço ocioso aos sábados, depois da Voz do Brasil, aproveitando os acervos de discos dos amigos, dentre eles eu.

 

Não tenho idéia até hoje se tivemos alguma audiência – de vez em quando o telefone tocava e nós ficávamos excitados achando que era algum ouvinte mas era sempre sobre algum assunto que não tinha nada a ver com o que estávamos tocando – mas me diverti fazendo. Também porque Ademir já queria ser demitido mesmo então liberou para que os produtores chutassem o pau da barraca: uma vez ele me ligou avisando que o programa ia rolar mas seria interrompido a qualquer momento por chamadas direto de um povoado onde um poço artesiano ia ser inaugurado pelo vice-governador do estado, que não por acaso era também o proprietário da radio. Coloquei no ar, então, um especial “grindcore”, com Napalm Death, Carcass, Extreme Noise Terror e afins. O vice governador ouviu, mas não o demitiu, apenas reclamou porque a gente não tocava Raul Seixas.    

 

Quem tinha audiência cativa era o programa “concorrente”, o Sabotage, de Adelardinho Jr., que ia ao ar no mesmo horário por outra emissora, a Princesa FM. Muito por conta do carisma e de algumas grandes sacadas “sem noção” de seu produtor/apresentador: pra que se tenha uma idéia, uma vez ele pegou em mercadorias o valor de dois patrocínios que uma sorveteria e uma funerária deviam e sorteou entre os ouvintes um caixão de defuntos cheio de picolés. O sucesso foi tanto que a promoção se tornou anual, com direito ao caixão ser conduzido em cortejo até a casa do ganhador – em pelo menos uma ocasião com o próprio dentro, para o horror de sua mãe, desavisada, que quase morreu de enfarto.

 

Já no inicio do século XXI o rádio seguia com algum prestigio, apesar da crescente concorrência da internet, e um grupo de amigos conseguiu o feito de colocar no ar, também pela Atalaia FM, um novo programa dedicado ao rock “indepentente”, o playground  – no caso mais “indie” mesmo, refletindo o gosto musical dos mancebos, Rafael Jr, baterista da Snooze, Patrick Tor4, Bruno Aragão e Augusto. Muito Weezer, Sonic Youth, Flaming Lips e afins, inclusive com faixas raras e exclusivas baixadas da internet, a grande novidade da época.

 

Toda essa história de guerrilha sonora escavando trincheiras nas ondas do radio converge, na segunda metade da primeira década do novo século, para uma novíssima programação da emissora pública do estado, a Aperipê FM, que caiu nas mãos, graças às voltas que o mundo dá também na política, do DJ Patrick Tor4, o mesmo da trupe que fazia o playground. Foram tempos gloriosos, onde taxistas desavisados poderiam se deparar, ao mudar de estação, com uma programação totalmente inesperada dividida em segmentos antológicos como o Clube do jazz, Império periférico – dedicado ao rap -, Encruzilhada – que tocava blues -,Vanguarda e o programa de rock. Os dois últimos eram os mais radicais. O primeiro, produzido e apresentado por Alessandro “Cabelo”, tocava musica de ... vanguarda. Mas de vanguarda MESMO, indo a extremos tais que passou a adotar o aviso “seu rádio não está com defeito, você está ouvindo o Vanguarda”, depois que um operador da radio achou que o sinal estava fora do ar.

 

Já o programa de rock foi concebido e apresentado, nos seus dois primeiros anos no ar, por Fabio “Snoozer” e por este que vos digita, que o levou até o final, 9 anos depois. Também flertava com extremismos – de Daminhão Experiença e Incinerated Clitorial region, passando por Cocteau Twins, Motorhead, Pixies e muito rock sergipano, cujos integrantes das bandas eram também, rotineiramente, entrevistados. Durou até 2016, numa trajetória da qual muito me orgulho e que teve alguns pontos culminantes, como o lançamento ao vivo, com a banda tocando direto dos estúdios, do então novo LP da karne Krua, seminal banda punk local. Foi meu momento “peel sessions”.

 

Há programas de rádio antológicos dos quais sempre ouvi falar mas nunca tinha ouvido, até o advento da internet. É o caso do “Garagem”, produzido e apresentado pelos Andrés Barcinski e Forastieri com Alvaro Pereira Jr. e Paulo Cesar Martin desde a década de 1990. Sobrevive até hoje em formatos variados, atualmente como podcast sob o nome ABFP – Amigos, Barcinski, Forasta e Paulão. É dos meus favoritos.

 

Pela internet pude acompanhar também os últimos anos da carreira de Kid Vinil, sempre uma grande referência, como radialista. E também a antológica Ipanema FM, de Porto Alegre, que tocava “marquee moon” do Television e “Pau no seu cu menina” dos Devotos de Nossa Senhora Aparecida na programação normal, no meio da tarde!

 

Sigo ouvindo radio até hoje. As “de fora”, como a Kiss de SP e a Saudade FM de Santos, pela internet. Mas principalmente na madrugada, quando a programação costuma ser mais musical e menos pasteurizada, em emissoras especificas que tocam musica que não ofende os ouvidos, como a Fan, Nova Brasil e a Transamérica FM, que vieram salvar minhas noites insones da falta que me faziam as finadas Atalaia e Liberdade FM.


A.


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