Mas esta é apenas a minha opinião. É difícil delimitar os limites para a liberdade de expressão, se é que deve existir limites. Tendo a crer que não, muito embora concorde que discursos de incitação ao ódio, como os que o tristemente célebre deputado Bolsonaro costuma defecar oralmente por aqui, devam ser encarados como exceção. Mas como definir, também, o que é um discurso de incitação ao ódio? O caso do Charlie Hebdo me parece exemplar, pois tenho visto opiniões bastante divididas a respeito. Complicado.
Mas uma coisa é clara e evidente: absolutamente NADA justifica a reação dos terroristas - com T Maiúsculo - que perpetraram essa barbaridade. Qualquer tentativa de tergiversação quanto a isso equivale ao equivocadíssimo argumento de que as mulheres são estupradas e/ou abusadas porque provocam a agressão. Digo o mesmo para os que tentam diminuir a tragédia com outro argumento já bastante conhecido, o de que o mundo não se comove na mesma intensidade quando a barbaridade acontece em recantos periféricos do planeta, como na Nigéria, onde o grupo terrorista Bokko Haran acabou de perpetrar um massacre abominável. É uma distorção perceptível e que deve ser corrigida, mas que não deve, a meu ver, ser usada como pretexto para desdenhar do que aconteceu na França. Não se trata de número de vítimas, de contagem de corpos. "A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade", já dizia John Donne.
É o que tenho a dizer para o momento. Em todo caso, seguem alguns bons textos com algumas opiniões divergentes e questionamentos pertinenentes sobre o assunto ...
« Sob a Quinta (República) autoritária, Charlie serviu de breviário à moçada de Maio (de 1968). Cada semana, era um sarcasmo lançado à cara dos poderosos, uma irreverência à pomposa seriedade (dos politicos), tudo isso em prol de uma sociedade diferente ; um pouco melhor, um pouco mais fraternal. Se hoje vivemos com menos preconceitos, menos censura, menos espartilhos e princípios fora de moda, com um pouco mais de autonomia, de livre arbítrio, de humor, é graças a esse bando de folgazões, estrondosos e calorosos, que sempre preferiram a palavra certa a uma renúncia , e que o pagaram com suas vidas. Ao longo da sua longa historia, nunca desviaram. Todos os autoritários, os solenes, os repressivos, os obscurantistas, os peixes-mortos e os importantes da França tiveram o que reclamar de Charlie. Estão vingados. Charlie foi censurado pelo "gaullismo", escândalo esquecido. Charlie é assassinado pelo islamismo. Mudamos de época.
Teria sido por acaso ? Os terroristas não atacaram os islamofóbicos, inimigos dos muçulmanos, os que não cessam de acusar o lobo islamista. Visaram Charlie. Isto é, a tolerância, a recusa do fanatismo, o desafio ao dogma. Visaram essa esquerda aberta, tolerante, laica, excessivamente gentil, talvez, «direithumanista», pacífica, indignada com o mundo, mas que prefere fazer piada a impor o seu catecismo. Essa esquerda de que fazem troça Houellebecq, Finkielkraud e todos os identitários… Os fanáticos não defendem a religião, que pode ser acolhedora, não defendem os muçulmanos que na sua grande maioria revoltaram-se contra esses assassinatos abjectos. Eles atacam a liberdade."
de Laurent Joffrin, do Jornal LIBÉRATION
No rescaldo dos últimos dias descubro que é muito maior do
que eu pensava a quantidade de pessoas que são a favor da liberdade de
expressão, DESDE QUE NÃO SE DIGA O QUE ELAS NÃO QUEREM OUVIR. Assim é fácil,
cara pálida! Até os maiores ditadores do mundo eram a favor da liberdade de
expressão com esse porém. Cinco coisas:
1 - Atacar (ou ofender mesmo) ideologias e entidades não é
igual a atacar pessoas diretamente por causa da sua etnia, orientação sexual,
gênero ou mesmo crença. Imagine se não podemos atacar religiões, ideologias
políticas...fodeu! Racismo é crime, blasfêmia não, ao menos nos países abertos
e laicos. E o jornal Charlie Hebdo tem sede na França, que aliás foi o primeiro
país laico do mundo.
2 - "Ah, mas não se deve ofender a religião dos
outros" - interessante! Quem determina o limite da ofensa? É que para
alguns basta dizer que Deus não existe que já se configura uma ofensa terrível.
Experimentem fazer isto no meio de fanáticos, sejam de que religião forem.
3 - É verdade que os EUA têm uma política externa
imperialista e que ao longo dos anos só fez merda no Oriente Médio por causa
dos recursos naturais, que as minorias são discriminadas na Europa e que a
extrema-direita adora tirar proveito dessa situação toda. Mas vamos parar de
misturar tudo. Houve um atentado de fanáticos intolerantes contra o direito de
se expressar livremente. Não existe um "mas". Ou se condena o ato
veemente, ou se é conivente. Os outros temas podem vir à posteriori num debate
mais aprofundado, sério e sem histeria.
4 - Já repararam na dinâmica das notícias no Facebook?
Primeiro surge a notícia, depois as reações uniformes, depois as reações
"contra-corrente" dos que querem ser "do contra" a todo
custo, e depois, claro, aparecem as TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO. Entramos nesta
última fase agora, porque as pessoas realmente acreditam em qualquer absurdo
que elas querem que seja verdade.
5 - O Charlie Hebdo é muito mais de esquerda do que esse
bando de gente de esquerda que, sem conhecer a sua história, o acusa de ser de
direita e pega o embalo para atacar a liberdade de expressão em nome de uma
agenda política contaminada por uma total falta de discernimento ou pelo mais
fanático "bairrismo" ideológico.
O mundo inteiro ganhou, em dois dias, milhões de
especialistas instantâneos na história do Charlie Hebdo. Juntamente com o
movimento “Je Suis Charlie”, veio a negação “Je Ne Suis Pas Charlie” (“Eu Não
Sou Charlie”). No meio deste grupo, surgiu uma onda apressando-se em
justificar, de alguma maneira, o massacre dos cartunistas com base no clássico
“quem mandou?”
Os artistas seriam racistas. Para provar, ilustrações do DH
estão sendo compartilhadas. Duas delas estão circulando intensamente entre os
campeões desta tese. Uma mostra uma negra como uma macaca. A segunda, um negro
com, perdoe meu francês, uma banana no rabo. Há outros desenhos, igualmente
pinçados sem critério algum e sem contexto.
A negra é a ministra Christiane Taubira. Em 2013, ela foi
chamada de macaca por uma política da direitista Frente Nacional. O Charlie
Hebdo fez uma denúncia disso. A bandeirinha no canto esquerdo é uma referência
à FN. Não é um endosso. Taubira ficou grata. Pouco depois da tragédia, Taubira deu uma entrevista a uma
rádio, em frente ao CH, dizendo que era preciso que os franceses se
organizassem para que a próxima edição saísse. “Nós não podemos admitir que o
Charlie Hebdo desapareça”, afirmou.
O homem da outra charge é o comediante francês Dieudonné,
autor do gesto da “quenelle”, uma espécie de “banana”, imitado por jogadores de
futebol como Anelka. Dieudonné é amigo e aliado de Jean Marie Le Pen, fundador
da Frente Nacional, de extrema direita, fortemente antiimigração. O humorista
tornou-se também revisionista do Holocausto.
A estranha necessidade de enxovalhar a reputação dos
jornalistas nasce também da noção de que apenas vítimas perfeitas merecem
justiça. O que não é o caso dos criadores do CH — um jornal feito para a
polêmica, absolutamente anárquico, ultrajante e eventualmente de mau gosto. Uma leitora francesa deixou um comentário aqui no DCM.
Publico alguns trechos:
“Não sei se devo rir ou chorar. Sou francesa e quando estou
lendo que ‘tratar como heróis cartunistas alinhados à visão imperial de seu
país é e sempre será um erro’ ou ‘será que ao retratar sempre os árabes com
bombas e espadas a revista não estava também estimulando o que existe de pior
em seu público?’ só quero dizer que vocês nunca entenderam as criticas que
fazia Charlie Hebdo.Esse jornal, apoiando a visão imperialista da França na
África? Apoiando essas políticas de exclusão dos jovens de origem árabe, que
não encontram trabalho na França? Mas isso é tudo o que Charlie Hebdo estava denunciando. As
caricaturas desrespeitosas tinham o objetivo de denunciar todos esses fenômenos
de extremismo religioso, como o terrorismo, que não tem nada a ver com os
muçulmanos. (…)
Se vocês não percebem a sátira dos desenhos, ou se vocês não
gostam, tudo bem. Mas, por favor, nesse clima duro que a França está
atravessando, seria de bom tom não pegar atalhos e espalhar desinformação, ou
pior, bobagens, sobre as mensagens políticas do jornal.”
Em 2013, Stephane Charbonnier, o Charb, falou das acusações
de racismo. Charb foi um dos chacinados:
“O Charlie Hebdo está se sentindo decididamente doente.
Porque uma mentira inacreditável está sendo dita: o Charlie Hebdo tornou-se um
panfleto racista. Estamos quase com vergonha de lembrar que o anti-racismo e
uma paixão pela igualdade entre todas as pessoas são e continuam a ser os
princípios fundadores do Charlie Hebdo. (…)
Charlie Hebdo é filho de maio de 68, do espírito de
liberdade e insolência. O Charlie Hebdo da década de 1970 ajudou a formar o
espírito crítico de uma geração. Zombando dos poderes e dos poderosos. Por rir,
às vezes escandalosamente, dos males do mundo. E sempre, sempre, sempre
defendendo os valores universais do indivíduo.
Por que essa idéia ridícula se espalha como uma doença
contagiosa? Somos islamofóbicos, afirmam aqueles que nos difamam. O que
significa, em sua própria novilíngua, que somos racistas. Quarenta anos atrás, era considerado obrigatório zombar da
religião. Qualquer um que começou a perceber para onde o mundo estava indo não
poderia deixar de criticar o grande poder dos maiores organismos clericais. Mas
de acordo com algumas pessoas, na verdade, mais e mais pessoas, atualmente você
tem que calar a boca.
O Charlie ainda dedica muitas de suas capas a ilustrações
papistas. Mas a religião muçulmana, imposta a inúmeras pessoas em todo o
planeta, deve ser de alguma forma poupada. Por que diabos? Qual é a relação, a menos que seja apenas
ideológica, entre o fato de ser árabe, por exemplo, e pertencer ao Islã? (…)
Nós nos recusamos a fugir de nossas responsabilidades. Mesmo
que isso não seja tão fácil como em 1970, nós vamos continuar a rir dos padres,
dos rabinos e dos imãs – quer isso os agrade ou não. Somos minoria nisso?
Talvez, mas ainda assim estamos orgulhosos. E aqueles que pensam que o Charlie
é racista deveriam, pelo menos, ter a coragem de dizer isso em alto e bom som.
Nós saberemos como responder a eles.”
por Kiko Nogueira
"Eu me lembro
que quando o Fatwa foi declarado contra Salman Rushdie, muitos escritores e
colunistas britânicos - que definitivamente deveriam saber disso - disseram que
“Os Versos Satânicos” ‘realmente não era tão bom assim’, e a implicação disso
era que, desta forma, seria então um grande esforço se posicionar contra a
sentença de morte declarada contra o seu autor. Na verdade, (não que isso
importe, claro) “Os Versos Satânicos” é um dos grandes romances cômicos do
pós-guerra. Um horrível absurdo similar foi espirrado recentemente sobre o tema
do filme “A Entrevista” da Sony: 'Oh, ele é realmente bastante pobre.’
O escritor (agora
em grande parte esquecido), radialista e apologista cristão Malcolm Muggeridge
destruiu seu legado como um homem sério e interessante em quinze absurdos
minutos na televisão, quando ele languidamente descreveu “A Vida de Brian” de
Monty Python como 'de décima categoria' , como se isso fosse um motivo para
parar de exibí-lo. Uma desonestidade absurda. Ele queria impedir sua exibição
porque ele sentiu-se "ofendido" por sua "blasfêmia" e então
ofereceu o mesmo não-argumento como aquele elaborado por sua companheira e
fundadora do Festival da Luz Mary Whitehouse, de memória hilariante: "Oh,
eu não estou chocada, oh não. Na verdade, eu achei um pouco chato”. É claro que
você achou, querida, e portanto, temos certamente de censurar este filme de
imediato. Bah! Hoje em dia “A Vida de Brian” é frequentemente situada no topo
de das listas de melhores comédias de todos os tempos e Muggeridge só pode ser
razoavelmente lembrado por ser o agente do MI5 que interrogou PG Wodehouse e
sua esposa em Paris de forma amável após a sua libertação, em 1944.
Então, que ninguém
pense que, para defendermos qualquer obra de arte (ou filme, ou novela, ou
desenho animado) contra a censura de qualquer tipo, quanto mais os horrores absurdos
de quarta-feira 7 de janeiro, ele precise ser 'de primeira categoria” (seja lá
o que isso signifique ).
Não estamos todos
cansados de ver aqueles que afirmam saber a resposta para a vida, a morte e a
criação serem tão fudidamente emotivos sobre o seu conhecimento? Se eu soubesse
a resposta para tudo, se eu acreditasse ter compreendido as vontades do autor
do universo e tivesse o privilégio de entender o que acontece conosco depois da
morte, a última coisa que eu seria é uma pessoa facilmente ofendida e na
defensiva. 'Tirem sarro de mim o quanto quiserem’, eu berraria. "Vá em
frente, riam até não poder mais, pode me pintar em borrões toscos, ou fazer
filmes tirando sarro. ‘Eles passam por mim como o vento ocioso que eu não
percebo’."
por Stephen Fry - tradução de Kemzo Miura
Trabalho Sujo
A questão Charlie Hebdo levantou
muitas discussões, seja nos comentários do meu blog, seja em textos de
outros autores ou nas redes sociais mundo afora. Por isso, quero
discutir aqui alguns dos pontos principais que me foram trazidos por
diversas pessoas. São muitos pontos importantes, que merecem uma atenção
detalhada, então farei o meu melhor pra aborda-los em textos separados,
uma vez que uma reclamação constante sobre o meu último texto (leia aqui) foi que ele ficou longo demais. Hoje faço uma rápida reflexão sobre a briga entre “Je suis Charlie” e “Je ne suis pas Charlie”.
1- “Se você não é Charlie, então você defende os terroristas” - ou a lógica do Quem não está conosco está contra nós.
1- “Se você não é Charlie, então você defende os terroristas” - ou a lógica do Quem não está conosco está contra nós.
Existe uma diferença enorme entre escrever “Eu não sou
Charlie” e dizer “Eu sou a Al Qaeda”. Não vi nenhum texto que diga se posicione
a favor do massacre contra os cartunistas (apesar de não duvidar da existência
de textos assim). É verdade que vi muita gente dizendo em comentários de
internet que os cartunistas mereceram o que lhes aconteceu por atacar a
religião alheia, ou por saberem que “com fanático não se mexe”. Deixe-me
esclarecer que quem diz isso está muito errado. Ninguém merece ser assassinado
por emitir opiniões ou por qualquer outra razão que o valha. Questionar as
razões da comoção internacional, contestar o conteúdo de certas charges ou
falar sobre a islamofobia na França não é se posicionar à favor da Al Qaeda,
simplesmente porque o mundo não é um jogo de mocinho e bandido.
Existem muitas boas razões pra que pessoas se declarem como
não sendo Charlie. Acredito que a principal razão seja a indignação com o “luto
seletivo”. Pessoas se indignam não porque é errado que a sociedade se choque
com o que aconteceu com os cartunistas, mas sim porque a sociedade não se choca
com todos os massacres que acontecem na África, no Oriente Médio e no Brasil.
Afinal, o que essas pessoas estão perguntando é por que o assassinato de
jornalistas brancos franceses é tão mais significativo do que o genocídio da
população negra do Brasil, os estupros e assassinatos de mulheres e os ataques
bárbaros contra gays, lésbicas e pessoas transexuais? Por que nenhum líder
mundial se pronunciou contra o atentado do Boko Haram na Nigéria, que matou
2.000 pessoas? Quem questiona isso não está dizendo que você não tem o direito
de estar chocado com o ocorrido na frança. O que essas pessoas se perguntam é:
por que e de que modo a sociedade, a política e a mídia internacional escolhem
quais mortes valem uma primeira página de jornal, um encontro de líderes
mundiais andando de mãos dadas ou um slogan de solidariedade no seu facebook?
Assim, surgiram diversos slogans alternativos, questionando
o luto seletivo, como “Je sui Amarildo”, “Je sui Ahmed” e “Je sui 83 negr@s
mort@s por dia no Brasil”. São questionamentos que devem ser feitos, e que
convidam as pessoas a refletir sobre o poder de controle ideológico da mídia e
seus interesses políticos.
Trocando em miúdos: quando homens assassinam mulheres, a
mídia não quer que você pense nisso. Quando crianças indígenas são assassinadas
por madeireiros e latifundiários, os jornais não tentam te fazer chorar. Quando
gays, lésbicas e transexuais são torturados em nome de um discurso religioso fundamentalista,
os jornais não querem que vocês pensem em cristãos como terroristas (e de fato
não se pode culpar todos os cristãos pelo fundamentalismo de alguns, como não
se pode culpar todos os muçulmanos pelos grupos terroristas ou não se pode
culpar todos os judeus pelos crimes de guerra de Israel).
O governo de São Paulo não quer as pessoas se solidarizem
com as vítimas dos mais de dez mil assassinatos cometidos pela Policia Militar
nos últimos 19 anos. Mas quando extremistas muçulmanos cometem um crime bárbaro
contra jornalistas brancos europeus, então a mídia e os governos farão de tudo
para que você saiba quem são as vítimas e quem são os inimigos.
A segunda razão principal, e a que tentei retratar no meu
ultimo texto, é o carater racista das charges do CH e os efeitos dela na
sociedade.
2- “Você não pode falar mal do Charles Hebdo porque ele falava mal de todo mundo”
2- “Você não pode falar mal do Charles Hebdo porque ele falava mal de todo mundo”
É curioso como muitas pessoas defendem passionalmente o CH
por ele ser considerado um jornal de esquerda que se dava a liberdade de falar
mal de todo mundo, e isso faz com que ninguém possa falar mal dele. Afinal, por
que um jornal pode apontar os problemas de uma religião e eu não posso apontar
os problemas de um jornal?
O objetivo do meu ultimo texto é questionar a iconização da revista
Charlie Hebdo como sendo um bastião da extrema esquerda e líbelo da liberdade
de expressão. O objeto central da minha análise é o modo como representações e
piadas racistas ajudam a inflamar o racismo da parcela racista de uma
sociedade. No caso, o CH é um jornal que defendeu diversas pautas libertárias
de um modo interessante ao longo da sua história, mas que infelizmente
escorregou feio quando retratava o Islã, quando representava negros e em muitas
charges machistas. Eles afirmam que estavam atacando os grupos extremistas
islâmicos, e esse pode ser um objetivo muito nobre e bem intencionado, mas as
imagens que eles espalhavam era de que o Islã e os muçulmanos são todos um
grupo de selvagens, radicais, violentos e ignorantes. Quem lê esse jornal não
são os membros da Al Qaeda, e sim a população francesa branca, européia de
origem cristã. Assim, quando essas pessoas vêem essa imagem, elas cristalizam a
ideia de que os muçulmanos são todos daquele jeito caricato. Isso desumaniza os
muçulmanos, faz com que as pessoas de fora os vejam não como indivíduos
pensantes com características, vontades e liberdades próprias, e sim como um
grupo homogêneo e estagnado. Frantz Fanon e Edward Said analisam brilhantemente
esse processo de desumanização do oprimido e o modo como isso é uma ferramenta
vital para possibilitar a opressão sem que o opressor se sinta culpado. Em
muitos casos, o opressor acredita que está ajudando esses “selvagens”,
libertando-os do seus costumes bárbaros e religiões barulhentas, ensinando-lhes
a serem civilizados, democráticos, comerem com garfo e faca e ouvir Mozart. É o
tal “fardo do homem branco”, uma abominação retórica feita de arrogância,
ignorância e às vezes até um pouco de boa intenção por parte de algumas pessoas
que compram esse discurso.
Isso não significa que todos os franceses sejam xenófobos,
não significa que os cartunistas mereceram morrer, não significa que terrorismo
seja legal e nem significa que o Charlie Hebdo seja o único culpado da
Islamofobia na França.
O jornal em questão pode ter publicado excelentes cartuns
sobre marxismo e contra a direita, mas isso não o isenta de ter sido racista.
Muitos escritores e militantes fazem um trabalho incrível falando sobre racismo
e isso não impede que eles sejam machistas. Conheço grupos que fazem um
trabalho exemplar sobre a luta do operariado, mas que acreditam que o fim do
Capital trará o fim do racismo e machismo (o que, na melhor das hipóteses, é
uma afirmação ingênua). Enquanto militante pró-palestina, perdi a conta de
quantas vezes vi companheiros fazendo afirmações racistas contra judeus ao
invés de atacar o sionismo. Se declarar “de esquerda” não faz com que você
esteja isento de ser um opressor, e tentar defender uma pauta libertária é
sempre louvável, mas as vezes pode ser que você esteja fazendo besteira e
piorando a lambança. É por isso que quando se quer falar sobre opressão sofrida
por negros nós devemos ouvir o que dizem militantes negros, e quando queremos
defender os direitos das mulheres precisamos aprender a ouvir o que dizem
militantes mulheres. Vi diversos muçulmanos falando sobre como as charges do CH
eram ofensivas, e vi diversas mulheres negras falando sobre o racismo e
machismo de outras charges desse jornal, e se essas pessoas se sentiram
ultrajadas, então eu não tenho nenhum direito de, do alto da minha experiência
de homem branco que nunca sofreu machismo ou racismo, contestar o sentimento e
a crítica feita por quem sofre essas violências diariamente.
Eu tento fazer o meu melhor pra lutar contra meu próprio machismo
e racismo, contra os preconceitos dentro dos quais fui criado e os sistemas dos
quais sou um privilegiado, mas sei que escorreguei muitas vezes, e é possível
que eu ainda venha a errar muitas vezes. O fato de eu me esforçar para
desconstruir meus preconceitos não me isenta de ser criticado quando eu errar.
Na verdade, eu fico muito grato quando alguém me explica que errei, porque aí
posso evitar cometer o mesmo erro novamente.
Se você realmente respeita tanto o Charlie Hebdo pelo seu
carater iconoclasta, então aprenda com ele a ser iconoclasta e entenda que
idolatrar um jornal, um cartunista ou um slogan é estar cego para a crítica que
você jura defender.
por Plínio Zúnica
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