O mundo ainda está em
choque com o massacre na redação da Charlie Hebdo e o assassinato de quatro
pessoas em um mercado kosher em Paris, pelo mesmo grupo terrorista. O choque
talvez seja não pelo número de mortos ou por ter sido na Europa, como querem
alguns, mas por ter se operado muito mais como um assassinato em massa,
objetivo e frio, do que como um atentado terrorista “aleatório”, como o que
matou 191 pessoas em Madrid em 2004. E, também, justamente por mirar
diretamente membros da imprensa, este atentado tenha chocado mais do que outros
e foi imediatamente considerado um ataque a um valor “fundamental do ocidente”,
como a maior parte da imprensa coloca.
Independentemente da razão do choque, por conta dele quase
quatro milhões de pessoas foram às ruas francesas em “protesto contra o
terrorismo”, número semelhante ao dos que comemoraram a derrota dos nazistas e
a desocupação da mesma França em 1944. É de se esperar, já que este foi o maior
ataque terrorista contra civis naquele país desde que o governo francês matou
pelo menos 70 manifestantes pacíficos pró-Argélia em outubro de 1961, crime
desumano apenas reconhecido em 1999. E é um dos maiores ataques diretos a
jornais desde que os nazistas fecharam sistematicamente todos os jornais
opositores nos anos 1930.
Por essas e outras razões, o massacre na Charlie acirrou um
debate muito complexo que envolve questões que vão desde o colonialismo europeu
e a liberdade de expressão, até a causa Palestina, o ISIS, a exclusão social e
a imigração. Como em qualquer debate complexo, a busca por soluções rápidas e
respostas fáceis, resumíveis em infográficos de telejornais diários, não
encontrará nada além de arbitrariedades e complicações para as questões que
tenta solucionar. Assim, se faz necessário observar e pensar nos principais
argumentos que norteiam o debate, para tentar buscar respostas sem cair nas
armadilhas da xenofobia belicosa ou do multiculturalismo apaziguador.
Por um lado, a extrema direita, como se imagina, procura
demonizar o Islão e, fazendo uso de todo tipo de generalização barata, procura
argumentar que o fanatismo remonta à essência do Islamismo, que seus seguidores
são “incivilizados” e outros tantos predicados preconceituosos. Este argumento
tão comum desde o 11 de setembro e tão identificável com os mais radicais entre
a extrema direita é tão torpe que se torna praticamente desnecessário
aprofundar uma crítica neste sentido que já não tenha sido feita.
O mundo islâmico é tão ou mais variado que o próprio mundo
cristão, e tomar o islamismo como um todo homogêneo, unificado e coeso é tão
equivocado quanto fazer o mesmo com o cristianismo. Ainda mais se o ponto de
vista de terroristas radicais for tomado como ponto de referência nesta
análise. Seria como tomar a Klu Klux Klan como uma amostra relevante do
cristianismo ocidental, por mais que essa organização agisse de forma
terrorista na primeira metade do século XX e ainda arregimente simpatizantes
radicais até os dias atuais (como Frazier Glenn, que matou três pessoas numa
comunidade judaica em 2014). Ou como se Anders Breivik, cristão radical e
neonazista, que matou 72 pessoas da esquerda norueguesa em 2011, fosse, também,
um paradigma sério para analisar o cristianismo ocidental como um todo. Tentar
traçar um perfil generalizante de islâmicos a partir da ação de terroristas
seria, pois, igualmente forçado. Há mais de um bilhão de islâmicos do mundo e
eles não podem ser demonizados pela ação de minoritários grupos radicais. Essa
generalização surge muito mais como um argumento que busca encaixar a realidade
em uma narrativa pré-concebida, etnocêntrica e simplista de “Oriente atrasado
versus Ocidente avançado”, usada apenas como meio de deslegitimação do inimigo,
para justificar sua dominação.
Por sua vez, surgem argumentos – em geral à esquerda – que
apontam a hipocrisia das potencias ocidentais: pela manhã matam, saqueiam e
patrocinam ditadores no Terceiro Mundo, mas à noite choram inconformados quando
lunáticos revidam matando e vilipendiando em nome de seus próprios ditadores.
Tentam, nesta corrente, classificar como islamofóbica toda a crítica que se faz
ao terrorismo e ao islamismo, como se uma crítica ao extremismo violento,
exceção da exceção, que mais vitimiza muçulmanos do que membros de qualquer
outra religião, fosse uma generalizada crítica à religião islâmica. Ou, pior,
como se a separação entre o Estado e a Igreja, inexistente em partes relevantes
do mundo islâmico (Arábia Saudita e Irã, por exemplo), não fosse uma luta
antiquíssima da esquerda mundial e criticar esse excesso de religiosidade no
Estado fosse algo preconceituoso, islamofóbico e “supremacista ocidental”.
Não tem nem dois meses que a Espanha proibiu protestos “não
autorizados”, na chamada Lei da Mordaça; a própria França, em 2014, proibiu
protestos pró-Palestina, como se “ameaçassem a ordem pública”, e é o único país
europeu – por enquanto – a adotar tal medida; a Inglaterra mantém, há quase
quatro anos, o fundador da Wikileaks preso na embaixada do Equador. Os EUA
mantém preso por traição máxima Chelsea Manning justamente por denunciar
terrorismo de Estado praticado pelo governo. Israel, além dos
muitas-vezes-condenados crimes pela ONU, acabou de propor que não-judeus – 20%
de sua população – sejam cidadãos de segunda classe e tem perseguido
jornalistas pró-Palestina incessantemente. Outras fontes da mídia apontaram que
talvez por isso Netanyahu não fora convidado para a marcha dos líderes, mas
que, ao saber que ele iria, o presidente francês convidou também o líder
Palestino. Além disso, entre as lideranças hipócritas, havia “surpresas” como o
líder da Turquia, campeã de prisões de jornalistas e perseguição a
manifestantes; o do Egito, que figura em 160° lugar de 180 países com liberdade
para jornalistas, que executou em massa religiosos opositores do regime e , pior,
que absolveu o ditador derrubado Mubarak de seus crimes. Já o líder palestino
Abbas, convidado de última hora, prendeu alguns jornalistas que supostamente o
ofenderam em caso recente. No entanto, por alguma razão, todos se acharam dignos de
marchar pela liberdade de expressão e contra o terrorismo nesta semana que
passou, escondendo seus próprios problemas numa nova marcha contra o terrorismo
que só não remonta a escalada do 11 de setembro porque nenhum país foi invadido
ainda. Ainda.
Por sua vez, os jornais mainstream são acusados pela
hipocrisia de suas narrativas. Wade Michael Page, que matou seis religiosos
Sikh em Wisconsin em 2012; o citado Frazier Glenn, que matou três judeus em 2014
nos EUA; e, por fim, o também citado Anders Breivik, todos supremacistas
brancos, anti-semitas e anti-islamicos, nas narrativas dos jornais mainstream
são tratados como indivíduos, classificados como loucos e atiradores solitários
e desajustados “perdedores”, enfim, outcasts do mundo ocidental. Já os
igualmente lunáticos fundamentalistas islâmicos, que cometem crimes por motivos
extremamente semelhantes, são terroristas natos, forjados pela “ideologia do
Islã” e a generalização vexatória e xenófoba ganha ares de análise científica e
“séria”.
Porém, por mais que seja evidente a hipocrisia dos jornais
que seguem exatamente a agenda de seus governos e patrocinadores, o argumento
de tentar amenizar os ataques por conta de um pano de fundo opressor, colonialista
e “vingativo”, como se estes civis franceses ou qualquer outra vítima ocidental
do terrorismo “fizessem por merecer”, é igualmente ridículo. Além de
estabelecer uma relação desonesta entre as populações e as ações oficiais de
seus governos em países estrangeiros, que estão longe de qualquer
accountability popular, obscurece o fato de que a maior parte das vítimas do
terrorismo são muçulmanos, que, tirando exatamente as lideranças fanáticas
minoritárias que apoiam este tipo de ação, praticamente todo o resto dos mais
de um bilhão de islâmicos condena esse tipo de ação e vive em medo muito maior
do que qualquer cidadão ocidental médio: ora é o medo do terrorismo de seus
compatriotas que os ameaça diariamente, ora é de alguma potência ocidental que
se autoproclama sua defensora, bombardeando suas cabeças em nome da liberdade.
No mesmo dia do ataque à Charlie, por exemplo, 37 iemenitas
morreram supostamente pela mesma facção da Al Qaeda que assumiu os ataques na
França. Ao mesmo tempo, na Nigéria, o grupo terrorista fundamentalista islâmico
Boko Haram dizimava a população inteira de uma vila, cristãos e muçulmanos:
dois mil mortos. Justificar a morte dos franceses ou de qualquer ocidental
seria também justificar a morte dos milhares de pessoas (muçulmanos inclusos)
mortas aleatoriamente em mercados, praças e vilarejos isolados, em ataques
terroristas em qualquer parte do mundo por terem ofendido os radicais de alguma
forma. É igualmente desonesto e ignorante, um ataque contra as próprias
vítimas.
A Charlie Hebdo era uma revista que se assumia abertamente
“irresponsável”, na velha tradição iconoclasta da esquerda francesa. É verdade
que ela “atirava para todos os lados”, especialmente, na extrema-direita
francesa (os Le Pen e Frente Nacional). E, em geral, era uma revista
pró-Palestina, com inúmeras capas contra a política racista de Israel. Porém, é
verdade também que a distribuição dos insultos “para todos os lados” de fato
não era exatamente proporcional, especialmente no caso da religião, e feita uma
breve análise do histórico recente da revista, torna-se compreensível que parte
de seus críticos a considerassem islamofóbica muito antes dos ataques
terroristas.
Depois de vencer uma série de processos por ofensa a
comunidades islâmicas francesas e ser alvo de uma bomba incendiária em 2011, a
Charlie visivelmente passou a pegar mais no pé dos islâmicos do que nos adeptos
de outras religiões (vide a maior proporção de capas ofensivas ao profeta
Maomé), especialmente dado o número de islâmicos no país. O rancor destas
minorias ainda se agrava ao constatar que as leis que regulamentam a mídia em
casos de injúrias e “perigos a ordem pública”, foram efetivamente usadas e
defendidas em tribunais, apenas no caso do comediante antissemita Dieudonne
M’bala e para proibir manifestações pró-Palestina, nada de relevante foi feito
para este tipo de ofensa as crenças islâmicas.
A assimetria é grande – não tão grande quanto revidar
cartuns com assassinatos, mas relevante. Em caso emblemático envolvendo a
própria Charlie Hebdo, um dos mais antigos cartunistas da revista foi demitido
por se recusar a pedir desculpas por uma piada antissemita contra Sarkozy,
então presidente francês que se casava com uma judia. Nada é sagrado, mas
algumas coisas são menos não-sagradas do que outras.
A capa com as meninas estupradas grávidas, violentadas pelos
lunáticos do Boko Haram, exigindo seguro social do governo francês, é altamente
cretina, e distancia-se de qualquer militância sincera da esquerda ou do
ateísmo, que a revista alega ser. O pior, reforça o estereótipo que a
extrema-direita narra das francesas muçulmanas imigrantes argelinas: “parasitas
da previdência social”. A charge parece muito mais algo saído de um panfleto
racista do que qualquer outra coisa. É absolutamente desnecessário e
improdutivo para a questão, muito menos para exaltar os valores republicanos
fraternos franceses, libertar ou diminuir a opressão das minorias islâmicas na
França. Como apontou Tariq Ali em recente coluna na Folha:
A secularidade francesa de hoje significa, essencialmente,
qualquer coisa que não seja islâmica. Defender o direito de publicarem o que
quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa, sacralizar um
jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já são vítimas de uma
islamofobia desenfreada nos EUA e na Europa é quase tão tolo quanto justificar
os atos de terror contra a publicação. (Tariq Ali, 15/1/15)
Teria sido “libertador”, “republicano” ou irreverente e, ao
menos, produtivo para a causa ateia e anti-religiosa, se, nos anos 1930, uma
série de piadas e charges antissemitas fossem sistematicamente impressas na Europa?
A resposta é óbvia. Aliás, há exemplo histórico semelhante.
Durante os anos 1920, a recém-formada URSS patrocinou uma revista chamada Bezbozhnik (Sem-Deus), um jornal ateu de propaganda anti-religiosa, com capas bastante agressivas contra cristãos, judeus e muçulmanos. Quando a direita anti-comunista tomou para si o discurso antissemita no meio da década seguinte, a “Sem-Deus” mudou o seu discurso, justamente por que os inimigos soviéticos haviam capitalizado o antissemitismo para o seu lado e não era “produtivo” alimentá-lo, focando a crítica na Igreja Ortodoxa da Rússia e em temas políticos mais gerais. O bom senso imperou, mesmo na cabeça de radicais iconoclastas como as ligas atéias da URSS.
Durante os anos 1920, a recém-formada URSS patrocinou uma revista chamada Bezbozhnik (Sem-Deus), um jornal ateu de propaganda anti-religiosa, com capas bastante agressivas contra cristãos, judeus e muçulmanos. Quando a direita anti-comunista tomou para si o discurso antissemita no meio da década seguinte, a “Sem-Deus” mudou o seu discurso, justamente por que os inimigos soviéticos haviam capitalizado o antissemitismo para o seu lado e não era “produtivo” alimentá-lo, focando a crítica na Igreja Ortodoxa da Rússia e em temas políticos mais gerais. O bom senso imperou, mesmo na cabeça de radicais iconoclastas como as ligas atéias da URSS.
Portanto, o objetivo é fugir das armadilhas e dicotomias
simplistas que a questão traz.
Já está claro que, “em nome da segurança”, está se impondo
gradativamente a agenda obscura da extrema-direita em toda a sociedade:
vigilância estatal, restrições das liberdades civis, mais assédio policial,
arbitrariedades legais, fechamento de fronteiras e perseguições a minorias
(racial profiling). Além, é claro, de intervenções militares “democráticas” no
mundo islâmico.
No entanto, é fato que a questão do terrorismo não pode
simplesmente ficar em aberto, caindo num relativismo multicultural rasteiro
“quem somos nós para julgar a cultura do outro” ou, pior, “eles fizeram por
merecer”. Há um padrão que precisa ser debatido a serio.
Não se pode retirar da religião radicalizada, no caso a
islâmica, o pano de fundo para a proliferação de fanáticos agressivos. Foi
assim com o cristianismo até o século XVIII (com grupos como a KKK vindo até o
meio do século XX) ou o judaísmo nacionalista e seus atentados no século XIX. Há
radicais budistas sanguinários em alguns países da Indochina! Com o islão não
seria diferente.
O contexto social temerário, a completa falta de
representação social secular e a exclusão galopante dos pobres formam o terreno
ideal para que as mais espúrias lideranças recrutem os seus seguidores. Como
apontou Zizek: “A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos
que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o
projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças”. Depois
que as forças ocidentais passaram 60 anos a sabotar toda a esquerda
progressista no mundo islãmico, com medo – real ou imaginário – da
sovietização, é realmente surpreendente que os projetos políticos e o modus
operandi que emerjam no mundo islâmico, sejam retrógrados, extremistas e
islamo-fascistas?!
Por fim, é fundamental fugir da armadilha da censura prévia.
É preciso honestamente observar quando a liberdade de expressão alimenta o
discurso de ódio e opressão de minorias e quando ela realmente é valente,
republicana e libertadora. Até hoje a propaganda nazista é proibida na França
como em boa parte da Europa e há diversos aparatos legais para proteger quem é
vítima de racismo e antissemitismo. A liberdade de expressão irresponsável, indiferente
ao contexto e ao momento, isto é, sem o reconhecimento de que quem fala pode
sofrer condenações judiciais a posteriori, é extremamente perigosa e já
combatida nos casos que já sabemos a consequência (antissemitismo e racismo). É
preciso caminhar entre a idiota relativização do terrorismo e a igualmente
idiota sacralização do discurso opressor, apenas por ser discurso. Temos de ser
Charlie Hebdo, mas nem tanto. Se o timing é fundamental numa piada, o da
Charlie tem sido um tanto descompassado e um puxão de orelha de vez em quando,
após alguma besteira dita, pode fazer o humor da revista evoluir e realmente
descontrair uma população tão oprimida que mal consegue rir de um desenho bobo.
Será preciso outra limpeza étnica para que o anti-islamismo gratuito seja tão
inaceitável quanto o anti-semitismo ou o racismo?
AQUI.
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