quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

je suis Charlie, pero no mucho

O  mundo ainda está em choque com o massacre na redação da Charlie Hebdo e o assassinato de quatro pessoas em um mercado kosher em Paris, pelo mesmo grupo terrorista. O choque talvez seja não pelo número de mortos ou por ter sido na Europa, como querem alguns, mas por ter se operado muito mais como um assassinato em massa, objetivo e frio, do que como um atentado terrorista “aleatório”, como o que matou 191 pessoas em Madrid em 2004. E, também, justamente por mirar diretamente membros da imprensa, este atentado tenha chocado mais do que outros e foi imediatamente considerado um ataque a um valor “fundamental do ocidente”, como a maior parte da imprensa coloca.

Independentemente da razão do choque, por conta dele quase quatro milhões de pessoas foram às ruas francesas em “protesto contra o terrorismo”, número semelhante ao dos que comemoraram a derrota dos nazistas e a desocupação da mesma França em 1944. É de se esperar, já que este foi o maior ataque terrorista contra civis naquele país desde que o governo francês matou pelo menos 70 manifestantes pacíficos pró-Argélia em outubro de 1961, crime desumano apenas reconhecido em 1999. E é um dos maiores ataques diretos a jornais desde que os nazistas fecharam sistematicamente todos os jornais opositores nos anos 1930.

Por essas e outras razões, o massacre na Charlie acirrou um debate muito complexo que envolve questões que vão desde o colonialismo europeu e a liberdade de expressão, até a causa Palestina, o ISIS, a exclusão social e a imigração. Como em qualquer debate complexo, a busca por soluções rápidas e respostas fáceis, resumíveis em infográficos de telejornais diários, não encontrará nada além de arbitrariedades e complicações para as questões que tenta solucionar. Assim, se faz necessário observar e pensar nos principais argumentos que norteiam o debate, para tentar buscar respostas sem cair nas armadilhas da xenofobia belicosa ou do multiculturalismo apaziguador.

Por um lado, a extrema direita, como se imagina, procura demonizar o Islão e, fazendo uso de todo tipo de generalização barata, procura argumentar que o fanatismo remonta à essência do Islamismo, que seus seguidores são “incivilizados” e outros tantos predicados preconceituosos. Este argumento tão comum desde o 11 de setembro e tão identificável com os mais radicais entre a extrema direita é tão torpe que se torna praticamente desnecessário aprofundar uma crítica neste sentido que já não tenha sido feita.

O mundo islâmico é tão ou mais variado que o próprio mundo cristão, e tomar o islamismo como um todo homogêneo, unificado e coeso é tão equivocado quanto fazer o mesmo com o cristianismo. Ainda mais se o ponto de vista de terroristas radicais for tomado como ponto de referência nesta análise. Seria como tomar a Klu Klux Klan como uma amostra relevante do cristianismo ocidental, por mais que essa organização agisse de forma terrorista na primeira metade do século XX e ainda arregimente simpatizantes radicais até os dias atuais (como Frazier Glenn, que matou três pessoas numa comunidade judaica em 2014). Ou como se Anders Breivik, cristão radical e neonazista, que matou 72 pessoas da esquerda norueguesa em 2011, fosse, também, um paradigma sério para analisar o cristianismo ocidental como um todo. Tentar traçar um perfil generalizante de islâmicos a partir da ação de terroristas seria, pois, igualmente forçado. Há mais de um bilhão de islâmicos do mundo e eles não podem ser demonizados pela ação de minoritários grupos radicais. Essa generalização surge muito mais como um argumento que busca encaixar a realidade em uma narrativa pré-concebida, etnocêntrica e simplista de “Oriente atrasado versus Ocidente avançado”, usada apenas como meio de deslegitimação do inimigo, para justificar sua dominação.

Por sua vez, surgem argumentos – em geral à esquerda – que apontam a hipocrisia das potencias ocidentais: pela manhã matam, saqueiam e patrocinam ditadores no Terceiro Mundo, mas à noite choram inconformados quando lunáticos revidam matando e vilipendiando em nome de seus próprios ditadores. Tentam, nesta corrente, classificar como islamofóbica toda a crítica que se faz ao terrorismo e ao islamismo, como se uma crítica ao extremismo violento, exceção da exceção, que mais vitimiza muçulmanos do que membros de qualquer outra religião, fosse uma generalizada crítica à religião islâmica. Ou, pior, como se a separação entre o Estado e a Igreja, inexistente em partes relevantes do mundo islâmico (Arábia Saudita e Irã, por exemplo), não fosse uma luta antiquíssima da esquerda mundial e criticar esse excesso de religiosidade no Estado fosse algo preconceituoso, islamofóbico e “supremacista ocidental”.

Há, de fato, uma hipocrisia latente em certa parcela das lideranças e proeminentes jornais ocidentais. Como se não fosse o cúmulo da cretinice ver lideranças mundiais, alguns campeões da perseguição a jornalistas e minorias, como os líderes da Turquia, EUA, Argélia, Egito, Rússia, Israel e Espanha, entre outros, desfilando pela “liberdade de expressão” e “contra o terrorismo” nas ruas de Paris no dia 11 de janeiro. Em alguns casos a hipocrisia é realmente incrível.


Não tem nem dois meses que a Espanha proibiu protestos “não autorizados”, na chamada Lei da Mordaça; a própria França, em 2014, proibiu protestos pró-Palestina, como se “ameaçassem a ordem pública”, e é o único país europeu – por enquanto – a adotar tal medida; a Inglaterra mantém, há quase quatro anos, o fundador da Wikileaks preso na embaixada do Equador. Os EUA mantém preso por traição máxima Chelsea Manning justamente por denunciar terrorismo de Estado praticado pelo governo. Israel, além dos muitas-vezes-condenados crimes pela ONU, acabou de propor que não-judeus – 20% de sua população – sejam cidadãos de segunda classe e tem perseguido jornalistas pró-Palestina incessantemente. Outras fontes da mídia apontaram que talvez por isso Netanyahu não fora convidado para a marcha dos líderes, mas que, ao saber que ele iria, o presidente francês convidou também o líder Palestino. Além disso, entre as lideranças hipócritas, havia “surpresas” como o líder da Turquia, campeã de prisões de jornalistas e perseguição a manifestantes; o do Egito, que figura em 160° lugar de 180 países com liberdade para jornalistas, que executou em massa religiosos opositores do regime e , pior, que absolveu o ditador derrubado Mubarak de seus crimes. Já o líder palestino Abbas, convidado de última hora, prendeu alguns jornalistas que supostamente o ofenderam em caso recente. No entanto, por alguma razão, todos se acharam dignos de marchar pela liberdade de expressão e contra o terrorismo nesta semana que passou, escondendo seus próprios problemas numa nova marcha contra o terrorismo que só não remonta a escalada do 11 de setembro porque nenhum país foi invadido ainda. Ainda.

Por sua vez, os jornais mainstream são acusados pela hipocrisia de suas narrativas. Wade Michael Page, que matou seis religiosos Sikh em Wisconsin em 2012; o citado Frazier Glenn, que matou três judeus em 2014 nos EUA; e, por fim, o também citado Anders Breivik, todos supremacistas brancos, anti-semitas e anti-islamicos, nas narrativas dos jornais mainstream são tratados como indivíduos, classificados como loucos e atiradores solitários e desajustados “perdedores”, enfim, outcasts do mundo ocidental. Já os igualmente lunáticos fundamentalistas islâmicos, que cometem crimes por motivos extremamente semelhantes, são terroristas natos, forjados pela “ideologia do Islã” e a generalização vexatória e xenófoba ganha ares de análise científica e “séria”.

Porém, por mais que seja evidente a hipocrisia dos jornais que seguem exatamente a agenda de seus governos e patrocinadores, o argumento de tentar amenizar os ataques por conta de um pano de fundo opressor, colonialista e “vingativo”, como se estes civis franceses ou qualquer outra vítima ocidental do terrorismo “fizessem por merecer”, é igualmente ridículo. Além de estabelecer uma relação desonesta entre as populações e as ações oficiais de seus governos em países estrangeiros, que estão longe de qualquer accountability popular, obscurece o fato de que a maior parte das vítimas do terrorismo são muçulmanos, que, tirando exatamente as lideranças fanáticas minoritárias que apoiam este tipo de ação, praticamente todo o resto dos mais de um bilhão de islâmicos condena esse tipo de ação e vive em medo muito maior do que qualquer cidadão ocidental médio: ora é o medo do terrorismo de seus compatriotas que os ameaça diariamente, ora é de alguma potência ocidental que se autoproclama sua defensora, bombardeando suas cabeças em nome da liberdade.

No mesmo dia do ataque à Charlie, por exemplo, 37 iemenitas morreram supostamente pela mesma facção da Al Qaeda que assumiu os ataques na França. Ao mesmo tempo, na Nigéria, o grupo terrorista fundamentalista islâmico Boko Haram dizimava a população inteira de uma vila, cristãos e muçulmanos: dois mil mortos. Justificar a morte dos franceses ou de qualquer ocidental seria também justificar a morte dos milhares de pessoas (muçulmanos inclusos) mortas aleatoriamente em mercados, praças e vilarejos isolados, em ataques terroristas em qualquer parte do mundo por terem ofendido os radicais de alguma forma. É igualmente desonesto e ignorante, um ataque contra as próprias vítimas.


A Charlie Hebdo era uma revista que se assumia abertamente “irresponsável”, na velha tradição iconoclasta da esquerda francesa. É verdade que ela “atirava para todos os lados”, especialmente, na extrema-direita francesa (os Le Pen e Frente Nacional). E, em geral, era uma revista pró-Palestina, com inúmeras capas contra a política racista de Israel. Porém, é verdade também que a distribuição dos insultos “para todos os lados” de fato não era exatamente proporcional, especialmente no caso da religião, e feita uma breve análise do histórico recente da revista, torna-se compreensível que parte de seus críticos a considerassem islamofóbica muito antes dos ataques terroristas.

Depois de vencer uma série de processos por ofensa a comunidades islâmicas francesas e ser alvo de uma bomba incendiária em 2011, a Charlie visivelmente passou a pegar mais no pé dos islâmicos do que nos adeptos de outras religiões (vide a maior proporção de capas ofensivas ao profeta Maomé), especialmente dado o número de islâmicos no país. O rancor destas minorias ainda se agrava ao constatar que as leis que regulamentam a mídia em casos de injúrias e “perigos a ordem pública”, foram efetivamente usadas e defendidas em tribunais, apenas no caso do comediante antissemita Dieudonne M’bala e para proibir manifestações pró-Palestina, nada de relevante foi feito para este tipo de ofensa as crenças islâmicas.

A assimetria é grande – não tão grande quanto revidar cartuns com assassinatos, mas relevante. Em caso emblemático envolvendo a própria Charlie Hebdo, um dos mais antigos cartunistas da revista foi demitido por se recusar a pedir desculpas por uma piada antissemita contra Sarkozy, então presidente francês que se casava com uma judia. Nada é sagrado, mas algumas coisas são menos não-sagradas do que outras.


A capa com as meninas estupradas grávidas, violentadas pelos lunáticos do Boko Haram, exigindo seguro social do governo francês, é altamente cretina, e distancia-se de qualquer militância sincera da esquerda ou do ateísmo, que a revista alega ser. O pior, reforça o estereótipo que a extrema-direita narra das francesas muçulmanas imigrantes argelinas: “parasitas da previdência social”. A charge parece muito mais algo saído de um panfleto racista do que qualquer outra coisa. É absolutamente desnecessário e improdutivo para a questão, muito menos para exaltar os valores republicanos fraternos franceses, libertar ou diminuir a opressão das minorias islâmicas na França. Como apontou Tariq Ali em recente coluna na Folha:

A secularidade francesa de hoje significa, essencialmente, qualquer coisa que não seja islâmica. Defender o direito de publicarem o que quiserem, independentemente das consequências, é uma coisa, sacralizar um jornal satírico que dirige ataques regulares àqueles que já são vítimas de uma islamofobia desenfreada nos EUA e na Europa é quase tão tolo quanto justificar os atos de terror contra a publicação. (Tariq Ali, 15/1/15)

Teria sido “libertador”, “republicano” ou irreverente e, ao menos, produtivo para a causa ateia e anti-religiosa, se, nos anos 1930, uma série de piadas e charges antissemitas fossem sistematicamente impressas na Europa? A resposta é óbvia. Aliás, há exemplo histórico semelhante.

Durante os anos 1920, a recém-formada URSS patrocinou uma revista chamada Bezbozhnik (Sem-Deus), um jornal ateu de propaganda anti-religiosa, com capas bastante agressivas contra cristãos, judeus e muçulmanos. Quando a direita anti-comunista tomou para si o discurso antissemita no meio da década seguinte, a “Sem-Deus” mudou o seu discurso, justamente por que os inimigos soviéticos haviam capitalizado o antissemitismo para o seu lado e não era “produtivo” alimentá-lo, focando a crítica na Igreja Ortodoxa da Rússia e em temas políticos mais gerais. O bom senso imperou, mesmo na cabeça de radicais iconoclastas como as ligas atéias da URSS.

Portanto, o objetivo é fugir das armadilhas e dicotomias simplistas que a questão traz.

Já está claro que, “em nome da segurança”, está se impondo gradativamente a agenda obscura da extrema-direita em toda a sociedade: vigilância estatal, restrições das liberdades civis, mais assédio policial, arbitrariedades legais, fechamento de fronteiras e perseguições a minorias (racial profiling). Além, é claro, de intervenções militares “democráticas” no mundo islâmico.

No entanto, é fato que a questão do terrorismo não pode simplesmente ficar em aberto, caindo num relativismo multicultural rasteiro “quem somos nós para julgar a cultura do outro” ou, pior, “eles fizeram por merecer”. Há um padrão que precisa ser debatido a serio.

Não se pode retirar da religião radicalizada, no caso a islâmica, o pano de fundo para a proliferação de fanáticos agressivos. Foi assim com o cristianismo até o século XVIII (com grupos como a KKK vindo até o meio do século XX) ou o judaísmo nacionalista e seus atentados no século XIX. Há radicais budistas sanguinários em alguns países da Indochina! Com o islão não seria diferente.

O contexto social temerário, a completa falta de representação social secular e a exclusão galopante dos pobres formam o terreno ideal para que as mais espúrias lideranças recrutem os seus seguidores. Como apontou Zizek: “A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças”. Depois que as forças ocidentais passaram 60 anos a sabotar toda a esquerda progressista no mundo islãmico, com medo – real ou imaginário – da sovietização, é realmente surpreendente que os projetos políticos e o modus operandi que emerjam no mundo islâmico, sejam retrógrados, extremistas e islamo-fascistas?!

Por fim, é fundamental fugir da armadilha da censura prévia. É preciso honestamente observar quando a liberdade de expressão alimenta o discurso de ódio e opressão de minorias e quando ela realmente é valente, republicana e libertadora. Até hoje a propaganda nazista é proibida na França como em boa parte da Europa e há diversos aparatos legais para proteger quem é vítima de racismo e antissemitismo. A liberdade de expressão irresponsável, indiferente ao contexto e ao momento, isto é, sem o reconhecimento de que quem fala pode sofrer condenações judiciais a posteriori, é extremamente perigosa e já combatida nos casos que já sabemos a consequência (antissemitismo e racismo). É preciso caminhar entre a idiota relativização do terrorismo e a igualmente idiota sacralização do discurso opressor, apenas por ser discurso. Temos de ser Charlie Hebdo, mas nem tanto. Se o timing é fundamental numa piada, o da Charlie tem sido um tanto descompassado e um puxão de orelha de vez em quando, após alguma besteira dita, pode fazer o humor da revista evoluir e realmente descontrair uma população tão oprimida que mal consegue rir de um desenho bobo. Será preciso outra limpeza étnica para que o anti-islamismo gratuito seja tão inaceitável quanto o anti-semitismo ou o racismo?

por Leandro Dias


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