sexta-feira, 25 de junho de 2021

DESDE 1985

Em 1988 fui ao meu primeiro show de rock underground, a segunda edição do Festcore de Aracaju, um encontro de bandas punk do norte e nordeste promovido por Silvio, vocalista da Karne Krua. Foi lá que os vi ao vivo pela primeira vez. Lembro de ter pensado “caralho, essa banda é tão boa quanto o cólera” – a minha principal referencia quando se fala em punk rock brasileiro.

Dizem que a primeira impressão é a que fica. Essa ficou. Até hoje, acho que se bandas como a Karne Krua, o Câmbio Negro HC, de Recife, ou a Dever de Classe, de Salvador, não tivessem surgido “longe demais das capitais” seriam tão lembradas e incensadas quanto seus pares paulistanos da década de 1980.

A primeira gravação de estúdio da Karne Krua só foi acontecer em 1991, com a demo tape Suicídio. Antes, a banda lançou apenas fitas demo caseiras, a partir gravações pra lá de precárias, como a primeira, As merdas do sistema, e a já clássica Labor Operário. Boa parte do repertório desses primeiros espasmos de vida foi regravado nos discos e demos posteriores, mas haviam lacunas a serem preenchidas.

Não há mais. Neste ano da desgraça de 2021, ano 2 da pandemia, veio à luz, em meio às trevas, um projeto ao qual a banda se dedicava há pelo menos 5 anos: Primitiva 1985, um disco de regravações com algumas das composições mais obscuras da banda, boa parte delas composta nos primeiros anos de atividade e que nunca haviam sido registradas com uma qualidade minimamente decente. É um verdadeiro testamento para a posteridade, evidenciando mais uma vez o talento de Silvio “Suburbano” e sua trupe de desajustados. 

Há desde crônicas urbanas locais – como Cirurgia, sobre o então principal hospital público do estado; Cidade Asilo, sobre o marasmo de Aracaju na década de 1980; e Fábrica de doenças, sobre uma fábrica de cimento que havia no bairro Siqueira Campos, à época –, até libelos revolucionários de apelo universal como Dia A  e seu refrão pegajoso, que pede morte aos opressores, patrões e senhores.

Uma de minhas favoritas desde sempre é Punk rock, que faz uma pertinente ligação entre aquela música rebelde e barulhenta surgida em meados de 1976, 77, e os primórdios do rock and roll, cuja fúria primal havia se transformado, diz a letra, em “protesto dos conscientes”. “Consciente” era um jargão bastante utilizado pelos punks para se destacar da malta imbecilizada e lobotomizada pelos veículos de comunicação de massa, mesmo que a formação política da maioria deles se restringisse a alguns panfletos anarquistas toscos recebidos em cópias apagadas pelo correio. Algo parecido com os memes de Whataspp de hoje. 

Algumas composições, como Vote nulo, soam realmente pueris em seu panfletarismo raso anarquista, mas já nos primórdios se notava um certo esforço intelectual e poético mais profundo, especialmente quando vislumbravam possibilidades utópicas para um futuro que não se imaginava, então, tão distante – 35 anos depois, o que temos é uma distopia, com essa pandemia sem fim e um candidato patético a fuhrer tupiniquim alojado no palácio do planalto. É o caso da já citada Dia A, de Projeto futuro e das clássicas Auge revolucionário e Revolta social futura, que provavelmente não estão aqui porque já haviam sido regravadas no álbum Em carne viva (2002).

Primitiva 1985 se beneficiou do fato de ter sido gravado por uma das melhores formações da banda, infelizmente já desfeita: Silvio no vocal, Alexandre Gandhi na guitarra, Ivo Delmondes no baixo e Oitchi, discípulo de Babalu, na bateria. Isso reflete nos arranjos, em geral fiéis aos originais, mas com um molho a mais, e na execução precisa, afiada. Além da qualidade técnica oriunda do natural avanço tecnológico, evidentemente.

Periga ser o melhor disco da banda. A lamentar, somente, a ausência da frase antológica que havia na gravação original de PMs espancadores: “vão espancar o cu das suas mães”.

A..

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