terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Dilma chorou

(#)O CAPITÃO BENONI DE ARRUDA ALBERNAZ TINHA 37 ANOS, SOBRANCELHA ARQUEADA, RISO DE ESCÁRNIO E FAZIA JURAS DE AMOR À PÁTRIA ENQUANTO SOCAVA E QUEBRAVA OS DENTES DA FUTURA PRESIDENTE DO BRASIL DILMA VANA ROUSSEFF, NA ÉPOCA COM 23 ANOS

Ele era o chefe da equipe A de interrogatório preliminar da Operação Bandeirante (Oban) quando Dilma foi presa, em janeiro de 1970. Em novembro daquele ano, seria registrado o 43º entre os 58 elogios que Albernaz recebeu nos 27 anos de serviços prestados ao Exército.

“Oficial capaz, disciplinado e leal, sempre demonstrou perfeito sincronismo com a filosofia que rege o funcionamento do Comando do Exército: honestidade, trabalho e respeito ao homem”, escreveu seu comandante na Oban, o tenente-coronel Waldyr Coelho, chamado por Dilma e por colegas de cela de “major Linguinha”, por causa da língua presa que tinha.

Um torturador com diploma do Mérito Policial

Depois de 15 anos, os caminhos percorridos por Albernaz não o levaram à condição de herói nacional, como ele imaginava. Registro bem diferente foi associado a seu nome na sentença do Conselho de Justiça Militar em que foi condenado a um ano e seis meses de prisão por falsidade ideológica. “Ética, moral, prestígio, apreço, credibilidade e estima são valores que o militar deve desfrutar junto à sociedade e ao povo de seu país. A fé militar e o prestígio moral das instituições militares restaram danificadas pelo comportamento do réu”, concluiu o presidente do conselho, João Baptista Lopes.

A prensa nada tinha a ver com as sessões de tortura comandadas por Albernaz na Oban. Sua agressividade parecia se encaixar como luva na estrutura criada para exterminar opositores do regime. Apenas um ano depois de torturar Dilma e pelo menos outras três dezenas de opositores, ele recebeu das mãos do então governador de São Paulo, Abreu Sodré, o diploma da Cruz do Mérito Policial.

Filho de militar que representou o Brasil na 2ª Guerra Mundial, Albernaz nasceu em São Paulo e seguiu a carreira do pai. Classificou-se em 107º lugar na turma de 119 aspirantes a oficial de artilharia em 1956, mesmo ano em que se casou. Serviu no Mato Grosso do Sul antes de ser transferido para Barueri, em São Paulo, no início dos anos de 1960.

Tinha fixação pela organização de paradas de 7 de setembro. Estava na guarda do QG do Exército na capital paulista, em fevereiro de 1962, quando o comandante foi alvo de atentado à bala. Conseguiu correr atrás do autor e o espancou. Virou pupilo do general Nelson de Mello, que mais tarde viraria ministro da Guerra no governo de João Goulart.

Estava em férias na noite do golpe militar de 1964 e, ainda assim, apresentou-se espontaneamente para o serviço. Em 1969, representou o comando de sua unidade na posse do secretário de Segurança Pública de São Paulo, o general Olavo Viana Moog, um dos futuros comandantes do grupo que exterminou a Guerrilha do Araguaia.

Neste mesmo ano foi convocado pelo general Aloysio Guedes Pereira para servir na recém-criada Oban, centro de investigações montado pelo Exército para combater a esquerda armada. Foi lá que Dilma o conheceu.

“Quem mandava era o Albernaz, quem interrogava era o Albernaz. O Albernaz batia e dava soco. Começava a te interrogar; se não gostasse das respostas, ele te dava soco. Depois da palmatória, eu fui pro pau de arara”, disse a presidente em depoimento dado, no início dos anos 2000, para o livro Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf Carvalho.

Em 2001, em relato à Comissão de Direitos Humanos de Minas Gerais, Dilma afirmou que já tinha levado socos ao ser interrogada em Juiz de Fora (MG), em maio de 1970, e que seu dente “se deslocou e apodreceu”. No mesmo depoimento, ela explicou: “Mais tarde, quando voltei para São Paulo, Albernaz completou o serviço com socos, arrancando meu dente.”

Telefone de magneto era usado para choques elétricos

Albernaz era conhecido por se divertir dizendo aos presos que, por ser muito burro, precisava ouvir respostas claras. Tinha na sala um telefone de magneto que era usado para “falar com Fidel Castro”, metáfora para a aplicação de choques elétricos, segundo relato de Elio Gaspari no livro A ditadura escancarada.

“Quando venho para a Oban, deixo o coração em casa”, explicava às vítimas. Uma delas foi o coordenador do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, primeiro preso a desaparecer após a edição do AI5.

O mesmo general que convocara Albernaz para a Oban anos depois assinou relatório informando que Jonas “evadiu-se na ocasião em que foi conduzido para indicar um aparelho da ALN”. Depois de 30 anos, O Globo noticiaria a existência de um relatório em que militares admitem a morte do guerrilheiro em decorrência de “ferimentos recebidos”.

“Albernaz era um homem terrível, o torturador mais famoso da Oban naquela época”, confirmou ao Globo Carlos Araújo, ex-marido de Dilma, que foi preso alguns meses depois dela e submetido aos mesmos procedimentos da ex-mulher.

Renegado pelo Exército e atolado em dívidas

O trabalho na Operação Oban fez com que Benoni Albernaz caísse em desgraça na própria família. Aposentado e dono de uma fazenda em Catalão (GO), o pai se chateava ao saber do comportamento do filho: “Ele usava o poder que tinha para extorquir as pessoas, e o pai ficava triste. Sempre foi uma família esquisita, muito desunida”, conta a dona de casa Maria Lázara, de 60 anos, irmã de criação do capitão.

“Olha, acho que uma vez ele caiu do cavalo numa parada militar, antes da ditadura, e o cavalo pisou na nuca dele. A partir daí, ele não ficou bom da cabeça”, supõe a prima Noemia da Gama Albernaz, que hoje vive em Cuiabá.

Albernaz deixou a Oban em fevereiro de 1971, quando o aparelho já havia se transformado no DOI-Codi. Por três vezes tentou fazer o curso de operações na selva, mas teve a matrícula recusada. Foi transferido para o interior do Rio Grande do Sul, passando da caça a comunistas às operações de rotina em estradas de fronteira. O Exército tentava renegá-lo. Em março de 1974, foi internado em Porto Alegre, vítima de envenenamento.

Albernaz tinha problemas com dinheiro. Foi denunciado pelo menos cinco vezes por fazer dívidas com recrutas e não pagá-los, apesar das advertências de seus superiores. Estava lotado no setor medalhístico da Divisão de Finanças do Exército, em Brasília, quando foi declarado inabilitado para promoções, por não satisfazer a dois requisitos: “conceito profissional” e “conceito moral”. Em março de 1977, o presidente Ernesto Geisel o transferiu para a reserva.

Em um escritório no centro de São Paulo, passou a coagir clientes a comprar terrenos vestido com farda falsificada de coronel, embora tivesse sido transferido para a reserva como major, e dizendo-se integrante do SNI. “Você é uma estrela de nossa bandeira. Vamos investir juntos, ombro a ombro, peito aberto”, dizia aos clientes, segundo registros de reclamação levadas ao Exército, pistas que levariam a sua condenação por falsidade ideológica.

Em 1980, intermediou transações de ouro de baixa qualidade no Pará, vendendo como vantagem seu acesso aos garimpos. Nunca foi responsabilizado pelo espancamento, por encomenda, de um feirante de origem japonesa. “Se não pagar agora, vai preso para o Dops”, ameaçou, já em 1979, quando não mais pertencia ao Exército. O agredido foi à delegacia prestar queixa e, ao saber disso, Albernaz baixou no local. “Sou amigo íntimo do presidente da República, foi ele quem me deu isso”, falou ao delegado, mostrando a pistola Smith & Wesson. “Na lista de torturadores, sou o número 2.”

No fim dos anos de 1980, Albernaz estava atolado em dívidas. Não conseguiu pagar a hipoteca e foi acionado pelo menos quatro vezes em ações de execução extrajudicial. Sofreu um infarto quando estava no apartamento da namorada, nos Jardins, em São Paulo, em 1992. Chegou morto ao Hospital do Exército. Deixou três filhos e herança de R$8,4 mil para cada, resgatados 15 anos após sua morte, quando fizeram o inventário. Nenhum deles quis falar ao Globo.

“Siga em frente com seu trabalho, que a gente está seguindo em frente aqui também”, disse o filho Roberto, dentista, desligando o telefone.

“Isso é coisa do passado, gostaria que não me incomodasse, completou a também dentista Márcia Albernaz.

“Esquece nossa família, vai ser melhor para você”, disse Benoni Júnior, médico do Exército.


(*)Confissões inéditas de Dilma - "As marcas da tortura sou eu"

Em outubro de 2001, nove anos antes de ser eleita presidente, Dilma Rousseff revelou, em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais, detalhes do sofrimento vivido nos porões da ditadura em Juiz de Fora. Até então, nem os companheiros de luta sabiam que Esteia, seu codinome na militância, tinha sido torturada na cidade mineira, onde ficou encarcerada por dois meses, em 1972. Só era sabido o tempo de prisão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os documentos, só agora revelados, mofavam em uma sala do conselho e trazem revelações emocionantes da hoje chefe de Estado: "Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando. Daqui a pouco, eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura".

"Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu"

Sandra Kiefer

Belo Horizonte — Dilma chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Robson Sávio, que, ao lado de uma outra voluntária do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da então secretária de Minas e Energia daquele estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de durona, moradora do Bairro da Tristeza, Dilma tirou a máscara e voltou a ter 22 anos de idade. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fora foram acrescidas de ameaças de dano físico deformador: "Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face".

Não eram somente ameaças. Segundo fez constar no depoimento pessoal, Dilma revelou, pela primeira vez, ter levado socos no maxilar, que podem explicar o motivo de a presidente ter os dentes levemente projetados para fora. "Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu", disse. Para passar a dor de dente, ela tomava Novalgina em gotas, de vez em quando, na prisão. "Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz (o implacável capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo) completou o serviço com um soco, arrancando o dente", completou.

Mais tarde, durante a campanha presidencial, em 2009, Dilma faria pelo menos três correções de ordem estética para se candidatar, que incluíram uma plástica facial, a troca dos óculos por lentes de contato e a chance de, finalmente, realinhar a arcada dentária. Na mesma época, Dilma combateu e venceu um câncer no sistema linfático. Guerreira, a presidenta suavizou as marcas deixadas pelo passado na pele. Não tocou, porém, nas marcas impressas na alma. "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim", definiu Dilma, em 2001, no depoimento emocionado à comissão mineira, 11 anos antes de ser criada a Comissão Nacional da Verdade, em maio, 13 anos depois da Constituição Cidadã de 1988.

Fuga pela Rua Goiás - "Eu comecei a ser procurada em Minas Gerais nos dias seguintes à prisão de Angelo Pessuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no final de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do DOPS de Minas Gerais que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás".

Ligações com Angelo - "Fui interrogada dentro da Oban por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Angelo Pessuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 1969 e isso era no início de 1970. Desconhecia as tentativas de fuga de Angelo Pessuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira, talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata".

Local da tortura - "Acredito hoje ter sido por isto que fui levada no dia 18 de maio de 1970 para MG, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação de que ia prestar esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas, depois do depoimento, eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para SP), mas fui colocada num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições: ou era uma instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era do Exército, pois depois estive no QG do Exército e não era lá. Nesse lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente. Não era sobretudo sobre minha militância em MG. Supuseram que, tendo apreendido documentos do Ângelo (Pessuti) que integram o processo, achavam que nossa organização tinha contatos com a PM ou PC mineira que possibilitassem fugas de presos. Acredito ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente; não tinha "pontos" e "aparelhos" para entregar".

Dente podre - "Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para SP, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz) completou o serviço com um soco, arrancando o dente".

Pau-de-arara - "...Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: "em 1968 o que você estava fazendo?" e acabava no Angelo Pessuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau-de-arara, o que a gente não aguenta muito tempo".

Palmatória - "Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador "experiente", ele te bota no pau-de-arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em SP usaram pouco esse "método". No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito"

Tortura psicológica - "Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. Eles interrogavam assim: "me dá o contato da organização com a polícia?" Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura. Depois (vinham) as ameaças: "Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai saber que você está aqui. Você vai virar um "presunto" e ninguém vai saber". Em SP me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas não lembro, pois os lugares se confundem um pouco".

Sequelas - "Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos, o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato".

Sozinha na cela - "Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via ninguém. Havia um buraquinho, na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban, as mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em MG, sempre ficava sozinha, exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida e na vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que estavam presas: uma, por exemplo, Maria Celeste Martins, e Idoina de Souza Rangel, de São Paulo".

Visita da mãe - "Em MG, estava sozinha. Não via gente. (A solidão) Era parte integrante da tortura. Mas a minha mãe me visitava às vezes, porém, não nos piores momentos. Minha mãe sabia que estava presa, mas eles não a deixavam me ver. Mas a doutora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, me viu em SP, logo após a minha chegada de Minas. Hoje ela mora no Rio e posso contatá-la".

Cena da bomba - "Em MG, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada na nossa cela. Voltei em janeiro de 1972 para Juiz de Fora (nunca me levaram para BH). Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia. de Polícia do Exército, 4ª RM, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro".

Frio de cão - "Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o "prazer" de conhecer o Comandante General Sylvio Frota, que posteriormente, me colocará na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego".

Motivos - "Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (...) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em MG, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas".

Morte e solidão - "Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida"

Marcas da tortura - "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim"

Num primeiro momento, Dilma se recusou a entrar com pedido de reparação. Só depois, com a insistência de antigos companheiros, decidiu falar sobre a tortura. O depoimento de Dilma Rousseff é parte do processo aberto em março de 2001 no Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), criado por determinação do então governador Itamar Franco para indenizar presos políticos mineiros. O nome de Dilma foi o 12º da primeira leva de 53 militantes a receber R$ 30 mil a título de reparação por torturas impostas por agentes do Estado. Na documentação, consta que o valor foi depositado na conta de Dilma em março de 2002, exatos 10 anos e dois meses antes da instalação da Comissão Nacional da Verdade. Recentemente, ainda foi paga a indenização pelo Conedh do Rio de Janeiro, reivindicada em 2004. A presidente divulgou que vai doar a importância de R$ 20 mil ao Tortura Nunca Mais.

O promotor de Justiça de Juiz de Fora (MG), Antônio Aurélio Silva, foi o relator do processo de Dilma por Minas. Avesso a entrevistas, diz apenas que o processo correu à revelia da presidente, que inicialmente resistiu a entrar com pedido de reparação por ter sofrido tortura. Sua inscrição foi feita sob pressão de representantes mineiros do grupo Tortura Nunca Mais. Eles conseguiram colher a assinatura da mãe dela, Dilma Jane. "No primeiro momento, Dilma foi contra, mas depois entendeu a importância histórica do ato e acabou colaborando no processo", afirma.

Até então, o episódio da tortura de Dilma em Minas permanecia desconhecido entre os próprios militantes estudantis de esquerda de Belo Horizonte, acusados de subversão na época da ditadura. "Não sabia que ela tinha sido torturada em Juiz de Fora", surpreende-se Gilberto Vasconcelos, o Ivo, presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito de Uberaba e principal contato da organização Colina na cidade. Em janeiro de 1972, Gilberto foi transferido de São Paulo para Juiz de Fora com Dilma, dentro do mesmo camburão. "Não posso testemunhar sobre a tortura de Dilma em Juiz de Fora, porque, chegando lá, fomos separados e não tive mais contato com ela. Só voltaria a vê-la no dia do julgamento", completa.

Aquele abraço

Gilberto é conterrâneo de Dilma. Na época, ela tinha 22 anos e ele, 23. Ambos militavam no setor estudantil da organização de luta armada Colina, batizada em homenagem às montanhas de Minas. Mais tarde, na clandestinidade, os dois se tornariam amigos de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, de codinome Breno, que chegaria a ser dirigente nacional da VAR-Palmares. "Não há melhor lugar para se esconder do que na praia. Ficávamos eu, ela e o Beto sentados na praia, cantando as músicas da revolução. Um dia, chegou o Beto cantando "Aquele abraço", do Gilberto Gil, que eu nunca tinha ouvido. Dilma cantou junto. Ela gostava de cantar e isso nos unia além das convicções ideológicas", lembra.

Em fevereiro de 1971, Beto seria morto em combate, assassinado com três tiros na Casa da Morte de Petrópolis, no Rio, segundo consta no livro "A vida quer é coragem", lançado em janeiro por Ricardo Amaral, ex-assessor de imprensa de Dilma, que trabalhou em Belo Horizonte como repórter do antigo Diário do Comércio. Em homenagem ao amigo de lutas, Gilberto batizou seus filhos como Beto e Breno.

Duas perguntas para//Gilberto Vasconcelos

Como foi sua passagem por São Paulo? "Eu já estava no presídio Tiradentes. Uns seis meses depois, chegou o Max, codinome do Carlos Franklin Paixão Araújo, pai da filha de Dilma. Nós ficamos presos na mesma cela, no mesmo beliche durante um ano e meio. O Max se comunicava com ela através de bilhetinhos escritos com caneta Bic de ponta fina e enrolados no durex, escondidos na obturação do dente. O dentista era um preso político e fazia a troca dos papeizinhos entre a ala feminina e a masculina. Ele era apaixonado pela Dilma e os dois se gostavam mesmo."

E quanto à jovem militante Dilma? "Não estou cometendo nenhuma inconfidência, pois os dois são grandes amigos até hoje, isso é notório. Max sempre foi um cara extraordinário, de raciocínio rápido. Engraçado como as pessoas mudam pouco com o tempo. Estive com Max no casamento da Paula (filha de Dilma), em Porto Alegre, e ele continua do mesmo jeito. Dilma também. Ela estava cercada de amigos e me tirou para dançar na festa. Apesar de ter uma imagem que não reflete isso, é uma pessoa sensível, carinhosa, afável e uma das pessoas mais generosas que conheço. Muito antes de ela se tornar ministra, de ser presidente, sempre disse isso."

A tortura de Estela contada por Dilma

A presidente Dilma Vana Rousseff foi torturada nos porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava até agora. Em Minas, ela foi colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e socos que causaram problemas graves na sua arcada dentária. É o que revelam documentos obtidos com exclusividade pelo Estado de Minas , que até então mofavam na última sala do Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG). As instalações do conselho ocupam o quinto andar do Edifício Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Um tanto decadente, sujeito a incêndios e infiltrações, o velho Maletta foi reduto da militância estudantil nas décadas de 1960 e 70.

Perdido entre caixas-arquivo de papelão, empilhadas até o teto, repousa o depoimento pessoal de Dilma, o único que mereceu uma cópia xerox entre os mais de 700 processos de presos políticos mineiros analisados pelo Conedh-MG. Pela primeira vez na história, vem à tona o testemunho de Dilma relatando todo o sofrimento vivido em Minas na pele da militante política de codinomes Estela, Stela, Vanda, Luíza, Mariza e também Ana (menos conhecido, que ressurge neste processo mineiro). Ela contava então com 22 anos e militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional (Colina), que mais tarde se fundiria com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), dando origem à VAR-Palmares.

As terríveis sessões de tortura enfrentadas pela então jovem estudante subversiva já foram ditas e repisadas ao longo dos últimos anos, mas os relatos sempre se referiam ao eixo Rio-São Paulo, envolvendo a Operação Bandeirantes, a temida Oban de São Paulo, e a cargeragem na capital fluminense. Já o episódio da tortura sofrida por Dilma em Minas, onde, segundo ela própria, exerceu 90% de sua militância durante a ditadura, tinha ficado no esquecimento. Até agora.

Com a palavra, a presidente: "Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. Geralmente, o básico era o choque". Ela continua: "(...) se o interrogatório é de longa duração, com interrogador experiente, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes usava palmatória; usaram em mim muita palmatória. Em São Paulo, usaram pouco este "método".

Dilma foi transferida em janeiro de 1972 para Juiz de Fora, ficando presa possivelmente no quartel da Polícia do Exército, a 4ª Companhia da PE. Nesse ponto do depoimento, falham as memórias do cárcere de Dilma e ela crava apenas não ter sido levada ao Departamento de Ordem e Política Social (Dops) de BH. Como já era presa antiga, a militante deveria ter ido a Juiz de Fora somente para ser ouvida pela auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM). Dilma pensou que, como havia ocorrido das outras vezes, estava vindo de São Paulo a Minas para a nova fase do julgamento no processo mineiro. Chegando a Juiz de Fora, porém, ela afirma ter sido novamente torturada e submetida a péssimas condições carcerárias, possivelmente por dois meses.

Nesse período, foi mantida na clandestinidade e jogada em uma cela, onde permaneceu na maior parte do tempo sozinha e em outra na companhia de uma única presa, Terezinha, de identidade desconhecida. Dilma voltou a apanhar dos agentes da repressão em Minas porque havia a suspeita de que Estela teria organizado, no fim de 1969, um plano para dar fuga a Ângelo Pezzuti, ex-companheiro da organização Colina, que havia sido preso na ex-Colônia Magalhães Pinto, hoje Penitenciária de Neves. Os militares haviam conseguido interceptar bilhetinhos trocados entre Estela (Stela nos bilhetes, codinome de Dilma) e Cabral (Ângelo), contendo inclusive o croqui do mapa do presídio, desenhado à mão.

Seja por discrição ou por precaução, Dilma sempre evitou falar sobre a tortura. Não consta o depoimento dela nos arquivos do grupo Tortura Nunca Mais, nem no livro Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf, de 1998. Só mais tarde, em 2003, ele conseguiria que Dilma contasse detalhes sobre a tortura que sofrera nas prisões do Rio e de São Paulo. Em 2005, trechos da entrevista foram publicados. Naquela época, a então ministra acabava de ser indicada para ocupar a Casa Civil.

O relato pessoal de Dilma, que agora se torna público, é anterior a isso. Data de 25 de outubro de 2001, quando ela ainda era secretária das Minas e Energia no Rio Grande do Sul, filiada ao PDT e nem sonhava em ocupar a cadeira da Presidência da República. Diante do jovem filósofo Robson Sávio, que atuava na coordenação da Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura (Ceivt) do Conedh-MG, sem remuneração, Dilma revelou pormenores das sessões de humilhação sofridas em Minas. "O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida", disse.

Apesar de ser ainda apenas a secretária das Minas e Energia, a postura de Dilma impressionou Robson: "A secretária tinha fama de durona. Ela já chegou ao corredor com um jeito impositivo, firme, muito decidida. À medida que foi contando os fatos no seu depoimento, ela foi se emocionando. Nós interrompemos o depoimento e ela deixou a sala com uma postura diferente em relação ao momento em que entrou. Saiu cabisbaixa", conta ele, que teve três dias de prazo para colher sete depoimentos na capital gaúcha. Na avaliação de Robson, Dilma teve uma postura humilde para a época ao concordar em prestar depoimento perante a comissão. "Com ou sem o depoimento dela, a comissão iria aprovar a indenização de qualquer jeito, porque já tinha provas suficientes. Mas a gente insistia em colher os testemunhos, pois tinha a noção de estar fazendo algo histórico", afirma o filósofo.

(+)DISCURSO DE DILMA AO RECEBER O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO DA VERDADE

O relatório que a Comissão Nacional da Verdade apresenta para nós aqui hoje, torna público, é resultado, como eles disseram, de 2 anos e 7 meses de intenso trabalho. Eu, ao receber esse relatório, tenho certeza que ele encerra uma etapa e ao mesmo tempo começa uma nova etapa e demarca um novo tempo.

Sua apresentação simultânea ao governo federal e à sociedade brasileira evidencia a autonomia assegurada pela legislação à Comissão Nacional da Verdade, que atuou sem interferência governamental ou de qualquer outra espécie. A comissão nacional da verdade é uma iniciativa do estado brasileiro e não apenas um ato de governo. Por isso, os seus trabalhos têm de ser considerados por todas as entidades, não só do estado brasileiro, mas também pela sociedade.

Eu estou certa que os trabalhos produzidos pela comissão resultam do seu esforço para atingir seus três objetivos mais importantes: a procura da verdade factual, o respeito à memória histórica e o estímulo, por isso, a reconciliação do país consigo mesmo por meio da informação e do conhecimento. Nós, do governo federal, vamos nos debruçar sobre o relatório. Vamos olhar as recomendações e as propostas da Comissão e delas tirar todas as consequências necessárias.

Repito aqui o que disse quando do lançamento da Comissão da Verdade: nós reconquistamos a democracia a nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988. Assim como respeitamos e reverenciamos e sempre o faremos, todos os que lutaram pela democracia, todos que tombaram nessa luta de resistência enfrentando bravamente a truculência ilegal do estado, e nós jamais poderemos deixar de enaltecer esses lutadores e lutadoras, também reconhecemos e valorizamos os pactos políticos que nos levaram à redemocratização.

Nós que amamos tanto a democracia esperamos que a ampla divulgação deste relatório permita reafirmar a prioridade que devemos dar às liberdades democráticas, assim como a absoluta aversão que devemos manifestar sempre aos autoritarismos e às ditaduras de qualquer espécie.

Nós que acreditamos na verdade esperamos que este relatório contribua para que fantasmas de um passado doloroso e triste não possam mais se proteger nas sombras do silêncio e da omissão.

Na cerimônia de instalação da Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2012, eu disse que a ignorância sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantêm latentes mágoas e rancores. Disse que a desinformação não ajuda a apaziguar, apenas facilita o trânsito da intolerância.

Afirmei ainda que o Brasil merecia a verdade, que as novas gerações mereciam a verdade, e, sobretudo, mereciam a verdade aqueles que perderam familiares, parentes, amigos, companheiros e que continuam sofrendo… continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia.

Estou certa que vocês, integrantes da Comissão Nacional da Verdade, cumpriram ao longo destes 31 meses sua missão, pois se empenharam em pesquisar, em indagar, em ouvir e em conhecer a nossa história. Trouxeram à luz, sem medo, o tempo oculto pelo arbítrio e pela violência. O trabalho de vocês reforça os sentimentos que manifestei naquela ocasião: quem dá voz à história são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la.

Por isso, queria fazer aqui o agradecimento aos homens e mulheres livres que integraram a Comissão e que nos propiciam esse encontro com a verdade de uma nação inteira. Queria cumprimentar Pedro Dallari, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho e a dois ex-membros: Gilson Dipp e Cláudio Fonteles.

Queria também fazer o reconhecimento aos homens a às mulheres livres que relataram a verdade para a Comissão, contribuindo assim para que o Brasil se encontre consigo mesmo. Sobretudo, em nome do estado Brasileiro e em meu nome, presto homenagem e manifesto caloroso agradecimento aos familiares dos mortos e desaparecidos. Aqueles que, com determinação, com coragem e enorme generosidade, aceitaram testemunhar e contar suas histórias e as histórias dos parentes, amigos, companheiros que viveram tempos de morte, de dor, sofrimento, e por isso, grandes perdas.

Os membros da Comissão, bem como sua equipe, trabalharam com grande dedicação. Atuaram movidos pela consciência de que tinham um papel fundamental a cumprir para promover o nosso reencontro. Trazem vocês todos da Comissão, todos os que auxiliaram, todos aqueles que pelo Brasil inteiro os apoiaram, um grande benefício ao Brasil e ao nosso povo, ao nos assegurar a memória histórica.

O trabalho dessa Comissão faz crescer a possibilidade de o Brasil ter um futuro plenamente democrático e livre de ameaças autoritárias. São gestos como estes que constroem, sim, a democracia. O relatório que hoje se torna público, e a atuação das comissões estaduais, serão um ponto de partida para um país melhor.

A busca da verdade histórica é uma forma de construir a democracia e zelar pela sua preservação. Com a criação desta Comissão, o Brasil demonstrou a importância do conhecimento deste período para não mais deixá-lo se repetir. Nós devemos isso às gerações, como a minha, que sofreram suas terríveis consequências. Mas, sobretudo, devemos isso à maioria da população brasileira que, nascida após o final do último regime autoritário, não teve acesso integral à verdade histórica. É sobretudo a essas gerações e às gerações futuras que a Comissão Nacional da Verdade presta o inestimável serviço da verdade histórica. Conhecer a história é condição imprescindível para poder construí-la melhor.

A partir de agora, todos os brasileiros, terão acesso fácil, via internet, ao relatório desta comissão e às informações relevantes, sobre tudo que aconteceu naquele período. A verdade não significa revanchismo. A verdade não deve ser motivo para ódio ou acerto de contas. A verdade liberta todos nós do que ficou por dizer, por explicar, por saber. Liberta daquilo que permaneceu oculto, de lugares que nós não sabemos aonde foram depositados os corpos de muitas pessoas. Mas faz com que agora tudo possa ser dito, explicado e sabido. A verdade produz consciência, aprendizado, conhecimento e respeito. A verdade significa, acima de tudo, a oportunidade de fazer um encontro com nós mesmos, com a nossa história e do nosso povo com a sua história.

A verdade é uma homenagem a um Brasil que já trilha três décadas de um caminho democrático. E que empenharemos todas forças de todos nós para que assim persista.

Hoje, o mundo celebra o dia Internacional dos Direitos Humanos, em homenagem à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa 66 anos de existência. Tornar público este relatório nesta data é um tributo a todas as mulheres e homens do mundo que lutaram pela liberdade e pela democracia e, com essa luta, ajudaram a construir marcos civilizatórios e tornaram a humanidade melhor.

Parabéns à Comissão Nacional da Verdade. Parabéns a todos que contribuíram para a produção deste relatório. O Brasil, certamente, saberá reconhecer a importância deste trabalho que torna a nossa democracia ainda mais forte.

Muito obrigada.

# O GLOBO, via http://pocos10.com.br/?p=16948
* CORREIO BRAZILIENSE
+ Folha

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