segunda-feira, 21 de abril de 2014

anti-heróis & aspirinas

Tenho aqui em minhas mãos uma charmosa e bem acabada edição de bolso do novo livro de Yury Hermuche. Trata-se de um interessante apanhado de divagações aleatórias narradas num fluxo contínuo de pensamento transposto para o papel – de ótima qualidade e encadernado em lombada quadrada com uma capa azul piscina muito bonita. A narrativa não é linear e não há uma história a ser contada, mas ao se deixar envolver pelo que é dito – e está escrito – faz-se a magia: é como se você estivesse entrando na cabeça do autor e passasse a compartilhar de suas angustias, frustrações e sensações: o desejo ao rever uma amiga que já foi um antigo caso, o vento frio no rosto, a sensação de estar sendo seguido(a). “A Cidade sob a sombra. Uivos diferentes ecoam das janelas dos apartamentos e eles são firmes. Viscerais, sensuais demais. A noite é uma delícia. Você só precisa saber se mover para encontrar o leve vento frio que sopra contra o rosto. O metal das placas de trânsito rangendo, as ruas cada vez mais vazias.”

Conheci Yury Hermuche ainda na primeira metade dos anos 1990, quando ainda publicava em cópias xerox distribuídas via correio o meu fanzine, “Escarro Napalm”. Ele morava em Brasilia e produzia uns quadrinhos muito bons, com histórias recheadas de sexo, rock e divagações existencialistas. Gostava bastante do traço dele e dele, como pessoa – publicar um fanzine era, em grande parte, uma desculpa para fazer novos amigos para além das fronteiras geográficas às quais estamos presos, em maior ou menor grau. Mas perdi o contato quando parei de “fanzinar”. Só o reencontrei já no século XXI, por acaso, via internet, como guitarrista da banda “indie” paulistana Firefriend. Não sabia que ele também escrevia. Este, “anti-heróis e aspirinas”, já é seu terceiro livro. Foi lançado por uma editora própria, dele e de mais três amigos, chamada “longe”, que você pode conhecer acessando http://muitolonge.com.br/.


Yury é o personagem principal de seu próprio livro. Ele gosta de estradas, não de igrejas. “Uma estrada é tão diferente de uma igreja. As igrejas e os templos também são muito velhos, assim como as estradas. Mas duas coisas não poderiam ser tão diferentes. A estrada é aberta e avança pelo mundo. A igreja é fechada, te esconde do mundo. A estrada te leva para os lugares, permite que você se mova por aí. A igreja não te leva para lugar nenhum, você entra e sai exatamente da mesma forma todos os dias. A experiência na igreja é totalmente abstrata: você visita as vastidões com as palavras. Mas falam de um mundo muito pequeno. Na estrada, a experiência suga a energia do seu corpo, você pode morrer se não for cuidadoso. E o mundo é enorme. A igreja responde, a estrada pergunta. Para onde você quer ir? A estrada não o julga.”


É também um profundo conhecedor da geografia íntima de sua casa: “Apago todas as luzes da casa. Gosto de andar por ela no escuro. A iluminação da rua entra pela janela e me basta. Gosto de observar os ângulos vazios. O silêncio. Quase inexistente. Aos poucos percebo os ruídos ínfimos que as máquinas produzem. Aqui dentro e lá fora. Esses sons ocupam a casa aos poucos. Mudanças de fase ou picos de energia também influenciam os caminhos dessa música. Se você prestar bastante atenção, vai perceber até mesmo quais são aqueles objetos que melhor reverberam cada freqüência. A madeira no sofá e seu estofo são particularmente interessantes com os graves. Aproveito também para imaginar outros usos possíveis para cada móvel e ambiente. Encontro idéias surpreendentes. Até a forma como a disposição dos ambientes das casas se esgota no mesmo padrão repetitivo é uma manifestação dessa ferramenta de controle, a arquitetura. A vida é muito mais plástica do que a arquitetura. Sinto que este é um mundo vasto, mas absolutamente reduzido por quem o domina. O mundo. Grande mundo. Se eu não fosse tão só, talvez não me dedicasse tanto a explorá-lo. Talvez se convivesse mais com outras pessoas, eu não desejasse tanto descobrir as fendas, rachaduras e passagens que o ampliam.”

Yury está nesse mundo para aumentar o caos, não para contribuir com a ordem.

http://www.youtube.com/watch?v=9jyg7PamiUI

http://www.yuryhermuche.com/

A

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