segunda-feira, 3 de maio de 2010

Brasil - sil - sil ...

Excelente editorial de Mino Carta para a revista Carta Capital desta semana comentando a ratificação da lei da Anistia pelo Supremo Tribunal Federal. Para nossos orgulho, um dos poucos a votar contra foi o Ministro Carlos Ayres Brito, sergipano. Na sequencia, outro excelente texto sobe o mesmo assunto, também extraído da Carta Capital.

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Parece-me ouvir a gargalhada borbulhante do general Golbery do Couto e Silva enquanto o Supremo Tribunal Federal nega a revisão da Lei da Anistia pedida pela OAB. Golbery é personagem a merecer estudos profundos na qualidade, em primeiro lugar, de imbatível conhecedor da alma dos privilegiados do Brasil. Sem dar-se conta disso, eles se portam conforme o figurino traçado por quem já foi tido como o Merlin do Planalto.

Não cabe, obviamente, enxergar em Castello Branco ou em Ernesto Geisel reencarnações do rei Artur. Não passaram de títeres nas mãos do seu chefe da Casa Civil. João Figueiredo lá pelas tantas, quando explodiram as bombas do Riocentro, tentou livrar-se do titereiro e conseguiu. Nem por isso escapou ao roteiro preestabelecido por Golbery. Com a inestimável contribuição de um professor gaúcho, Leitão de Abreu, que falava alemão mas não conhecia a alma dos privilegiados.

Protagonista brasileiro da guerra fria, atento ao descompasso entre as sístoles e diástoles da política nativa, Golbery criou a ideologia do golpe de 1964 e, a partir de dez anos depois, ditou as regras da distensão que virou abertura. Fatais a derrota das Diretas Já, a enésima consagração da conciliação das elites na Aliança Democrática e a eleição indireta de janeiro de 1985. Disputada por quem Golbery previamente escolhera, Tancredo Neves e Paulo Maluf.

Chamaram o que se seguiu de redemocratização. Da mesma forma, teimaram em batizar o golpe de revolução. Palavras sem significado, cultivadas por uma elite responsável pelo atraso do Brasil, a despeito das extraordinárias vantagens que a natureza conferiu ao País. Hoje, Golbery se riria com o aval que o Supremo dá à Lei da Anistia por ele excogitada e finalmente imposta pela ditadura.

O voto do STF agrada aos candidatos Dilma, Serra e Marina. Não há um, um somente, que se queixe. E não se exclua que os ministros do Supremo tenham votado pela manutenção – belas e inesquecíveis exceções Carlos Ayres Brito e Ricardo Lewandowski – na certeza de contribuir para a paz geral da nação em um ano eleitoral. O que move os senhores da corte, da política, da mídia? O inesgotável medo do retrocesso ou a inesgotável vocação conciliatória?

Busca-se a acomodação em proveito do status quo. Para tanto, qualquer marola é incômoda. Este pessoal deveria é ter medo de algo temido por Golbery: “Se as coisas continuarem como estão – dizia ele –, ainda acabaremos pendurados num poste, menos eu, que morro logo”. Pergunto-me se, no caso, era sincero. Pois a aposta dos destinatários da ameaça se faz até hoje na resignação do povo.

Alguns pronunciamentos da votação do STF soaram com clangor, elaborados a indicar estudo exaustivo, e demorados como os discursos de Fidel Castro. Propõe-se, a bem da sacrossanta verdade, reescrever a história do Brasil, sem entender que nada se constrói a caminho da contemporaneidade do mundo sobre alicerces podres, ao contrário do que fizeram outros países, em épocas diversas e até bem recentes. Temos de concluir, entretanto, que mais uma vez a história assume a versão dos vencedores. A ditadura, portanto, cujos efeitos perduram.

Impressionou-me especialmente o voto do ministro Eros Grau. Há quem me diga que ele se pronuncia, por exemplo, contra a extradição de Cesare Battisti porque, embora vítima de certas confusões em relação à história italiana, sente-se atingido nas entranhas pela perseguição por ele mesmo sofrida nos tempos da ditadura. O ministro agora sustenta que a anistia foi ampla, geral e irrestrita, e decidida em sintonia entre os torturadores e suas vítimas.

Grau chega ao desplante de citar Raymundo Faoro, um dos maiores pensadores do Brasil de sempre. Recordo a batalha travada por Faoro, então presidente da OAB, e posteriormente nas páginas da IstoÉ, que eu dirigia, contra uma lei destinada a envergonhar qualquer país aspirante à democracia. Hoje Raymundo, que esbanjava um ferino senso de humor, também cairia em uma gargalhada. Acre, entretanto. Como ensinou Spinoza, não tinha medo e tampouco esperança.

30/04/2010
Carta Capital
Mino Carta

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Muitos dos ataques disparados contra o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos – e no que toca à Lei da Anistia de 1979 – levaram-me ao histórico diálogo entre Churchill e Stalin, sobre a sorte dos derrotados na Segunda Guerra Mundial.

Churchill disse a Stalin que teria sido melhor fazer justiça sumária, de mão própria e sem indulgências, no momento da captura de chefes adversários. O georgiano respondeu de bate-pronto: “Na União Sovié-tica não se julga sem o devido processo”.

Stalin ironizava ao recordar a Churchill a velha tradição jurídica britânica, em ponto (devido processo) com origem remota na Magna Carta de 1215, imposta por barões e clérigos ao rei João Sem Terra. E os tribunais militares de Nuremberg e Tóquio, instituídos pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, incumbiram-se do julgamento dos processos contra os derrotados.

Deixar impunes os crimes de lesa-humanidade consumados no Brasil durante a ditadura militar (1964-1985) significa, realizado um juízo irrefletido como o de Churchill, afronta os direitos naturais da pessoa humana e dos seus familiares. Implantado por meio de um golpe estribado numa falsa vacância presidencial, o regime excepcional contabilizou 144 assassinatos sob tortura e 125 desaparecimentos de conacionais.

Com efeito, o texto original do decreto presidencial que instituiu o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, com a futura criação por lei de uma Comissão da Verdade e consoante a diretriz 23, traçou o caminho justo para se percorrer em busca da construção da memória nacional e da identificação dos mandantes e dos executores dos crimes de lesa-humanidade. E a responsabilidade criminal é sempre pessoal. No popular, jamais haverá, na porta de uma cela de presídio, uma placa a indicar prisão por condenação do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica.

O esperneio e o jogo de cena feitos pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, produziram o resultado desejado de tornar anódino o decreto presidencial: “Fica criado o grupo de trabalho para elaborar anteprojeto de lei que institua a comissão da verdade (...) para examinar as violações de direitos humanos...” A diretriz 23 do decreto presidencial ficou, com a retirada da expressão “repressão política”, vaga o suficiente para tirar os responsáveis pelo terrorismo de Estado do centro das investigações.

Lula, conhecido conciliador, colocou os ministros da Defesa e dos Direitos Humanos em aberto antagonismo, para se acertarem, num encontro noturno. No dia seguinte, selou a paz e atendeu os militares que fizeram Jobim de porta-voz.

No particular, Lula, ao capitular, acabou com as preocupações do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Este, sem corar, sustentara que a iniciativa de investigar os crimes perpetrados pelos agentes da ditadura gerava “intranquilidade entre as Forças Armadas”. Não se sabe, até agora, sobre FHC ter, antes da entrevista, consultado Jobim ou constatado a baixa nos seus estoques de fraldões.

Num mundo com nações compromissadas com a dignidade humana e organizado com tribunais de direitos humanos, Corte Internacional de Justiça e Tribunal Penal Internacional, este para perseguir os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e as agressões internacionais, torna-se útil, em cada Estado nacional, a existência de uma secretaria de direitos humanos.

Essas secretarias incumbem-se de dar satisfações, nos foros internacionais e perante as Nações Unidas, acerca de ações implementadas ou sugeridas em programas. Um programa nacional de direitos humanos serve até para revelar, à comunidade internacional, o grau de civilidade e respeito de uma nação pelo tema. No Brasil, Jobim, os comandantes militares e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional do presidente Lula, general Jorge Félix, impõem condições para apurações e invocam uma canhestra paridade entre as condutas dos golpistas com os opositores que pegaram em armas.

O arrojo marcou os nossos dois últimos programas nacionais: o primeiro foi pífio. Só faltou avisar que um programa, que tem por ideal cunhar propostas para tutelar a dignidade humana e a permitir o livre desenvolvimento da personalidade, nunca é autoaplicável, num Estado de Direito. Para se tornar efetivo, o primeiro passo consiste na apresentação de projeto de lei, com possibilidade de abertura de amplos debates, até por meio de audiências públicas, nas comissões parlamentares.

Disso, no entanto, não tem a menor ideia o governador de São Paulo, José Serra. Como Pilatos, ele se negou a comentar o terceiro Programa Nacional. Nenhuma palavra soltou a respeito do que pensa sobre a alteração e constitucionalidade da Lei da Anistia. Essa sua ‘pilatice’ demonstra a intenção de esconder posições e evitar desgastes eleitorais, apesar de estar diante de relevante questão de política nacional. Mais uma vez Serra seguiu o seu líder FHC, que, sempre sem corar, entendeu não ser um programa nacional de direitos humanos “assunto político”. No episódio, essa dupla desempenhou os tristes papéis de Pôncio Pilatos e vivandeira, respectivamente.

O amplo terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos ensejou uma verdadeira tempestade em copo d’água, como se as declarações nele contidas entrassem em vigor de plano. Ficou clara a intenção diversionista de muitos. E a carta de exoneração de Jobim emulou e agitou pijamas. Volto a insistir: no Brasil houve terrorismo de Estado para sustentar o regime ditatorial e isto legitimou a luta armada, pelos opositores.

O programa apresentado extrapolou e atropelou a Constituição em alguns pontos, como o controle da mídia. Para isso haveria necessidade de uma Assembleia Nacional Constituinte, pois está em jogo cláusula pétrea. Deve-se reconhecer, por outro lado, que não criminalizar o aborto, reconhecer a união civil entre homossexuais e adoção de filhos por eles, e proteger as prostitutas para evitar que sejam objeto de exploração, são temas muito discutidos no mundo ocidental.

De tudo, e ainda no que toca à Lei da Anistia, Lula deixou claro que, no momento, a tarefa sobre a legimitidade e limites dessa legislação está afeta ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Lula se referiu especificamente à ajuizada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil junto ao STF e por meio do conselheiro, professor emérito e jurista Fábio Konder Comparato.

A ADPF é um remédio constitucional, regulamentado pela Lei 9.882, de 1999. A arguição permite evitar ou reparar lesão a preceito constitucional em face de ato do poder público. Ela se abre, também, para solucionar controvérsia, com fundamento jurídico relevante, sobre a constitucionalidade de leis e de atos normativos, ainda que anteriores à Constituição de 1988. Como se nota, a arguição tem tudo a ver com a Lei da Anistia.

O governo Lula, chamado pelo STF a prestar informações acerca da ADPF, entendeu – por peça apresentada pela Advocacia-Geral da União (AGU), então chefiada por José Antonio Dias Toffoli (atual ministro do STF) – que a Lei da Anistia é ampla, geral e irrestrita. Sobre isso, os ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi ameaçaram se exonerar, mas esqueceram logo.

Não deixou a AGU de recordar que o projeto da Lei da Anistia contou, em 1979 e no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com parecer favorável do então advogado José Paulo Sepúlveda Pertence, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e ministro do STF. À época, Pertence frisou, numa posição imediatista e visão curta sobre direitos humanos, que o então projeto de lei “prodigalizava a anistia a todos os homicídios, violências e arbitrariedades policiais de toda sorte, perpetrados nos desvãos da repressão política”. E arrematou: “Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro da nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável com o passo adiante no caminho da democracia”.

Passados 30 anos, Comparato, pelo próprio Conselho Federal da OAB, tenta colocar as coisas no devido lugar, pela ADPF ajuizada no STF. A Lei da Anistia não engloba crimes comuns praticados pela repressão ditatorial contra opositores políticos, durante a ditadura militar, conclui Comparato.

Vale lembrar, além do direito internacional e as convenções subscritas pelo Brasil antes de 1979 e referentemente aos crimes de lesa-humanidade, que a própria Constituição (art. 5º, XLIII) excetua da anistia os envolvidos em terrorismo de Estado. Fora isso, não ocorreu a prescrição dos crimes. Pela Constituição, ações de força por grupos voltados à prática de terrorismo de Estado caracterizam crime imprescritível: art. 5º, inciso XLIV da Constituição.

Como tivemos um regime de exceção, com eleições indiretas, mostra-se divorciada de compromisso social a afirmação nos autos processuais da arguição, pela AGU do então advogado Toffoli, de que o “diploma legal (Lei da Anistia) surgiu da negociação havida entre a sociedade civil e o regime militar, que possibilitou, à época, a transição para o regime democrático”. Pergunta-se: quem teria sido esse representante da sociedade civil à época?

A autoanistia cunhada no regime de exceção, a valer só aos que praticavam terrorismo de Estado e crimes de lesa-humanidade, foi preparada e se materializou na Lei nº 6.638, de 1979. O direito e as convenções internacionais, muito antes de 1979, vedavam a autoanistia e tentativas de se tornar impunes crimes de lesa-humanidade.

Pano Rápido. Resta aguardar a decisão do STF, em arguição que tem como relator o ministro Eros Grau. Num célebre artigo literário de 1974, intitulado A Regra de Pôncio Pilatos, o ensaísta Carlo Bo escreveu que “a justiça perfeita não existe”. Em caso de crimes de lesa-humanidade, vamos esperar que o nosso STF comprove o contrário.

PS (Nota): Pelo contrúdo do último parágrafo, nota-se que o texto acima foi escrito antes do resultado da votação.

por Wálter Mayerovich

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