Entrevista com Silvio Tendler - Cineasta se revolta com a decisão do STF que impediu a revisão da Lei da Anistia
por Eliane Lobato
para a Istoé
Na ampla sala de seu apartamento com vista para a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, o cineasta carioca Silvio Tendler, 60 anos, lê notícias em seu laptop e se indigna com muitas. Uma das piores, entre as mais recentes, para ele foi o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter votado pela manutenção da Lei da Anistia, de 30 anos atrás. “Sou um militante ativo contra a proteção a torturadores”, diz ele, para quem a decisão impõe mais sofrimento às vítimas que sobreviveram e aos parentes de quem morreu nos porões da ditadura.
Tendler está lançando o filme “Utopia e Barbárie”, um road movie histórico que o levou a 15 países para pesquisar sobre os sonhos que embalaram gerações do mundo inteiro a partir da Segunda Guerra Mundial e, paralelamente, sobre as maiores barbaridades já cometidas contra a humanidade, como as bombas de Hiroshima e Nagasaki e o Holocausto, entre outros episódios. Agora, ele prepara mais dois longas. O primeiro será “Tancredo, a Travessia”, que fala da passagem da ditadura brasileira para a democracia através do presidente (já falecido) Tancredo Neves. O segundo é “Alma Imoral”, baseado no livro do rabino Nilton Bonder, que vai falar do entediado mundo politicamente correto em que vivemos. “Todos são a favor de salvar o planeta, ainda que não pratiquem isso”, comenta.
Tendler é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ) há 30 anos e dirigiu mais de 40 filmes, entre os quais algumas das maiores bilheterias de cinema do País, como “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, visto por 1,8 milhão de espectadores. Também filmou “Jango”, que cravou um milhão, e “Os Anos JK”, com 800 mil pagantes.
Istoé - O Supremo Tribunal Federal acaba de rejeitar ação propondo a revisão da Lei da Anistia, que abrange crimes de tortura e outros do regime militar. Isso é uma barbárie? Silvio Tendler - Evidentemente. Anistiaram estupradores. Anistiaram homens fardados que se deram ao direito de estuprar mãe na frente de filhos pequenos, mulher na frente do marido, de cometer violências físicas. São esses homens que foram anistiados, que não serão julgados. Mas as torturas, nas leis internacionais, são crimes contra a humanidade, imprescritíveis. Esses agentes tinham que ser julgados e condenados. Sou, sempre serei, um militante ativo contra a proteção a torturadores.
Istoé - A argumentação é de que a chamada anistia ampla, geral e irrestrita foi um pacto político e bilateral. Silvio Tendler - O voto do ministro relator Eros Grau fala de um acordo entre as partes para que a anistia fosse recíproca. Mas isso é falso do ponto de vista histórico. É bom a gente lembrar em que circunstância essa anistia foi pactuada. Ela saiu de um Congresso desfigurado desde 1964, quando os militares assumiram o poder e cassaram mandatos de lideranças importantes, prenderam, exilaram, torturaram, instalaram o AI-5. Tenho um depoimento gravado do Miro Teixeira (deputado federal-PDT-RJ) falando que o senador Teotônio Vilela dizia: “Vamos aceitar essa anistia porque é essa ou nenhuma.” As pessoas queriam tirar os amigos da cadeia, queriam ver os exilados voltarem para o Brasil. Então, toparam. Mas foi um pacto conjuntural. E desigual. Os militares se autoanistiaram.
Istoé - As Forças Armadas também perdem com isso, não é? Silvio Tendler - A punição de torturadores, estupradores e assassinos beneficiaria o conjunto das Forças Armadas, que deixariam de ser responsáveis como um todo pelos crimes cometidos por um punhado. A história sinaliza o futuro e não é construída com nostalgia do passado. Quero dizer que, se a gente conhecesse melhor a história do Brasil, faríamos menos bobagens. Em meu filme, cito alguns exemplos, como o do jornalista Bernardo Kucinsky, irmão da Ana Rosa Kucinsky, desaparecida. Ele mostra a tortura que é ter que falar com a sogra do general, com a amante de torturador, para ver se consegue um rastro que leve a alguma pista da irmã. A punição também deveria ser um exemplo para que maus funcionários do Estado não ousem repetir o crime. Porque, se eles não perceberem que no Brasil tem punição para este tipo de ato, estamos ferrados, não vamos construir uma nação melhor para nossos filhos e netos.
Istoé - Por que está havendo reações contrárias ao fato de a candidata Dilma Rousseff aparecer em quatro depoimentos em seu filme? Silvio Tendler - Nunca imaginei que o filme fosse sofrer tantos patrulhamentos, mas não estou triste com isso, não. O papel do artista é ser transgressor. Acho que deve ser um bode fazer um filme politicamente correto. Graças a Deus nunca consegui fazer. Neste momento em que lanço “Utopia e Barbárie”, estou sendo pressionado por causa da presença da Dilma, hoje candidata à Presidência da República. Daqui a três ou quatro meses, lançarei “Tancredo, a Travessia”, um filme sobre a passagem da ditadura para a democracia através da figura de Tancredo Neves. Entrevistei gente como o José Serra, o Fernando Henrique Cardoso, o José Sarney. O filme vai ser lançado no segundo semestre deste ano e acredito que muito provavelmente alguns militantes petistas vão ficar irritados comigo. Como ousei fazer um filme e botar só o Serra? O que eu posso fazer? Vou negar a história?
Istoé - Quantas vezes o José Serra vai aparecer? Silvio Tendler - Devo quatro aparições ao Serra (risos).
Istoé - Muitos dizem que o Serra teve um papel importante na resistência à ditadura e o sr. só inseriu a Dilma. Silvio Tendler - Nenhum papel. José Serra era presidente da UNE em 1964, esteve no comício da Central, representa uma virada política importante da UNE nos anos 60. É muito importante até 64, quando vem o golpe de Estado. Depois, ele é obrigado a se exilar porque era um dos mais procurados pela ditadura militar. Se refugia primeiro na Bolívia e depois no Chile; se casa com uma chilena, e continua os estudos dele em economia. Nos anos seguintes, ele não tem nenhuma militância preponderante, não é ligado à luta armada, não é de partido.
Istoé - Quando o sr. entrevistou a ex-ministra Dilma ela já era candidata à Presidência? Silvio Tendler - Não! Quando a produção entrou em contato com o gabinete dela, ela era ministra de Minas e Energia. Não era figura de proa e muito menos cogitada para ser candidata. Fiz a entrevista, ela foi corajosa. Quando eu estava com o filme armado, a Dilma foi lançada pelo Lula. Na hora eu percebi o pepino que me caíra nas mãos. Aí, depuramos a entrevista da Dilma com muito mais rigor, exatamente porque ela virara candidata. Começamos a cortar, tinha muito mais material dela, e ficou exatamente com quatro falas. A Dilma não era militante de base, era da direção nacional, da executiva da resistência. Foi presa, torturada, sobreviveu, resistiu como pôde, então eu tinha que contar essa história, ela não podia ser cassada do meu filme porque ia tentar uma outra coisa política. Ela e os jornalistas Franklin Martins e Ottoni Fernandes Jr. defendem a entrada dos estudantes na luta armada. O poeta Ferreira Gullar é vigorosamente contra. Ele lembra um diálogo duro dele com o Mario Alves, em que diz: “Você está me chamando para pegar em arma? Não sei pegar em arma, não sei atirar! E o Brasil não é Cuba, não. O Brasil é um continente, aqui não cabe a luta armada!” Tem o cineasta Sergio Santeiro e o jornalista Luiz Carlos Maciel, defendendo uma terceira via, que é da contracultura. E o Zé Celso, que faz uma síntese disso tudo, dessa geleia geral. Eu botei esse sincretismo político no filme.
Istoé - O sr. vai votar em quem? Silvio Tendler - Não sou petista, nunca fui. Em termos de política eleitoral hoje me dou o direito de manter a minha neutralidade. Não tenho que declarar voto. Isso eu já faço há algumas eleições, desde 94. Tenho muito orgulho de ter feito o primeiro e o segundo programa nacional do PSB e fiz o primeiro programa nacional do PCB. A primeira vez que tocou a Internacional Comunista na televisão brasileira no horário nobre e em cadeia nacional fui eu que coloquei. Tenho muito orgulho disso.
Istoé - Qual é o papel do seu filme? Silvio Tendler - Respeito a indústria do entretenimento, mas estou acostumado a viver com a xepa dessa indústria. Meus filmes são muito mais baratos e, por outro lado, atingem muito menos público. Na minha modesta opinião, acho que meus filmes introduzem um debate. As pessoas não querem só assistir, querem debater. Isso é legal. É uma característica do cinema que estava perdida, o papel de mobilizador. Conseguimos, em duas semanas, em circuito que não oferece mais que 300 lugares por dia, fazer quatro mil espectadores. Essa polêmica é legal para a gente discutir a diferença entre política e história.
Istoé - Como será o filme sobre o presidente Tancredo Neves? Silvio Tendler - Ele era um cavaleiro solitário. Construiu um caminho, acreditou nele, caminhou sozinho e tinha razão. Tancredo tinha uma coerência incrível. Não era um raivoso, era um cara de persuasão pelo diálogo. Não dava carteirada, não brigava, não era polêmico. Foi do PSD e primeiro-ministro do Jango. E costurou bem com o Jango. Quando Jango foi cassado, ele foi leal, levou-o ao aeroporto, se despediu, voltou para o Congresso para lutar contra o golpe.
Istoé - Acha que o ex-governador Aécio Neves herdou essa arte da costura com o avô? Silvio Tendler - Isso já é política e aqui estamos falando de arte. Já não é história e eu não gostaria de embolar. Acho que o Aécio é um político que está fazendo a trajetória dele. Como pessoa física gosto muito dele. Sou amigo dele desde 1985, quando fomos juntos a Moscou para o Festival Internacional da Juventude e da Paz. Ele aparece em foto no “Utopia”.
Istoé - Quantas vezes ele aparece? Silvio Tendler - A foto dele aparece três ou quatro vezes (risos).
Istoé - O sr. fez a campanha do Lula em 1994, não foi? Silvio Tendler - Sim. E foi nessa campanha que eu me desencantei com campanhas eleitorais. Mas ainda tentei, em 2002, fazer a do Ciro Gomes. E foi um horror. Eu falei: “Não me misturo mais com política, não é meu universo.”
Istoé - Por que foi “um horror”? Silvio Tendler - O comportamento dele com a gente foi muito ruim. Quando ele começou a subir nas pesquisas, começou a se achar o ó do bobó. Foi lamentável. Ele começou a achar que não precisava de partido, de militância, de ninguém. Que sozinho faria tudo. Eu percebi o comportamento utilitarista que ele tinha com a gente e comecei a me afastar até do PPS. Saí da campanha e jurei para mim mesmo que nunca mais faria isso.
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