Numa inusitada inversão, o filme que ganhou o oscar deste ano finalmente estreia em Aracaju. Em vários horários e salas, como de praxe ? Não, na Sessão "Cine Cult", que é exibida diariamente apenas às 14:00h. Hora ingrata, sol inclemente, preguiça pós-almoço, mas pelo menos está passando - o que seria de nós sem o Cine cult, heim ?
Abaixo, duas críticas:
_____________
Hoje um favorito ao Oscar, Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008) foi lançado inicialmente no Brasil direto em DVD porque, entre outros motivos, o gênero vem com um histórico recente de má bilheteria. Outro motivo é a falta de nomes estrelados no elenco - mas aí já é, mercado à parte, uma questão que interessa à diretora Kathryn Bigelow (Caçadores de Emoção, K-19).
Não só escolher desconhecidos e jovens para os papéis principais, como também relegar os famosos e os "adultos" a participações especiais, é fundamental para o que Guerra ao Terror propõe: retratar a guerra não como um espetáculo spielberguiano, uma passagem obrigatória à maioridade, mas como uma espécie de purgatório, um serviço da mais baixa escala do trabalho que eventualmente é executado - por caipiras, negros, latinos, suicidas - com alguma dignidade.
Não por acaso, já se tornou lugar-comum entre críticos e cinéfilos compará-lo aos filmes de guerra de Howard Hawks, em que o homem comum tem sua trajetória confundida - por mérito, não por predestinação - com a dos heróis. Em Guerra ao Terror, o herói, ou anti-herói, é o sargento James (Jeremy Renner). Ele chega à companhia Bravo dos fuzileiros em Bagdá faltando 38 dias para ser dispensado, e certamente vai viver cada um como se fosse o último.
O uniforme de James - que envolto em fumaça parece um astronauta na superfície estéril do Iraque - é o verdadeiro "armário da dor" do título original, uma roupa de proteção para os marines que desarmam bombas largadas em áreas civis. É uma rotina de operariado, mas do ponto de vista da dramaturgia tem um apelo bastante forte: um filme inteiro sustentado naquele clímax clássico, cortar o fio vermelho ou o azul do detonador.
Bigelow sempre teve mão boa para a ação - e, como ressalta o crítico Filipe Furtado em seu blog, toda informação sobre os personagens é dada no filme em função da ação - e nesse ponto Guerra ao Terror não decepciona. Inerente à ação há também a reflexão sobre a natureza catártica da guerra. Como diz a epígrafe que abre o filme (tirada do livro War is a Force That Gives Us Meaning, do jornalista e correspondente de guerra Chris Hedges), "a guerra é um vício".
Essa leitura psicologizante - martelada na figura constante do médico coronel da base militar - nunca é perdida de vista. O que diferencia Guerra ao Terror de produções recentes sobre o vazio existencial dos pelotões - de A Conquista da Honra e Soldado Anônimo à minissérie da HBO Generation Kill - é o reforço no conceito psicanalítico do desejo de morte.
Porque não há dignidade maior da perspectiva do soldado-operário, já que a questão é dar algum sentido a guerras administrativas como essa do Iraque, do que tê-la como cicatriz - e mesmo debaixo de todo o armário da dor o sargento James vivencia a guerra na carne. Quando ele entra debaixo do chuveiro sem tirar a roupa, ainda assim escorre sangue pelo ralo.
James respeita o sangue porque sabe, inconscientemente, como todo homem comum digno da eternidade do cinema, que a verdade está nos atos, e não no discurso. Repare nas cenas em que ele está de volta à sua casa: o sargento limpa a calha, lava cogumelos. Começa a falar do Iraque na cozinha e a esposa interrompe, com uma cenoura na mão, "corte isso aqui pra mim". Aquela máxima de que "o trabalho dignifica o homem" continua valendo, mas em Guerra ao Terror o trabalho é mais essencial: ele dá ao homem não só dignidade, mas uma identidade.
E se cortar legumes não basta mais para James, paciência. Ele não é o primeiro nem será o último a viver de guerrear. É, de qualquer forma, uma escolha mecânica, alienada, essa de viver da guerra. Na cena do sniper no deserto, o pente de balas já vem sujo de sangue mesmo antes de disparar.
Marcelo Hessel
04 de Fevereiro de 2010
Omelete
--------
Guerra ao terror - Dirigido por Kathryn Bigelow. Com: Jeremy Renner, Anthony Mackie, Brian Geraghty, Guy Pearce, David Morse, Ralph Fiennes, Evangeline Lilly, Christian Camargo.
As distribuidoras brasileiras têm um modo misterioso de trabalhar: todos os anos, diversos filmes importantíssimos ou simplesmente aguardados pelo público são engavetados por tempo indefinido antes de chegarem aos cinemas brasileiros (alguém ainda se lembra do sempre adiado À Prova de Morte?) ou mesmo retalhados por algum motivo irracional (Halloween) quando despejados em nossas telas. Em contrapartida, há casos como o de Guerra ao Terror, enviado para as locadoras e para a venda direta em DVD sem qualquer divulgação ou alarde no primeiro semestre de 2009 sem ter sequer passado pelos cinemas – isto mesmo tendo sido ovacionado nos festivais de Veneza e Toronto no ano anterior e de ter sido imediatamente considerado como potencial candidato ao Oscar praticamente desde o momento em que foi lançado nos Estados Unidos. Com isso, mesmo estando disponível para locação há quase um ano no Brasil, o filme agora é lançado nos cinemas para tentar pegar carona em suas nove indicações pela Academia, o que não deixa de ser curioso. E, convenhamos, patético.
Escrito pelo estreante Mark Boal, o roteiro acompanha uma equipe de soldados norte-americanos cuja especialidade reside em desarmar bombas plantadas por insurgentes iraquianos durante a mais recente guerra patrocinada pelo governo dos Estados Unidos. Com uma lógica de combate completamente distinta daquela praticada no Vietnã, cujos embates se passavam na maior parte em matas fechadas, a guerra do Iraque é essencialmente um conflito urbano – e, assim, cada prédio, janela, esquina ou monte de lixo pode representar uma ameaça em potencial para os soldados do exército invasor. Essa atmosfera de perigo constante que inspira uma quase paranóia por parte dos militares, aliás, é ilustrada de maneira impecável já na seqüência inicial, que, tensa e muitíssimo bem construída, estabelece o tom que dominará toda a narrativa.
Trazendo como centro de sua trama o experiente sargento William James, Guerra ao Terror acaba funcionando também como um excelente estudo de personagem ao retratá-lo como um sujeito complexo e tridimensional: profissional competente e corajoso, ele é encarnado pelo brilhante Jeremy Renner como um homem que, ao mesmo tempo em que se preocupa intensamente com os subordinados, buscando motivá-los e cuidando de seu bem-estar físico, não hesita em se envolver em situações extremamente arriscadas que indiretamente também deixam vulneráveis seus companheiros. Porém, longe de surgir como um estereótipo do “soldado-cowboy”, o sargento James constantemente revela facetas surpreendentes de sua personalidade, como, por exemplo, ao jamais se deixar afetar pelas ofensas e agressões (justificadas) de seu segundo-em-comando (encarnado com incrível seriedade por Anthony Mackie) ou ao demonstrar não ter permitido que toda aquela violência o tornasse insensível aos horrores da guerra, como podemos perceber por suas reações a incidentes extremos que protagoniza ou testemunha.
Adotando na maior parte da projeção um estilo semi-documental, com a câmera na mão e perseguindo os personagens como se fosse uma das integrantes daquela pequena equipe, a diretora Kathryn Bigelow também busca salientar o tom de improviso típico de um documentário através de rápidos zooms e de uma montagem que, mesmo repleta de energia, jamais apela para o estilo entrecortado e ininteligível de tantas obras do gênero. Ao mesmo tempo, a cineasta se mostra inteligente ao alterar esta abordagem em determinadas seqüências que se beneficiam enormemente de uma decupagem mais convencional, como no excepcional “duelo” entre atiradores de elite que, ocorrendo no meio do deserto, tem a espera prolongada como estratégia básica – o que, em vez de soar entediante, acaba resultando num dos momentos mais tensos do longa justamente em função da capacidade de Bigelow de retratar o incômodo, o cansaço e o foco inabalável dos soldados sob um sol cruel e cercados de poeira, mosquitos e cadáveres. Como se não bastasse, a diretora faz um uso impecável da câmera lenta, usando o recurso apenas nos momentos em que este realmente se encaixa organicamente e resultando em planos não só impactantes, mas de surpreendente beleza plástica – como o instante em que vemos o cascalho saltando do chão ou a ferrugem se desprendendo de um carro velho em função de uma forte explosão.
Com uma estrutura episódica que surge como fruto da própria natureza das missões encabeçadas pelos heróis, Guerra ao Terror salta de uma seqüência a outra com fluidez, mantendo o espectador sempre inquieto graças aos obstáculos cada vez mais ameaçadores enfrentados por aqueles homens. Além disso, os diferentes cenários permitem a apresentação de vários personagens que, de uma forma ou de outra, ilustram vários aspectos da guerra, permitindo que Bigelow desenvolva sua temática claramente anti-belicista com propriedade: assim, temos o ímpeto simpático, mas trágico do sargento de Guy Pearce; a crueldade e a falta de humanidade do coronel de David Morse; e, claro, a iniciativa interesseira do mercenário de Ralph Fiennes – três atores competentes que enriquecem o filme com suas aparições mais do que eficazes. Da mesma maneira, a postura crítica da cineasta fica clara através de momentos como aquele em que os soldados hostilizam a população local no trânsito ou quando um taxista é tratado como um verdadeiro terrorista, o que leva o protagonista a constatar de maneira irônica: “Se ele não era insurgente, agora certamente é”.
No final das contas, porém, é mesmo o personagem de Renner quem acaba servindo como verdadeiro centro temático do longa ao demonstrar os efeitos da guerra sobre o espírito humano: acostumado ao perigo contínuo e às situações extremas, o sargento James é um homem que no campo de batalha se mostra sempre seguro e no controle absoluto da situação – mesmo que ainda não tenha se acostumado completamente à barbárie que testemunha ou co-patrocina. Assim, a perspectiva de voltar à posição de simples civil é algo que ele naturalmente encara com reservas – e é resultado direto da fantástica composição de Jeremy Renner o fato de que, em certo momento, ao vermos o sargento num supermercado e cercado de caixas de cereal, experimentarmos uma sensação de estranhamento absoluto, como se aquele homem realmente não pertencesse àquele ambiente.
E a conclusão à qual chegamos é que, mesmo que o corpo sobreviva à guerra, o espírito humano é invariavelmente destruído pelo terror e pela violência aos quais submetemos nossos irmãos neste triste planeta.
05 de Fevereiro de 2010
por Pablo Vilaça
Cinema em cena
Nenhum comentário:
Postar um comentário