O governador de Sergipe, Marcelo Déda, de 53 anos, morreu às 4h45 desta
segunda-feira (2) no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde estava
internado para tratar de problemas decorrentes de câncer no estômago e
no pâncreas. Ele lutava contra a doença havia quatro anos.
Para além das divergências e da decepção com sua atuação à frente do governo do estado, fica, na minha memória, a imagem de um brilhante orador e militante político, que muito me inspirou, por muito tempo, em minhas tomadas de posição no campo ideológico. Foi um dos fundadores e um dos mais combativos quadros do Partido dos Trabalhadores em nosso estado. Eleito Deputado Estadual em 1986 com votação recorde, repetiu o feito em 1994, desta vez disputando o cargo em nível federal. Teve uma atuação impecável em Brasilia, onde exerceu a liderança do partido na Câmara, no enfrentamento do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.
Iniciou a campanha para a prefeitura de Aracaju, em 2000, em último lugar nas pesquisas, e terminou eleito no primeiro turno com votação consagradora. Assumiu ao som da Internacional Socialista. Eu estava lá, na festa da posse. Cantei junto. Ele já havia, na verdade, feito uma tentativa anterior, sem sucesso, em 1985, com o objetivo de firmar o nome do partido no cenário local. Na época, com 25 anos e sem recursos para a campanha, o candidato fez
todos os programas eleitorais gratuitos de televisão ao vivo e apenas
com a bandeira do PT na parede do cenário, montado no Tribunal
Regional Eleitoral (TRE). “A lei me facultava fazer ao vivo, então eu ia cru, pregava uma
bandeira com durex e estava pronto o cenário do ‘ao vivo’. Aquilo que
era uma desvantagem virou uma vantagem porque me transformei no âncora
do programa eleitoral”, relatou o governador de Sergipe em sua página
oficial na internet.
Fez uma excelente administração, que mudou a cara da cidade. Foi reeleito em 2004 com 71,38% dos votos válidos. Seu segundo mandato, no entanto, foi contaminado pelo projeto de chegar ao governo do estado. Em 31 de março de 2006 renunciou ao cargo de prefeito de Aracaju, sendo substituído por seu vice, Edvaldo Nogueira, do PCdoB. Conseguindo uma vitória histórica, que simbolizou uma mudança no cenário político
sergipano, Marcelo Déda é eleito governador com 52,48% dos votos. Derrotou João Alves Filho, do DEM, ainda no primeiro turno. O feito seria repetido em 2010, contra o mesmo adversário - que hoje, graças ao desgaste do projeto político de centro/esquerda por ele comandado e costurado à base de concessões e alianças com setores conservadores da política estadual e municipal, é o prefeito de Aracaju.
Não deixará, no entanto, uma grande marca, como governador. Apesar da brilhante reformulação das emissoras publicas educativas e dos esforços empreendidos no campo da infraestrutura, com destaque para a recuperação da malha viária do interior do estado; da segurança pública, com o "upgrade" no soldo e o reaparelhamento da polícia; e da saúde, com a construção de dois novos hospitais regionais e de cerca de outros
12 hospitais municipais, com o objetivo de desafogar o atendimento precário do HUSE(Hospital de Urgência de Sergipe) - tem patinado nos resultados. Especialmente nesta área e na da educação, cuja situação continua calamitosa, com constantes enfrentamentos entre o governo e o Sindicato dos professores da rede estadual de ensino. Além disso, apesar da vitória de seu sucessor, Edvaldo Nogueira, na eleição de 2008 para a prefeitura de Aracaju, viu seu projeto político naufragar na cidade, com seu principal adversário se sagrando vencedor no pleito do ano passado.
Avanços pontuais importantes aconteceram e precisam ser valorizados e preservados, pois a conjuntura política é muito
adversa, e tudo pode ser posto a perder. As "forças ocultas" são
terríveis, e é preciso muito estômago, inteligência e jogo de cintura
para se equilibrar neste lamaçal. Nem Déda
conseguiu, infelizmente: fez um pacto com o diabo em nome do
pragmatismo, e foi traído, como previsto, o que causou um sério
revés em seu projeto político. Mas ele tentou. Acredito nisso, sinceramente. E continuaria
tentando, não tivesse sido pego numa armadilha do destino.
Fará falta. Como político - apesar dos pesares - e como ser humano. Para atestar a última afirmativa, reproduzo aqui o depoimento de um amigo, Bruno Aragão, que tinha contato pessoal com ele e com sua família:
"Tenho aqui na minha pequena biblioteca particular duas edições de "Cem Anos de Solidão", um dos meus livros preferidos.
A primeira é uma bonita e completíssima edição em capa dura
comemorativa dos 40 anos da obra-prima de García Márquez, lançada pela
Real Academia Española. Um pequeno parágrafo nas últimas páginas do
livro, que traz até a árvore genealógica dos Buendía, informa, à guisa
de curiosidade, que aquela edição acabou de ser impressa no exato dia em
que "Gabo" completava oitenta anos. Luxuosa e algo mística edição.
A outra edição não tem nada de especial em si. É uma brochura pequena e
surrada lançada pela Record nos anos 80, com páginas em papel-jornal há
muito amareladas e capa em papel-cartão; o tipo de edição popular que
um estudante quebrado compraria em um sebo qualquer ou nas banquinhas
dos corredores de sua universidade, e que era, senão um "livro de
bolso", um "livro de bolsa". É dessa última edição que eu gosto mais.
Lembro que ainda quando iniciava minha própria carreira de
universitário quebrado, em alguma tarde ociosa dessas que a gente tem
quando é universitário quebrado, eu puxei esse livro, cheio de apetite
literário, da estante de minha mãe. Mas antes que eu pudesse mergulhar
nas agruras da família Buendía, a mera folha de rosto do livro me lançou
de imediato à história da minha própria família. Não era ali a
assinatura de um familiar, mas de certo modo era: "Marcelo Déda, abril
1986".
Quando firmada, aquela não era ainda, por questão de
meses, a assinatura de um deputado estadual. Não era a assinatura de um
deputado federal recordista em votos e atuação coroada de louros. Não
era a assinatura do prefeito de candidatura ridicularizada eleito em
primeiro turno, nem do governador de adversário "imbatível" eleito, uma e
outra vez, em primeiro turno. Era a assinatura de um dos mais próximos
amigos de meus pais, ao lado dos quais o dono do livro, àquela altura de
seus 26 anos, já tinha vivido muita coisa.
De verdade um dos
amigos mais próximos: não bastasse o fato de nossas famílias habitarem
juntas, naqueles anos, muito mais passeatas, comícios e plenárias do que
nossos respectivos apartamentos, durante algum tempo eles, os
apartamentos, ocuparam o mesmo edifício, separados apenas por três ou
quatro lances de escada muito comunicantes. Temporadas havia em que
minha irmã só voltava para o nosso andar (o sexto) para dormir – quando
voltava. No condomínio e na escola em que estudávamos todos juntos, não
faltava quem acreditasse que Manuella e Marcella eram irmãs, e a quem
perguntasse eu afiançava que sim.
O dono da assinatura, o dono
do livro que minha mãe tomou emprestado e jamais devolveu – em troca, a
defesa gostaria de frisar, de obras completas da Mafalda também jamais
devolvidas – já tinha então emparelhado ombros com meus pais no mesmo
DCE da UFS, na coleta de assinaturas para fundar um tal partido de
trabalhadores, nos primeiros enfrentamentos pós-ditadura a coronéis mais
senhores-de-toda-criação do que aqueles que habitavam Macondo. E
começavam a criar seus filhos em meio a suas batalhas políticas e
pessoais.
Meus pais se separaram; mais tarde, se separaram do
PT. Muita coisa aconteceu desde abril de 1986. Mas a assinatura do
livro, a mesma registrada em quase todos os termos de posse que um homem
público pode assinar nesta vida, e todos os atos públicos importantes
que decorrem disso, esta seguiu igual. E renderia muito estudo a um
grafologista de plantão.
É uma assinatura horizontal e
dianteira, que tem algo de flecha lançada no ar. Mas muito leve,
orgânica, quase feminina. Começa numa linha reta, revela o nome daquele
que assina, com uma letra curvilínea, e prossegue em linha reta. Tem
algo de ramo de planta se enroscando num fio de arame à disposição e
inventando um jeito de florescer. Ou de onda que a brisa marinha
desperte fazendo cócegas no mar sereno, abrindo do mar seu sorriso
branco, e retorne, sob o afago da mesma brisa, à serenidade primeva. É a
assinatura de alguém que quer ser inscrito no curso da História. Mas há
nela, me parece, mais lirismo que grandiloquência. É menos a assinatura
de um político do que a assinatura de um poeta.
Pensar nisso
me faz lembrar que nos dias da minha infância o deputado aclamado pelas
massas tinha sempre caráter suficiente para ser, intramuros, um folgazão
completo em performances domésticas com filhos ou quase-filhos de tão
hipnotizados por sua doçura e carisma; me faz lembrar de como o líder
nato deixava sempre a cargo da então esposa a direção do automóvel da
família e outras direções, o que não era pouco numa esquerda também
ainda muito machista; ou do intenso debate em que um dos melhores
oradores que a república brasileira já viu em atuação convenceu minha
mãe a assinar para mim as revistas da Turma da Mônica, com um discurso
da maior gravidade e aqueles plurais perfeitos de moço de Simão Dias
formado no Atheneu Sergipense. Faz lembrar que antes de tudo isso, ele
escrevia e filmava. Tanta coisa.
Nunca tive planos de devolver o
livro duas vezes surrupiado, crime prescrito e – espero – já bem
perdoado. Gosto de tê-lo aqui perto de mim, de ter esta assinatura
elegante à mão para uma eventual consulta. Ela vai me inspirar sempre e
inspirar aqueles que descenderem de mim sempre, se descendentes eu
tiver, como o dono da assinatura irá. É tudo o que eu consigo dizer
neste domingo em que meu coração está muito, muito apertado."
(*) Descanse em paz.
A
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