““Enceguerado”. Movido por um desejo irracional, sem
fundamentos, indomável. Ímpeto que não conhece bem ou mal – estende a mão a um
Zé Ninguém, passa a rasteira noutro amigo, se desculpa e alega que o amor mata
diariamente. Numa cidade pacata por natureza, um homem caindo de velho senta na
porta de casa todas as tardes para ouvir as histórias trazidas pela brisa. Ela
sopra “fuga”. Brisa que amansa e atiça. Uma intelectual se entrega à religião;
o garoto troca o futebol pelos acordes envenenados do blues; o papudinho abraça
a garrafa; o pescador joga a rede na esperança de estrelas e acordes. É sempre
a brisa. Brisa que pariu “Baggios”, “Zorrões”, “Leões”. Sonhadores, almas em
busca, vítimas do mapa rasgado na palma da mão direita. A vida é um nó cego, não
desata por força da insistência. Somos todos reféns da própria SINA.”
O belíssimo texto acima, sem indicação de autoria, está no também
plasticamente belo encarte da versão em vinil de “sina”, segundo disco da banda
sergipana de blues/rock The Baggios. Estou com o bolachão, verdinho, em mãos. Depois de
apreciar mais uma vez a capa, excelente trabalho da dupla “snapic” tendo o
maluco beleza Agapito e a estação de trem desativada de São Christóvão como
modelos, repouso-o no prato de meu 3em1 velho de guerra, que tantas alegrias me
proporcionou nesses mais de 20 anos de uso ininterrupto, sem nunca precisar de
pausa para conserto, e conduzo o braço com a agulha aos primeiros sulcos, que
me disseram o seguinte:
Uma batida percussiva ao mesmo tempo tribal e moderna abre “Afro”
– e o disco – como que avisando ao ouvinte que a mesma banda estava de volta,
mas com vários “algo” a mais. Nem tanto no ritmo, que continua deliciosamente
calcado no blues com sotaque brasileiro e, quiçá, nordestino. E SERGIPANO, ouso
dizer! Me causou estranheza à primeira ouvida, mas isto é, muitas vezes, um bom
sinal. Foi o caso, aqui. Está totalmente assimilada e é, sem sombra de dúvidas,
uma belíssima musica.
É seguida por “Blues do aperreio”, mais na linha do que os
Baggios vêm desenvolvendo já há mais de uma década como sonoridade. E por “Sem
condição”, o primeiro “single” – uma pepita lapidada com esmero à base de riffs
de guitarra poderosíssimos acompanhados por uma bateria potente e precisa. Perfeita.
Em “Salomé me disse”, mais um pouco de estranheza: Em ritmo
de valsa, Julico desfia mais uma de suas letras sobre perdas amorosas, aqui num
clima de “mea culpa”. Se é um pedido de desculpas por algo, fosse eu a Salomé
do título, teria chorado ao ouvir. E perdoado, evidentemente.
E então temos “sina”, a música, cuja letra – todas elas,
pelo menos aparentemente, autobiográficas e/ou confessionais – emula a de “o
azar me consome”: fala das desventuras de quem quer apenas ser honesto num
mundo cheio de perfídia e falsidade. Mas sem melancolia ou baixo astral. O
clima está mais para o confronto, a persistência. Ele não vai desistir, apesar
das coisas não darem certo para ele, em muitos momentos.
Fechando com chave de ouro o lado A – lembrem-se, estou
resenhando o vinil! – “Esturra leão” e seus sensacionais arranjos de sopro. Aqui
Julico discorre sobre outro tema recorrente em suas letras: o retrato das
figuras folclóricas das Terras do Cacique Serigy. “Leão”, segundo me consta – não
o conheço – é um personagem real – e fascinante, a julgar pelo que está
escrito. Fugiu de Estância – cidade sergipana bastante citada na literatura de
Jorge Amado, que costumava passar férias por lá – depois de confessar ter assassinado
e enterrado sua amada. Seu pedido de perdão hoje ecoa nos sulcos do vinil, cujo
primeiro lado se encerra num “fade” sensacional. Perfeito.
Numa bem sacada noção de continuidade, o lado B começa
focando em outro “figura”, “Zorrão”. Também fascinante, deu até vontade de
conhecer. A segunda, “Vagabundo arrependido”, é uma espécie de segunda parte de
“Salomé me disse”, já que tem praticamente o mesmo ritmo. Gostei. Rebuscado,
parece coisa de disco conceitual.
Depois de “De malas prontas” – mais um tema recorrente, a
partida, quase sempre triste – o disco se encerra com uma sequencia de três músicas
praticamente perfeitas: “Domingo”, com seu delicioso ritmo “roots” arrastado; “Tardes
amenas”, com um sensacional arranjo de órgão de Rafael Ramos; e “Descalso”,
levado na base da viola e do “slide guitar”. De bônus, uma emocionante
homenagem ao Baggio, andarilho da cidade histórica de São Cristóvão, onde
Julico, o mentor da parada, ainda reside.
E é isso. Nada mais a declarar sobre esta pequena obra-prima
do rock independente – MESMO! – brasileiro. Um chute no saco da mediocridade
que impera ao nosso redor.
Quem ainda não conhece está TOTALMENTE por fora ...
por Adelvan
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