quinta-feira, 17 de junho de 2010

A Noite das "guitarradas"


A noite prometia: Seria o primeiro grande “encontro de trios” de Aracaju, um deles vindo diretamente de Salvador, “a cidade do axé/a cidade do amor”. E no Cinemark do shopping jardins, o que é mais inusitado. Não, senhoras e senhores, não é o que vocês estão imaginando. Nenhum trio elétrico invadiu as dependências do shopping Center para embalar a massa ao som de música pasteurizada para foliões acéfalos. Os trios em questão eram de rock – e dos bons.

Como bem observou minha amiga Maíra Ezequiel, esta foi a mais bem amarrada das Sessões Notívagos, em termos de conceito. No filme, o trio formado por Jack White, The Edge e Deus (também conhecido como Jimmy Page) conta sua história – e todos eles, inclusive White, o mais jovem, têm muita história pra contar. No saguão do cinema, logo depois, duas das mais importantes e destacadas bandas do cenário independente brasileiro da atualidade, os Retrofoguetes e a Pata de Elefante. Guitarras, guitarras e mais guitarras. E no final, um pouco mais de guitarras – tudo regado a cerveja, finalmente gelada (a Notívagos tinha uma má fama de vender cerveja quente), segundo os degustadores de plantão. Foi lindo, maravilhoso, emocionante: uma das melhores noites de rock and roll que eu já vi por aqui, e olha que há mais de 20 anos eu vejo noites de rock and roll por aqui.

“A Todo volume” (It might get loud) começa com o garoto-prodigio do White Stripes mostrando que é possível fazer uma guitarra elétrica com apenas um arame preso a um barbante e ligado a um captador. A partir daí, presenciamos uma verdadeira ode ao instrumento que é uma espécie de símbolo do rock and roll pelo ponto de vista de três dos maiores representantes de sua geração. O filme mescla com precisão cenas de arquivo com depoimentos apaixonados, tudo pontuado pelo encontro dos três num grande galpão onde trocam impressões e promovem interessantes Jam-sessions onde executam alguns riffs uns dos outros. Às vezes enveredando por um tom exageradamente solene e com um ritmo um tanto quanto arrastado, o documentário é, admitamos, mais recomendado aos fãs dos guitarristas e de rock em geral, o que não chega a ser exatamente um problema, já que os protagonistas são líderes de bandas seminais que atraem (ou atraíram) milhares de pessoas aos seus shows, cada uma em sua época, fator que certamente pesou na viabilidade comercial do projeto. Não sei se fez sucesso nos cinemas mas eu, particularmente, sou um ardoroso defensor da experiência de se ver filmes em telas grandes e salas escuras, por isso há tempos venho enchendo o saco do produtor Roberto Nunes com a idéia dessa sessão, e só tenho a agradecer a oportunidade de poder desfrutar dessa experiência aqui, em nossa província, tão carente de programações culturais alternativas.

Devo aqui abrir um gigantesco “parêntesis” para defender a participação de The Edge, insistentemente criticada por muitos (inclusive Morotó da Retrofoguetes) ao final da sessão – implicaram até com a touca dele, coitado. Quer dizer, coitado não, o cara é milionário e “chegou lá” fazendo o que gosta do jeito que quis, portanto de coitado não tem nada. Mas ok, The Edge é, sem a mínima sombra de dúvidas, o menos virtuoso dos três, egresso da escola punk (mais precisamente do pós-punk), mas soube criar um estilo próprio e marcante a partir de suas limitações, experimentando climas e efeitos sonoros como compensação para a falta de virtuosismo técnico no instrumento propriamente dito, com muito sucesso – tanto artística como comercialmente. Até admito que Johnny Marr, dos Smiths, representaria melhor os anos 80, mas teria menor apelo comercial, o que imagino que tenha sido um fator decisivo para a escolha. Em todo caso, acho a escolha de The Edge acertadíssima. Ele é o grande arquiteto do som do U2, uma banda que, quer você goste, quer não (eu sou fã), tem que admitir que tem uma sonoridade própria, esculpida justamente em cima da empolgação ingênua e idealista de seus componentes, pelo menos no início da carreira. São, acima de tudo, grandes compositores, autores de alguns dos maiores clássicos da história recente do rock. “Nem sempre se pode ser Deus”, mas já é um grande passo fazer com competência, sinceridade e dignidade o que se propõe a fazer, e o U2 faz.

Deus mesmo, ali, só Jimmy Page. Dele, acompanhamos imagens, pelo menos para mim, inéditas, de seu início de carreira numa banda de “skiffle”, uma espécie de pré-rock inglês, e desde cedo o garoto já sonhava alto e perseguia seus sonhos. Torna-se um músico de estúdio requisitado com várias lendas em torno de si - uma delas diz que teria participado da gravação de “you really got me” do Kinks e que teria sido dele a idéia de deixar o som da guitarra distorcida, devido a um problema no amplificador, no que seria, para alguns, o embrião do Heavy Metal. Depois, cansado de apenas executar partituras de forma mecânica, embarca de vez na nau da “swinging London” via Yardbirds, para só então fundar a maior banda de rock de todos os tempos (perdão, Beatles e Stones), o ... vocês sabem do que eu estou falando.

Jack White ? É o cara. O mais gatinho dos três, e talentosíssimo. Até estranhei a surpresa de alguns com sua perfomance – comentários típicos de pessoas (compreensivelmente) avessas ao “hype”, essa cria maldita dessa sociedade baseada em informação abundante, rápida e rasteira. Sempre gostei dele, inclusive do White Stripes, apesar de achar o Racounters ainda melhor (ainda preciso ouvir Dead Weather, baixei ontem, ouvirei). O cara dá uma verdadeira aula de amor à música de raiz, e de quebra nos apresenta a uma sensacional banda garageira cujo nome não me vem à memória agora mas que aparece em cenas sensacionais de uma apresentação ao vivo devastadora. Segundo White, foi a maior inspiração para que ele montasse o White Stripes, já que a referida banda era formada apenas por um guitarrista/vocalista e um baterista.

Terminado o filme, vamos aos shows, no saguão do cinema. Quinta vez dos Retrofoguetes em Aracaju, então nem há muito o que comentar porque foi, como sempre, sensacional. O som não era a sétima maravilha do mundo mas estava ok, bem melhor do que na noite do Cidadão Instigado. Não havia palco, e não fez a menor falta. Iluminação especial, gelo seco, efeitos pirotécnicos ? Porra nenhuma, o povo queria era música de qualidade, e teve. Alto astral total - CH e Rex fornecendo o colchão pra lá de competente para a perfomance costumeiramente arrasadora de Morotó Slim, e com direito a sacadas geniais ao microfone – o mote do “encontro de trios” que usei no início desse texto, por exemplo, foi idéia de Rex, sempre com algo inteligente e bem humorado a dizer. A melhor da noite, no entanto, foi a que dizia que banda instrumental queria dizer muita nota (musical), pouca nota (dinheiro) e ninguém nota. Impossível não notar os Retrofoguetes. Ao final da apresentação dos caras Fabinho da Snooze me fala que “ficou difícil pra Pata de Elefante superar isso”, no que eu concordei em parte, já que botava fé no talento dos caras.

E o talento dos caras é algo sobrenatural. É o tipo de coisa que não tem jeito, a pessoa nasce com o dom, não é possível aquele nível de qualidade vir só do aprendizado acadêmico. Simplesmente destruíram tudo, deixaram o público de quatro com seu som ao mesmo tempo “duro”, “hard rock”, e melódico, com uma sonoridade totalmente calcada nos anos 60 e 70 porém sem soar datado. Retrô, mas dialogando com o que de melhor se faz hoje em dia. Pesado porém suingado. Rock clássico sem vocal, ou melhor, cantado pelas guitarras, magistralmente domadas e debulhadas por uma dupla de guitarristas fenomenal. Não, não são duas guitarras: no meio do show eles, baixista e guitarrista, apenas trocam de posição, e a apresentação não perde absolutamente nada em qualidade, muito pelo contrário: é enriquecida pela diferença de estilos, já que um se baseia mais nos solos e o outro mais na levada, nos riffs. Matador. Ouvi de muita gente que aquele tinha sido o melhor show de sua vida, e os entendo perfeitamente, pois foi exatamente esta a impressão com a qual saí do cinemark naquela madrugada, com o dia prestes a amanhecer.

E saí porque estava a fim de bater o velho rango regado a gorduras e bactérias e dormir, porque se quisesse ficar ainda tinha mais rock rolando. Depois do show da Pata (que teve bis, por insistência do público), começou uma grande jam envolvendo eles, integrantes do Retrofoguetes e nosso “blues hero” Julico, da Baggios, que precisou ser praticamente arrastado ao palco para vencer a timidez mas, como sempre, arrasou. “24 Hour party people”, “A Festa nunca termina”. Só terminou quando a cerveja, finalmente, acabou – e foram cerca de 800 latinhas, segundo o produtor Roberto Nunes.

Roberto Nunes que, aliás, está de passagem comprada, só de ida, para São Paulo. Diz ele que pretende seguir tocando a Sessão Notívagos e a Virada Cinematográfica de lá, mas eu particularmente acho difícil. Hora de dizer que o único ponto fraco da noite foi o público aquém do esperado, em termos de quantidade (porque em qualidade estava ok, vibrante e participativo). A verdade é que a Sessão Notívagos é uma idéia sensacional porém muito difícil de se sustentar financeiramente sem patrocínio, no formato em que se apresenta.

Se acabar, vai fazer muita falta.

por Adelvan Kenobi

2 comentários:

Rodrigo Amaral disse...

Uma pena essa mudança do produtor para SP. Também acho que manter esse projeto remotamente vai ser bem complicado, a não ser que seja num esquema em outros moldes. Tomara que dê certo!

Em todo caso, andei afastado da cidade e da cena por uns anos, mas o que percebo é que as coisas estão melhorando. Tem muito mais gente correndo atrás de fazer as coisas acontecerem sem necessariamente esperar ajuda do poder público. Ainda assim, acho que falta um pouco mais de empreendedores na cena. Um pouquinho de capitalismo na medida certa não mata ninguém.

Mas isso seria assunto pra um post inteiro. Como prefiro não falar do que não conheço direito, fico por aqui. Abraço!

Adelvan disse...

Capitalismo sem consumidor não existe. Acho que o grande nó ainda é este: como formar público suficiente para viabilizar este tipo de evento em Aracaju. É tipo a esfinge: "decifra-me ou te devoro". Eu, particularmente, não sei a resposta.