Não vou "falar", porque não tenho interesse nem entendo porra nenhuma de futebol. Mas admiro algumas pessoas que fizeram a História do futebol, por isso vou reproduzir, via "Piratex Inc.", uma sensacional entrevista de Geneton Moraes Neto com João Saldanha que foi postada hoje no G1. 2000-2010 globo.com - Todos os direitos reservados. Aí do lado, colocarei o link para esta coluna do Geneton que é sensacional. Visitarei-a sempre, e se eu fosse você faria o mesmo, ao invés de ficar perdendo tempo no orkut.
A. ---------------------------------------
A Globonews vem levando ao ar esta semana ( às 19:30, com reprise 7:30 e às 15:30 do dia seguinte) uma série de entrevistas que o locutor-que-vos-fala fez sobre os bastidores do futebol – aqueles lances que o torcedor não vê. O time de entrevistados do GLOBONEWS EXTRACAMPO é de primeira: Ricardo Rocha (Copas de 90 e 94), Carlos Alberto Torres (1970), Leão (74,78 e 86), Roberto Carlos (98,2002 e 2006) e Zico (1978, 82 e 86).
Um nome que invariavelmente é citado em época de Copa do Mundo: João Saldanha, o jornalista que, na pele de técnico da seleção brasileira, abriu o caminho para a conquista do tri-campeonato mundial.
Época de Copa de Mundo é o momento ideal de ouvir o que João Saldanha dizia. Tive a chance de entrevistá-lo.
Voilà : Guardo em meus arquivos implacáveis a fita (precariamente gravada) de uma entrevista que fiz com um homem que entrou para a história do futebol brasileiro: o cronista esportivo desbocado que virou técnico da Seleção Brasileira. Nome: João Saldanha.
Não era uma figura de “meias palavras”. Ganhou fama de “desbocado”, o que pode ser visto como uma virtude, num país habituado à cultura do ôba-ôba. Assim que assumiu o posto, foi logo anunciando o time titular – imediatamente batizado pela imprensa como “as feras de Saldanha”. A situação de Saldanha no comando da seleção cedo ou tarde criaria desconfortos: era um comunista dirigindo a Seleção Brasileira sob uma ditadura militar.
Terminou batendo de frente com o governo – não por motivos políticos, mas, supostamente, por tentar ficar imune a ingerências indevidas. Telefonei num domingo à noite para a estação de rádio onde ele gravava comentários. Saldanha marcou o encontro para o dia seguinte, no início da tarde, na redação do Jornal do Brasil. Fiquei esperando pelo homem, na recepção. Quando ele chegou, foi direto ao assunto : não era de perder tempo falando sobre as fases da lua. A entrevista poderia começar um minuto depois, numa mesa da redação. Assim foi feito. O caminhar era ligeiramente torto. Usava a camisa por dentro das calças. Fumava.
Sete anos depois, morreria, em plena Copa do Mundo de 1990, na Itália, vítima de um enfisema pulmonar.
E agora, caros ouvintes, vai falar o homem que quer para o Brasil a alegria da geral do Maracanã, vai falar o homem que desagradou o ditador quando era técnico da seleção brasileira de futebol; vai falar o único convidado que teve coragem de ir jantar com o presidente João Goulart numa noite de exílio no Uruguai. A bola é tua, João Saldanha!”.
GMN : Ainda hoje correm histórias de que o afastamento de João Saldanha do cargo de técnico da seleção brasileira de futebol se deveu a motivos políticos. De uma vez por todas, para passar a limpo esse caso: é verdade?
João Saldanha: “De uma vez por todas para você! (em tom irritado). Afirmei e reafirmei e outras fontes metidas no meio também. Claro: na época fui convocado para a seleção brasileira no governo Costa e Silva. E Costa e Silva, estranhamente, morreu no meio do caminho. O governo mudou. Houve uma série de modificações na cúpula. E entrou o governo Médici – que, como precisava de uma frente bem ampla, resolveu usar a seleção, como vários governos usam até hoje. Inclusive o governo Figueiredo usa a seleção. Por exemplo: eu estou chegando da Europa, fui acompanhar jogos de uma seleção brasileira que não representava coisíssima nenhuma, por motivo algum. Nem a Europa dava bola. A não ser na cidade onde a gente estava, a outra cidade ao lado não sabia que a seleção brasileira estava jogando. Isso nunca aconteceu! É jogada política. Naquela época, também.
O presidente … Aliás, não chamo de presidente da República porque costumo chamar de presidentes os que foram eleitos; não os usurpadores do poder. Então, o usurpador do poder naquele momento era o senhor Médici – que desejava popularidade e quis fazer popularidade através da seleção. Não era um bom caminho. Eu não estava de acordo. Nós éramos apenas um time de futebol. Mais nada!
Quiseram impor a convocação de Dario – por sinal, um bom jogador.
Era de alto nível, mas não de tão alto nível como eram os jogadores de que a seleção precisava, como Pelé, um Tostão, um Dirceu Lopes, um Gérson, um Clodoaldo, um Rivelino, um Jairzinho. Embora Dario fosse um bom jogador do ranking brasileiro, não existia lugar para ele nessa turma.
Mas, como Dario era do Atlético Mineiro e o governo naquele tempo precisava uma barretada pra Minas Gerais, quiseram botar Dario à força. Recusei. Puseram para fora Toninho – do Santos – um grande goleador com quase novecentos gols, por causa de uma sinusite. Antônio do Passo e João Havelange diziam: “Pelo amor de Deus, convoque Dario, nem que seja pra ele nem mudar de roupa. Convoque pelo nome, porque vamos ficar bem com os homens e precisamos de dinheiro!”.
Não convoquei. Convoquei até homens de meio-de-campo. Neste momento, entrei num atrito desvantajoso”.
GMN: A pressão do general Médici para ver Dario na seleção brasileira era indireta, através de declarações, ou ele chegou a pressionar diretamente?
Saldanha: “Pressão direta se fazia através dos homens da CBD. Era indireta em relação a mim. A pressão direta era lá com os homens. Diziam: “Ou bota Dario ou sai fora”. Chegaram e me disseram: “João, não podemos agüentar mais! Faça isto!”.
João Havelange dizia: “Pelo amor de Deus, convoque Dario! Convoque pelo nome!” Se convoco Dario, tudo bem. Eu ia me avacalhar! Mas não tenho hábito de me avacalhar. Não me avacalhei. A seleção brasileira, felizmente, ganhou a Copa do Mundo no México, em 70. Se não, eu não poderia nem voltar para o Brasil (N: na época da Copa, João Saldanha já tinha sido substituído por Zagalo).
Quando eu ia sair do Brasil para o México, fui posto para fora do avião no Aeroporto do Galeão, embora tivesse passagem comprada, passaporte, tudo certinho. Tive de ir para o México. para ver a Copa, pelo caminho que Ronald Biggs, aquele ladrão de trem, fez. Fui parar em Port of Spain, via Pará-Paramaribo. Lá, vendem umas passagens estranhas de ida-e-volta, assim numa espécie de falso turismo, porque nem precisa de passaporte nem nada. Avião de vagabundo. Fui parar lá. De Paramaribo, não voltei. Comprei uma passagem com meu passaporte, tudo legal e fui para Port of Spain. Lá, peguei a Pan-American para a Guatemala e, só então, fui para o México. Cheguei três dias depois de quando tinha saído do Brasil”.
GMN: Que argumento usaram para evitar o embarque do senhor no Galeão?
Saldanha: “O argumento da força! Nenhum outro. É o argumento da ditadura. Porque a ditadura faz a lei: “A Lei sou eu”.
GMN: Não houve, então, explicação alguma?
Saldanha: “Não. Dizem: “Não pode ser; o senhor foi barrado”. Digo: “Mas estou preso?”. E eles: “Não”. Ora, eles já me puseram nu no Aeroporto do Galeão duas vezes. Uma vez em 1968, quando fui para o Uruguai e lá visitei amigos que eram exilados políticos. Um foi exilado para o Uruguai junto com meu pai, há coisa de quarenta anos. Casou, ficou por lá. Não era nem exilado! Era um homem que morava no Uruguai. Mas morava embaixo do apartamento de Brizola. Era Brizola no sexto e ele no quinto. Um nem via o outro!
Almocei também com João Goulart – que tinha convidado toda a imprensa para ir almoçar com ele. Ninguém foi. Havia uma mesa para trinta pessoas, mas ninguém apareceu. Só nos dois: eu e João Goulart.
Nós estávamos com uma seleção brasileira, em Montevidéu. João Goulart disse: “Vamos almoçar lá em casa!”. Nunca tinha visto João Goulart na vida; nunca tinha falado com ele. Mas, como eu tinha dito a ele que ia, fui. Aquela foi a primeira vez em que falei com ele, quando fui almoçar, uma conversa trivial. Quando voltei, me botaram nuzinho no Aeroporto, no Brasil. Arrancaram a sola do sapato, descoseram minha camisa, mexeram numa maleta vagabunda que eu tinha levado. Como eu só ia passar dois, três dias, não tinha levado bagagens. E me puseram nu. Fiquei lá horas e horas; cinco ou seis horas”.
GMN ; Nesta viagem, o senhor nem era ainda técnico da seleção, viajava como jornalista …
Saldanha: “Eu era jornalista da Rádio Globo e da TV Globo. Fui lá fazer a cobertura do jogo. Mas, como conversei com João Goulart, o presidente da República. . . Ele era presidente porque tinha sido eleito e foi posto para fora. O Estado não era ele e deu o que deu. Paciência. Tenho 40 anos de janela. Tiro esse troço de letra”.
GMN: O que é que ficou desse encontro com João Goulart, já que foi o primeiro?
Saldanha: “João Goulart no Uruguai nadava que nem peixe na água. Era um grande fazendeiro; o mais rico fazendeiro do Uruguai. Era de uma famosa firma de fazendeiros do Rio Grande do Sul. Sou gaúcho. Conheci a firma de nome. João Goulart tinha uma grande fortuna. Ia e vinha para o Brasil no dia que queria, num avião particular. Descia numa fazenda, no Brasil. Tinha uma fazenda em Goiás, Ilha do Bananal. Era um grande fazendeiro. Batemos um papo alegre e informal. Política? O que é que adiantava entrar em política? “Eu penso isso. . .” Não adiantava pensar! A ditadura estava no Brasil – como até hoje existe uma meia-ditadura. Eu é que te pergunto agora: vai ter eleição direta ou não? Aposto que não vai ter; você aposta que vai ter, sei lá! Por que é que se faz assim? Porque não temos Constituição nem lei nem nada “.
GMN: Ainda a respeito do problema do envolvimento do futebol com política: já apareceram dezenas de sociólogos e antropólogos para tentar explicar o fascínio que o futebol brasileiro provoca no povo. O futebol – afinal de contas – o que é que representa, fora do gramado, para o Brasil?
Saldanha: “O futebol é um ramo da arte popular. O Brasil é um país eminentemente pobre. Para o futebol, basta uma bola. O menino descalço pode jogar. Uma rua, uma bola de pano ou de borracha, uma bola qualquer e pronto: o menino joga. Como esporte de pobre, é evidente que o futebol tem uma transa bem maior com o Brasil do que com a Dinamarca … É só. É uma expressão da arte popular. Todo mundo tem necessidade de expandir a vocação artística em qualquer coisa. Há cantor de banheiro às dúzias e jogador de futebol aos milhões. Poucos, entretanto, conseguem atingir o estrelato”.
GMN; O que é que o senhor diz das teorias de intelectuais que dizem que o futebol no Brasil é um fator de alienação do povo?
Saldanha: “É errado. Futebol não é alienação nem nada: é lazer. E lazer faz parte da vida. O homem precisa -para viver – de casa, comida, roupa; são indispensáveis ao ser humano. Para manter essas coisas, precisa de trabalho. Para viver, precisa de lazer. Precisa caminhar, passear, namorar, se divertir e tudo o mais. O futebol é um lazer que tem uma expressão de arte, como o tênis.
O futebol tem dois aspectos: um, daquele que o pratica – o artista; outro, daquele que o vê – é o torcedor no lazer. O Brasil é um país pobre e tropical, o que permite que este esporte seja praticado o ano inteiro, o que não é o caso da Suécia, norte da Europa nem Inglaterra nem o norte da França, onde não se pode jogar porque faz frio. Mas no Brasil pode-se jogar o ano inteiro- inclusive no Rio Grande do Sul – o lugar mais frio. Lá na Europa não dá, por causa da neve e do gelo. Isso cria uma massa de milhões de admiradores.
Por outro lado, nossa formação etnológica e a etnográfica deu, coincidentemente, ao brasileiro, condições para a prática do futebol. Os músculos flexíveis e aquecidos naturalmente são da nossa própria formação biológica. O negro veio da África como uma das raças mais primitivas: só tinha os braços e as pernas … Você vai dizer: “E o índio?”. O índio já não é primitivo; é anterior ao primitivismo… Então, nossa formação, essa etnologia toda nos permite os músculos e a vivacidade para executar bem esse ramo da arte. Veja bem que digo vivacidade. Nada tem a ver com outro ramo importante da vida que é a cultura. Nós somos paupérrimos em cultura, embora riquíssimos em esperteza e vivacidade. Quando Euclides da Cunha disse “o sertanejo é antes de tudo um forte”, ele deveria ter dito “o sertanejo é antes de tudo um esperto”. . . Não é tão forte não, porque morre cedo”.
GMN: Durante a época do técnico Cláudio Coutinho, a imprensa publicou matérias que falavam na “militarização dos esquemas de trabalho na seleção “. Isso aconteceu?
SaIdanha: “Claro que aconteceu. Quando fui convocado, chamaram também Coutinho, Bonetti e uma série de militares. Tentaram impor um esquema militarista de vigilância e segurança, algo policial. Depois, de fato, quando fui posto para fora, havia seguranças, leões de chácara da seleção. Eram esquemas de homens armados com metralhadoras e o diabo a quatro. E foi ridículo na Argentina, onde deram rajadas de metralhadora num barulho de fundo de quintal que nada mais era do que uma cadela no cio e um monte de cachorro atrás. . . Gritavam:”Pára! Pára! Pára!”. A cadela não entendeu e eles metralharam…. Houve um monte de coisas ridículas assim. Isso ainda existe. Dentro de vários clubes existe este esquema policial. É um derivativo do próprio sistema.
É um sistema policial em que qualquer terceiro escalão aí, qualquer sub-gerente de finanças do subnitrato do pó de mico tem dois, três seguranças. Você olha, vê três homens do tamanho de um armário guardando um cara e, quando você vai perguntar quem é, dizem: “Ah, é o caixa não sei de onde”. . . Bolas! Isso faz parte do sistema – que parece, e felizmente – vem melhorando. Não sei. Ainda estou em dúvida se vamos ter eleições diretas ou se vão ser eleições palacianas de bolso de colete “.
GMN: Quem é o maior responsável pela conquista do tricampeonato mundial de futebol: João Saldanha – que deixou o time pronto – ou Zagalo – que completou a festa?
Saldanha: “Os responsáveis são: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson, Jair, Pelé, Tostão e Rivelino. A minha participação: foi coincidente. Tive a felicidade de encontrar no Brasil uma fertilidade tamanha de jogadores que me obrigava a deixar Ademir da Guia, Edu e outros cracões sem possibilidade de serem convocados. Quem é que eu ia botar para fora, para chamar Ademir da Guia? O Gérson? Rivelino? Clodoaldo? Tostão? Pelé? Quem? Não tinha jeito”.
GMN: Ainda se compram juizes e jogadores no Brasil?
Saldanha: “Só em nível bem apodrecido de fim de carreira é que acontece. O fator corrupção vem desde os mais altos escalões da vida nacional até os mais subalternos. Futebol não é exceção, porque é uma parte da vida social brasileira. O que existe na vida social brasileira existe no futebol também. O tóxico, o homossexualismo e a corrupção existem em proporção igual”.
GMN: Pelé foi sacana quando não apareceu na morte de Garrincha?
Saldanha: “Não, porque Pelé aí ia ser um agente funerário: qualquer jogador que morresse, ele ia ter de comparecer. Pelé até se manifestou da maneira mais simpática, porque estava lá longe, com uma série de compromissos. Tinha de pegar um avião e vir correndo ao Brasil, sem nem saber a hora, o dia nem coisa nenhuma? Se fosse assim, seria um ato demagógico. Não sei, porque eu não estava nem presente. Não fui.
Garrincha era um amigo meu. Fomos companheiros de clube anos e anos. Amigo íntimo, amigo de problemas os mais íntimos. Não pude comparecer nem ao enterro nem à missa nem coisa nenhuma, porque eu não estava no Brasil. Vontade não me faltou- se bem que, particularmente, não goste de enterro. Não tenho vocação de agente funerário. Prefiro a imagem dos amigos vivos.
Pelé foi apenas sincero. Ia vir da caixa-prego para chegar ao Brasil? Então, não seria enterro de Garrincha; seria a vinda de Pelé. Acontece um bocado em enterro de vedetes. Outro dia, durante quarenta e oito horas, no velório de Clara Nunes – que foi velada mais do que o comum – houve um desfile e um show de exibicionismo podre e sujo. A morte seria mais respeitada. . . A morte, não: a vida. A morte…. Morreu, dane-se, acabou, para mim…. Então, a vida seria mais respeitada com uma saudação póstuma, uma manifestação de tristeza através de um pronunciamento discreto, coisas que não são chocantes.
Mas não: a morte de uma vedete hoje em dia é um show de televisão, uma palhaçada. Pelé fez bem em não parti- cipar de palhaçada”.
GMN: Os críticos de Pelé dizem que ele é um gênio dentro do campo e um desastre fora, pelas coisas que ele diz, etc. O senhor – que foi técnico de Pelé – o que é que diz da figura de Pelé fora do campo?
Saldanha: “Concordo em parte. Dentro de campo, Pelé foi um gênio, o maior que conheci. Fora do campo, é um homem comum. Querem que ele seja fora do campo o que ele foi dentro do campo. Isso talvez não seja compatível. Digo francamente, porque não tenho nenhum problema com jogador e ex-jogador nenhum. Nunca tive. Sempre os tratei com respeito e exigi respeito. A vida particular de cada um? Só me preocupava uma coisa: se joga bem, entra no time. Mas, se é homossexual, se é ladrão, se é isso ou aquilo, não sou nem nunca fui crítico de moral para dizer. Sempre entendi que eles fazem parte de uma sociedade tal qual ela é e não tal qual eu desejava que fosse.
Claro que eu desejaria que fosse uma sociedade boa e eles fossem bons em tudo. Não são. Paciência. Não conheci Pelé fora, uma vez ou outra comemos juntos e batemos papo à toa. Toda vez que a gente se encontra é aquilo: “Como vai, chefe?” – ele me chama de “chefe” e eu chamo “ôi, negão”. É papo informal sem maior intimidade.
A crítica que se faz a Pelé traz um bocado de inveja. Um crioulo no Brasil que fica rico é “besta”. Mas com branco rico não existe problema. Paulo César dá uma resposta boa quando perguntam por que é que todo crioulo rico pega logo uma loura. E aí ele diz: “Vamos inverter a posição: por que é que toda loura pega sempre um crioulo rico?”. Então, pombas, vamos ser realistas e enfrentar a vida com a naturalidade que ela tem. Pelé só deve ser tratado como um grande gênio de uma arte popular. O resto não é um problema social, positivamente”.
GMN: Como é aquela história da miopia famosa de Pelé, antes da Copa?
Saldanha: “Pelé, a meu ver, nunca teve problema de vista. Ele enxerga mais do que nós”.
GMN: Como é que surgiu, então, aquela história?
Saldanha: “Ah, não foi minha! Aquela história deve ter surgido dentro do SNI … Quem tinha problema de vista na seleção era Tostão e, ainda assim, fiz Tostão ser convocado à força. Quando ele foi se operar em Houston, no Texas, eu convoquei só vinte e um – e não vinte e dois jogadores, porque sabia que na operação de Tostão havia mais charlatanismo e publicidade do que propriamente uma lesão.
Quanto a Pelé, não tive nenhum problema. Os retrospectos estão aí. Todas as partidas em que fui treinador ele jogou. Nunca fiz um pronunciamento daqueles sobre a vista de Pelé por duas razões. Uma é que seria injusto: sou leigo e não entendo. Nós só tínhamos uma preocupação quanto à boa visão: com os goleiros. Dos goleiros, a gente exige que tenham uma visão igual aos exames que são feitos com os aeronavegadores, os pilotos de aviação. Quanto aos demais jogadores, o campo visual é tão vasto que nós nunca nos preocupamos. O importante é que enxerguem a bola. E Pelé enxergava!
A segunda razão é que não sou burro. Se eu vejo o cara jogar e ser o melhor jogador do mundo, eu vou dizer “não”? Nunca ele foi barrado por mim. Ao contrário: eu o defendia. Houve uma época em que Pelé não era tão querido nem tão publicitário. Era um simples jogador do Santos. E o Santos não “vendia” em São Paulo. Quem vende lá é Palmeiras, é Corinthians, é São Paulo. O Santos, não. É um time de cidade pequena. Então, ele não era bem visto lá.
A onda não era em cima de mim: era em cima de Pelé. Eu e Pelé já conversamos sobre essa coisa e rimos. Digo: foi um troço torpe. Desafio qualquer um que jamais tenha lido ou ouvido de mim qualquer coisa a esse respeito! “Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade.Craques que dormiam com homem” Não sou idiota. E por que eu iria fazer algo tão gratuito, se ele não me devia nem eu a ele? Somos bons amigos”.
GMN: A torcida até hoje não engoliu aquela derrota de 3 a 2 para a Itália na Copa do Mundo de 82 na Espanha, os famosos três gols de Paolo Rossi – nem jamais vai engolir. A culpa foi do técnico Telê Santana, foi dos jogadores ou foi de Paolo Rossi?
Saldanha: “Nós jogamos doze copas do mundo. Ganhamos três. A proporção é de uma para quatro. Nossa chance ali na Espanha foi aquela. Nós poderíamos ganhar, mas este é um julgamento subjetivo. Se tivéssemos um time melhor – que contasse com alguém que soubesse jogar pela direita, não tivesse um goleiro tão frágil e tivesse um ataque mais poderoso… Isso tudo são conjecturas subjetivas. Nós não somos obrigados a ganhar todas as Copas do Mundo. É bom que o brasileiro saiba que ele não é absoluto. É bom que o brasileiro saiba que lá fora há times tão bons quanto os nossos – e às vezes melhores. É bom que o brasileiro saiba que a Europa se atrasou perante nós por causa de uma guerra que dizimou quase toda a juventude entre 15 e 45 anos. Isso não se refaz com decreto-lei nem com planos qüinqüenais. É preciso esperar que nasçam outros, formem-se e reaprendam.
A Europa teve grandes prejuízos com a Guerra, o que nos permitiu um avanço enorme. Quando pegamos a Europa em 58 e 62, ela estava, exatamente, num período de decadência esportiva, porque lhe faltou a juventude que tinha morrido na guerra. E foi uma vantagem que nós tivemos.
Nosso futebol, no entanto, é do melhor nível. Nós estamos na primeira turma do futebol mundial, junto com Alemanha, Itália e Inglaterra. Qualquer um dos quatro é primeira turma. Os outros vêm em segundo escalão”.
GMN; Tinha algum perna-de-pau na seleção brasileira de 82, na Espanha?
Saldanha: “Tinha vários “.
Quem são?
Saldanha: “Não gosto de citar. Não adianta nada. Deixe para o critério de cada um. Quando digo que tinha “vários” pernas-de-pau é que tinha mais de três (ri). Se não, eu diria: “Tinha dois ou três! “. Digo: tinha vários, mais de três, a meu ver. Mas, se digo três, acham que havia seis. Se digo cinco, acham que são três. É subjetivo. Havia jogadores ali que não têm nada a ver com seleção brasileira”.
GMN: O senhor conhece algum caso de jogador profissional que tenha sido prejudicado por ser homossexual?
Saldanha: “Nós tivemos vários jogadores homossexuais da melhor qualidade. Quem é que vocé chama de homossexual? O que faz papel de homem ou o que faz papel de bicha? Homossexual é o homem que transa com homem; é a mulher que transa com mulher. Homem que dorme com homem quatro, cinco anos, quem é a bicha? Não. Eu conheci vários craques que dormiam com homem há não sei quanto tempo. Foram vários – e craques! Não estou ligando. Como apreciador e crítico do futebol, deixo para o “Caderno B” – que aprecia o outro lado da coisa”.
GMN: Em que circunstância João Saldanha voltaria a ser técnico da seleção brasileira?
Saldanha: “Em nenhuma. Quando foi um desafio, eu topei. Deu certo, felizmente. Não perdemos e não atrapalhei. Eu saí oito dias antes da ida para o México. Não mexeram no time, as concentrações já estavam arrumadas. Nós chegamos dois meses antes da Copa ao México. Aliás, Copa no México é uma grande vantagem para nós – que podemos parar a vida do país e mandar um time para lá dois meses antes. Quando os europeus chegam, na véspera da competição, já estamos aclimatados e adaptados. Os europeus não.
Além de tudo, contávamos com um elenco maravilhoso. Para mandar 22 jogadores, tínhamos 40. Se eu errasse e, em vez de mandar Rivelino, mandasse Ademir da Guia, não era um erro. Era uma escolha. O nível era igual. O que sobrava de gente… Era uma época de ouro e de apogeu.
Não era vantagem nenhuma, não. Eu achava sempre que era uma barbada, pelas vantagens que nós tínhamos. O Brasil não perderia. Quando o nosso embaixador no México me disse: “Olhe, se não ganhar, você não volta para o Brasil”, eu disse: “Embaixador, é uma barbada… “. O embaixador João Pinheiro me chamou na Avenida Paseo de la Reforma, número 400, para me dizer: “Se o Brasil não ganhar, acho bom que você não volte para o Brasil”.
É que eu tinha dito que havia no Brasil três mil e tantos presos políticos e tinham sido assassinados mais de quatrocentos rapazes e moças, durante a ditadura Médici. Eu disse e saiu no “Observer” da Inglaterra; saiu no “Le Monde”, saiu em um monte de jornais de milhões de exemplares. O governo não gostou. Se o Brasil perdesse eu estava fuzilado (ri). Não voltaria. Não tinha importância: eram mais alguns anos fora do Brasil. Já passei vários e não era mal nenhum”.
GMN: A imagem do general Médici naquela época, com o radinho de pilha no ouvido para ganhar popularidade, incomodava João Saldanha?
Saldanha: “Devia incomodar a ele aquele rádio desligado. Pois, segundo as pessoas próximas, tratava-se de um rádio sempre desligado, o que era demagógico. Isso podia incomodar a ele, porque é chato ficar com o braço levantado fingindo que ouve rádio… E, francamente, não acho que seja atraente. Mas me incomodar, não. Eu estou pouco me incomodando. Não tenho nada pessoalmente com ele. Nem o conheço! Só o vi de longe. Não sei direito como é a cara. Nunca falei com ele nem ele comigo. Quando houve uma reunião em Porto Alegre com ele, chamaram a cúpula da seleção, mas não compareci.
Eu não teria prazer em apertar a mão de um homem que tinha matado vários amigos meus – ou mandado matar ou deixado matar. Não sei nem se foi ele que mandou ou deixou. O caso é que, coincidentemente, trezentos e tantos morreram naquele governo, o mais assassino da história do Brasil”.
GMN: Hoje, nem convocado ou numa situação especial o senhor voltaria à seleção?
Saldanha: “Não vejo no que eu possa acreditar. Prefiro o meu trabalho, em que me dirijo diretamente ao público e com ele converso. Eu iria ficar lá dentro: “Olhe, fulano, jogue aqui ou jogue ali…” “devia jogar fulano e não beltrano!”… É um troço opcional. Para que vou ficar me aporrinhando com essas coisas? Aqui está bom” (olha para a redação do ‘Jornal do Brasil’, no Rio, onde foi feita esta entrevista).
GMN: Mas a torcida sente falta de um técnico como o senhor – que chega e vai logo dizendo qual é o time titular…
Saldanha: “A torcida tem uma opinião internacional. Não pense que fui original, não. Fui um copista, um reles copista. O que fiz é feito em todos os países civilizados do mundo. Nenhum mistério: os homens que dirigem as seleções são homens civilizados; não vão morrer. . . A Inglaterra, desde a guerra até hoje, teve apenas três treinadores. A Alemanha – duas vezes campeã do mundo – teve dois treinadores até hoje, desde o tempo da guerra. E a guerra acabou em 1945! Teve três treinadores; um morreu. A Itália teve dois treinadores até hoje e foi três vezes campeã do mundo. A não ser esses paisezinhos da América do Sul e esses clubinhos aí que trocam de treinador todo dia …
Eu agora fui viajar, passei um mês fora e, quando chego de volta, vejo que mudou todo mundo. O Botafogo agora é um triunvirato; o outro é não sei o quê. . . é um troço ridículo – que expressa bem o sistema”.
Quem é o melhor jogador brasileiro hoje?
Saldanha: “É Zico”.
E Falcão? Também é um jogador completo?
Saldanha: “Um grande jogador. Mas como Pelé e Garrincha, não. Pelé e Garrincha são extra-série. Como Falcão e Zico tivemos muitos: muitos Zizinhos, muitos Gérsons, muitos Didis, Carlos Alberto, Djalma Santos, Nílton Santos, vários magníficos e notáveis jogadores. Só vi, como Pelé e Garrincha, talvez o Di Stéfano, um monstro sagrado. E depois, mais próximos, Puskas, Zizinho, Cruiff. Mas Pelé, Garrincha e Di Stéfano são os três extra-série. Vi Di Stéfano pela primeira vez em 50, 51; vi jogando dez, doze anos. Vi Pelé jogando dez, doze anos. Vi Garrincha uns quinze anos. Tenho opinião firmada e confirmada sobre eles: são monstros sagrados do futebol internacional. Formam na linha dos fora-de-série. Depois, você vem aí com trezentos: Antonioni, Ferrari, Beckenbauer, Shultz, Overheit, Rumenningue, Stanley Mathews…”
GMN: O senhor já disse que a Fifa – um órgão que reúne um número de países-flliados maior do que o da ONU – tem um papel de distensão política a nível internacional. O senhor pode dar um exemplo de como essa “distensão” funciona na prática?
Saldanha: “Ah, posso. A China era isolada do resto do mundo em matéria esportiva. O jogo de pingue-pongue – e aí não era a Fifa – deu uma certa abertura. Depois, em troca de Coca-Cola… São quase um bilhão de chineses. Se cada um tomar meia Coca-Cola por dia, são 450 milhões de Coca-Cola diariamente. Vende mais do que no Brasil no ano inteiro. Então, quando a Fifa botou a China no negócio, vendeu Coca- Cola. A Fifa tem mais facilidade de abertura do que os compromissos políticos, econômicos e de grupos dos países”.
GMN: Dizem as más-línguas que João Havelange foi intermediário da entrada da China na Fifa, porque era intermediário -também – da venda de Coca-Cola. É verdade ou delírio?
Saldanha: “Delírio não é. Mentira também não é. Coincidentemente, dizem que Havelange é representante ou diretor da Coca-Cola e, a um só tempo, presidente da Fifa. Não há mal nenhum. O que o sujeito não pode é ser ladrão. A China entrou e foi bom, porque o isolamento da China, não só esportiva, mas econômica e politicamente, como o de qualquer país, não é bom no contexto mundial”.
GMN: O centroavante Reinaldo – do Atlético Mineiro – diz que a estrutura do futebol brasileiro é fascista, porque beneficia, em primeiro lugar, os patrões. Quais são as propostas de João Saldanha para melhorar esta estrutura?
Saldanha: “Eleições livres e um governo democrático, porque essa estrutura é um reflexo do Brasil. Os desejos de Reinaldo coincidem com o meu. Pinochet fez igual no Chile. É a estrutura da América Latina – não digo que é fascista, porque nós não somos fascistas nem imperialistas. Nosso país não exporta capital. Somos apenas um país de ditadores, os famosos “ditadores da América Latina “. As coisas estão melhorando, há certas aberturas, mas aberturas dimensionadas e controladas.
Quando você pensa que pode dizer tudo, não diz. Determinadas coisas que eu quiser escrever aqui onde você está (N: redação do “Jornal do Brasil”) não saem. Não é que eles vão cortar; eu é que já nem ponho, porque sei que não vai sair. O que Reinaldo quer eu também quero”.
(Entrevista gravada no Rio de Janeiro, 04/07/1983)
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