terça-feira, 14 de setembro de 2010

Uma Noite em 2010


“Ai meu Deus/o que foi que aconteceu/com a música popular brasileira?”, perguntava Rita Lee na virada da década de 70 para a de 80 do século passado. Eu diria que virou “Música PRA PULAR Brasileira”, como dizia, num trocadilho “ixpierto”, a banda independente recifense Dona Margarida Pereira e os Fulanos nos anos 90. Brincadeiras à parte, infinitas teorias podem ser levantadas, mas eu creio que tudo pode ser resumido numa única sentença: Comercialismo. Nivelamento por baixo fruto da massificação pasteurizada. Depois da axé music, do sertanejo de Chitãozinho e Xoróró e Cia. Ltda, do pagode romântico e do É O Tchan, a música popular brasileira como a conhecíamos, aquela criativa e combativa, com conteúdo, foi reduzida a pó. Simplesmente não existe mais, ou melhor, existe, mas deixou de ser, definitivamente, popular (ou popularesca, caso prefira).

Os melhores tempos de nossa MPB estão magistralmente retratados em “Uma Noite em 67”, documentário que registra o palco e os bastidores do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record . Foi exibido pela primeira (e talvez única) vez no cinema, em Aracaju, na última Sessão Notívagos, ocorrido na data “cabalística” de 11 de setembro de 2010. Grandes músicas, grandes imagens, grandes depoimentos de grandes nomes como Chico Buarque, MPB4, Edu Lobo e, evidentemente, Caetano e Gil, na época novidades, hoje “arrozes de festa”. Excelentes discussões sobre momentos brilhantes e constrangedores, como a celebremente ridícula “passeata contra a guitarra elétrica”, da qual nosso ex-ministro, por sinal, participou, “mais em solidariedade à Elis”, segundo ele, num “desdobro” típico do político no qual se transformou. Aliás, só são ruins mesmo as entrevistas com Gil, sempre com aquele discurso tergiversado e ininteligível ruminando sobre o sexo dos anjos, fazendo “cara de conteúdo”, como bem dizia aquele bordão comercial. Até Caetano, normalmente afetado e dado a “achismos”, aqui está muito bem – provavelmente porque o assunto era pertinente e focado no que realmente interessa, no caso, a ovação que sua “Alegria Alegria” recebeu naquela noite. Ele louva o fato de Chico Buarque ter se livrado de “A Banda”, ao passo que ele não consegue descartar “Alegria Alegria”, tido por muitos (eu inclusive) como A Música composta por ele (ok, exagero, há outras melhores ou tão boas quanto, mas “Alegria Alegria” é realmente um marco, com seu ritmo de marchinha brilhantemente emoldurado por um arranjo calcado em guitarras de rock que hoje soam “vintage”, mas na época certamente eram algo super moderno e ousado). Para a nossa sorte, a música defendida por Chico Buarque não foi “A Banda”, realmente chatinha e pueril, mas a obra-prima “Roda-Viva”. Excelentes depoimentos do próprio e do MPB4 explicando os arranjos e discutindo as peculiaridades da época, como a criação de uma suposta imagem de “bom-mociscmo” para o Chico em comparação à nascente anarquia estética e conceitual dos representantes do que viria a se tornar conhecido como “tropicalismo”. No momento mais engraçado, Chico fala algo como “pra eles eu era o bom moço, alinhado, de smoking, já o general reclamava de minhas letras, que não podia falar isso, não podia falar aquilo – difícil ser “certinho” nessas condições, heim”.

Outro grande momento é a interpretação de Gilberto Gil com Os Mutantes defendendo “Domingo no parque”, assim como a revelação de que foi preciso, duas horas antes de sua subida ao palco, literalmente arrastá-lo de sua cama para que ele se apresentasse. Igualmente antológicas as cenas de bastidores, com entrevistas bizarras conduzidas pelos repórteres Randal Juliano e Cidinha Campos - esta última, diga-se de passagem, afetadíssima - e seus questionamentos totalmente “non sense”. O Rei Roberto Carlos também dá o ar de sua graça, em imagens de época, contando uma piada meio sem graça e defendendo a bonita “Maria , Carnaval e cinzas”, além de numa descontraída e bem humorada entrevista mais recente, feita para o filme.

Depois do filme, como de praxe, música Ao Vivo no saguão do Cinemark. Seria a primeira vez que eu veria no “palco” (na verdade não havia palco, as bandas tocam no chão, cara-a-cara com o público, o que eu acho ótimo) a excelente banda “folk” sergipana Road To joy. Vi apenas 3 músicas, pois foi solicitada a minha ajuda para comprar mais bebida (um bom sinal, diga-se de passagem), mas gostei bastant. Boa postura de palco, boa execução de suas belas canções, especialmente o já quase “hit” “couple fighting song”.

O público não era uma multidão, mas era gente o suficiente para animar a festa. E foi realmente uma festa a apresentação da banda gaúcha “Apanhador Só”, que possui uma sonoridade bastante original. Às vezes lembra um pouco o Los Hermanos, mas ficam longe daquela chatice melosa deles. É um show bastante animado, diga-se de passagem – destaque para o alto astral de “Maria Augusta”, que inclusive foi pedida e inexplicavelmente não atendida no bis - o que não quer dizer que os caras tenham uma postura blasé e distante do público, muito pelo contrário: são acessíveis e solícitos, além de excelentes músicos – o baterista, em especial, me impressionou, com uma pegada ao mesmo tempo vigorosa e elegante.

Grandes shows, grande noite.

por Adelvan

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+ sobre "Uma Noite em 67"

Fonte: Divulgaçao

Era 21 de outubro de 1967. No Teatro Paramount, centro de São Paulo, acontecia a final do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Diante de uma plateia fervorosa - disposta a aplaudir ou vaiar com igual intensidade -, alguns dos artistas hoje considerados de importância fundamental para a MPB se revezavam no palco para competir entre si. As canções se tornariam emblemáticas, mas até aquele momento permaneciam inéditas. Entre os 12 finalistas, Chico Buarque e o MPB 4 vinham com “Roda Viva”; Caetano Veloso, com “Alegria, Alegria”’; Gilberto Gil e os Mutantes, com “Domingo no Parque”; Edu Lobo, com “Ponteio”; Roberto Carlos, com o samba “Maria, Carnaval e Cinzas”; e Sérgio Ricardo, com “Beto Bom de Bola”. A briga tinha tudo para ser boa. E foi. Entrou para a história dos festivais, da música popular e da cultura do País.

“É naquele momento que o Tropicalismo explode, a MPB racha, Caetano e Gil se tornam ídolos instantâneos, e se confrontam as diversas correntes musicais e políticas da época”, resume o produtor musical, escritor e compositor Nelson Motta. O Festival de 1967 teve o seu ápice naquela noite. Uma noite que se notabilizou não só pelas revoluções artísticas, mas também por alguns dramas bem peculiares, em um período de grandes tensões e expectativas. Foi naquele dia, por exemplo, que Sérgio Ricardo selou seu destino artístico ao quebrar o violão e atirá-lo à plateia depois de ser duramente vaiado pela canção “Beto Bom de Bola”.

O documentário Uma Noite em 67, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, mostra os elementos que transformaram aquela final de festival no clímax da produção musical dos anos 60 no Brasil. Para tanto, o filme resgata imagens históricas e traz depoimentos inéditos dos principais personagens: Chico, Caetano, Roberto, Gil, Edu e Sérgio Ricardo. Além deles, algumas testemunhas privilegiadas da festa/batalha, como o jornalista Sérgio Cabral (um dos jurados) e o produtor Solano Ribeiro, partilham suas memórias de uma noite inesquecível.

Notas da imprensa

"Para quem viveu aqueles anos, trata-se de um passeio pela memória; para quem, daquelas canções, conhece apenas as lendas (...), o filme é um passeio pelo Brasil que fez manifestação contra a guitarra elétrica e, calado pela ditadura, parecia disposto a vaiar quem quer que fosse, de Roberto Carlos a Caetano Veloso" (Ana Paula Sousa – Folha de S. Paulo)

"Contra a azia e a má digestão causadas pelas recentes falas de dois generais, existe um antiácido. Trata-se do documentário "Uma Noite em 67", de Renato Terra e Ricardo Calil (...). É uma deliciosa viagem" (Zuenir Ventura – O Globo) .

"O filme faz uma excepcional prospecção de imagens da época e acerta ao preservar as apresentações completas dos concorrentes" (Luiz Zanin – O Estado de S. Paulo)inesquecível.

"O filme é mais do que ‘musical’. É político, ideológico. Foi, para mim, uma experiência visceral." (Luiz Carlos Merten – O Estado de S. Paulo)

"Um programa de TV? Um ringue de luta? Uma festinha doméstica de fim de ano? Ou um microcosmo da cultura em transformação? O festival foi tudo isso e muito mais. O filme o rememora mediante reflexões reveladoras, contradições expostas e informações inéditas de bastidores. Não precisa mais que isso para se ter um bom documentário." (Carlos Alberto Mattos)

"'Uma Noite em 67' é um documentário sobre seis canções. Simples assim. O complexo, na história do filme e do Brasil, é que em torno dessas apresentações giraram e ainda giram as questões mais essenciais da nossa cultura popular." (Carlos Nader, documentarista - Trip)

"Nos divertimos muito vendo o documentário Uma Noite em 67. O formato é simples, alternando imagens da época com depoimentos recentes dos cantores, mas generoso em detalhes." (Daniel Piza, O Estado de S. Paulo)

O Festival que Mudou Tudo - O ótimo documentário ''Uma Noite em 67'' não se limita a retratar o surgimento da mais talentosa geração da música brasileira. Ele mostra como um mundo novo soterrou um Brasil velho

Por André Nigri

Fonte: Bravo!


Existem momentos em que é preciso mudar tudo para que tudo continue igual." A famosa frase do Príncipe de Salina, protagonista do romance O Leopardo, do italiano Giuseppe di Lampedusa, expressa o desencanto do personagem em relação a uma área específica: a política. No mundo da cultura, no entanto, a máxima não se aplica. Existem momentos em que tudo muda, mas muda mesmo - um mundo novo surge e, com força devastadora, transforma o antigo numa pilha de escombros. Na área da cultura pop, isso vem acontecendo agora, em que todo um sistema calcado na atuação das gravadoras foi destruído pela internet, que alterou completamente as regras de produção e distribuição de música. Um marco dessa revolução ocorreu em 15 de junho de 2009, quando a maior loja de CDs do mundo, a Virgin de Nova York - que chegara a vender 785 milhões de cópias num único ano, 2000 -, fechou as portas por falta de compradores. Outro momento de mudança radical se deu na metade dos anos 60 do século 20. Mais uma vez, uma inovação tecnológica estava na raiz da mudança: a televisão. A caixa com imagens que se moviam, criada nos anos 40 nos Estados Unidos, atingiu o poder pleno nos anos 60 e alterou radicalmente as regras da música - engendrando um novo tipo de artista e um novo tipo de público.

Um documentário que entra em cartaz neste mês reconstitui o dia que se tornaria o marco dessa revolução no Brasil. Uma Noite em 67 traz imagens vibrantes de 21 de outubro de 1967, além de depoimentos inéditos. Nesta data, ocorreu a final do 3º Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, no Teatro Paramount, em São Paulo. O filme faz mais do que contar a história daquele que ficou famoso como o melhor festival de todos os tempos - para ter uma ideia da magnitude da nova geração que surgia, os cinco primeiros lugares ficaram com ninguém menos do que Edu Lobo (com Ponteio), Gilberto Gil e Mutantes (com Domingo no Parque), Chico Buarque (com Roda Viva), Caetano Veloso (com Alegria, Alegria) e Roberto Carlos (com Maria, Carnaval e Cinzas). Mais do que alinhavar fatos, o documentário dirigido por Ricardo Calil e Renato Terra dá a exata dimensão da revolução em curso. Pode dizer que o Festival de 1967 da TV Record dividiu a música brasileira em antes e depois. Ficaram para trás os cantores que usavam terno e smoking, os intérpretes que apenas cantavam o amor e os fãs que idolatravam seus ídolos a distância. Entraram em cena roupas coloridas, compositores que, seguindo Bob Dylan, queriam provar que era possível falar sobre qualquer assunto, e fãs que iam muito além da idolatria. Mais do que adorar seus ídolos, queriam saber o que eles pensavam e o que vestiam - para, em última análise, ser como eles.

Essa revolução fica patente no filme não apenas nas imagens dos músicos se apresentando, mas também nas entrevistas de bastidores, que mostram a estranheza que esse novo mundo causava nos repórteres Randal Juliano e Cidinha Campos - representantes do que, para usar uma gíria da época, seria o suprassumo do Brasil "careta". É hilário, e emblemático, o diálogo em que Randal pergunta a Caetano Veloso o que significa exatamente o termo "pop". Randal claramente não entendeu a resposta, mas nem precisaria fazer a pergunta se olhasse para o lado e prestasse atenção na explosão de cores à sua volta. Desobedecendo a tradição, Caetano se apresentou no festival com um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê laranja-vivo. Os argentinos que o acompanhavam, integrantes do grupo Beat Boys, irromperam em cena de cabelos longos, roupas cor-de-rosa-choque e guitarras elétricas. Gilberto Gil, em Domingo no Parque, usava blazer marrom e camisa branca. Até Edu Lobo, representante do bloco mais comportado, ousou um pouco: camisa de gola rulê preta e casaco azulado.

Os fantásticos depoimentos obtidos pelos cineastas - todos os personagens importantes relembram o festival, a começar pelos cinco vencedores - também são fundamentais para enxergar a época com os olhos de hoje. BRAVO! pinçou três momentos do filme representativos das mudanças em curso e resolveu detalhá-los nesta reportagem, com o intuito de melhor entender a mudança de bastão pela qual passava a música brasileira. O primeiro foi uma inacreditável passeata contra a guitarra, da qual muitos artistas e intelectuais participaram - entre eles, o jornalista Sérgio Cabral, pai do atual governador do Rio de Janeiro, que no filme reconhece ter perdido o senso do ridículo. O segundo, uma crise de Gilberto Gil momentos antes de subir ao palco para defender seu Domingo no Parque. O terceiro, as imagens recorrentes das fãs na plateia, representadas aqui por uma moça que teve a divertida ideia de usar uma camiseta estampada com a letra U - vogal da vaia. O zoom sobre esses três momentos mostra os três principais elementos da revolução: o aumento do poder da TV, o surgimento de um novo tipo de ídolo e o fã participativo que lhe correspondia.

1 - Um "Big Brother" versão anos 60

Sérgio Cabral tinha razão em ficar envergonhado. Com tantas causas importantes para abraçar - entre elas a defesa da democracia, ameaçada por uma ditadura militar em vias de recrudescimento e por guerrilheiros que queriam chegar ao poder usando a luta armada -, artistas e intelectuais se reuniram no dia 26 de junho de 1967 para fazer passeata contra um inofensivo instrumento musical. O bizarro evento ocorreu na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo. Numa janela do Hotel Danúbio, com vista para a avenida, Caetano Veloso e Nara Leão olhavam desolados o que ocorria, mortos de vergonha alheia.

O que parecia um evento de alto teor político - o pobre instrumento de seis cordas representaria a dominação da cultura estrangeira sobre a música brasileira - era, na verdade, uma jogada de marketing orquestrada pela televisão. Todos os artistas importantes da época eram contratados pela TV Record e tinham programas no ar. Entre eles, Jovem Guarda, com Roberto e Erasmo Carlos, O Fino da Bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues, e Esta Noite Se Improvisa, com Caetano Veloso e Chico Buarque. Antes da explosão das telenovelas, eles eram os verdadeiros campeões de audiência. A principal estrela da companhia era Elis Regina, conhecida como "pimentinha". Na metade dos 60, no entanto, sua audiência estava em baixa. Roberto Carlos, o líder na TV e representante da corrente que se opunha a Elis, tinha vários corpos de vantagem em relação a ela.

Para turbinar sua principal estrela, a direção da Record convocou o elenco da emissora para a abertura de um novo programa de TV ancorado por Elis, batizado de Frente Única - Noite da Música Popular Brasileira. Ficou combinado que todo mundo apareceria na estreia, cujos ingressos foram disputados a tapa pelos fãs que acorreram ao Teatro Record Centro, na noite de 26 de junho de 1967. O primeiro programa explodiu. Mas o fôlego da Frente Única mostrou-se curto. Depois de dois programas, a audiência já havia caído para índices irrisórios. Para mobilizar a opinião pública e reerguer a atração, Paulo Machado de Carvalho Filho, diretor da emissora, resolveu organizar a já referida passeata. Reuniu em seu escritório, entre outros, Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Nara Leão e Gilberto Gil - que levou Caetano Veloso com a condição de que ele ficasse calado.

Assim, no dia 17 de julho, o elenco da emissora saiu às ruas seguido por algumas centenas de populares para um evento "de ares cívicos", como lembra Zuza Homem de Mello, técnico de som do festival e o principal historiador do período - ele é autor do fundamental A Era dos Festivais: Uma Parábola. Tendo à frente a banda da Força Pública e uma vistosa faixa onde se lia "Frente Única - Música Popular Brasileira", a turma integrada por Elis, Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Vandré, o sambista Zé Kéti e os integrantes do MPB-4 formava o pelotão de frente. Logo atrás, vinha uma multidão, que gritava: "Abaixo a guitarra elétrica!" A passeata só não repercutiu mais porque, na véspera, o general Castelo Branco, primeiro da fieira de ditadores da safra de 64, havia morrido. De todo modo, o protesto entrou para a história como um episódio patético.

A passeata, no entanto, tinha tudo a ver com o marketing que a emissora desenvolvia para os festivais. Em seu depoimento em Uma Noite em 67, Paulo Machado de Carvalho Filho diz que pensava na atração como uma espécie de arena ou novela, em que mocinhos - como Chico Buarque e Roberto Carlos - se digladiavam com vilões (talvez Sérgio Ricardo, que, vaiado enquanto tentava tocar sua música Beto Bom de Bola, irritou-se com o público e atirou o violão na plateia). De certo modo, a concepção do diretor da Record é a mesma dos reality shows dos dias de hoje, como o Big Brother. Talvez a comparação seja exagerada, mas foi justamente nessa época que a curiosidade do público pela vida íntima dos artistas começou a aumentar. Em meados da década de 1960, a Editora Abril lançou a revista Intervalo, dedicada às estrelas. Até o início dos anos 70 (que marca a inédita escalada da indústria de discos com artistas nacionais em vendagens altíssimas), a revista estampava na maioria de suas capas astros da música. Ou seja: eram os cantores e compositores as celebridades da época, e não os artistas de TV e de cinema, como hoje.

Voltando à passeata contra a guitarra: é no mínimo curioso que Gilberto Gil, que meses mais tarde iria escandalizar os puristas com as guitarras dos Mutantes em Domingo no Parque, estivesse ali. Isso ocorreu por duas razões: a convocação da TV Record e a amizade com vários dos artistas que participaram do evento, notadamente Elis Regina, com quem o cantor nutria um relacionamento especial e carinhoso. A proximidade com Elis, que precisava turbinar a audiência de seu programa, fez com que Gil ignorasse os conselhos de outro amigo, Caetano Veloso. O fato é que, num mundo dividido entre Jovem Guarda e música brasileira, Gil se encontrava igualmente cindido. Era uma época em que se esperava dos cantores algo mais do que fazer e interpretar músicas - como se verá no capítulo seguinte - e nem todos se sentiam preparados para isso.

2 - Cantores à beira de um ataque de nervos

Dois depoimentos chamam a atenção para esse aumento de responsabilidade dos artistas em Uma Noite em 67. Um deles é de Paulo Machado de Carvalho Filho, responsável pelos festivais. Ele narra um episódio ocorrido com Gilberto Gil momentos depois de ensaiar Domingo no Parque para apresentar a música na primeira eliminatória do festival. Gil deixou o teatro repentinamente (segundo Nana Caymmi, sua mulher na época, reclamando do pouco tempo para ensaiar) e voltou para seu quarto no Hotel Danúbio, onde se trancou com Nana. Paulo Machado de Carvalho Filho conta no filme que foi até o quarto e viu Gil deitado e apavorado na cama. Com a ajuda de Nana, segundo ele, levou o cantor para o chuveiro e o convenceu a participar da eliminatória. Solano Ribeiro, o homem que idealizou e dirigiu os festivais da emissora, corrobora o fato. Gil estaria, segundo eles, com algo parecido como um ataque de pânico.

No filme, o próprio Gil assume que estava apavorado. Provavelmente por razões que iam muito além de insatisfação com os ensaios. Ele simplesmente não sabia de que lado se posicionar. Gil havia inscrito a música Domingo no Parque no festival como uma canção meio regional. Foi aconselhado por Caetano Veloso, no entanto, a incluir no arranjo os até então desconhecidos Mutantes - os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista e Rita Lee -, antenadíssimos com o rock norte-americano e inglês. Com isso ele se viu dividido entre o mundo das canções de protesto, com o qual sua composição flertava, e o projeto colorido de Caetano - que entraria para a história com o nome de Tropicalismo. Pior ainda: levando ao palco várias das guitarras contra as quais, ao lado de Elis, havia protestado. Sem saber para que lado ia, Gil teve um estresse. Em Uma Noite em 67, ele diz: "Eu não queria brigar, não queria mexer com o que estava acontecendo. Sabe como é, eu sempre fui meio uuuoooooommm. Sempre quis compartilhar, somar, e não dividir".

O estresse de Gil é reflexo de uma época em que era exigido dos artistas, pela primeira vez, que se posicionassem. Isso começa com Bob Dylan, o genial poeta norte-americano que começou a cantar questões políticas inspirado por seu ídolo Woody Guthrie - o bardo country em cujo instrumento se lia o slogan "Essa guitarra mata fascistas". Essa nova postura do pop se cristalizou em 1966, o ano antológico em que, querendo alcançar o nível de Dylan, as duas maiores bandas da época lançaram obras-primas: os Beatles, com Revolver, e os Beach Boys, com Pet Sounds. Isso significa que a tendência do "músico pop pensante" chegou ao Brasil cedo, um ano depois, levando em consideração que o mundo era bem menos intercomunicado do que hoje. Parte disso ocorreu por causa da efervescência universitária. Em seu livro Verdade Tropical, Caetano Veloso resume o ambiente estudantil brasileiro como "altamente politizado". Lembrando o episódio do piripaque de Gil, ele escreveu que o cantor ficou sem falar sobre o assunto com ele nos meses seguintes, até que um dia se abriu e disse: "Eu sentia que nós estávamos mexendo em coisas perigosas".

3 - A moça da camiseta com a estampa em U

A jovem e bela Telé Cardim (cujo nome de batismo é Clélia) tinha 22 anos em 1967, estudava jornalismo na Faculdade Cásper Líbero de São Paulo, e assistira às três primeiras eliminatórias do Festival da TV Record (cada uma tinha 12 músicas e classificava quatro para a grande final, que apresentava as 12 melhores). Fazia um pouco de frio na manhã do dia 21 de outubro de 1967, um sábado. Telé acordou de uma noite maldormida no apartamento onde morava com a mãe no centro da cidade. Ela estava tensa, pois era persona non grata e precisava dar um jeito de entrar no Teatro Record e se misturar às 2 mil pessoas que o lugar comportava. Contou uma mentira ao se despedir da mãe no início da tarde - naquela época, nenhuma moça de boa família dizia que ia a festivais - e dirigiu-se para o Hotel Danúbio, onde encontrou Nara, Gil, Nana Caymmi, e outros artistas. Explicou a eles que o chefe de segurança contratado pela Record - o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que nos anos seguintes lideraria o Esquadrão da Morte, um grupo de policiais assassinos - tinha vetado seu acesso por insubordinação. Seu delito: nas eliminatórias, em que havia comparecido com uma camiseta estampada com um U, ela havia espalhado bombinhas de são João no palco para fazer uma brincadeira com os artistas. Os cantores, no entanto, não estavam nem um pouco magoados. Nara emprestou uma peruca, o jornalista Carlos Gilberto Alves passou-lhe grandes óculos escuros e Gil encheu uma bexiga, que Nana colocou debaixo da blusa da moça. Disfarçada de grávida, a mais espevitada torcedora entrou no teatro lotado para ver a final ao lado de Nana.

Em sua determinação e proximidade com os artistas, Telé representa um novo tipo de fã surgido nos anos 60. Ele está interessado não apenas na música de seus ídolos mas também em suas opiniões. Não quer apenas vê-los no palco, mas privar da intimidade deles. Contribui para isso o fato de as apresentações, nos primórdios da era do pop, serem em clubes pequenos e não em grandes teatros. Um filme que flagra isso com perfeição é Blow Up - Depois daquele Beijo (1968), de Michelangelo Antonioni, na famosa cena em que os fãs praticamente dividem o palco com os integrantes da banda Yardbirds - público e plateia se esbarravam nos mesmos pubs da lendária "Swinging London". Da mesma forma, no Brasil de 1967, depois das apresentações dos festivais, parte do público - em sua maioria universitários - se encontrava para discutir os rumos da música brasileira em bares como o João Sebastião Bar, na rua Dr. Vila Nova, o Patachou, na rua Augusta, a Churrascaria Eduardo, na rua Nestor Pestana, e o Sand Churra, na Galeria Metrópole. Nesses pontos de encontro, os fãs chegavam a ouvir as canções antes mesmo de elas serem inscritas nos festivais.

O mundo mudou muito em relação a 1967. O ambiente musical que nasceu naquela época - que tinha as gravadoras e a TV como protagonistas - ruiu por completo. Hoje os selos da indústria do disco se concentram na divulgação dos grandes artistas. A televisão praticamente abandonou os musicais. O período em que eles eram a principal atração - que começou com os festivais e culminou com o programa do Chacrinha, grande patrono do rock brasileiro nos anos 80 - está enterrado.

Existem, no entanto, pelo menos duas semelhanças com aquela época. A primeira é que, na área da música popular, presenciamos o nascimento de um novo mundo, engendrado por uma nova tecnologia. Uma multidão de artistas jovens e talentosos busca seu espaço - é só conferir em vários sites da internet, entre eles o de BRAVO!, que abriga a seção Festival Permanente. Desse número, certamente serão depurados os Caetanos, Chicos e Mutantes da nova geração. A segunda semelhança é que os festivais, mesmo longe da televisão, se multiplicaram. Hoje são centenas do gênero espalhados pelo país, contemplando as mais variadas correntes. E também invadiram todos os terrenos da cultura. Existem festivais de teatro, cinema, literatura, artes plásticas... Pode-se dizer que o Brasil do século 21 se tornou o país dos festivais. Parafraseando o Príncipe de Salina, mudou tudo na cultura brasileira, mas uma coisa continua igual: a seara de talentos continua fértil - e produzindo.

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