quinta-feira, 27 de março de 2014

João Goulart

(***)Foram duas as vezes que João Goulart morreu. Uma foi a morte física que, tudo indica, resulta de mais um assassinato perpetrado pela Operação Condor. Talvez nunca consigamos as provas definitivas de tal assassinato, mas sabemos muito a respeito da história das ditaduras latino-americanas para não levarmos a sério essa possibilidade. Matar ex-presidentes foi uma especialidade dos militares de nossa região, como mostra a morte até mesmo do democrata-cristão chileno Eduardo Frei.

Difícil é explicar
o motivo de termos demorado tanto tempo para admitir a plausibilidade de que ex-presidentes como João Goulart e Juscelino Kubitschek tenham sido assassinados. Durante anos, havia até mesmo declarações detalhadas de um antigo agente secreto do regime militar uruguaio, responsável pela sua morte. Mas nada disso foi realmente levado à sério.

Para além desse descaso calculado que durou praticamente 30 anos, há, entretanto, outra morte, talvez pior, à qual João Goulart foi submetido: a morte simbólica. Jango não foi simplesmente deposto, ele foi assassinado simbolicamente. Era necessário não apenas matá-lo, mas apagá-lo de nossa história, ou melhor, fazê-lo sair da história brasileira pela porta dos fundos.

A morte simbólica é essa que atinge não o corpo, mas o nome. Ela é a eliminação também da memória das ações que tal nome representou. Por isso ela é a pior morte de todas. Nesse sentido, talvez ninguém na história brasileira tenha sido objeto de violência tão grande quanto João Goulart. Pois, para os militares, não bastava alijá-lo do poder. Era necessário criar a imagem de um presidente fraco, impopular, golpista, financiado pelo “ouro de Moscou”. Era necessário apagar os rastros da impressionante intervenção norte-americana na gestão do golpe brasileiro, a fim de dar a impressão de que a “revolução redentora” fora o resultado pura e simples da responsabilidade das Forças Armadas diante do chamado feito pela população brasileira nas ruas em decorrência do medo da ameaça comunista.

Como lembrava Sigmund Freud, nunca se recalca algo completamente. Assim, vimos o corpo de João Goulart voltar à luz. Não por acaso, ele emerge na mesma época em que começamos a descobrir como Jango continuara um presidente popular até o último momento. Um político, indicavam os levantamentos, com uma reeleição assegurada caso lhe fosse permitido se candidatar novamente. Alguém eleito vice-presidente, apesar de integrar uma chapa derrotada na eleição anterior.

Brizola no comício da Central do Brasil
A própria esquerda brasileira colaborou para tal esquecimento. Queria ver em Goulart um líder político incapaz de expressar as reais demandas daquele tempo de transformações. Ou seja, como se fosse um presidente fraco, sendo que talvez o verdadeiro defeito de Goulart tenha sido, simplesmente, a incapacidade de imaginar o pior. Incapacidade de acreditar que a direita era capaz de dar um golpe que duraria 21 anos, animada por uma fúria de destruição sem par.

Tudo isso demonstra
como o lugar de João Goulart na história brasileira precisa ser urgentemente revisto, assim como devemos rever esse momento fundamental da história do País. Seu programa de reformas de base foi a primeira tentativa séria, no Brasil, de usar a capacidade de planejamento do Estado para iniciar um ciclo de transformações sociais verdadeiramente estruturais. Sua forte popularidade indicava o caráter claramente minoritário dos grupos que lhe faziam oposição. Só por isso ele mereceria um lugar de destaque em nossa história.

Assim, quando seu corpo voltou a Brasília, quase 50 anos depois, para receber as honras de chefe de Estado, era como se, enfim, sua morte simbólica começasse a ser anulada. Um fato que nos obriga a parar de reescrever a nossa história ao sabor do vento. Há muito ainda a se fazer no futuro do Brasil, mas muito há também a se fazer em seu passado. Por exemplo, é preciso parar de matar nossos mortos duas vezes.

(**) Tarefa, no mínimo, complexa, a que o historiador Jorge Ferreira se propôs: descrever o ex-presidente João Belchior Marques Goulart (1919-1976), em toda a sua humanidade. Não queria compactuar com o discurso que repete uma série de injúrias contra o político que foi, ao mesmo tempo, sucessor de Getúlio Vargas, e cunhado de Leonel Brizola, com quem teve uma amizade conturbada. Nem com o tom de vitimização, que o coloca numa posição passiva em relação ao golpe de 1964, que o tirou do poder. O resultado desse trabalho é o livro “João Goulart, uma biografia”, um calhamaço de mais de 700 páginas, que tenta evidenciar um personagem indispensável para um episódio decisivo da história recente do Brasil.

Segundo Ferreira, professor titular de História do Brasil da UFF, foram dez anos de trabalho, em pesquisa ou redação, que não se concentraram apenas no período em que Jango estava em evidência. O livro tenta reconstituir da infância de Janguinho, no Rio Grande do Sul, ao fim de sua vida, no exílio, entre suas fazendas no Uruguai e na Argentina, onde morre, em mais um episódio envolvido em teorias que resvalam na conspiração.

Conspiração, aliás, que Jango enfrentou antes, durante e depois da presidência, vinda de todos os lados ideológicos, por ser, em tempos de radicalizações políticas, um homem que valorizava a democracia, o diálogo e a conciliação. Ferreira se atém aos fatos e tenta mostrar, na medida do possível, o que realmente aconteceu durante o governo Jango, trazendo à luz as ações - e suas consequências - do então presidente que desembocariam numa ditadura de 21 anos. Também apresenta como a figura de Goulart  foi avaliada por pesquisadores em seguida: geralmente com um desprezo, além de desumano, desnecessário.

Em entrevista sobre o seu livro e seu biografado, o professor sugere que devemos pensar em Jango, não como um medroso que saiu do governo sem lutar, mas como um homem que evitou uma guerra civil e o derramamento de sangue de irmãos. “Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi sensato”, opina. Leia o restante da entrevista:

Revista de História - Qual era o objetivo de escrever “João Goulart, uma biografia”?

Jorge Ferreira - O livro tem o objetivo de retirar Jango do limbo do esquecimento em que ele se encontra. Embora tenha sido um personagem importante da vida política do país, as análises sobre ele, quando raramente surgem, via de regra o definem como demagogo, populista e incompetente ou, então, vítima da grande conspiração de empresários brasileiros em conluio com o governo norte-americano. Jango, quando é lembrado, é para ser culpabilizado ou vitimizado. Meu objetivo, no livro, é compreender o personagem. E somente compreendemos quando conhecemos.

RHBN - Como você interpreta essas desqualificações ao ex-presidente João Goulart?

Jorge Ferreira - Desde que Goulart entrou na vida pública, em fins de 1945, e, particularmente, quando foi identificado como pessoa próxima a Vargas, começaram as críticas sobre ele veiculadas na imprensa. Mas sua atuação como ministro do Trabalho desencadeou uma séria de ataques e insultos vindo dos setores conservadores, particularmente da UDN. O que incomodava os conservadores é que Jango, no ministério do Trabalho, aproximou-se do movimento sindical e passou a dialogar com os trabalhadores e líderes sindicais. Para a direita e os udenistas, tratava-se de algo inconcebível para um ministro de Estado. Daí surgiram as críticas: demagogo, manipulador, incompetente, instigador de greves, agitador etc. A estas denúncias de cunho político, juntaram-se outras, de cunho moral: mulherengo, alcoólatra etc. Quando, ao final de sua gestão no ministério, os opositores perceberam que Jango se tornara o herdeiro político de Getúlio Vargas, os ataques aumentaram ainda mais, surgindo a expressão “República sindicalista”

As imagens negativas sobre Goulart tomaram outra dimensão após o golpe militar de 1964. Os golpistas, civis e militares, passaram a desqualificar o regime democrático que derrubaram e a pessoa de Goulart em particular. Dele, os vitoriosos de 1964 retomaram os ataques formulados anteriormente, acrescido de adjetivos como corrupto, irresponsável, despreparado etc. Jango, no exílio, sequer podia se defender das acusações. As esquerdas, por sua vez, também contribuíram para o processo: “populista”, por exemplo, foi conceito criado nas Universidades para desqualificar lideranças anteriores a 1964.

RHBN - Ser um presidente “conciliador” num momento de exacerbações, como no início da década de 1960, foi o maior erro de Jango?

Jorge Ferreira - Em 1961 o país estava à beira da guerra civil. Jango, ao aceitar o parlamentarismo, evitou o conflito de um país dividido e conseguiu, logo a seguir, unir a sociedade em torno da volta ao presidencialismo.  Ao longo de seu governo, ele se esforçou para ter maioria parlamentar no Congresso Nacional. Para Jango, assim como para JK, era fundamental unir PSD-PTB para obter maioria parlamentar e isolar a direita, representada pela UDN. A estratégia de Jango era negociar as Reformas de Base via pactos entre pessedistas e trabalhistas. Mas em uma coalizão de centro-esquerda, as reformas não poderiam ser com o programa máximo, como queriam as esquerdas, mas nem também com um programa tímido, como queriam os pessedistas. Nesse sentido, Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos. Ocorre que o PTB se esquerdizava desde os anos 1950 e a conjuntura internacional era marcada pelo contexto maniqueísta da Guerra Fria. Nesse clima, a aprovação das reformas negociadas no Congresso Nacional tornou-se inviável.

Goulart compreendeu o que ocorreu nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964. Não eram pequenos grupos civis e militares isolados da sociedade que tentavam golpes. Tratava-se do conjunto das Forças Armadas com o apoio dos principais governadores de estados: Guanabara, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul – com suas polícias militares e civis. Mais ainda, o presidente do Congresso Nacional conclamou os militares a deporem Goulart e o presidente do STF silenciou-se. O golpe também tinha o apoio dos meios de comunicação, do empresariado e de amplas parcelas das classes médias. Jango ainda soube, na manhã de 31 de março, que o governo norte-americano apoiaria em termos financeiros, diplomáticos e militares o governador mineiro Magalhães Pinto. Naquela manhã, ele também tomou conhecimento da chamada Operação Brother Sam.

Jango deve ser valorizado por aquilo que não fez: jogar o país em uma guerra civil que seria agravada com a intervenção militar dos Estados Unidos. É muito fácil acusar Jango de não liderar a guerra civil. Afinal, o sangue que correria seria dos outros, sobretudo da população civil. Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi sensato. É preciso considerar, também, que os golpistas civis e militares não planejavam implantar uma ditadura de 21 anos. O objetivo era depor Goulart. O presidente acreditou que, em breve, a normalidade democrática retornaria ao país. Não foi o que aconteceu. Mas nós sabemos disso hoje. Os personagens que viveram aqueles acontecimentos não poderiam conhecer o futuro.

RHBN - Afinal: Jango foi assassinado ou teve uma morte “natural”?

Jorge Ferreira - No livro, as considerações sobre a morte de Jango são similares as de Moniz Bandeira na última edição de seu livro. Há o caso do depoimento do uruguaio Mário Barreiro Neira. Preso no Brasil em presídio federal de segurança máxima, ele alegou ter trocado os remédios de Jango por veneno. As investigações da Polícia Federal e do Ministério Público desqualificaram suas afirmações. Ele foi preso no Brasil por vários crimes, mas quer evitar a extradição para o Uruguai, onde também foi condenado por diversos assaltos. O ministro do STF, José Neri da Silveira, julgou que Neira não praticou crime político algum no Uruguai, mas, sim, contra o patrimônio. Pessoalmente, eu não descarto a possibilidade de atentado. Pode ter ocorrido. Mas, até o momento, não há prova alguma de que tenha sido efetivado. Jango, por sua vez, era um cardiopata. Seu primeiro acidente cardiovascular ocorreu ainda em 1962. Sofreu um enfarto em 1969. Além disso, levava uma vida sedentária, fumava, gostava de uísque, era hipertenso e alimentava-se de carnes gordurosas. No exílio, passou a sofrer um processo depressivo. Os remédios que controlavam a pressão arterial prejudicavam a produção de serotonina, deflagrando ou agravando a depressão.

Os boatos sobre o atentado surgiram porque sua morte foi próxima às de Juscelino Kubistchek e de Carlos Lacerda. Mas o historiador lida com provas e indícios. Desse modo, embora não tenha havido autópsia, a hipótese de morte natural é, no momento, a mais plausível.

RHBN - Por que há tantas acusações de corrupção contra Jango?

Jorge Ferreira - No livro, o leitor pode conhecer as qualidades e os defeitos de Jango – como ocorre em qualquer ser humano. Sobretudo, me esforcei para mostrar suas ambigüidades – algo também humano. Mas não encontrará denúncias de corrupção. Goulart era um homem rico. Sua riqueza foi herdada do pai e multiplicada por ele antes de entrar para a vida pública em 1945. Ele não precisava roubar. Depois do golpe militar, Jango e JK sofreram uma série de acusações de práticas de corrupção, todas sem fundamentos, baseadas em calúnias e difamações. Mesmo sem poderem se defender, nenhuma acusação foi comprovada.

RHBN - O quanto Brizola ajudou e o quanto ele atrapalhou Jango na sua carreira política?

Jorge Ferreira - João Goulart e Leonel Brizola mantiveram relações políticas de mútua dependência. Ao longo dos anos, Goulart apoiou politicamente Brizola no Rio Grande do Sul, enquanto Brizola apoiava Goulart no plano nacional. Foi Brizola que lutou, de maneira corajosa, pela posse de Jango na presidência da República durante a Campanha da Legalidade. Nesse episódio, Brizola teve um papel extremamente positivo, defendendo a Constituição e a legalidade democrática. Contudo, durante o mandato de Goulart na presidência da República, Brizola radicalizou à esquerda e tornou-se grande opositor do presidente. Diversos partidos e organizações de esquerda, sob a liderança de Leonel Brizola, fundaram a Frente de Mobilização Popular. Junto com o PCB, a FMP exigia que Goulart rompesse com o PSD e governasse apenas com as esquerdas – mesmo que perdesse a maioria no Congresso Nacional. Jango, nesse sentido, teve que enfrentar as oposições de direita, como Carlos Lacerda e a máquina anticomunista, e as de esquerda, sobretudo lideradas por Leonel Brizola. No conflito entre esquerdas e direitas, o regime da Carta de 1946 se desestabilizou e encontrou seu fim em 1º de abril de 1964.

(*)João Goulart deve ser considerado um “herói”, porque em duas ocasiões “livrou o Brasil de uma guerra civil”, diz o Juremir Machado, autor de Jango. A vida e a morte no exílio, livro lançado em junho deste ano, no qual pretende desconstruir os mitos em torno do ex-presidente brasileiro. Na entrevista a seguir, concedida por telefone, ele comenta o episódio e assinala que Jango “era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar” e por isso aceitou a conciliação proposta. “Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes”, pondera.

Por conta de decidir assumir a presidência num sistema parlamentarista, que limitava seus poderes, Jango teve o “primeiro estremecimento” com Brizola, que à época era governador do Rio Grande do Sul. “Brizola nem foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista”, menciona.

De acordo com o jornalista, Jango ficou conhecido como um presidente hesitante, covarde, incompetente, corrupto, contudo, “era um homem de convicções, de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde”, assinala. E dispara: “Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país”.

Escritor, jornalista e historiador, Juremir Machado é doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V: René Descartes. Em Paris, de 1993 a 1995, foi colunista e correspondente do jornal Zero Hora. Atualmente, além de professor do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social – Famecos e coordenador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUCRS, assina coluna no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre.

IHU On-Line - A partir da sua reconstrução histórica, quem foi João Goulart? Qual sua contribuição para a história política do Brasil?

Juremir Machado - João Goulart foi, a meu ver, antes de tudo, um herói. É exatamente essa a palavra. Por que um herói? Porque em duas ocasiões ele livrou o Brasil de uma guerra civil. A primeira vez foi em 1961, quando Jânio Quadros renunciou e os militares decidiram que o Jango não poderia assumir. Se Jango quisesse realmente exacerbar as coisas, ele poderia ter levado o país a um conflito que resultaria em milhares de mortes. Ao aceitar a conciliação proposta, que foi a saída parlamentarista, ele evitou um conflito militar que estava preparado, conflito que até se justificaria na medida em que ele teve poderes usurpados. Mas ele teve a sabedoria de conciliar para evitar a guerra civil. A segunda vez foi em 1964.

Nessa ocasião, se ele quisesse, teria resistido ao golpe e, a meu ver, a resistência teria sido inútil. Essa era também a avaliação dele, a resistência iria provocar um banho de sangue e os resistentes teriam finalmente vencido. Então, ao ter a sabedoria de evitar por vaidade, por apego ao poder, esses conflitos, ele se apresentou como um herói.

Além disso, Jango foi um presidente generoso, um homem de grande sabedoria, que tentou fazer reformas fundamentais para o Brasil: as reformas de base, em uma época que o Brasil ainda não estava maduro, as reformas agrárias, as reformas bancárias, reformas educacionais. Todas elas eram reformas importantíssimas, altamente necessárias para modernizar o Brasil à época, para tornar o país menos desigual, e para civiliza-lo. É claro que os setores conservadores da época não podiam aceitar e hiperdimencionaram a ameaça comunista com base em propaganda e financiamento americano para impedir que essas reformas fossem feitas. 

IHU On-Line – Como ficou a relação de Jango com Leonel Brizola depois que ele aceitou a proposta de governar num sistema parlamentarista, apesar de Brizola ter encabeçado a Campanha da Legalidade para garantir o direito do vice-presidente assumir?

Juremir Machado - Brizola e Jango eram pessoas igualmente interessantes e que representavam aquelas situações extraordinárias em que pessoas com posicionamentos diferentes têm igualmente razão. O Brizola era um espírito impetuoso, um sujeito extremamente ousado, que se definia mais pela busca do conflito. Jango era um sujeito de ponderar, de pesar, de equilibrar. Ambos tinham razão. O Brizola tinha razão em querer que os poderes legítimos do Jango, em 1961, fossem atribuídos a ele, e o Jango tinha razão ao pensar: “Por essa via não vai, melhor conciliar”. Em 1961, a relação teve o primeiro estremecimento, tanto que Brizola nem foi à posse de Jango no dia 7 de setembro de 1961. Eles se estremeceram porque Brizola, cunhado de Jango, queria que ele fosse mais impetuoso, mais agressivo, mais radical e não aceitasse a solução parlamentarista. Mas esse episódio foi superado. Porém, ao longo do governo Jango, Brizola pressionou pela aceleração das reformas. Muitos acham até que isso contribuiu para a queda de Jango. Então, eles tiveram vários momentos de conflitos, de atritos, de estranhamentos, durante o próprio governo de Jango.

Mas a ruptura entre eles aconteceu com o golpe. Eles tiveram uma reunião em Porto Alegre e, nessa reunião com o General Ladário Teles, nomeado Comandante do Terceiro Exército, o Brizola queria ser nomeado Ministro da Justiça, e queria que se organizasse uma resistência armada, porém o Jango não quis. Então, ali eles se estremeceram, e depois ficaram anos e anos no exílio sem qualquer tipo de contato, apesar de serem membros da mesma família. Pouco antes de o Jango morrer, em 1976, eles fizeram as pazes, o que solucionou uma situação que era insustentável, porque no fundo, um gostava do outro. Eles tinham objetivos comuns, tinham o mesmo partido (PTB), tinham uma mesma visão de mundo: a visão do Brizola era um pouco mais exacerbada, mas eles eram do mesmo campo. Eram amigos, cunhados, tinham o mesmo propósito, e se desencontraram pelo caminho, mas felizmente se reencontraram um pouco antes da morte de Jango. 

IHU On-Line - Como avalia esses três anos de governo Jango? Ele conseguiu desenvolver algumas de suas propostas? Valeu a pena ele ter evitado o golpe?

Juremir Machado - Acho que valeu a pena. Ele evitou a guerra civil, ele assumiu como presidente do regime parlamentarista, e mais tarde, como era previsto na emenda condicional, se realizou o plebiscito em 6 de janeiro de 1963, e ele recuperou seus plenos poderes, e passou então há tentar aplicar aquilo que achava conveniente para o país. Naquela situação de Guerra Fria, de implantação do socialismo em Cuba, de alta influencia Americana nos países da América Latina, dos Estados Unidos financiando campanhas politicas no Brasil, infiltrando pessoas para ajudar a preparar um golpe, criava uma situação muito difícil. O Jango fez o que deveria ser feito. A conjuntura não era favorável a ele, e o golpe começou a ser preparado desde 1962 e, de certa maneira, desde 1961, quando os militares não conseguiram golpeá-los em 1961. Eles perceberam que deviam se organizar minuciosamente para, na primeira oportunidade, dar um golpe que realmente se efetivasse.

O Jango não caiu por ter feito coisas erradas. O Jango caiu pelos acertos dele, porque ele queria mudar, modernizar, melhorar o país. O grande perigo que o Brasil tinha com o Jango, era de ficar muito melhor prematuramente, tirando parte dos incríveis privilégios que a classe dominante absolutamente minoritária tinha na época. 

IHU On-Line - Quais foram às razões que levaram à queda de Jango?

Juremir Machado - O Jango caiu principalmente por causa da reforma agrária, quando propôs a reforma agrária depois do comício de 13 de março, na Central Brasil, e depois de enviar a mensagem ao Congresso, em 15 de março, propondo a reforma agrária e uma alteração na Constituição Federal, porque esse era o grande problema. A reforma agrária, até então, era feita com desapropriação de terras em dinheiro. O Jango, para poder fazer uma reforma agrária consequente, propôs a alteração da Constituição, que permitiria pagar com os papéis do governo, ou seja, não pagar a vista. E isso era terrível para os fazendeiros que não queriam perder suas terras ou então vendê-las caro, e com pagamento a vista. 

Jango foi visto além de tudo como um traidor, porque ele era um fazendeiro. A reforma agrária era tão importante num país com alta concentração de terra, que o próprio Getúlio Vargas, que fez toda legislação trabalhista, não atacou a questão da reforma agrária e nem levou a legislação trabalhista para o campo. Foi no governo Jango que, finalmente, se teve a coragem e determinação de propor de fato a reforma agrária. Quando ela caiu na mesa do Congresso, e quando se viu que era para acontecer, aí veio o golpe de 1964. 

IHU On-Line – É nesse sentido que o senhor diz que Jango foi um reformista no tempo errado?
Juremir Machado – Sim. Ele queria fazer várias reformas: educacional, tributária, bancária. A reforma educacional começava por alterar o que era chamado de catedravitalisia, e era importante porque o Brasil tinha um índice de alfabetismo estonteante; de 70 bilhões de habitantes, apenas 70 mil pessoas estavam na universidade, e no máximo 2.400 pessoas em pós-graduação. Então, era um país de analfabetos, um país de pouquíssimas pessoas que podiam chegar à universidade, e precisava mudar esse cenário. Precisava criar universidades, alfabetizar as pessoas, colocar mais gente para estudar. E ele estava cercado de grandes conselheiros nesse sentido: Paulo Freire, Darci Ribeiro, Anísio Teixeira, Celso Furtado. As reformas dele iam a todos os sentidos, até mesmo de uma reforma imobiliária, porque havia muitos apartamentos vazios nas grandes cidades, os quais não eram alugados. E ele queria fazer um tipo de reforma que obrigasse a colocar esses imóveis à disposição das pessoas, porque muitas não tinham onde morar. 

IHU On-Line - Como foi construído o imaginário favorável ao golpe de 64?

Juremir Machado - Aí entra a imprensa da época. Os Estados Unidos participaram de tudo desde 1962! Eles financiaram campanhas de políticos de oposição ao Jango, depositaram muito dinheiro em propagandas, e ganharam a adesão da mídia. A imprensa brasileira da época era totalmente golpista. Os jornais, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, O Dia, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa ajudaram a depor o Jango, eles empurraram o Jango para o exílio, e são corresponsáveis com o que ocorreu com ele. Essa é a verdade. Uma mídia golpista, conservadora, reacionária e que ajudou a construir uma ideia de ameaça comunista, que seria acaçapante, que estaria ali na porta do país, e que era preciso impedir derrubando o Jango. 

IHU On-Line – A ameaça comunista não existia?

Juremir Machado - A ameaça comunista existia, mas era muito tênue. Primeiro o Jango não era comunista, e não queria implantar um regime comunista no país. Havia sim pequenos grupos que gostariam de implantar o comunismo no Brasil. Mas eles não tinham força nem no Congresso nem na presidência da República, e não tinham como fazer isso. Alguns gostariam, mas eram só alguns grupos obviamente contestados pelo governo. Não tinha operando nenhum grupo guerrilheiro na época. Então, não tinha nenhuma guerrilha montada atuando no momento do golpe. As guerrilhas só começaram depois que a repressão se alastrou; ela surgiu como reação. 

IHU On-Line - Como era a relação pessoal de Jango com Getúlio Vargas?

Juremir Machado - Jango foi o grande aliado e protegido de Getúlio. O Getúlio viu no Jango o talento político que não encontrou nos filhos dele. Ele não encontrou em seus filhos aquele que fosse capaz de dar continuidade ao seu projeto político. Então, quando ele foi ao exilio em São Borja, começou a conviver com Jango, e viu nele um futuro político, um sujeito carismático, fiel a ele. E então, Getúlio praticamente adotou Jango como herdeiro político, formou seu caráter, ensinou, e preparou Jango para a grande aventura política que acabou se consumando.

Quando Getúlio voltou ao poder em 1951, acabou levando o jovem Jango para ser Ministro do Trabalho. Foi um período complicado, Jango passou a ser muito contestado pelos setores conservadores. Quando ele propôs o aumento do salário mínimo de 100%, acabou deflagrando um manifesto de coronéis e a resistência de todo mundo. Acabou até sendo demitido pelo Getúlio, que deu o aumento de 100%, porém o demitiu. Depois Jango passou a ser acusado de ser uma espécie de intermediário do Getúlio em uma negociação com a Argentina, com o Perón, para implantar uma república sindicalista peronista no Brasil. Armações todas da direita para tentar desclassificá-lo. O problema era que ele era bom, era bom de voto, e acabou sendo eleito vice-presidente da República com o Juscelino Kubitschek, vice-presidente da República com o Jânio e, no final, acabou sendo presidente da República, contrariando todo o horror que a direita tinha por ele. 

IHU On-Line – Ele também era acusado de ser comunista.

Juremir Machado - Ele era chamado de comunista todo tempo, porém não tinha nada de comunista. Ele era um liberal, fazendeiro, católico. Ele foi uma daquelas pessoas, como o próprio Getúlio, que percebeu que o Brasil era muito desigual, e mesmo eles, que eram ricos, poderiam viver melhor se houvesse uma distribuição de renda, uma reforma no país. Eles poderiam continuar ricos, mas o Brasil poderia ser melhor, ou seja, não valia a pena ser rico daquela maneira. Então, essa sensibilidade social, própria do trabalhismo, foi uma sensibilidade muito forte que caracterizou esses personagens: Getúlio, Jango, Brizola, Fernando Ferrari, Alberto Pasqualini. Todos esses personagens disseram: “Nem deixar o país como ele está nem aderir a uma perspectiva comunista”, mas adotar uma situação intermediaria, ou seja, a adoção de uma política de melhorias, de reformas, uma política inspiradas nas próprias encíclicas papais do século 19, no desenvolvimento social da social democracia Inglesa, coisas assim, que no mundo em desenvolvimento eram absolutamente normais. 

IHU On-Line - O senhor apresenta o livro como uma obra de reconstrução e desconstrução para reconstruir o passado e desconstruir os mitos. Que aspectos da historiografia de Jango foram construídos e quais mitos foram desconstruídos?

Juremir Machado - A primeira coisa é reconstruir a imagem de Jango. Ele tem sido apresentado por muitos historiadores e adversários como político hesitante, covarde, incompetente, corrupto, e a pesquisa nos permite mostrar que não foi nada disso. Ele era um homem de convicções, um homem de personalidade; ele não era um radical, ele era um moderado que pesava, que ponderava, que tinha suas ideias, que tomava decisões, não tinha nada de covarde. Mas ele não era evidentemente um sujeito de ir ao conflito simplesmente por apego ao poder. Então, a primeira coisa foi mostrar quem foi, de fato, o Jango, contrariando essa construção de seus opositores, de que ele seria um homem feito só de aspectos negativos.

O segundo aspecto é mostrar que suas reformas eram consequentes e que podiam ser aplicadas trazendo benefícios para o país. E diante da participação maciça dos Estados Unidos no golpe, ele não tinha o que fazer, e só lhe restava se afastar; e foi o que aconteceu.

O terceiro aspecto diz respeito ao enfoque da morte dele, a construção e desconstrução das suspeitas, e como isso se constituiu. É uma tentativa de mostrar, a partir dos dados, o que se pode realmente concluir sobre a morte dele. 

IHU On-Line - Quais as novidades em torno da morte de João Goulart?

Juremir Machado - Gostaria de acreditar no assassinato, porque, de alguma maneira, é o que todos esperam, e seria uma espécie de catarse. Pensaríamos assim: “Essa ditadura cretina assassinou o Jango”. Seria uma maneira curiosa de reabilitá-lo, de mitificá-lo. Mas com base na minha pesquisa, não acredito que ele foi assassinado. Havia razões para isso, há indícios, motivos, mas o material examinado linha a linha não indica que ele tenha sido assassinado. É um material enorme e absolutamente contraditório, alicerçado em duas denúncias. Primeiro, na de um uruguaio chamado Henrique Dias, que fez suas denuncias na Justiça argentina e na uruguaia; ele perdeu nos dois casos, e ainda foi processado por calúnia e difamação, e condenado à prisão. Depois, ele ainda escreveu um livro sobre isso, que acabou tirado de circulação. Também tem o Mario Barreiro, um uruguaio que se diz agente secreto durante a ditadura, que agora está no Brasil em liberdade condicional. Ele retomou a história e afirma que ajudou a assassinar Jango, porém não apresenta nenhuma prova disso. O relato dele é tão cheio de contradições, que analisado linha a linha, não acredito. Por exemplo, ele diz em seus depoimentos que a ordem para matar o Jango partiu do Ernesto Geisel. Porém, Geisel estava em conflito com a linha dura do regime militar, que era capitaneada pelo General Sylvio Frota. Quem não queria a volta do Jango para o Brasil era o Sylvio Frota; e o Geisel se opunha ao Sylvio Frota. Se ele se opunha ao Frota, por que mandaria matar o Jango? Se o Sylvio Frota quisesse matar o Jango, eu ate entenderia, mais o Geisel não tem nenhum sentido. Depois são muitos os outros elementos contraditórios. Os indícios existentes são interessantes e deixam uma pulga atrás da orelha, porém, examinados um a um, eles não são tão fortes assim.

Outro exemplo corriqueiro é o atestado de óbito de Jango. Falam que o atestado não aponta a causa de sua morte. Porém, eu fui pesquisar e encontrei o atestado de óbito do Jango, e está lá: infarto do miocárdio. Por que não se fala disso? Por que não se faz um esforço para dizer que ele morreu de infarto do miocárdio? Está lá escrito com a letra do médico que atendeu o Jango no dia de sua morte. Por que não se insiste? A meu ver, porque se quer enfatizar a ideia de assassinato. E dizer que foi infarto do miocárdio elimina um indício. E assim vai, esse é apenas um exemplo! 

IHU On-Line – E como foi a vida dele no exílio?

Juremir Machado - O tempo dele no exílio foi muito ruim, porque ele queria voltar, porque sentia saudade. Ele ficou mais rico do que já era. Ele vivia bem, podia viajar, tinha família, amante, fazenda, negócios. Porém queria voltar para o Brasil. Ele tinha uma vida sedentária, não fazia exercícios, estava obeso, bebia, fumava, comia coisas muito gordurosas e estava sempre estressado. Os amigos dele começaram a serem assassinados pelas ditaduras implantadas no Uruguai, na Argentina, na Bolívia. Então, a situação era de profundo stress! Ele queria voltar, começou a fazer questão de voltar, pedindo para amigos servirem de intermediários com os militares brasileiros, porém, não estava autorizado a voltar. Ele estava pensando em uma retirara, quem sabe para a França ou para a Inglaterra, porque não havia mais clima na Argentina devido à ditadura. Possivelmente ele iria embora para a França ou Inglaterra onde viviam seus filhos.

(Por Patricia Fachin)

(***)"As Duas mortes de Jango"
por Vladimir Safatle
Carta Capital 

(**)"Jango, o conciliador "
por Ronaldo Pelli
RHBN

(*)IHU

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