Misteriosamente, há 42 anos, recebi um convite para visitar a Coreia do
Norte. A ditadura militar do Paquistão tinha sido derrubada após três
meses de luta e, em março de 1970, o país vivia a agitação de sua
primeira campanha para eleições gerais. Eu percorri todas as cidades
importantes entrevistando políticos da oposição e pessoas que haviam
tomado parte no levante para depois escrever um livro. O convite chegou
em maio, quando meu trabalho ainda estava incompleto. A Coreia do Norte
já era, naquela época, um país isolado.
A carta chegou por intermédio de um comunista local conhecido como Rahim
“Koreawallah”, secretário da Pak-Korea Friendship Society. Baixo,
barrigudo, falante e cheio de cerveja, ele estava sem fôlego quando me
entregou a carta de Pyongyang. Eu teria de partir imediatamente, disse
ele. Por quê? Porque os norte-coreanos estavam convencidos de que os
Estados Unidos estavam se preparando para invadir o país e os
norte-coreanos precisavam da solidariedade mundial. Em janeiro de 1968,
os coreanos tinham capturado o USS Pueblo, um navio da
inteligência naval americana, e prenderam a tripulação. As relações
entre os dois países continuavam ruins. Será que eu poderia partir na
semana seguinte?, perguntou Koreawallah. Ri e respondi que não.
Eu estava a caminho do que na época se chamava Paquistão Oriental. A
Coreia do Norte seria uma dispersão. Koreawallah se mostrou aborrecido
e, ao mesmo tempo, insistente, mas seus argumentos eram fracos. Não
havia provas de que Washington estivesse se preparando para uma guerra.
Eu tinha experiência no assunto. Anos antes, havia passado seis semanas
no Vietnã do Norte e, além de ficar agachado em abrigos antiaéreos
durante os bombardeios dos americanos em Hanói, presenciei comunicados
oficiais à imprensa feitos por funcionários do governo norte-vietnamita,
que deixavam claro que iriam vencer a guerra. Para os americanos, já
desgastados na Indochina, uma nova guerra na Coreia seria um ato
suicida.
Eu tinha outros motivos para não ir. Considerava Kim Il Sung um líder
ridículo e seu regime, uma paródia da Rússia stalinista. Recusei o
convite mais uma vez, de maneira mais enfática. Mas meus pais,
comunistas, achavam que eu devia aproveitar a oportunidade (eles nunca
tiveram a chance de ir até lá). E Koreawallah não desanimava. Com um
sorriso astuto, deixou escapar que eu poderia entrar via China, pegando
um trem em Pequim para Pyongyang. Isso resolveu a questão. Eu estava
ansioso para visitar Pequim e aquela parecia ser minha única saída.
Respondi que só poderia ir em meados de junho.
Quando voltei para Daca, depois de duas semanas cansativas na zona
rural, surgiu um problema. Os sindicatos do Paquistão Oriental
convocaram greve geral de um dia – uma demonstração de força contra o
regime de transição do general Yahya Khan, em Islamabad –, justamente no
dia em que eu deveria pegar o voo de Daca para Cantão. Tive de resolver
a questão pessoalmente. Amigos pediram aos líderes comunistas dos
sindicatos dos taxistas e dos condutores de riquixá uma trégua de trinta
minutos para que eu pudesse chegar ao aeroporto. Os apelos foram
prontamente rejeitados. Quando os líderes estudantis intervieram, os
sindicatos se mostraram flexíveis. Não poderia haver nenhum tráfego
motorizado nas ruas, mas eu poderia viajar numa bicicleta riquixá.
Eu e minha bagagem éramos pesados demais para o raquítico condutor.
Passaram-se dez minutos dele bufando e arquejando, e quase não havíamos
saído do lugar. Com medo de perder o voo, pedi que ele sentasse no meu
lugar e pedalei eu mesmo feito um louco para vencer os 8 quilômetros que
nos separavam do aeroporto. Além de animais soltos, não havia nada nas
ruas. Quando chegamos ao aeroporto, o condutor da bicicleta, me vendo
banhado em suor, abriu um sorriso e não quis aceitar meu dinheiro.
Paguei na marra e corri para o avião. Logo depois da decolagem, o comitê
de greve fechou o aeroporto. Eu havia previsto que o Paquistão estava à
beira de se desagregar, mas, enquanto observava o sol se levantar sobre
as plantações de arroz, não imaginava que aquela seria a última vez que
eu veria o Paquistão Oriental.
m
Pequim, cartazes decoravam as ruas, música barulhenta irrompia de
alto-falantes e grupos de crianças se curvavam diante de retratos do
Grande Timoneiro. Uma torrente de bicicletas fluía por vias públicas sem
poluição. Que sorte a deles, pensei, por não tratarem o carro como um
fetiche. Saí do hotel caminhando sem rumo, consegui encontrar a Praça da
Paz Celestial, descobri um restaurante bom e barato, depois voltei para
o hotel onde dois funcionários da embaixada coreana estavam à minha
espera para um passeio discreto pela Cidade Proibida. Parecíamos apenas
visitantes estrangeiros.
Naquela mesma tarde, fiz as malas para a viagem de trem de dois dias
rumo a Pyongyang e fomos à estação. Não havia no hotel nenhum livro de
frases e expressões em chinês. As únicas palavras chinesas que eu sabia
eram Mao Zhuxi wansui– Mao viverá mil anos –, que não
serviam para nada quando eu precisava pedir comida ou achar um banheiro.
Por sorte, um mensageiro sikh da embaixada indiana entrou no
meu compartimento antes da partida do trem. Nos cumprimentamos em
punjabi e ele me disse que era fluente em mandarim e, mais importante,
que sua mulher tinha preparado comida e ele poderia dividir comigo.
Pouco antes de o trem começar a andar, dois membros do Exército de
Libertação Popular também entraram no compartimento. Não, responderam
rindo, não estavam indo para Pyongyang. Meu esforço para arrancar deles
uma opinião sobre a Revolução Cultural fracassou, mas se mostraram
ansiosos para conversar a respeito do Paquistão e ficaram surpresos ao
ouvirem minhas críticas aos ditadores militares: a propaganda chinesa os
retratava como “aliados anti-imperialistas”. Não sabiam do recente
levante popular. O mais simpático deles me preveniu a respeito do “culto
à personalidade” na Coreia e meu amigo sikh exclamou: ele
nunca ficava mais de uma noite na embaixada em Pyongyang. Os homens do
Exército de Libertação Popular desembarcaram em Beidaihe, uma estação de
veraneio à beira-mar situada a leste de Pequim. Outrora frequentada por
imperadores, suas mulheres e concubinas, tornara-se um dos locais
prediletos dos líderes do Partido Comunista. “Se esses dois vão passar
uns dias de folga aqui”, comentou meu companheiro de viagem, “devem ser
pessoas importantes, ou ligadas a alguém importante, assim como acontece
no nosso mundo.”
Colonizada pelos japoneses entre 1910, quando anexaram o país, e o fim
da Segunda Guerra Mundial, a Coreia experimentou a “modernidade” e
formas extremas de brutalidade e repressão. A riqueza mineral foi usada
para respaldar o militarismo japonês; os trabalhadores locais recebiam
salários de fome; dezenas de milhares de mulheres eram tratadas como
prostitutas pelos invasores, mas não recebiam pagamento. Os japoneses
almejavam a integração completa: a língua coreana era proibida nas
escolas, os jornais em língua coreana foram extintos e as pessoas tinham
de usar nomes japoneses. A agricultura atendia às necessidades do
Império – milhares de lavradores foram expulsos de suas terras e a maior
parte do arroz e do trigo produzidos era enviada ao Japão –,
acarretando a fome em massa. Um procônsul japonês admitiu que, toda
primavera, metade dos lavradores coreanos sobrevivia à custa de capim e
casca de árvore. Os 2 milhões de coreanos transportados para o Japão
como trabalhadores escravos de certo modo tiveram sorte: tinham o que
comer.
Surpreendentemente, tudo isso levou os coreanos a desenvolver fortes
sentimentos nacionalistas, embora o medo limitasse o número dos que
ingressavam nos grupos clandestinos. Comunistas nativos eram atuantes
nesses grupos: trabalhavam lado a lado com os nacionalistas e eram
amplamente reconhecidos como figuras heroicas. Durante a Segunda Guerra
Mundial, um movimento de resistência aos poucos tomou forma, com mais
força no sul. Seus membros – estudantes, intelectuais e camponeses –
enfrentaram as punições de costume em países ocupados: tortura, estupro,
matanças em massa e enterros em sepulturas anônimas.
A derrota do Japão em 1945 foi saudada com júbilo e surgiram comitês
populares em diversas cidades. O futuro da Coreia não foi tratado em
Yalta, onde se decidiu a divisão da Europa, mas Moscou e Washington, em
caráter privado, concordaram com uma divisão semelhante da península
coreana. O Exército Vermelho entrou na Coreia do Norte e consta que Kim
Il Sung estava num de seus tanques; os Estados Unidos ocuparam o sul. O
general MacArthur viajou de avião para Seul com uma valiosa bagagem de
mão: Syngman Rhee. Porém Rhee contava com pouco apoio e MacArthur usou
os membros coreanos do Exército Japonês de Ocupação para manter o
controle do novo Estado. Por si só, isso bastava para despertar a
antipatia do povo. Os dissidentes foram esmagados, houve prisões em
massa, comunistas e nacionalistas antiamericanos desapareceram ou foram
assassinados. “As prisões em Seul estão abarrotadas de presos
políticos”, informou Frank Baldwin, consultor da embaixada dos Estados
Unidos:
Seis semanas atrás, inspecionei uma prisão da polícia em Inchon. Lá,
os presos viviam em condições que hesito em descrever nesta carta. Traz
à memória a sensação da Divina Comédia. Goya poderia ter pintado o que
vimos lá. O que irá acontecer com quase 10 mil presos políticos no caso
de rendição da capital? É difícil imaginar os atos de vingança e de ódio
que o povo irá praticar se sobreviver à conquista de Seul por seus
“libertadores”.
envolvimento
dos Estados Unidos e da União Soviética pôs fim a qualquer chance de
autonomia coreana, mas o prestígio soviético ainda era grande e muitos
acreditavam que os russos ajudariam a libertar e reformar o país
inteiro. Poucos acreditavam que a separação seria permanente. Kim Il
Sung, empossado pelos soviéticos como líder do Comitê Provisório do
Povo, era quase um desconhecido, mas os comunistas locais não tinham
motivo para duvidar dele.
A crescente revolta popular no sul e um irresistível desejo de
reunificação deflagraram a invasão do sul pelo norte em 1950. Carente de
apoio popular, o governo de Rhee caiu e teve de ser salvo por tropas
dos Estados Unidos. A União Soviética boicotou uma sessão do Conselho de
Segurança da ONU em que poderia ter vetado a guerra americana, travada
sob a bandeira das Nações Unidas. A Revolução Chinesa deixara Washington
em pânico. Não poderiam permitir que ela se espalhasse.
Tropas americanas e seus aliados (incluindo a Marinha japonesa)
obrigaram o Exército coreano a recuar. A Revolução Chinesa ocorrera
menos de um ano antes e seus líderes encaravam a Guerra da Coreia como
uma tentativa de reverter o rumo dos acontecimentos na China. Uma
reunião do Politburo decidiu que era preciso salvar os coreanos. Tropas
chinesas sob o comando do general Peng Dehuai cruzaram em massa o rio
Yalu. Os americanos e seus aliados foram obrigados a recuar até o
paralelo 38. O general MacArthur declarou que talvez fosse necessário
lançar bombas nucleares contra as bases aéreas chinesas; Truman o
demitiu. Em 1953, foi assinada uma trégua em Panmunjom, no paralelo 38.
Cerca de 1 milhão de soldados e 2 milhões de civis tinham morrido (há
muitas estimativas diferentes). Um deles era o filho mais velho de Mao, o
seu predileto.
Vinte anos depois, eu estava prestes a cruzar o rio Yalu a bordo de um
trem chinês. Em Sinuiju, recebi as boas-vindas, na terra sagrada da
República Democrática Popular da Coreia, com um buquê de flores. Diante
de uma estátua de Kim Il Sung em tamanho natural, meu anfitrião me disse
que estava um pouco perturbado com a escala do culto à personalidade na
China. Em Pyongyang, um jovem do movimento Pioneiro me deu mais um
buquê de flores. Fiquei chocado com o que vi, enquanto percorremos a
cidade de carro: parecia a Europa Oriental logo após a Segunda Guerra
Mundial. Lembrei que aquilo que o general Curtis LeMay ameaçara fazer
com o Vietnã do Norte já tinha sido feito com a Coreia do Norte: o país
regredira à Idade da Pedra à força de bombardeios. Não houve nenhum
protesto no Ocidente contra os violentos bombardeios sofridos por
Pyongyang, anunciados com apenas quinze minutos de antecedência: 697
toneladas de bombas foram jogadas sobre a cidade, 10 mil litros de
napalm; 62 mil ataques aéreos foram realizados para “varredura com
metralhadoras em baixa altitude”.
Três anos antes, em Phnom Penh, o jornalista australiano Wilfred
Burchett me disse que o que eu vi no Vietnã “não era nada comparado ao
que fizeram na Coreia. Eu estava lá. Só restaram dois prédios de pé em
Pyongyang”. Diziam que os Estados Unidos haviam usado armas de guerra
biológica e, embora os americanos negassem e qualificassem tais
afirmações de “ultrajantes”, no dia 9 de agosto de 1970 o jornal The New York Times
informou que se pensou em usar armas químicas depois que “as forças
terrestres americanas na Coreia foram esmagadas pelos ataques de ondas
humanas da China comunista, nas imediações do rio Yalu”. Os
estrategistas do Pentágono queriam “encontrar um meio de deter os
ataques em massa de infantaria”, portanto “o Exército pesquisou
documentos capturados dos nazistas a respeito de armas químicas, nos
quais se descrevia o sarin, um gás que atua no sistema nervoso, tão
letal que poucos quilos bastariam para matar milhares de pessoas em
poucos minutos, caso o material mortífero fosse disseminado de maneira
apropriada”. Será que ele foi usado na Coreia? Provavelmente não, embora
testes de armas biológicas tenham sido realizados em cidades
americanas. Num desses testes, uma bactéria “inofensiva” foi introduzida
no sistema de ar-condicionado do Pentágono.
edi
um encontro com o ministro do Exterior para conversarmos sobre as
tensões com os Estados Unidos, porém, para surpresa de meus seguranças,
não solicitei um encontro com Kim Il Sung. Passei meus primeiros dias em
Pyongyang visitando museus, com meu excelente intérprete e um
guarda-costas – “o chefe de protocolo”. Os dois me acompanhavam em toda
parte. No Museu da Guerra, perguntei por que não havia nenhum sinal dos
“voluntários” chineses, sem os quais a guerra teria sido perdida.
Nenhuma resposta. Por fim, o guia foi ao 1º andar e depois voltou com o
diretor do museu. Repeti minha pergunta. “De fato, tínhamos uma
exposição, mas as salas foram fechadas para reparos e pintura. As
fotografias foram transportadas para locais seguros.” Pedi para ver onde
elas estavam, mas o constrangimento do homem foi tão grande que
desisti. De lá, fomos ao Museu de Arte. Depois de percorrer quatro salas
cheias de pinturas ruins de Kim Il Sung, de sua mãe e de outros
parentes, perdi a paciência e pedi para ver coisas de séculos
anteriores. Após uma consulta apressada ao meu segurança, o diretor
acenou para que o seguíssemos, deixando claro que estava me fazendo um
grande favor.
Trancafiadas em câmaras subterrâneas, estavam as mais assombrosas
pinturas tumulares que já vi. Algumas datam de 2 mil anos, outras dos
séculos XI e XII. Retratavam soldados, caçadores, cenas de riqueza,
mulheres de beleza primorosa. Agradeci efusivamente ao diretor e disse
esperar que um dia os coreanos pudessem ver aquele tesouro. Ele sorriu e
encolheu os ombros. Foi a única pessoa que não mencionou nem uma vez o
nome de Kim Il Sung, muito menos se referiu a ele como “o Grande e Amado
Líder” de 40 milhões de coreanos. Certo dia, fui levado de carro até
Mangyongdae, onde me prometeram uma grande surpresa. Tratava-se do local
de nascimento de Kim e a cidade inteira era quase um santuário dedicado
a ele, com as mesmas histórias sobre heroísmo que eu ouvira dezenas de
vezes.
De volta ao hotel, vi Kathleen Cleaver, em gravidez avançada, no saguão
com Maceo, o filho que tivera com Eldridge Cleaver, o líder dos Panteras
Negras. Falamos rapidamente, antes de ela ser levada dali, e nunca mais
a vi. Tempos depois, descobri que seu marido tinha encontrado Kim Il
Sung e pedido apoio para o Partido Pantera Negra. É inconcebível que
nenhum dinheiro tenha sido oferecido em troca. Amigos americanos me
disseram, mais tarde, que Kathleen foi mantida num quarto em Pyongyang
durante quatro meses, um castigo que o marido havia decretado depois de
tomar conhecimento de que o bebê não era seu filho. Kim tinha sido
gentil com seu novo amigo. É bom saber disso, pensei.
Ainda era o início da noite. Não havia nenhum bar no hotel, por isso fui
ao salão de bilhar jogar um pouco. Três homens altos, que eu não tinha
visto antes, estavam junto à mesa. Dois deles falavam inglês. Eram
estudantes da Universidade de Havana que estavam em Pyongyang para um
curso de três anos, em troca de centenas de estudantes coreanos enviados
a Cuba para se formarem em medicina. Por que eles? Riram para mim. O
protocolo exigia que alguém fosse enviado para lá. Os estudantes acharam
que eu me daria bem com o embaixador cubano, portanto seguimos no carro
da embaixada para tomar suco de tamarindo e mojitos,
acompanhados de uma refeição excelente. O embaixador era um veterano da
Revolução Cubana. Mandá-lo para a Coreia não foi um gesto amistoso:
“Mostrei-me um pouco crítico em relação a Fidel e à maneira como as
coisas estavam sendo conduzidas em Cuba. Falei com muita gente sobre
isso e Fidel ficou aborrecido. Eu preferia a prisão, mas em vez disso me
mandaram para cá. Deu certo. Havana é o paraíso e Fidel é um deus. Mas
me tirem daqui. Nunca mais vou abrir a boca outra vez.” Foi a noite mais
divertida que tive na Coreia do Norte.
assei
a semana seguinte em carros e trens. O carro muitas vezes parava no
meio do nada para que me mostrassem o local em que “o Grande e Amado
Líder camarada Kim Il Sung deu orientações práticas a camponeses sobre
como proceder à colheita do trigo”. A certa altura, no meio do nada,
pedi que parassem o carro. Minha bexiga estava cheia. Saí e disse: “Vou
dar uma orientação prática àquela árvore ali.” O intérprete e o
segurança morreram de rir. Foi o momento mais agradável da viagem. Nada
foi dito quando voltei ao carro, mas depois disso não paramos mais.
Em Panmunjom, no paralelo 38, os alto-falantes anunciavam aos brados
palavras de propaganda repletas de clichês. Soldados americanos vagavam
por ali, de vez em quando apontavam para os alto-falantes e riam.
Perguntei aos coreanos se eu podia usar um megafone. Quando afinal
concordaram, perguntei aos americanos por que estavam à toa na Ásia
quando seu próprio país estava em chamas. Eles despertaram um pouco. Fiz
um relato dos tiros disparados na Universidade de Kent – a Guarda
Nacional de Ohio havia alvejado e matado quatro estudantes num protesto
contra a invasão do Camboja promovida por Nixon –, fato ocorrido poucas
semanas antes. Quatro milhões de estudantes americanos tinham entrado em
greve. Pedi aos soldados que se unissem a mim num minuto de silêncio em
memória dos estudantes mortos, mas um oficial apareceu e os conduziu de
volta ao quartel. Os coreanos ficaram admirados. Resisti à tentação de
lhes mostrar que minha “orientação prática” tinha sido mais eficaz do
que a propaganda do Grande e Amado Líder.
De volta a Pyongyang, autorizaram meu encontro com o ministro do
Exterior, que me transmitiu a posição oficial da Coreia do Norte em
relação ao cenário mundial. Escutei educadamente. Quando eu estava de
saída, ele disse: “Gostamos de seu discurso em Panmunjom, mas há uma
coisa que o senhor parece não compreender sobre nosso país. O senhor não
aprecia o papel que o camarada Kim Il Sung desempenhou na libertação e
na criação da República Democrática Popular da Coreia.” Eu não podia
negar isso. Ele me dirigiu um sorriso estranho.
ois
anos depois, me convidaram a voltar, para fazer um discurso numa
conferência sobre “o papel do imperialismo americano na Ásia”. Relutei,
mas os vietnamitas me persuadiram. Eles não tinham sido convidados e
queriam que alguém defendesse sua posição sobre o assunto. Dessa vez a
viagem durou mais. Primeiro fomos para Praga, onde o avião militar russo
que iria nos transportar chegou com cinco dias de atraso. Quando afinal
chegou, era um avião imundo e precário; no meio da noite, parou para
reabastecer em Omsk, e desembarcamos para respirar um pouco de ar puro
numa temperatura abaixo de zero. Em Pyongyang, cada delegado recebeu um
Mercedes com motorista. Eu torcia para ter o mesmo intérprete, mas não
tive sorte. Durante nosso convívio, ele havia me pedido um dicionário de
inglês: dei para a nova equipe o dicionário que eu havia levado e pedi
que o fizessem chegar às suas mãos. Disseram que ele tinha sido
transferido para uma cidade pequena. No hotel, um membro do alto escalão
do partido estava se reunindo separadamente com cada delegação. O tema
da conferência tinha sido alterado, ele explicou. Era o sexagésimo
aniversário do Grande e Amado Líder e acharam que devíamos discutir “a
contribuição do camarada Kim Il Sung para o marxismo-leninismo”.
Recusei-me prontamente e pedi que me mandassem de volta para casa. O
membro do partido saiu do quarto muito nervoso.
Durante o jantar naquela noite, um simpático professor argelino e um
representante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) não
conseguiam acreditar no que eu tinha feito. O argelino disse que havia
se vendido por 5 mil dólares, o amigo da Frelimo estava constrangido
demais para revelar a quantia que havia aceitado. Na manhã seguinte, me
ofereceram 10 mil dólares, que seriam extremamente úteis para a revista
que eu estava editando na época. Fiquei tentado a aceitar e depois fazer
um discurso simplesmente satírico. Mas recusei. Mesmo assim, não me
permitiram ir embora. Não haveria voos para a Europa antes de uma
semana. Respondi que eu ia para o Paquistão. Disseram-me que também era
difícil. O embaixador vietnamita veio falar comigo. Implorou que eu não
fosse embora. “O culto à personalidade é terrível aqui”, ele disse.
“Terrível mesmo.”
Numa recepção oficial um dia antes do início da conferência, fomos todos
apresentados ao Grande e Amado Líder. Nunca em toda a minha vida senti
tamanha aversão a um personagem político de esquerda. Seu pescoço
abaloado parecia estar pedindo uma bala. Eu gostaria de ser um
dezembrista. As únicas palavras que ele me dirigiu foram bem estranhas:
“Londres, não é? The Red Flag [A Bandeira Vermelha]. Ainda cantam a música?”
Cometeram o erro de me dar um assento no plenário. Não aplaudi nenhum
discurso, mas fiz anotações. O astro do Politburo que abriu a
conferência – o tema era “a tarefa da ciência social de defender
integralmente o pensamento revolucionário do grande líder camarada Kim
Il Sung e difundi-lo amplamente” – citou um discurso do Grande e Amado
Líder. “Existe uma canção revolucionária que diz: ‘Deixemos que os
covardes hesitem e os traidores zombem. Aqui, vamos manter a bandeira
vermelha desfraldada.’ Isso exprime nossa inabalável determinação.” Eu
me perguntei quem em Moscou o teria apresentado ao hino da
social-democracia britânica. Seu tenebroso discurso foi interrompido 143
vezes por aplausos, ovações de pé etc. Minha mesa no restaurante do
hotel se ampliava dia após dia, à medida que um número crescente de
incomodados vinha zombar de nossa situação. O codinome que criamos para o
Grande e Amado Líder era Peterson.
A razão absurdamente narcisista para o culto era óbvia. Quem, afinal,
era Kim Il Sung? De onde ele veio? Algum dia foi líder de guerrilha?
Existiram comunistas coreanos bem conhecidos, inclusive uma mulher
general. Kim Il Sung matou alguns deles. Outros fugiram para a China
durante a ocupação japonesa e combateram ao lado dos guerrilheiros de
Mao. Muitos veteranos da Longa Marcha eram coreanos. É possível que Kim
Il Sung tenha sido guerrilheiro na China e depois tenha fugido para a
Rússia. Não sabemos muito bem. O que sabemos é que o Exército Vermelho
libertou o país em 1945 e os chineses o salvaram durante a Guerra da
Coreia. Mas tais fatos nunca foram mencionados na propaganda da
República Democrática Popular da Coreia. “Juche”, uma forma agressiva de
autossuficiência, era a palavra escolhida para designar essa xenofobia.
Na minha primeira viagem, quando perguntei a meu intérprete se havia
lido algo de Marx, Engels ou Lênin, ele estranhou a pergunta. “Não”,
respondeu-me. “Tudo foi interpretado pelo camarada Kim Il Sung.” Ele nem
sabia dizer se algum dos textos clássicos estava disponível nas
bibliotecas.
certa
altura, pareceu que os Estados Unidos iam simplesmente comprar os
norte-coreanos. Clinton despachou Madeleine Albright para Pyongyang em
2000 para fazer um trato – um caminhão de dinheiro para os Kim, uma
espécie de desnuclearização, seguida por uma branda reunificação com o
sul –, mas o projeto não foi adiante. Bush não tinha o menor interesse
em manter contato. Por quê? Tive uma espécie de resposta após um debate
público sobre a Guerra do Iraque em Berlim, em 2003. Minha oponente era
Ruth Wedgwood, de Yale, conselheira de Donald Rumsfeld. No almoço,
perguntei-lhe quais eram seus planos para a Coreia do Norte. Mostrou-se
conclusiva. “Você não viu o brilho nos olhos dos militares da Coreia do
Sul?”, disse ela. “Estão loucos para tomar posse do arsenal nuclear da
Coreia do Norte. Isso é inaceitável.” Por quê? “Porque se uma Coreia
unificada se tornar uma potência nuclear, será impossível impedir que o
Japão também se torne uma potência nuclear, e se tivermos a China, o
Japão e uma Coreia unificada como Estados nucleares, a correlação de
forças vai mudar de maneira desfavorável para nós.” Obama parece
concordar com essa maneira de pensar. Seu problema é a China. Antes, os
chineses pareciam indiferentes ao destino da Coreia. Não é mais o caso.
As regiões próximas da fronteira com a China estão vivendo um boom
e programas de tevê chineses são um paraíso em comparação com as
produções kimistas. Por quanto tempo Pequim irá permitir que essa ópera
absurda continue?
por TARIQ ALI
piauí
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