segunda-feira, 25 de junho de 2012

30 Anos hoje ...

“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer”.

(Nexus 6 Roy Batty)

“A luz que brilha o dobro arde a metade do tempo”

(Tyrel)

Apesar do status de fime “cult” e de ter inspirado gerações de cineastas, Blade Runner veio ao mundo em um parto traumático. A estreia aconteceu no dia 25 de junho de 1982 e as complicações começaram muito antes, na época em que o enredo foi concebido: fruto da anticonvencional imaginação de Philip K. Dick (cuja obra também nos deu o bom e mais contemporâneo Minority Report), a trama tinha aquele viés sombrio e distópico que caracteriza os romances deste autor (falecido em 1982; antes, portanto, de gozar a fama que Blade Runner lhe traria se tivesse passado incólume pelo restante daquela década).

A ficção científica de Philip K. Dick não era poética como a de Ray Bradbury, sóbria como a de Isaac Asimov ou fácil de assimilar como a de H. G. Wells. Ao contrário, era esquisitona, delirante e meio paranóica, apesar de genial – e, para complicar um pouquinho mais as coisas, suas novelas mais famosas (dentre elas, Do Androids Dream of Electric Sheep? / Sonham os Andróides com Ovelhas Elétricas, que inspirou Blade Runner) tinham mensagens incompatíveis com o clima otimista do Verão do Amor.

O mundo sonhava com uma época de paz e entendimento entre os homens, enquanto Philip K. Dick sonhava com andróides que viviam em uma Terra desmantelada e fadada a se tornar um depósito de párias. No futuro idealizado pelo autor, o Homem já alcançara as estrelas, mas deixara para trás um mundo em pandarecos, policiado por tipos questionáveis como Rick Deckard, um “blade runner” – denominação dada aos funcionários do governo incumbidos de caçar e eliminar humanos artificiais que, de tão perfeitos, podiam se passar por gente de carne e osso.

No fundo, a trama era uma atualização “sessentista” dos conceitos de Frankenstein, ilustre romance de Mary Shelley que iniciou uma discussão manjada da ficção científica: será que o Homem é moralmente apto a imitar o mecanismo da Criação e assumir o papel de Deus?

HISTÓRIA ESTRANHA

Muita gente não entendeu qual era a de Philip K. Dick ao contar aquela história estranha, mesmo porque a possibilidade do Homem recriar o Homem em um tubo de ensaio (ou em uma linha de montagem) era remota naquele tempo – o primeiro bebê de proveta só veio ao mundo em 1978, dez anos após a publicação de “Do Androids Dream of Electric Sheep?” Mesmo assim, o cineasta Ridley Scott (que tinha no currículo outra ficção científica de sucesso, Alien – O Oitavo Passageiro) viu qualidades no enredo e pensou que não seria um problema transportá-lo para o cinema. Quem poderia contestar essa afirmação, considerando que o gênero estava em alta no fim dos anos 1970 (aquecido pela popularidade de Star Wars e do Superman de Richard Donner)? A primeira versão do roteiro de Blade Runner foi assinada por Hampton Fancher, que definiu a “espinha dorsal” do filme que hoje conhecemos: já naquele tratamento, o “blade runner” (vivido por Harrison Ford) já perseguia humanos “genéricos” que, tomando consciência da própria mortalidade, demandavam mais tempo de vida de seus criadores. Fancher também sublinhou o envolvimento sentimental entre o herói e a mocinha Rachel (Sean Young) – por sua vez, uma mulher artificial (feita do mesmo material de que eram feitas as vítimas de Deckard). Mas foi David Webb Peoples (autor dos roteiros de Os Doze Macacos e Os Imperdoáveis) que fez o “ajuste fino” na imagem, trabalhando a partir das ideias de Fancher. Peoples cunhou o termo “replicante” (uma inovação em relação aos “geriátricos” robô, autômato ou andróide). As versões preliminares do roteiro já sugeriam o uso de uma narração em “off” para a história, homenageando o estilo dos antigos filmes “noir” (tão característicos da década de 1940). No entanto, a proposta era que este recurso fosse utilizado muito sutilmente, quase como uma “música de fundo” para a narrativa.

CONFLITOS NO SET

Ridley Scott, um criador meticuloso desde aquele tempo, fez de tudo para contagiar a equipe técnica e o elenco com seu entusiasmo. O que ele queria era entregar ao público um filme que não fosse apenas “especial”, mas auto-suficiente em relação à novela que o inspirara.

Na versão fílmica de Blade Runner, portanto, desaparecem as referências explícitas que a novela fazia a uma guerra atômica (um dos eventos que teriam conduzido a Terra ao futuro sombrio imaginado por Philip K. Dick). O diretor apelou para um recurso mais charmoso (e decididamente mais “cinematográfico”) para sugerir o apocalipse: uma chuva ácida cai intermitentemente sobre a Los Angeles do futuro (que substitui a São Francisco do romance), assinalando que, em algum ponto da história, a vida no planeta se tornou insustentável. Se por obra de uma guerra nuclear ou de uma hecatombe ambiental, cabia ao público decidir.

Scott também palpitou na direção de arte, encomendada ao “craque” Syd Mead. O cineasta não queria nada na linha “tecnológica” de Fuga do Século XXIII e O Abismo Negro. A metrópole decadente (e visualmente esquizofrênica) por onde perambulam o herói Deckard e os ameaçadores replicantes liderados por Roy (Rutger Hauer) mescla referências de muitas culturas e épocas – há telões supermodernos no alto dos edifícios, mas a arquitetura é velha e decadente. Mead criou este conceito (mais tarde, tão imitado) inspirando-se em Hong Kong, uma metrópole com rasgos de modernidade e de vanguardismo, mas com raízes medievais. Nos arranha-céus que a câmera percorre no início do filme, também se nota a influência do clássico Metrópolis, cujos sets ainda são triunfos de design.

Infelizmente, a presença de Scott no set não foi apenas “inspiradora”. Controlador ao extremo (e muito temperamental), o diretor brigou com quase todo mundo durante a realização do filme. Os técnicos não queriam vê-lo nem pintado de ouro e até o astro Harrison Ford lhe virou a cara – no caso, por diferenças criativas quanto ao projeto.

Uma das queixas de Ford era que o cineasta não lhe dedicava a devida atenção, ajudando-o a compor seu personagem. Mas é preciso entender o diretor: sob o peso de uma produção tão complexa (e sob a estreita vigilância dos chefões do estúdio), Scott estava acuado. Apesar do êxito de Alien – O Oitavo Passageiro, ele ainda era um “novato” e não tinha a moral de um Stanley Kubrick para impor sua visão aos técnicos e atores do filme. Aos trancos e barrancos, a produção foi concluída – felizmente, sem que os atritos nos bastidores afetassem a qualidade artística do projeto (algo que jamais foi questionado, mesmo à luz dos eventos que vieram depois). Montado e sonorizado por uma antológica trilha sonora de Vangelis, Blade Runner estava prestes a vir à luz.

Mas, aí, aconteceram as complicações de parto...

MORTE E RESSURREIÇÃO

Blade Runner – o filme seminal que, hoje, dispensa apresentações e que todos querem imitar – foi um retumbante fracasso de crítica e de público em 1982. A coisa foi tão feia que a genialidade do diretor (exaltada não apenas em Alien, mas no excelente Os Duelistas, de 1977, que também ganhara boas críticas) foi colocada em xeque. A ironia é que, talvez, o fracasso tenha se devido justamente ao apuro da produção – impecável não só no âmbito estético, mas na composição caprichada dos personagens e em seu autêntico senso de drama.

Com base nos mais facilmente “digeríveis” Star Wars e Superman, o que era Blade Runner? A pergunta procedia, considerando-se que, até então, ninguém esperava muita sutileza de uma trama de ficção científica. Sem alienígenas de aspecto bizarro, duelos de sabres de luz ou mocinhos com superpoderes, Blade Runner era uma ficção científica atípica demais para o período.

Mas, em uma reviravolta que ninguém poderia antecipar em 1982, o mercado de home vídeo resgatou do limbo esta oba-prima – à medida que espectadores de outra geração o descobriam nas videolocadoras, em versão VHS. Aos poucos, uma áurea de filme “cult” foi envolvendo a produção – e, no fim daquela década, ninguém mais questionava o valor do filme. A explicação para o “naufrágio” nas bilheterias era óbvia: exatamente como a história que contava, Blade Runner – o filme – estava muito à frente de seu tempo.

VERSÕES

E ainda há muito a se descobrir no filme. A prova disso não está apenas em sua incrível longevidade (seu “look” se mantém assombrosamente atual, mesmo nesses tempos de motion capture e matte paintings digitais), mas no fato de as pessoas ainda debaterem pontos-chave da história e da realização (“será que Rick Deckard também era um replicante?”; “O filme fica melhor ou pior sem a narração em ‘off’’?”). Relançada várias vezes (em versões que atestam as diferentes visões do realizador e do estúdio da mesma história), a obra se esquiva de um veredicto definitivo e estimula a discussão, o que indubitavelmente contribui para a magia que permeia a produção.

Lembrando que, há alguns anos, a Warner lançou um DVD contendo os cinco “cortes” de Blade Runner (esta superedição também está disponível no Brasil). É prazeroso ver como a trama assume novos significados a cada remontagem. Seja no modo “estendido” ou com metragem econômica, com ou sem narração em “off”, acrescida ou destituída dos retoques digitais que Scott fez em algumas cenas (servindo-se das modernas ferramentas digitais), O Caçador de Andróides é sempre um grande filme. Seu maior legado talvez seja nos lembrar de que, sem correr riscos, dificilmente um cineasta conseguirá produzir uma obra que resista à prova do tempo, juntando-se à seleta galeria de produções que, às vezes, justificam a existência de um gênero.

Por Eduardo Torelli



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