“A luz que brilha o dobro arde a metade do tempo”
(Tyrel)
Apesar do status de fime “cult” e de ter inspirado gerações
de cineastas, Blade Runner veio ao mundo em um parto traumático. A estreia
aconteceu no dia 25 de junho de 1982 e as complicações começaram muito antes,
na época em que o enredo foi concebido: fruto da anticonvencional imaginação de
Philip K. Dick (cuja obra também nos deu o bom e mais contemporâneo Minority
Report), a trama tinha aquele viés sombrio e distópico que caracteriza os
romances deste autor (falecido em 1982; antes, portanto, de gozar a fama que
Blade Runner lhe traria se tivesse passado incólume pelo restante daquela
década).
A ficção científica de Philip K. Dick não era poética como a
de Ray Bradbury, sóbria como a de Isaac Asimov ou fácil de assimilar como a de
H. G. Wells. Ao contrário, era esquisitona, delirante e meio paranóica, apesar
de genial – e, para complicar um pouquinho mais as coisas, suas novelas mais
famosas (dentre elas, Do Androids Dream of Electric Sheep? / Sonham os
Andróides com Ovelhas Elétricas, que inspirou Blade Runner) tinham mensagens
incompatíveis com o clima otimista do Verão do Amor.
O mundo sonhava com uma época de paz e entendimento entre os
homens, enquanto Philip K. Dick sonhava com andróides que viviam em uma Terra desmantelada e
fadada a se tornar um depósito de párias. No futuro idealizado pelo autor, o
Homem já alcançara as estrelas, mas deixara para trás um mundo em pandarecos,
policiado por tipos questionáveis como Rick Deckard, um “blade runner” –
denominação dada aos funcionários do governo incumbidos de caçar e eliminar
humanos artificiais que, de tão perfeitos, podiam se passar por gente de carne
e osso.
No fundo, a trama era uma atualização “sessentista” dos
conceitos de Frankenstein, ilustre romance de Mary Shelley que iniciou uma
discussão manjada da ficção científica: será que o Homem é moralmente apto a
imitar o mecanismo da Criação e assumir o papel de Deus?
HISTÓRIA ESTRANHA
CONFLITOS NO SET
Ridley Scott, um criador meticuloso desde aquele tempo, fez
de tudo para contagiar a equipe técnica e o elenco com seu entusiasmo. O que
ele queria era entregar ao público um filme que não fosse apenas “especial”,
mas auto-suficiente em relação à novela que o inspirara.
Na versão fílmica de Blade Runner, portanto, desaparecem as
referências explícitas que a novela fazia a uma guerra atômica (um dos eventos
que teriam conduzido a Terra ao futuro sombrio imaginado por Philip K. Dick). O
diretor apelou para um recurso mais charmoso (e decididamente mais
“cinematográfico”) para sugerir o apocalipse: uma chuva ácida cai
intermitentemente sobre a Los Angeles do futuro (que substitui a São Francisco
do romance), assinalando que, em algum ponto da história, a vida no planeta se
tornou insustentável. Se por obra de uma guerra nuclear ou de uma hecatombe
ambiental, cabia ao público decidir.
Scott também palpitou na direção de arte, encomendada ao
“craque” Syd Mead. O cineasta não queria nada na linha “tecnológica” de Fuga do
Século XXIII e O Abismo Negro. A metrópole decadente (e visualmente
esquizofrênica) por onde perambulam o herói Deckard e os ameaçadores
replicantes liderados por Roy (Rutger Hauer) mescla referências de muitas
culturas e épocas – há telões supermodernos no alto dos edifícios, mas a
arquitetura é velha e decadente. Mead criou este conceito (mais tarde, tão
imitado) inspirando-se em
Hong Kong , uma metrópole com rasgos de modernidade e de
vanguardismo, mas com raízes medievais. Nos arranha-céus que a câmera percorre
no início do filme, também se nota a influência do clássico Metrópolis, cujos
sets ainda são triunfos de design.
Infelizmente, a presença de Scott no set não foi apenas
“inspiradora”. Controlador ao extremo (e muito temperamental), o diretor brigou
com quase todo mundo durante a realização do filme. Os técnicos não queriam
vê-lo nem pintado de ouro e até o astro Harrison Ford lhe virou a cara – no
caso, por diferenças criativas quanto ao projeto.
Uma das queixas de Ford era que o cineasta não lhe dedicava
a devida atenção, ajudando-o a compor seu personagem. Mas é preciso entender o
diretor: sob o peso de uma produção tão complexa (e sob a estreita vigilância
dos chefões do estúdio), Scott estava acuado. Apesar do êxito de Alien – O
Oitavo Passageiro, ele ainda era um “novato” e não tinha a moral de um Stanley
Kubrick para impor sua visão aos técnicos e atores do filme. Aos trancos e
barrancos, a produção foi concluída – felizmente, sem que os atritos nos
bastidores afetassem a qualidade artística do projeto (algo que jamais foi
questionado, mesmo à luz dos eventos que vieram depois). Montado e sonorizado
por uma antológica trilha sonora de Vangelis, Blade Runner estava prestes a vir
à luz.
Mas, aí, aconteceram as complicações de parto...
MORTE E RESSURREIÇÃO
Com base nos mais facilmente “digeríveis” Star Wars e
Superman, o que era Blade Runner? A pergunta procedia, considerando-se que, até
então, ninguém esperava muita sutileza de uma trama de ficção científica. Sem
alienígenas de aspecto bizarro, duelos de sabres de luz ou mocinhos com
superpoderes, Blade Runner era uma ficção científica atípica demais para o
período.
Mas, em uma reviravolta que ninguém poderia antecipar em
1982, o mercado de home vídeo resgatou do limbo esta oba-prima – à medida que
espectadores de outra geração o descobriam nas videolocadoras, em versão VHS. Aos
poucos, uma áurea de filme “cult” foi envolvendo a produção – e, no fim daquela
década, ninguém mais questionava o valor do filme. A explicação para o
“naufrágio” nas bilheterias era óbvia: exatamente como a história que contava,
Blade Runner – o filme – estava muito à frente de seu tempo.
VERSÕES
E ainda há muito a se descobrir no filme. A prova disso não
está apenas em sua incrível longevidade (seu “look” se mantém assombrosamente
atual, mesmo nesses tempos de motion capture e matte paintings digitais), mas
no fato de as pessoas ainda debaterem pontos-chave da história e da realização
(“será que Rick Deckard também era um replicante?”; “O filme fica melhor ou
pior sem a narração em ‘off’’?”). Relançada várias vezes (em versões que
atestam as diferentes visões do realizador e do estúdio da mesma história), a
obra se esquiva de um veredicto definitivo e estimula a discussão, o que
indubitavelmente contribui para a magia que permeia a produção.
Lembrando que, há alguns anos, a Warner lançou um DVD
contendo os cinco “cortes” de Blade Runner (esta superedição também está
disponível no Brasil). É prazeroso ver como a trama assume novos significados a
cada remontagem. Seja no modo “estendido” ou com metragem econômica, com ou sem
narração em “off”, acrescida ou destituída dos retoques digitais que Scott fez
em algumas cenas (servindo-se das modernas ferramentas digitais), O Caçador de
Andróides é sempre um grande filme. Seu maior legado talvez seja nos lembrar de que, sem correr
riscos, dificilmente um cineasta conseguirá produzir uma obra que resista à
prova do tempo, juntando-se à seleta galeria de produções que, às vezes,
justificam a existência de um gênero.
Por Eduardo Torelli
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