quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Nada é como parece ...


"Enxergar o que se passa debaixo de nossos narizes exige um esforço constante" - George Orwell, em "1984"

A OTAN, A LÍBIA, E A ESPERTEZA DOS TOLOS

“O dia 11 de novembro de 1630 foi decisivo para a história da França e da Europa. Nesse dia, em Versailles, um jovem rei, Luís 13, rompeu com a mãe, a Rainha Maria de Médicis, e entregou todo o poder político da França a seu ministro, o Cardeal de Richelieu. Richelieu amanhecera deposto pela Rainha, mas um de seus conselheiros o convenceu a ir até o monarca, e expor-lhe suas razões. Foi uma conversa sem testemunhas. O fato é que Luis 13 teve a atitude que correspondia ao filho de Henrique IV: “entre minha mãe e o Estado, fico com o Estado”.

Ao tomar conhecimento da reviravolta, quando os inimigos do Cardeal festejavam sua derrota, o poeta Guillaume Bautru, futuro Conde de Serrant –um dos fundadores da Academia Francesa, libertino, sedutor, e homem de frases curtas e fortes– resumiu os fatos, ao ridicularizar os açodados: “c’est la journée des dupes”. Em nossa boa língua pátria, “o dia dos tolos”.

Ao mesmo tempo em que se vingava da princesa italiana, que o humilhara, Richelieu iniciava uma fase de grandeza da monarquia de seu país que só se encerraria 162 anos depois, com a decapitação de Luís 16.

A história é cheia de jornadas semelhantes. Os planos, por mais bem elaborados sejam, nunca se cumprem exatamente e, na maioria das vezes, se frustram, diante dos caprichosos deuses do inesperado. O caso da Líbia, se o examinarmos com cuidado, está prometendo ser uma operação “des dupes”.

Não vai, nesta análise, qualquer juízo moral sobre Khadafi. É certo que se trata de um megalômano, que, tendo chegado ao poder aos 27 anos, provavelmente não estivesse preparado para administrar o êxito que coroou a sua participação na revolta contra outro déspota, o rei Idris. Mas Khadafi não teria sido quem foi, durante 42 anos, se a Europa e os Estados Unidos não tivessem tido atitude sinuosa e incoerente para com o seu regime. Reagan chegou a determinar o ataque aéreo a Trípoli e Bengazi, em 1986, quando uma residência de Khadafi foi atingida e uma sua filha adotiva morreu. Esses ataques, longe de enfraquecer o governante, fortaleceram-no, e desestimularam os poucos inimigos tribais internos.

Os interesses econômicos da Europa, que fazia bons negócios com o dirigente do velho espaço dos beduínos, berberes e tuaregues, ditaram as oscilações da diplomacia diante de Trípoli. A bolsa, sempre pejada e generosa, de Khadafi, favorecia seus entendimentos e os de seus filhos com altos funcionários das chancelarias européias e financiavam festas suntuosas a que eram convidadas as grandes celebridades do show business e dos círculos ociosos da grã-finagem internacional. Enfim, Khadafi fazia o que quase todos fazem. Não é por acaso que Berlusconi sempre o teve como um de seus mais devotados amigos, até que, coerente com seu caráter, somou-se à cruzada contra Trípoli.

Khadafi, por mais insano tenha sido –e todos podiam identificar os sinais de sua mente vacilante– fez um governo de bem-estar social, como nenhum outro da região. Contando com os recursos do petróleo, criou sistema de assistência à saúde que, mesmo restrito aos centros urbanos, tem sido exemplar. Reduziu drasticamente os níveis de mortalidade infantil, possibilitou o tratamento gratuito de toda a população, universalizou a educação, estimulou a agricultura nas raras terras cultiváveis, e fixou salários dignos para os trabalhadores. É certo que se enriqueceu e enriqueceu seus familiares e favoritos, mas os líbios não tinham por que se queixar de sua política social. Em contrapartida, não admitia qualquer tipo de oposição.

Monsieur Sarkozy, que anda fazendo apostas perigosas com a posteridade, e Cameron, da Grã Bretanha, foram os grandes animadores da intervenção maciça da OTAN contra a Líbia. A ocasião era propícia. A Europa se encontra combalida com a crise econômica e o avanço da corrupção está erodindo a coesão de seus povos. O tema é de particular intimidade da França, detentora, na História, dos mais espetaculares escândalos, entre eles o da frustrada construção do Canal do Panamá por uma companhia francesa: a empresa obtivera, mediante propinas a muitos parlamentares, a concessão de uma loteria especial para o financiamento da obra, recolhera investimentos pesados dos homens de negócios europeus e dos poupadores modestos, e quebrou espetacularmente poucos meses depois. Durante muito tempo, “panamá” passou a ser sinônimo, em todas as línguas, de negócios escusos e da corrupção política. Talvez com a única exceção dos tempos de De Gaulle, nunca houve governo na França imune a denúncias de sujeiras semelhantes. A corrupção foi uma das causas da Revolução Francesa.

Quase todos estão saudando a vitória contra Khadafi, mas isso não significa que tenham conquistado a Líbia. São grupos internos de interesses diferentes que se uniram para livrar-se de um inimigo comum, com o apoio das potências estrangeiras, que bombardearam sistematicamente a população civil –o que, convenhamos, é terrorismo puro. Mas, sempre que as armas se calam, novo e mais complicado conflito se inicia. Quem assumirá o poder? Irão as tribos do deserto, que se relacionam entre elas mediante complexa malha de fidelidade, fundada no parentesco e nas alianças bélicas seculares, unir-se sob um protetorado estrangeiro? É duvidoso.

Há uma questão de fundo, que Sarkozy e Cameron, em seu açodamento, desprezaram. Londres e Paris, pressurosos em aproveitar os episódios dos países árabes, a fim de reocuparem seu domínio colonial, tomando o lugar da Itália na influência sobre a Líbia, esqueceram-se de Israel.

Mubarak, do Egito, o principal aliado de Tel-Aviv, e fiel vassalo de Washington, perdeu o poder e corre o risco de perder também a cabeça. Israel tomou a iniciativa de provocar as novas autoridades do Egito ao cometer o ataque fronteiriço, que causou a morte de oficiais daquele país, na pressão para que se feche novamente a passagem aos palestinos.

Nada indica que os governos que, eventualmente, sucedam aos déspotas destituídos no Egito e na Tunísia, e os que possam vir a ser derrubados nas vizinhanças, sejam mais condescendentes com Israel. Até mesmo a Síria é uma incógnita, no caso em que Assad perca o mando.

A Itália, acossada pela crise econômica e pela desmoralização de Berlusconi, em lugar da neutralidade, somou-se, na undécima hora, aos agressores.

Os fundamentalistas se somam aos que saúdam os movimentos de rebeldia nos países árabes. A Palestina, por intermédio do Hamas, aplaude o fim de Khadafi. Terá suas razões para isso. E a rede Al Jazeera já está emitindo de Trípoli. Como se queixou Khadafi, a Al-Qaeda não o apoiava.

Enfim, para lembrar o burlador Conde de Serrant, é bem provável que este ano de 2011 fique na história como o ano dos tolos.”

FONTE: escrito pelo jornalista Mauro Santayana no Jornal do Brasil Online. Transcrito no portal “Conversa Afiada” (http://www.conversaafiada.com.br/politica/2011/08/24/santayana-a-libia-e-o-festival-de-tolices/).

* * *

O grande Kadafi nem bem deixou o complexo de Bab-al-Aziziyah, e os abutres ocidentais já sobrevoam o local, disputando o “grande butim” – o petróleo e o gás da Líbia.

A Líbia é um peão muito mais crucialmente importante num tabuleiro ideológico, geopolítico, geoeconômico e geoestratégico mais sério, do que deixa ver o ‘reality show’ moralista vendido como noticiário pelas redes de televisão: “rebeldes” idealistas vencem o inimigo público número um.

Por Pepe Escobar, no “Asia Times Online”

Tempo houve em que o inimigo público número um foi Saddam Hussein; depois, Osama bin Laden; hoje é Muamar Kadafi; amanhã será o presidente Bashar al-Assad da Síria; um dia será o presidente do Irã Mahmud Ahmadinejad. Só uma coisa é certa: a ultrarreacionária Casa de Saud [Arábia Saudita] nunca é o inimigo público número.

COMO A OTAN VENCEU A GUERRA

Apesar do reaparecimento espetacular do filho de Kadafi, Saif al-Kadafi, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) virtualmente já venceu a guerra civil líbia (“atividade militar cinética”, como insiste a Casa Branca). As massas do “povo líbio” foram, no máximo, espectadoras, ou atores com papel pequeno, mostrados sob a forma de poucos milhares de “rebeldes” armados com Kalashnikovs.

Inicialmente, apostaram em “R2P” (“responsabilidade de proteger”[sic]). Mas, logo no início, essa “R2P”, manobrada por França e Grã-Bretanha e apoiada pelos EUA, já apareceu [ilegalmente, sem aval da ONU] convertida, por passe de mágica, em “mudança de regime”. Daí em diante, as estrelas do show nessa produção foram “conselheiros”, “empresas contratadas” ou “mercenários ocidentais” e “monárquicos”.

A OTAN começou a ganhar a guerra ao iniciar a Operação Sirene no Iftar –sirenes que soaram interrompendo o jejum do Ramadã– no sábado à noite. “Sirene” foi o nome código para invadir Trípoli. Foi o gesto final –e desesperado!– da OTAN, para mostrar força, quando ficou claro que os “rebeldes” caóticos nada haviam conseguido, nem depois de cinco meses de luta contra as forças de Kadafi.

Até aquele momento, o “Plano A” da OTAN era assassinar Kadafi. O que os garotos-propaganda da R2P –de direita e de esquerda– chamavam de “pressão continuada pela OTAN” acabou com a OTAN pedindo a Deus que acontecesse um de três milagres: que conseguissem assassinar Kadafi; que Kadafi se rendesse; ou que sumisse.

Não que qualquer desses resultados tivesse impedido a OTAN de bombardear residências, universidades, hospitais e até áreas bem próximas do Ministério do Exterior. Tudo –e todos– virou alvo da OTAN. A “Operação Sirene” mostrou elenco colorido de “rebeldes da OTAN”, fanáticos islâmicos, jornalistas alugados “incorporados”, grupos sempre voltados para as câmeras de televisão e jovens da Cyrenaica manipulados por desertores oportunistas do governo Kadafi, de olho nos gordos cheques das gigantes Total e BP, do petróleo.

Para a operação “Sirene”, a OTAN trouxe armamento (literalmente) novinho em folha: helicópteros Apache atirando sem parar e jatos bombardeando furiosamente tudo que havia à vista. A OTAN supervisionou o desembarque de centenas de soldados de Misrata na costa leste de Trípoli, enquanto um navio de guerra da OTAN distribuía armamento pesado para os “rebeldes”.

Só no domingo, o número de civis mortos pode ter chegado a 1.300 em Trípoli, com pelo menos 5.000 feridos. O Ministério da Saúde anunciou que os hospitais estão superlotados. Quem, àquela altura, ainda acreditasse que o furioso bombardeio pela OTAN tivesse algo a ver com “responsabilidade de proteger” e Resolução nº 1.973 da ONU mereceria internamento em hospício.

Antes de iniciar a “Sirene”, a OTAN bombardeou furiosamente Zawiya –cidade chave, de grande refinaria de petróleo, 50km a oeste de Trípoli. Com isso, a população de Trípoli ficou sem combustível para os carros. Segundo a própria OTAN, pelo menos metade das forças armadas líbias foram “degradadas” –em língua do Pentágono, significa que a OTAN destruiu metade do exército líbio, entre soldados mortos ou muito gravemente feridos. Foram dezenas de milhares de mortos. Esse massacre explica, também, o misterioso desaparecimento dos 63 mil soldados encarregados de defender Trípoli. E também explica que o regime de Kadafi, que se manteve no poder durante 42 anos, parece ter caído em menos de 24 horas.

O toque da “Sirene” macabra da OTAN –depois de 20 mil missões e mais de 7.500 ataques contra alvos no solo– só foi possível por causa de uma decisão crucial do governo Barack Obama no início de julho, como se lê hoje no “Washington Post”: os EUA passaram [em julho] a “partilhar material mais sensível com a OTAN, inclusive imagens e sinais interceptados, que passaram a ser fornecidos, além de aos pilotos no ar, também a soldados de equipes britânicas e francesas de operações especiais no solo”.

Quer dizer: sem a contribuição do descomunal poder de fogo dos EUA e correspondentes agentes, satélites e aviões-robôs (drones) tripulados à distância, a OTAN ainda estaria atolada na “Operação Pântano Eterno Sem Saída” na Líbia –e o governo Obama jamais conseguiria extrair desse drama “militar cinético” nem, que fosse, algum simulacro de grande vitória.

QUEM SÃO ESSAS PESSOAS?

Quem são essas pessoas que, de repente, irromperam em festas nas telas de televisão dos EUA e Europa? Depois de sorrir para as câmeras e disparar tiros de Kalashnikovs para o alto... preparem-se para, em breve, outros fogos explodindo na noite: fogos fratricidas.

Conflitos étnicos e tribais estão a ponto de explodir. Muitos dos berberes das montanhas do oeste, que entraram em Trípoli vindos do sul no fim de semana, são salafitas, linha (muito) dura. O mesmo se deve dizer da “nuvem” salafitas/Fraternidade Muçulmana da Cyrenaica –que recebeu instrução diretamente de agentes da CIA-EUA que estão na região. Dado que esses fundamentalistas "usaram" os europeus e norte-americanos para aproximar-se do poder, ninguém duvide que se organizarão rapidamente como furioso grupo guerrilheiro, caso sintam-se marginalizados pelos chefões da OTAN.

A tal grande “revolução” com base em Benghazi, que foi vendida ao ocidente como movimento popular, sempre foi mito. Há apenas dois meses, os “revolucionários” armados mal chegavam a 1.000. A OTAN, então, decidiu construir ela mesma um exército mercenário –que reuniu os tipos mais assustadores, de ex-membros de um esquadrão da morte colombiano a pessoal recrutado no Qatar e nos Emirados Árabes Unidos, associados a tunisianos desempregados e membros das tribos inimigas da tribo de Kadafi. O pessoal é esse, acrescido de esquadrões de mercenários alugados pela CIA –salafitas em Benghazi e Derna– e a gangue da Fraternidade Muçulmana, gente da equipe da Casa de Saud.

É difícil não lembrar da gangue da droga do UCK (Ushtria Çlirimtare e Kosovës, Exército da Libertação do Kosovo) –na guerra que a OTAN “venceu” nos Bálcãs. Ou dos paquistaneses e sauditas, com apoio dos EUA, que armaram “combatentes da liberdade” no Afeganistão nos anos 1980. E há também o muito suspeito grupo de personagens que compõem o “Conselho Nacional de Transição” [ing. “Transitional National Council” (TNC)], de Benghazi.

O chefe, Mustafa Abdel-Jalil, foi ministro da Justiça de Kadafi de 2007 até desertar, dia 26 de fevereiro de 2011, estudou direito civil e sharia na Universidade da Líbia. Talvez esteja habilitado a cruzar lanças retóricas com os fundamentalistas islâmicos em Benghazi, al-Baida e Delna, mas pode usar seus conhecimentos para fazer avançar seus interesses em algum novo arranjo do poder.

Mahmoud Jibril, presidente do conselho executivo do TNC, estudou na Universidade do Cairo e, depois, na University of Pittsburgh. É a principal conexão com o Qatar: trabalhou na gestão do patrimônio de Sheikha Mozah, esposa super poderosa do emir do Qatar.

Há também o filho do último rei da Líbia, rei Idris, que Kadafi derrubou há 42 anos (em golpe sem derramamento de sangue). A Casa de Saud adoraria ver nascer uma nova monarquia no norte da África. E o filho de Omar Mukhtar, herói da resistência contra o colonialismo italiano –figura mais secular.

O NOVO IRAQUE?

Esperar que a OTAN vença a guerra e entregue o poder aos “rebeldes” é piada. A Agência [norte-americana de notícias] Reuters já noticiou que uma “força-ponte” de cerca de 1.000 soldados do Qatar, Emirados e Jordânia chegará a Trípoli para atuar como polícia. E o Pentágono já começou a “vazar” que militares norte-americanos atuarão “em terra” para “auxiliar na segurança dos equipamentos”. Toque sutil, que diz bem claramente quem realmente estará no comando: os neocolonialistas “humanitários” e seus asseclas árabes.

Abdel Fatah Younis, o comandante “rebelde” assassinado pelos próprios “rebeldes” era homem do serviço secreto francês. Foi morto por uma facção da Fraternidade Muçulmana –exatamente quando Sarkozy, o Grande Libertador de Árabes, tentava negociar algum acordo com Saif al-Islam, filho de Kadafi formado pela “London School of Economics” e, há dias, renascido dos mortos.

Tudo isso para dizer que os grandes vencedores são Londres, Washington, a Casa de Saud e o Qatar (que mandou jatos e “conselheiros” e já estão administrando as vendas de petróleo). Com especial menção para o conjunto Pentágono/OTAN –posto que o Comando dos EUA na África (AFRICOM) conseguirá, afinal, sua primeira base africana no Mediterrâneo; e a OTAN, que está um passo mais próxima de declarar o Mediterrâneo “um lago da OTAN”.

Islamismo? Tribalismo? Esses são pequenos problemas, ante a nova terra da fantasia que se escancara para o neoliberalismo. Já praticamente ninguém duvida que os novos mestres do ocidente tentarão reviver versão amigável da nefasta, rapace, nefanda “Autoridade Provisória da Coalizão”, convertendo a Líbia em delírio neoliberal “hardcore” à custa de 100% das propriedades líbias, com repatriação de lucros, corporações ocidentais com os mesmos direitos que as empresas locais, bancos estrangeiros comprando os bancos locais, renda baixa para os pobres e impostos idem para as empresas [o Brasil de FHC/PSDB/DEM já viu esse filme].

Simultaneamente, a fissura profunda que separa o centro (Trípoli) e a periferia, pelo controle dos recursos de energia, se aprofundará. BP, Total, Exxon, todas as gigantes ocidentais do petróleo serão fartamente recompensadas pelo “Conselho de Transição” –em detrimento de empresas chinesas, russas e indianas. E soldados da OTAN “em terra” certamente ajudarão a impedir que o Conselho saia da linha.

Executivos da indústria do petróleo estimam que demorará, no mínimo, um ano para que a produção de petróleo volte ao nível de antes da guerra civil, de 1,6 milhões de barris/dia, mas dizem que os ganhos anuais do petróleo renderão aos novos governantes cerca de US$50 bilhões de dólares/ano. Muitos estimam que as reservas líbias alcancem 46,4 bilhões de barris de petróleo, 3% do petróleo do mundo, equivalendo a cerca de $3,9 trilhões aos preços de hoje. As reservas conhecidas de gás líbio chegam a 5 trilhões de pés cúbicos.

No frigir dos ovos, “R2P” vence. O imperialismo humanitário vence. As monarquias árabes vencem. A OTAN como Robocop global vence. O Pentágono vence. Mas nem tudo isso satisfaz os suspeitos de sempre –que já pedem o envio de uma “força de estabilização”. E tudo isso enquanto os progressistas da categoria “perderam-o-rumo-e-o-prumo” em várias latitudes, continuam a louvar a “Sacra Aliança” entre neocolonialismo ocidental, monarquias árabes ultrarreacionárias e salafitas ‘hardcore’.

Ainda não terminou. Só terminará quando a onça árabe aparecer para beber água. Seja como for, próxima parada: Damasco."

FONTE: escrito por Pepe Escobar, correspondente itinerante de “Asia Times Online” e autor de “Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War”. Transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=162233&id_secao=9) [trechos entre colchetes adicionados pelo blog ‘democracia&política’].

O Grande Gaddafi[1]
Pepe Escobar, Asia Times Online, Tradução: Coletivo Vila Vudu
20/8/2011

A noite vai avançada em Trípoli, e o Grande Gaddafi beberica seu White Russian[2], fumando um do bom, do Maghreb, enquanto sintoniza uma gigantesca televisão de plasma em sua tenda na fortaleza de Bab al-Aziziyah. Ninguém, nem alguma voluptuosa enfermeira ucraniana, conseguiria apaziguar sua alma em revolta.

Assiste, com ar de quem não acredita nos próprios olhos, à narrativa que avança naquela sopa de letras ocidentais conhecida como “noticiário”; juram que Muammar Gaddafi está “sitiado”, “exaurido”, “tentando achar alguma rota de fuga”, “preparando-se para fugir” (para a Tunísia) e que “é só questão de tempo” antes do “colapso” de seu governo.

Tudo isso, porque um bando de beduínos bárbaros apoiados pelas bombas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) decidiram mijar no seu tapete.

O Grande Gaddafi: “Aquele tapete era a base que mantinha em pé a sala”.

Não diria, de si mesmo, que esteja “sitiado”. Afinal, as pesquisas mostram que, na Líbia, a aprovação de seu governo no mínimo dobrou, nos últimos meses. E então um dos caras lá da Casa Branca disse ao pessoal lá que a Líbia aceitaria um acordo de cessar-fogo pelo qual a OTAN controlaria só alguns pontos da Cyrenaica – sim para Benghazi, não para Misrata – e abriria caminho para uma força de paz dos capacetes azuis da ONU.

Examina o calendário no seu iPhone; o mês do jejum santo dos muçulmanos, o Ramadã, estende-se até 29 de agosto. Faltavam só uns dez dias, para que o cessar-fogo entrasse em vigência. Mas os norte-americanos – como sempre – e sua cobiça sem limites! Queriam para eles todas as concessões de petróleo e gás, pôr as mãos em todas elas. E queriam que Gaddafi se aposentasse. Petróleo e gás são sempre negociáveis. Questão de acertar o preço. Quanto à aposentadoria, podem enfiar no seu rabo.

Guarda-costas do Grande Gaddafi: “E quando estivermos fazendo a entrega, eu pego um dos deles, arrebento o cara e arranco tudo dele, de volta. Que tal?”

O Grande Gaddafi: “Grande plano, porra, super engenhoso, se estou entendendo bem. Perfeito, porra, infalível como uma porra de relógio suíço, porra.”

Que tipo de guerra “popular” foi aquela? O pessoal do serviço secreto trouxe-lhe em bandeja de prata a mais recente pesquisa Rasmussen – segundo a qual, só 20% dos norte-americanos apoiam hoje o escandaloso bombardeio por EUA/OTAN, sobretudo porque aqueles panacas bombardearam civis e mais civis, até crianças. Os europeus – os que contam, gente de verdade, não os burocratas panacas de Bruxelas – estão ainda mais incomodados que os norte-americanos.

E dizer-se que os niilistas europeus tentaram vender a ficção de que ele, Gaddafi, seria um “ditador maléfico” que queria “matar o próprio povo”!

Guarda-costas do Grande Gaddafi: “Niilistas?! Agora, fodeu… Quero dizer, digam o que disserem dos princípios do nacional socialismo, Meu Chapa árabe, pelo menos era algum ethos”.

Os niilista europeus bombardearam a infraestrutura civil – privaram muita gente no oeste da Líbia, de água e comida, para que as ‘massas’ ‘se levantassem’ e derrubassem Gaddafi. É como funciona uma guerra para “proteger civis”, nessas cabeças ocidentais doentias: ensinar os civis a se borrarem de medo.

O Grande Gaddafi sempre soube que nunca esteve só. O povo de Trípoli não se borrou de medo. Estudantes, professores, cidadão comuns, todos armados com Kalashnikovs, lança-granadas e morteiros, todos prontos a escavar trincheiras, cercar a cidade, montar um cordão de pontos de controle, organizar a resistência casa a casa. Os ‘rebeldes da OTAN’ jamais tomariam Trípoli.

Guarda-costas do Grande Gaddafi: “Cara, recebi informações novas. Há mais merda no ar, do que pensávamos.”

Verdade. Gaddafi agora sabe com certeza que grandes tribos – Warfa’llah, Washafana, Tarhouna, Zlitan – todas sempre estiveram com ele. E que, ao contrário do que prega a propaganda dos “rebeldes da OTAN”, Zawiya, Gharian e Surman não caíram.

Gaddafi sempre soube que aqueles sujeitos sem sal nem vergonha do Conselho Nacional de Transição [ing. Transitional National Council (TNC)] nunca superariam ou superarão as guerras tribais seculares que os separam; todas elas, de fato, miniguerras civis.

Impossível acreditar que norte-americanos e europeus tenham sido idiotas a ponto de pôr dinheiro na brigada Abu Ubaidah bin Jarrah. A brigada recusa-se a lutar sob comando dos “rebeldes da OTAN” e já assumiu a “segurança interna”, pelo mesmo método de sempre: eles degolam inimigos.

Gaddafi hoje conta, inclusive, com o apoio da furiosa tribo Obeidi – que inclui a família do general General Abdul Fatah Younis, que foi ministro do Interior de Gaddafi, antes de virar desertor comandante-em-chefe dos ‘rebeldes’ e ser assassinado lá mesmo, pelos mesmos “rebeldes da OTAN”.

Ocidentais imbecis, que ainda ontem beijavam barra de túnica africana, em visita que faziam, em fila, à tenda itinerante. Hoje salivam só de ouvir falar de sumarentos acordos comerciais, ainda mais sumarentas perfurações nos campos de petróleo, certos – perfeitos idiotas – que conseguirão evitar a inevitável, monstruosa guerra civil tribal que descerá sobre eles.

O Grande Gaddafi: “Ok. Certo, certo. Então, se assinarem meu cheque, 10% de meio trilhão… 50 bilhões… Eu me mando. Sumo.”

Gaddafi sempre soube por que vieram até ali, mijar no seu tapete. Porque nunca deu a britânicos, franceses e ianques as concessões de petróleo que queriam. Então eles, e os insuperáveis salafrários sauditas, puseram-se a financiar aqueles fanáticos que tinham contatos com a al-Qaeda – exatamente o que fizeram no Afeganistão nos anos 1980s.

Banqueiros-gânsteres inventaram um Banco Central ‘alternativo’ – com a prestimosa ajuda do HSBC – para assaltar a Líbia e roubar o dinheiro dos líbios. E também inventaram uma nova empresa de petróleo, nova, totalmente privada, administrada pelo Qatar, para roubar o petróleo da Líbia.

Ora, ora… Por que ele, Gaddafi, não pensou antes nesse lance de “guerra humanitária”? Que matança utilíssima, teria feito!

O Grande Gaddafi: “Vocês têm a história de vocês, eu tenho a minha. O que digo e provo é que confiei meu dinheiro a vocês e vocês – vocês! – roubaram o meu dinheiro que tinham sob sua guarda.”

A “Coalizão”: “Loucura! Como se algum dia tivéssemos SONHADO com roubar essa merda de dinheiro líbio!”

O que está sendo feito na Líbia terá troco – será horrível. De dar medo.

As bombas da OTAN já degradaram a indústria líbia de petróleo, que voltou ao ponto em que estava, no mínimo, há três anos passado. Mas os canalhas, covardes, não terão coragem de atacar Trípoli. Numa batalha por Trípoli, mulheres e crianças morrerão em massa.

O Grande Gaddafi: Ah, malditos! Fucking fascistas!

Terão de bombardear Trípoli até devolvê-la à idade da pedra – exatamente o que já fizeram em Bagdá. Ou usarão alguma arma biológica alucinada, que fará de Trípoli cemitério e deserto.

O Grande Gaddafi: “Não pode ser. Não será. Não vai ficar assim, ya know, essa violência não pode ficar sem castigo, man.”

OK. Seja. Se esse é o tipo de paraíso que a OTAN e os ‘democratas’ sauditas e qataris querem… o Nosso Chapa árabe lhes dará o que querem – e será como sobreviver no inferno. Mercado livre aberto para todos, uma base do Africom no Mediterrâneo, um governo fantoche, um Karzai da Líbia – e um exército de guerrilheiros fanáticos degoladores que os combaterão por muitas gerações, até o dia do Juízo Final. O Afeganistão remixed.

O Grande Gaddafi procurou The Chocolate Watchband[3] no seu iPod – “passei por aqui / só pra ver / em que condições / estava minha condição” – olhou em volta e andou diretamente para dentro da nem tão fresca noite norte-africana. Os jatos da OTAN circulavam no céu. Ouviram-se sete explosões em Bab al-Aziziyah.

O desconhecido: ‘Meu Chapa’ desapareceu na escuridão – “darker’n a black steer’s tookus on a moonless prairie night”[4]. Sem fundo.

_______

[1] Para ler pensando em “O Grande Lebowiski” [The Big Lebowiski, 1993, dir. irmãos Coen]. Todas as falas aí citadas de Gaddafi, são falas do Grande Lebowski, no filme; falas de outros personagens do filme aparecem atribuídas aí a outros ‘falantes’ (cf. IMDB).
O filme nara a história de Jeffrey Lebowski, apelidado “The Dude” [‘Meu chapa’, ‘meu camaradinha’, ‘o cara’; gíria], que vive em Los Angeles no início dos anos 90s. Uma noite, ‘Meu Chapa’ chega em casa e encontra à sua espera dois homens que lhe dizem que sua mulher deve uma enorme quantidade de dinheiro a um homem chamado Jackie Treehorn; e que ‘Meu Chapa’ tem de pagar a dívida, dado que Treehorn sabe que ‘Meu Chapa’ é riquíssimo. Os homens torturam ‘Meu Chapa’, espancam-no, metem sua cabeça no vaso sanitário e, na saída, urinam no tapete que há na sala e ao qual ‘Meu Chapa’ é emocionalmente muito ligado. A questão é que ‘Meu Chapa’ não tem mulher, nem dinheiro algum; é desempregado crônico e vive de bicos. Os agressores, afinal, vendo, de fato, a miséria da casa onde ‘Meu Chapa’ vive, dão-se contra de que apanharam o Jeffrey Lebowski errado. E vão-se.
Depois de alguma reflexão sobre o ocorrido, ‘Meu Chapa’ aceita a sugestão do amigo Walter, de irem em busca do outro Jeffrey Lebowski, para exigir dele algum tipo de indenização pelo tapete urinado. Para grande surpresa de ‘Meu Chapa’, o outro Jeffrey Lebowski é um velho, preso a uma cadeira de rodas e perfeito canalha ‘de filme’: vive em mansão imensa, com piscina gigante, é violento contra visitantes como ‘Meu Chapa’, tem um capanga-guarda-costas (que bajula o chefe) e uma sexy jovem esposa-troféu – Bunny –, além de muitos tapetes caríssimos. ‘Meu Chapa’ rouba-lhe um tapete e dá-se por bem indenizado. Tapete a mais, tapete a menos, para quem tem tantos…
A história muda de registro quando Bunny é sequestrada e o Lebowiski milionário pede que o Lebowiski-‘Meu Chapa’ lhe sirva de portador, para entregar aos sequestradores o resgate de um milhão de dólares. Daí em diante a coisa é praticamente inenarrável, senão como o filme narra: misturam-se objetos de diferentes planos de discussão – calcinhas, cuecas, um tapete de alto valor sentimental, pornografia, niilistas, carros destruídos, esmalte verde para unhas, um pedófilo, disputas de boliche, para citar alguns itens-ícones. O filme é interessantíssimo e pinta retrato miserável dos EUA onde nem os sobreviventes sabem exatamente porque sobrevivem ou como, e são capazes de vinganças exemplares [NTs].

[2] Coquetel adocicado de vodka. Mais na Wikipedia).

[3] Banda de rock psicodélico ‘de garagem’, criada em 1965. Pode ser ouvida aqui

[4] Ninguém por aqui conseguiu traduzir essa frase. A maioria aprovou que se deixasse como está, a frase intraduzível. Dificilmente seria mais claramente compreensível em português, do que em inglês. Talvez haja, mesmo, algum mistério imperscrutável, nessa frase. Mas, sim, qualquer ajuda é bem-vinda [NTs].

Nota do Blog Maria Frô: O leitor Marcelo Fraga sugere a seguinte tradução: A frase quer dizer algo como “mais escuro que o traseiro de um boi preto em uma noite de pradaria sem lua.” Tookus é uma corruptela de “tuchus“, uma palavra em iídiche (afinal, várias palavras em iídiche viraram gírias nos EUA).



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