A trajetória de Jacob Gorender se mistura a alguns dos principais 
acontecimentos do país no século 20. Membro do Partido Comunista 
Brasileiro (PCB) por quase três décadas e criador do Partido Comunista 
Brasileiro Revolucionário (PCBR), Gorender foi muito além da militância 
prática: tornou-se um dos mais respeitados intelectuais da esquerda 
brasileira. Em 20 de janeiro deste ano, Gorender completou 90 anos, 
marcados por estudo, lutas políticas e uma vasta produção acadêmica. Em 
seus diversos livros, artigos e ensaios, Gorender apresentou ideias até 
então inéditas sobre o Brasil e sua formação socioeconômica. 
Vida 
Filho
 de imigrantes russos judeus, Jacob Gorender nasceu em 20 de janeiro de 
1923 em Salvador (BA), e sua infância foi marcada por sérias 
dificuldades econômicas. Começou a trabalhar aos 11 anos, dando aulas 
particulares e, aos 17, era arquivista em um jornal chamado O Imparcial.
 Ingressou na faculdade de Direito em 1941 e, em meio a atividades no 
movimento estudantil, travou contato com Mário Alves, que já militava no
 Partido Comunista Brasileiro. No início de 1942, Gorender tornou-se o 
mais novo membro do “Partidão”.
O interesse pela política veio de
 casa. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2006(ver abaixo), 
Gorender contou ter sido influenciado pelas ideias do pai. “Meu pai, 
particularmente, era um homem com ideias, digamos assim, esquerdistas. 
Não tinha formação cultural elevada, não freqüentou academias, era um 
homem muito simples. Mas gostava de ler e, de certo modo, a sua posição 
influiu muito nas minhas atitudes”, afirmou.
Em 1943, aos 20 
anos, outra decisão importante na vida do jovem: alistou-se como 
voluntário da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater o 
nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial. Ao retornar ao Brasil, em 1945, 
encontrou o Partido Comunista na legalidade. Instalou-se por um período 
no Rio de Janeiro, onde conheceu Luís Carlos Prestes. Depois de alguns 
meses, retornou a Salvador, onde decidiu abandonar de vez a graduação em
 Direito. Com isso, passou a dedicar-se integralmente à militância 
política, tornando-se membro do secretariado do Comitê Municipal do PCB,
 em Salvador.
Em 1946, mudou-se novamente para o Rio de Janeiro, onde integraria a redação do jornal Classe Operária,
 órgão central do Partido Comunista. Em 1955, outra viagem 
internacional: Gorender foi à União Soviética para participar de um 
curso da escola superior do Partido Comunista soviético.
Ali, os 
estudantes tinham lições de materialismo dialético, economia, política, 
história do movimento operário mundial, dentre outros pontos. Gorender 
integrava uma turma com 50 brasileiros, coordenada por Maurício Grabois.
Gorender
 permaneceu na URSS por dois anos e, ao retornar ao Brasil, seguiu com a
 militância no Comitê Central do PCB – do qual se tornaria membro 
efetivo em 1960. Em 1964, com o golpe militar, Gorender passou a atuar 
na clandestinidade.
Com a solidariedade dos amigos, pode continuar
 com seus estudos. Valdizar Pinto do Carmo e sua companheira, Sonia 
Irene do Carmo, haviam conhecido Gorender em 1960, durante um encontro 
de estudantes militantes do PCB. Alunos da Universidade de São Paulo 
(USP), o casal facilitava o acesso de Gorender aos livros. “Para dar 
apoio a ele, levantávamos bibliografia sobre o período estudado e 
retirávamos das bibliotecas os materiais que ele indicava”, recorda 
Valdizar.
A esta altura, conta o amigo, Gorender estava 
interessado sobretudo na história do período colonial do Brasil. O 
intelectual permaneceu no PCB até 1968, quando saiu da organização para 
fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), ao lado de 
Mário Alves, Apolônio de Carvalho e outros comunistas. 
Prisão 
Em
 1970, Gorender passou por uma de suas experiências mais marcantes: foi 
preso em São Paulo por agentes do Esquadrão da Morte, chefiado pelo 
delegado Sérgio Paranhos Fleury, e levado ao Departamento de Ordem 
Política e Social (Dops), onde foi torturado. O destino de Gorender foi o
 presídio Tiradentes.
Nesse momento, tinha 47 anos, muitos a mais 
que seus colegas de prisão – a maioria na casa dos 20. Ali, passou a 
dedicar-se ainda mais aos livros. Quem o ajudou na missão foi sua 
companheira, Idealina, que levava, nos dias de visita, as obras pedidas 
pelo marido.
Graças a Gorender, a cela tornou-se um ambiente de 
difusão de conhecimento, como conta o jornalista e escritor Alipio 
Freire. “O Jacob sempre organizou debates para a gente na cela. Ele 
começou com o hábito de incentivar os presos que tinham mais informação a
 expô-la para os outros. Alguns ensinavam francês, outros história, era 
todo tipo de conhecimento”, salienta.
Gorender em seguida 
organizou um curso sobre história econômica do Brasil, ministrado todas 
as segundas-feiras à noite em sua cela. A atividade era “concorrida” na 
cadeia, como relembra o jornalista e artista plástico Sérgio Sister. “O 
Jacob era a grande personalidade da cadeia. Nós aprendemos muito com 
ele”, afirma. O curso sintetizava algumas das ideias que Gorender defenderia em sua tese O Escravismo Colonial, que viria a ser lançado em 1978 pela editora Ática. 
Legado 
Jacob
 foi libertado da prisão cerca de dois anos depois, quando passou a se 
dedicar integralmente ao trabalho de tradutor e a investigar a realidade
 brasileira. Uma das principais qualidades do intelectual, para Sérgio 
Sister, era o rigor que dedicava aos seus objetos de estudo.
“O 
Jacob é uma das figuras da esquerda brasileira que sempre exigiu rigor 
no estudo e na apreciação das questões. Ele tinha muita preocupação com o
 conhecimento da realidade brasileira, em não deixar a coisa no ‘chute’ 
ou no romantismo”, destaca.
“O
 Jacob é um dos caras mais sérios e lúcidos para analisar a realidade 
brasileira e os nossos problemas como militantes comunistas, o que 
queremos para nós mesmos e para a sociedade brasileira. Ele foi muito 
importante para aquela geração, para quebrar alguns mitos da verdade 
absoluta de sempre”, diz Alipio Freire. 
Autodidata, Jacob Gorender
 permaneceu à margem do campo acadêmico durante muitas décadas. Somente 
em 1994, aos 71 anos, seu mérito foi reconhecido com o título de Doutor 
Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Jacob Gorender, um dos mais notáveis entre os intelectuais marxistas 
brasileiros, despediu-se da vida no dia 11 de junho de 2013, em São Paulo.
por Patrícia Benvenuti
Brasil de Fato
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Leia abaixo duas entrevistas de Jacob Gorender. A primeira, concedida a Alípio
Freire e Marcelo Ridenti e publicada no 9º número da revista Margem Esquerda
(publicada em 2007), disponível para venda aqui. A segunda consta dos arquivos do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo.
***
Jacob Gorender nasceu em Salvador, Bahia, em 1923. Filho
mais velho de imigrantes judeus russos, bastante pobres, com muito esforço
chegou à faculdade de direito, que acabou abandonando para alistarse como
voluntário da Força Expedicionária Brasileira, lutando na Itália como soldado
na Segunda Guerra Mundial. Militante profissionalizado do Partido Comunista
(PCB), exerceu cargos importantes em sua estrutura, atuando em vários estados
entre 1942 e 1968, quando saiu para fundar – com Mário Alves, Apolônio de
Carvalho e outros – o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Sua
atividade na oposição à ditadura o levou a dois anos de prisão em São Paulo. Ao sair
da cadeia, deixou a militância partidária e desenvolveu seu veio intelectual,
ancorado em base sólida, adquirida como professor em cursos do PCB e jornalista
de várias publicações comunistas, além de formulador teórico do partido. Desde
os anos 70, tem escrito uma obra consistente sobre a história do Brasil, em
livros como O escravismo colonial (1978), Combate nas trevas (1987), A
escravidão reabilitada (1990), Marcino e Liberatore (1992), Marxismo sem utopia
(1999), todos publicados pela editora Ática, de São Paulo.
A entrevista foi realizada na casa de Gorender. Com a
clareza e a verve que o caracterizam, ele conversou durante cerca de quatro
horas com Alípio Freire e Marcelo Ridenti. A seguir, seguem os trechos
principais da entrevista para a Margem Esquerda, cuja edição coube a Rodrigo
Nobile e Marcelo Ridenti, redator também desta breve introdução. Com a palavra
nosso pensador das esquerdas e do Brasil, que revisou o texto que segue.
Família e estudos
Nasci em 20 de janeiro de 1923. Éramos cinco irmãos, todos
homens. A minha família era paupérrima, por diversas circunstâncias. Cheguei a
passar fome, tive alimentação deficiente, que influenciou minha saúde, pois
fiquei enfraquecido. Quando meu pai se casou em segundas núpcias com a minha
mãe, ele já tinha cinquenta anos e ela uns trinta. Ou seja, ele não tinha mais
forças para fazer o trabalho que os judeus faziam, de ir às periferias vender
utensílios domésticos. Bolsas, sapatos, cortes de fazenda etc. (um judeu ia à
frente, com uma caderneta, e um negro ia atrás, com um baú. Lembro-me de que
eles anotavam tudo na caderneta e os negros, pardos e mulatos, seus clientes,
eram de uma honestidade absoluta). Assim, meu pai conseguiu um emprego, por
meio da comunidade judaica: entregava pães, logo pela manhã.
Estudei em uma escola israelita chamada Jacob Dinenson.
Depois, cursei o ginasial clássico, de quatro anos, naquele que veio a se
chamar posteriormente Colégio da Bahia. Lembro que tive um tênis que furou e
precisei tapar com papelão para continuar calçando. Como era bom aluno, poderia
passar no vestibular da faculdade de direito, mas não tínhamos dinheiro nem
para pagar a taxa de inscrição. Assim, perdi um ano. Quem me ajudou foi o
Ariston Andrade, que trabalhava na Infraero. Ele me arranjou emprego no jornal
O imparcial, que circulava em Salvador, pertencente à família de um coronelão
do interior chamado Franklin Albuquerque, que comprou o jornal para defender seu
monopólio da produção da cera de ouricuri, usada na época para fazer discos de
vinil.
Judaísmo
Não posso negar que o fato de ser judeu exerce uma
influência sobre meu modo de ver as coisas e a cultura. Além das disciplinas
obrigatórias – dadas por um professor negro, aliás –, havia aulas de iídiche,
língua não mais falada em Israel, que hoje usa apenas o hebraico modernizado.
Na Bahia viviam cerca de mil judeus e a comunidade tinha uma sede em que se
celebravam os cultos religiosos, onde curiosamente se separavam os asquenazes,
que vinham da Europa, e os sefardim, que vinham de países árabes. Eu
frequentava a sinagoga e comemorava as festas judaicas. Mas quando tinha
quatorze anos comprei em um sebo, na praça da Sé, A origem das espécies, de
Charles Darwin, que prova que a espécie humana não nasceu pronta e acabada, mas
é o resultado de um processo de evolução. Por isso me tornei ateu, não fui mais
à sinagoga e abandonei a religião.
Pessoalmente, nunca sofri discriminação dentro ou fora do
partido pelo fato de ser judeu. Nunca perdi uma promoção, um posto, nunca fui
recusado etc.
No Brasil, acho que as pessoas podem ter ideias
anti-semitas, mas o antisemitismo como ação prática quase não existe. Getúlio
Vargas fechou alguns jornais que eram editados em iídiche e tomou algumas
medidas anti-semitas, mas depois teve de entrar na guerra e não pôde continuar
com essas ações.
Jornalista e comunista
Comecei como arquivista em O imparcial, trabalhando num
setor com um pó tremendo – e eu sofro de rinite… Mas logo o secretário Edgard
Curvelo, um típico secretário de jornal que gritava com todo mundo, percebeu
minhas potencialidades e me colocou na seção internacional. Recebíamos o
noticiário via rádio da Associated Press e eu editava. Depois fui trabalhar no
Estado da Bahia, dos Diários Associados, do Assis Chateaubriand.
Outra revista importante dos comunistas baianos era a Seiva,
financiada por João Falcão – comunista pertencente a uma das famílias mais
ricas da Bahia –, da qual fui redator e diretor. A redação se localizava na rua
Chile, uma das mais chiques de Salvador. Tiramos uns vinte números, nos quais
publiquei vários artigos. Acho que o fato mais interessante foi causado pela
publicação de uma entrevista incisiva com o general Manuel Rabelo, do Superior
Tribunal Militar, que tinha uma posição antifascista. Eu o entrevistei em Salvador. Ele disse
que o Brasil precisava participar da guerra efetivamente. Isso antes da criação
da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Achava que não valia a pena declarar
guerra e não participar; denunciou que os soldados convocados, em vez de serem
treinados para a guerra, ficavam limpando latrinas. Isso atraiu uma censura
pesada sobre a revista. Eles não podiam punir o general, mas eu e os irmãos
João e Wilson Falcão terminamos na prisão, na Guarda Civil de Salvador, onde
ficamos uns cinco ou seis meses, acusados de subversão, por termos publicado a
entrevista. O general foi de uma dignidade irreprochável, confirmando a
entrevista. Só sei que, após essa entrevista, a revista fechou. Mas a polícia
não sabia que éramos comunistas.
O fato é que em julho de todos os anos se reunia no Rio de
Janeiro o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que tinha grande
repercussão nacional. Eles se reuniam em um edifício na praia do Flamengo que
era chamado Germânia, mas o Getúlio mandou nacionalizar todos os nomes
estrangeiros. A sede foi doada à UNE pelo Getúlio, que recebia a delegação dos
estudantes na época dos congressos – mais tarde, fiz um discurso lá, já como
soldado da FEB. Em uma das audiências com os estudantes, eles se queixaram de
que havia antifascistas presos e Getúlio mandou nos soltar, anulando o
processo.
Tornara-me comunista em 1942. Fui recrutado por Mário Alves,
que conhecera na militância estudantil e a quem dediquei meu livro Combate nas
trevas. Era a época do Estado Novo, ditadura de Getúlio, os livros
antifascistas não circulavam, o comunismo era perseguido. Navios brasileiros
foram torpedeados pelos submarinos do Eixo. Muitos civis afogados desses navios
vieram parar na costa do Nordeste, inclusive da Bahia, provocando um movimento
popular vigoroso com grandes passeatas, o que levou o Brasil a declarar guerra
ao Eixo. Eu participei da campanha para o Brasil entrar na guerra, fiz
discursos públicos e me tornei conhecido. Nessa época o jornal passou a ter um
programa de rádio que era realizado na própria redação, e eu falava por uns
quinze minutos sobre a área internacional. Já era 1942, uma fase em que o
nazismo estava declinando. Em 1942 se dá a importantíssima batalha de
Stalingrado. Em agosto de 1942, o governo brasileiro declarou guerra ao Eixo.
Participação na FEB
Em 1943, o governo de Getúlio, já alinhado aos Estados
Unidos, fez um projeto de enviar três divisões brasileiras à Itália. No final
só enviou uma divisão, 25 mil soldados. Havia os soldados dos regimentos, mas
também se abriu o voluntariado. Nesse ínterim, um general fez uma provocação:
“Os estudantes que participaram das manifestações, exigindo que o Brasil
participasse ativamente da guerra, têm agora a oportunidade de se apresentar
como voluntários”. Assim, eu, o Mário Alves e o Ariston Andrade decidimos nos
apresentar voluntariamente, sem passar pela aprovação do Partido Comunista, que
na época se encontrava esfacelado, em virtude da repressão. O Mário Alves era
muito franzino, portanto não foi aceito. Eu tinha naquele momento uns vinte
anos, era franzino e tinha a estatura mínima permitida, mas acabei incorporado
ao Exército. Fomos enviados em um pequeno navio a São Paulo, já que na Bahia
não havia treinamento apropriado. O naviozinho no qual fomos para o sul era
acompanhado por um navio de guerra brasileiro, pois havia o perigo de
torpedeamento. As condições eram precárias, dormíamos ao relento, fazendo do
nosso capacete o travesseiro. Felizmente não choveu. Serviam carne quase crua,
o que causou aos soldados grande descontentamento, e eu pensei que fosse
resultar num levante. Seria um pão-de-ló para os nazistas se houvesse esse
levante. Então tomei coragem, fui conversar com o capitão do navio e, com
diplomacia, alertei-o quanto ao perigo. Ele tomou providências, a comida melhorou
e tudo acabou bem. Quando cheguei a Taubaté, onde o treinamento era dado,
recebi um fuzil Springfield norte-americano, fizemos exercícios com canhões,
mas fui selecionado para o pelotão de transmissões, no setor telegráfico, que
exigia certo nível cultural, pois havia a necessidade de aprender o código
Morse. Apresentei-me, falando que era terceiranista de direito. Nessa condição,
fomos à Itália. Entramos em um navio norte-americano, no Rio de Janeiro, e
partimos. Os norte-americanos proibiram todos os pratos da culinária
brasileira, como a carne seca, os outros ingredientes da feijoada, só
permitindo na Itália o feijão com arroz. Forneceram-nos dois sacos de roupas,
um para o inverno e outro para o verão europeu.
Comunistas na FEB
Apesar de estarmos sob o Estado Novo, havia alguma liberdade
de imprensa, pois o inimigo era o fascismo. Maurício Grabois, Pedro Pomar e
João Amazonas editavam uma revista chamada Continental, que defendia as
posições antinazistas. Fui à redação no centro do Rio, onde conheci o Grabois e
eles me deram uma senha para contatar alguns comunistas, que também embarcariam
comigo. Eram quatro oficiais, entre tenentes e capitães, e alguns sargentos.
Nenhum soldado, que eu me lembre, mas pode ser que me engane. Eu estabeleci
contato com os oficiais. A importância do grupo era pequena, pois eram poucos,
não se pode superestimar. Vou mencionar um nome, pois ele já morreu e isso não
interferirá em sua carreira militar: Alberto Firmo de Almeida, do setor de
transmissões, o que me possibilitou um contato freqüente sem levantar
suspeitas. Outro comunista que gostaria de citar é o Hilton Vasconcelos,
combatente na artilharia. O encontro era difícil, pois estávamos em guerra e a
frente se estendia por uns vinte quilômetros, mas, como eu trabalhava na
transmissão, tinha alguma mobilidade. Ficávamos na estrada 64, sofrendo os
bombardeios dos alemães que dominavam o monte Castelo. Durante o inverno, a FEB
realizou três tentativas de tomá-lo, que fracassaram porque nevava muito e não
havia condições de progredir. Uns vinte soldados, que se aproximaram do comando
alemão, morreram ali, e seus cadáveres só foram resgatados quando a neve
derreteu. No total, o Brasil perdeu 484 soldados, aos quais se acrescentam
cerca de três mil feridos. Alguns amigos morreram, mas nenhum de antes da
guerra.
Não me lembro de ter recrutado nenhum soldado para o
partido. A FEB editava um jornal, impresso em Florença, que tinha a colaboração
do pintor comunista Carlos Scliar. Nesse jornal, publiquei um artigo assinado.
Não conhecia o Salomão Malina na época, ele não era da minha unidade. Ele foi
condecorado por bravura. Depois da guerra, quando Malina se tornou comunista, o
presidente Dutra cassou sua medalha. Não se pode cassar o heroísmo.
Pós-guerra
Quando retornamos ao Brasil, demos baixa. Voltei a Salvador
e me integrei ao Partido Comunista (PC), cujo dirigente principal era o
Giocondo Dias. Ali passei a dirigir o jornal que o partido editava, chamado O
momento, precário graficamente, com uma impressora muito modesta, mas tirávamos
entre 1.500 e 2 mil exemplares que circulavam diariamente. Ao mesmo tempo,
militava no comitê municipal do PC. Até que os dirigentes nacionais, que
ficavam no Rio de Janeiro, me convocaram para trabalhar lá, no Classe operária,
o jornal teórico do partido, semanal. Depois, passou a se chamar Novos rumos.
Eu aceitei mudar de Salvador, embora soubesse que isso ia magoar meus pais. Foi
no final de 1946. Além de Novos rumos, trabalhei para o jornal diário A
imprensa popular, até que eles foram fechados e veio a ilegalidade do partido.
Mas como eu não havia participado de nenhuma ação direta, vivia legalmente.
No Rio, ajudei a fundar a associação dos ex-combatentes, que
se reunia em um edifício de uma entidade chamada Liga de Defesa Nacional. Permaneci
no Rio uns seis anos, depois me desloquei para São Paulo, por volta de 1953. O
primeiro-secretário do PC em
 São Paulo era o Carlos Marighella, eu era o
segundo-secretário de propaganda. Depois houve a campanha pela paz, o famoso
Apelo de Estocolmo, que dizem ter sido redigido por Stalin. Fazíamos
coleta de assinaturas, mas a minha participação não foi
relevante.
Eu lia muito, tinha muita curiosidade. Stalin e Lenin, todos
éramos obrigados a ler. Depois do Estado Novo, a literatura marxista tornou-se
mais disponível. Recebíamos as obras basicamente em castelhano, algumas em
francês.
Curso na União Soviética
Já haviam enviado a Moscou uma primeira turma de estudantes,
com o Apolônio de Carvalho e outros. Fui na segunda turma, em meados de 1955,
verão lá. Em vez de vivermos em Moscou, nos colocaram a 30 quilômetros, em
uma mansão gigantesca, que deveria ter pertencido a alguma família da nobreza
do tempo de czarismo. Em um pavilhão ficaram uns quarenta homens e em outro
cerca de uma dezena de mulheres, entre elas a minha futura companheira,
Idealina. Nos enamoramos, mas só nos unimos no Brasil, pois ali não era
possível. Ficávamos isolados e só tínhamos contato com professores, seguranças,
uma enfermeira e cozinheiros. Apenas quando tínhamos problemas médicos nos
levavam a Moscou, e raras vezes para assistir a peças de teatro ou concertos no
Teatro Bolshoi. Em seis ou sete meses, eu já podia falar russo. Ali as aulas
eram em russo, com tradução para o espanhol, pois não havia tradutor para o
português. Mas poucos tinham familiaridade com o espanhol, estes contavam com a
ajuda dos colegas.
Nos domingos havia uns bailecos, com vitrola de discos de
acetato em 48 rotações. Tocavam-se valsas, sambas, algumas músicas russas que
serviam para dançar. Mas tinha umas dez mulheres para quarenta homens, então as
coitadas tinham que dançar sempre, revezando os parceiros. Havia uma vigilância
moralista, mas ali nasceram namoros, acho que não apenas o meu.
XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética
Não me incluíram na delegação brasileira ao XX Congresso do
Partido Comunista soviético, em 1956. Os delegados foram o Diógenes Arruda
Câmara, o Mário Alves e o Maurício Grabois, que era o chefão da nossa turma.
Também foi delegado o Jover Telles, que mais tarde viria a se tornar um
traidor, como se sabe, pois entregou a direção do PCdoB em 1976. Lamento muito
o ocorrido.
Aí explode o famoso informe de Kruschev. Primeiramente o
Pravda, que eu já lia, publicou uns excertos, afirmando que o congresso havia
criticado Stalin; mas o informe não foi publicado. Tive acesso a ele, pois a
enfermeira da casa tinha um exemplar em russo. Assim, com a benevolência dela, pude me
informar de todos os detalhes e contá-los ao Arruda e ao Grabois, que não
dominavam o russo. Eles ficaram alarmados e pensaram: “Vai sobrar para nós”,
pois a direção brasileira era de um stalinismo tremendo. E sobrou mesmo. Quando
saiu o informe de Kruschev, isso dividiu a nossa turma. Uma parte achou que não
era justo e a outra ficou a favor do informe, inclusive eu.
Quando a União Soviética invadiu a Hungria em 1956, isso nos
causou uma péssima impressão. Ao menos no pessoal com ideias mais avançadas
dentro da nossa turma. Tínhamos um rádio em nosso quarto. Acompanhei as
transmissões vindas de Budapeste, em língua russa. Foi emocionante. Eles
diziam: “Estão nos cercando”, “Disparam contra nós”, até que a transmissão
cessou.
Voltando ao informe, como se sabe, ele vazou no exterior.
Acho que o próprio
Kruschev foi responsável pelo vazamento. No Brasil, chegaram
informações, uma vez que o informe tinha sido editado pelo New York Times, e
reeditado pelo Estado de S. Paulo. A princípio, os comunistas brasileiros
acharam o documento apócrifo, mas quando a delegação chegou da União Soviética,
o Arruda e o Mário Alves confirmaram que o documento era exato. Foi um
deus-nos-acuda, porque as bases se rebelaram. Um intelectual do partido chamado
João Batista de Lima e Silva, um sergipano muito inteligente e culto, diretor
de Novos rumos naquele momento, abriu um debate nessa publicação e na Imprensa
popular. Todos podiam escrever e dar a sua opinião. Assim, diariamente
apareciam cartas e artigos de companheiros, dirigentes ou não, que eram
publicadas, criticando o partido, a direção etc. Com isso, foram inevitáveis as
mudanças na direção. Essas notícias nos chegaram em Moscou. Nós voltamos
em 1957, quando soubemos que a luta interna era intensa e que o partido corria
o risco de se dividir.
Declaração de março de 1958
Eu participava de um grupo chamado “abridistas”, ou seja, os
favoráveis à abertura da discussão. Tornei-me diretor da Imprensa popular,
jornal favorável à discussão. Quando voltei ao Brasil, formamos um grupo que se
reunia no apartamento de um intelectual do partido, muito culto, chamado
Alberto Passos Guimarães. Eu, Mário Alves, Armênio Guedes, Giocondo Dias – que
fazia a ligação com Prestes, ainda sob clandestinidade moderada – e o Alberto.
O Jorge Amado participou de uma ou duas reuniões, mas depois se afastou. O
Apolônio se integrou depois, quando voltou ao Brasil. Nessas reuniões surgiu a
idéia de elaborarmos um documento que viria a ser conhecido como Declaração de
março de 1958. A
declaração teria de romper com a linha do chamado Manifesto de agosto de 1950,
que pregava a luta armada, e oficialmente ainda estava em vigor. Nós estávamos no
governo de Juscelino, não havia um único preso político, a imprensa era livre,
os jornais do partido circulavam abertamente, então a nossa linha estava fora
de sintonia. Assim, redigi a declaração, que foi uma obra coletiva proposta por
nós e aprovada pelo Prestes. Essa declaração passou a ser a linha do partido.
Em 1960 se reuniu o V Congresso do Partido, que corroborou a linha da
Declaração de março e ampliou o contexto e abordou outros assuntos, resultando
em um livreto. Houve mudanças na direção. Saíram o Amazonas, o Grabois e Pomar,
que foram fundar o PCdoB.
A revista Estudos sociais
A revista Estudos sociais foi criada pelo PC para
publicarmos os artigos de maior fôlego que sugiram e não cabiam na imprensa
diária. Foram dezenove números, até que veio o golpe de 1964. Não tínhamos
divisões, apenas discussões. Eu tinha boas relações com o Leandro Konder, o
Carlos Nelson Coutinho, o Astrojildo Pereira – que era um patriarca, fundador
do partido –, o Jorge Miglioli, entre outros. Não havia veto da direção do
partido sobre os artigos. Havia limites, não se podia ir além do que Prestes
aceitaria. Ele até abriu
muitas coisas, mas havia um limite.
O pré-64
Não se pensava em luta armada no partido até 1964. Mas havia
uma divergência
no Comitê Central sobre o que apoiar e criticar no governo
do Jango, e antes no do Juscelino. Em que sentido mobilizar as massas? Era esse
o ponto, mas não se falava ainda em luta armada, embora sofrêssemos a
influência das revoluções chinesa e cubana.
O Fidel passou aqui no Rio em 1960, voltando de um comício em Buenos Aires, e fez
um comício na Esplanada do Castelo para umas 10 mil pessoas, pois não houve
tempo para uma grande mobilização. Fidel não falou em socialismo, e não foi tão
radical como depois se tornaria. Mas falou em libertação, antiimperialismo,
antiamericanismo etc.
Em Combate nas trevas, de fato, afirmo que não preparamos
uma resistência ao golpe de 1964 e deveríamos tê-la preparado, uma resistência
de massas, mas não quer dizer que hoje eu pense exatamente igual ao que escrevi
no Combate. Não advertíamos as massas, não as mobilizamos, estávamos
tranquilos, dentro das condições do governo Jango. Quer dizer, não havia
nenhuma ideia de que um golpe pudesse ocorrer. Não havia sequer refúgios no
caso de um golpe, nem para a própria direção. Eu estava em Goiânia quando ocorreu
o golpe, e passei à clandestinidade, não podendo voltar à casa no Leblon onde
passei o período mais feliz da minha vida. Nessa condição, passei a atuar em São Paulo e Rio Grande
do Sul, já casado com a Idealina.
PCBR
Na clandestinidade, foi fundado o PCBR. Fizemos uma reunião
de militantes divergentes em Niterói e ali surgiu a ideia de fundarmos um outro
partido. O Marighella não foi, pois já estava atuando por conta própria, com o
que viria a se tornar a Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas nós queríamos ter
um partido, então mantivemos a sigla e agregamos o R – Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário. O PCB, com o Giocondo e o Prestes, já não nos
interessava, e dele fomos expulsos em 1967. O PCBR chegou a fazer algumas ações
armadas, no Rio e em
 Recife. Eu era o responsável pelo PCBR em São Paulo e aqui não
permiti nenhuma ação armada. Era um núcleo não muito grande e procurávamos
influir por meio da imprensa, da publicação de folhetos, entre outras
atividades.
Prisão
Fui preso no dia do meu aniversário, em 20 de janeiro de
1970, e fiquei no antigo presídio Tiradentes. Fui condenado a dois anos, pois
não tinha cometido assaltos, me acusaram apenas de atividades subversivas. Meu
advogado foi Raimundo Pascoal Barbosa, aqui em São Paulo, na Auditoria
Militar. No Rio, no Tribunal Superior Militar, foi o George Tavares, ambos
muito eficientes.
Fui torturado, não tanto como o Mário Alves, que foi meu
grande amigo, companheiro de estudos, de uma vida inteira. O Mário foi preso,
levado ao quartel da Polícia do Exército da rua Barão de Mesquita, no Rio, e
foi uma das pessoas mais torturadas do período da ditadura militar. Como
sempre, os torturadores queriam primeiramente o local onde a pessoa morava,
depois quais eram os seus pontos. Se ele revelasse onde morava, a mulher e a
filha seriam estupradas, torturadas e assassinadas. Ele sabia disso e não
entregou a casa dele. Ele não é lembrado como devia, mas é um dos grandes
heróis do povo brasileiro.
Outro herói é o Apolônio de Carvalho, recentemente falecido.
No ano passado, estive no Rio e fui visitar a viúva dele, Renée. Na entrada do
edifício do Leblon, havia uma placa com os dizeres “Aqui morou Apolônio de
Carvalho, herói do povo brasileiro”. Na França, é comum encontrar isso. Esse
fato me deixou muito emocionado.
O escravismo colonial
Ao deixar a cadeia, tive várias fases. A primeira coisa que
fiz para ganhar a vida foi tradução, do espanhol e inglês principalmente, para
a Editora Ática. Trabalho penoso, nem sempre traduzia o que gostava. Antes da
prisão já tinha a idéia de escrever O escravismo colonial, porque, das leituras
que eu fazia, não via razão para caracterizar o passado brasileiro como feudal,
que era a doutrina oficial do partido, tendo sido o Brasil o maior importador
de escravos de toda a América. Na cadeia, dei um curso sobre isso. Pareceu-me
que o passado brasileiro nada teve de feudal, mas sim de escravista. Aí percebi
que, trabalhando com tradução, não conseguiria fazer um livro. Comecei a
contatar algumas pessoas que pudessem me dar uma quantia em dinheiro, que me
propiciassem condições de me dedicar em tempo integral ao livro. Assim, pude
escrevê-lo em uma velha Olivetti, e foram várias pessoas citadas nos
agradecimentos do livro.
Pude freqüentar a Biblioteca Municipal, a biblioteca da
Universidade de São Paulo (USP) – da qual não podia retirar livros, mas outros
companheiros retiravam e me emprestavam – e frequentar arquivos do Estado. Ou
seja, juntar a documentação. Nisso passei uns três ou quatro anos. Com o texto
pronto e revisado à mão, precisava editá-lo. Mas como fazer isso? Já tinha uns
cinquenta anos ou mais, não era conhecido, pois havia apenas publicado artigos.
Aí fui até o José Adolfo Granville, que trabalhava na Ática. Ele tomou os
originais e entregou ao consultor da editora, o professor Alfredo Bosi, a quem
sou extremamente grato. Ele não me conhecia, pois eu não era universitário, mas
recomendou a publicação, que ocorreu em 1978. Depois vieram mais seis edições,
às quais fui acrescentando dados, novas entrevistas, e a obra assumiu a forma
definitiva. Terminado o livro, fui trabalhar na Editora Abril, e lá fiquei
durante oito anos, graças ao Pedro Paulo Poppovic, que era o chefão e grande
sujeito.
Combate nas trevas
Depois, nos anos 80, me ocorreu a ideia de escrever sobre o
que foi o período militar. Era necessário contar o que houve para fazer a
autocrítica da esquerda. Estávamos entrando no período da constituinte de 1986,
que culminou com a Constituição de 1988. Tinha que contar o que foi a violência
pavorosa da ditadura, com o DOI-Codi, Operação Bandeirante, tortura,
assassinatos. Também por parte da esquerda, dos assaltos, dos justiçamentos.
Nessa época, eu já tinha o dinheiro, que obtive com amigos, para me dedicar à
tarefa integralmente. A primeira edição foi ampliada, pois consegui outras
entrevistas que antes, por receio, não eram dadas.
Balanço e projetos de vida
Minha vida poderia ser diferente? Poderia. Muitas coisas que
acontecem levam a tal ou qual caminho na vida, mas seria difícil que fosse
diferente. Primeiramente, eu venho de uma família muito pobre, o que me
empurrava à esquerda, com ódio ao capitalismo. Tornei-me materialista, antes de
conhecer o marxismo, através do Darwin. Minhas convicções socialistas
anticapitalistas se formaram solidamente nesse período e duram até hoje. É
claro que tantas coisas aconteceram, veio o XX Congresso da União Soviética, as
revelações do Kruschev, a dissolução da União Soviética, depois voltei em 1991 a São Petersburgo,
Hungria e Polônia, onde pude conversar com muitos adeptos dos partidos
comunistas daquela época. Eu vi pela televisão, em Varsóvia, o último discurso
do Gorbatchev, que já não governava nada, quando baixaram a bandeira de União
Soviética e hastearam a da Rússia. E a Rússia se tornou um país entrosado no
capitalismo, à sua moda, com grande presença do Estado, sem dúvida, mas
capitalista.
Tenho 84 anos completos e boa saúde. Meu pai viveu 90 anos e
minha mãe, 85, ou seja, ainda não cheguei à idade deles e tenho mais recursos
médicos. Se tiver tempo, inspiração e força, vou escrever um livro sobre Fidel
Castro, comparando-o a Stalin, dois governantes inspirados pelo marxismo.
Admiro o heroísmo do Fidel, de ter feito de Cuba um baluarte do projeto de
socialismo, apesar de ser um país pobre e vizinho dos Estados Unidos. Mas
preferiria que em Cuba houvesse uma democracia socialista. Como seria, não sei.
É um ideal. Algum dia será realidade.
 
Entrevista para o programa Roda Viva em 16/1/2006
Jacob Gorender,
 82 anos, é historiador e é história. Filho de um imigrante judeu 
ucraniano e socialista, nasceu num bairro pobre de Salvador, onde 
cresceu e estudou até entrar na Faculdade de Direito e no PCB, o então 
Partido Comunista do Brasil [O PCB, fundado em 1922]. Como todos os 
jovens estudantes comunistas, defendia a entrada do Brasil na Segunda 
Guerra Mundial. Foi além do verbo e alistou-se, com outros companheiros.
 Na Itália, participou da tomada do Monte Castelo, a mais importante 
batalha enfrentada pelos pracinhas da FEB, a Força Expedicionária 
Brasileira. De volta à Bahia, Jacob Gorender
 retomou o curso de direito que deixou logo adiante para militar 
profissionalmente no PCB. Chegou a ser membro do Comitê Central do 
partido que rachou em 1967, quando Jacob Gorender
 e outros saíram para fundar o PCBR, o Partido Comunista Brasileiro 
Revolucionário [em 1962, dissidentes do PCB fundaram também o PC do B]. Como jornalista, escreveu e dirigiu as principais publicações comunistas: Classe Operária, Imprensa Popular e Voz Operária. Foi preso e torturado depois do golpe de 1964. Quase quarenta anos de participação e influência no movimento comunista, quase uma dezena de livros publicados. Jacob Gorender,
 intelectual reconhecido e historiador polêmico, que atuou como 
professor visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP 
[Universidade de São Paulo], abriu com sua obra novos capítulos na 
história do Brasil. De um lado, ampliando a análise do passado 
escravista do Brasil e, de outro, reavaliando a atuação da esquerda e da
 luta armada no período da ditadura militar. 
Paulo Markun: Para entrevistar o filósofo e professor Jacob Gorender,
 nós convidamos Beatriz Kushnir, historiadora e diretora do Arquivo 
Geral da cidade do Rio de Janeiro; Alfredo Bosi, vice-diretor do 
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, professor 
titular de literatura brasileira e membro da Academia Brasileira de 
Letras; o escritor Jorge Caldeira; Lúcia Hipólito, cientista política, 
jornalista e colunista da rádio CBN; Marco Antônio Villa, professor de 
história da Universidade Federal de São Carlos e Ricardo Maranhão, 
historiador e cientista político da Fundação Escola de Sociologia e 
Política de São Paulo. Participa também do programa Lincoln Secco, 
professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
 Ciências Humanas da USP. O programa também tem a presença do cartunista
 Paulo Caruso, registrando com seus desenhos os momentos mais 
importantes da entrevista. O programa é transmitido em rede nacional 
para todos os estados brasileiros e para Brasília, também. E por estar 
sendo gravado, não permite hoje a participação dos telespectadores com 
suas perguntas. Professor Gorender, boa noite. 
Jacob Gorender: Boa noite.
Paulo Markun: Eu queria começar do "começo". Que o senhor contasse onde o senhor nasceu e como foi o começo de sua vida.
Jacob Gorender:
 Bom, eu nasci na cidade de Salvador, sou soteropolitano. Por que meus 
pais foram para lá, sendo imigrantes ,e não para o Rio de Janeiro ou São
 Paulo, eles nunca me explicaram. Porque Salvador era uma cidade 
bastante atrasada naquela época. Mas, enfim, passei a minha infância em 
Salvador e também parte da minha juventude. E tenho um grande afeto por 
essa cidade, pelo seu povo...
Paulo Markun: [interrompendo] Mas o senhor se considera baiano, ou a marca da família de imigrantes pesa mais do que a "baianidade"?
Jacob Gorender:
 Eu creio que o que pesa mais é a "baianidade". Eu sou filho de 
imigrantes judeus, mas me considero completamente integrado no espírito 
brasileiro, na "brasileiridade" e, de certo modo também, na 
"baianidade", embora viva há muito mais tempo aqui no sul.
Lúcia Hipólito: Professor, havia uma comunidade judaica importante na Bahia nessa época?
Jacob Gorender:
 Não era muito importante. Em todo caso, havia ali uma comunidade, 
digamos, com cerca de mil pessoas de várias categorias. Havia uma 
sociedade israelita, uma sinagoga onde se cumpriam os rituais religiosos
 e uma escola primária. Foi onde eu me alfabetizei. Nessa escola 
ensinavam as disciplinas obrigatórias das escolas primárias: português, 
história, geografia etc, mas também a língua iídiche [o jüdisch-deutsch,
 ou judeu-alemão, surgiu entre os séculos IX e X, quando judeus da 
Europa central adotaram o alto-alemão, ao qual misturaram palavras 
vulgares dos dialetos locais e vocábulos hebraicos eruditos e populares.
 É uma das três principais línguas literárias da história do judaísmo, 
junto com o hebraico e o aramaico]. Eram os anos de 1930, e a língua 
iídiche era ainda muito viva. Havia uma grande comunidade judaica na 
Polônia e na Rússia que era muito produtiva do ponto de vista literário,
 enviava revistas e inclusive havia diários em língua iídiche...
Lúcia Hipólito: [interrompendo] O senhor aprendeu iídiche?
Jacob Gorender: Com o [...],
 que chegavam em minha casa e eu aprendi a ler essa língua. Hoje tudo 
isso está extinto. Sobretudo depois da catástrofe que atingiu a 
comunidade judaica da Polônia.
Beatriz Kushnir: Professor Gorender,
 o senhor foi como soldado voluntário para Segunda Guerra Mundial. Eu 
queria que o senhor contasse um pouco dessa experiência e o mote que o 
levou a se alistar na FEB [Força Expedicionária Brasileira].
Jacob Gorender:
 Isso está vinculado àquela época, às circunstâncias daquela época. Nos 
anos de 1930 vivíamos na expectativa da guerra que estava por vir e que 
começou em 1939. Vivíamos isso e, como se sabe, em 1942 o Brasil rompeu 
relações com o chamado Eixo: a Alemanha nazista, a Itália fascista e o 
Japão. Em conseqüência disso tivemos o torpedeamento de navios 
brasileiros, 1500 mil brasileiros em navios civis, que não tinham nada 
de militar, morreram afogados no oceano. Isso provocou grandes 
manifestações nas principais capitais brasileiras e em Salvador, porque 
muitos dos atingidos pelos torpedeamentos, os seus cadáveres vinham dar 
nas praias ali. Então, houve manifestações muito grandes. E eu me 
manifestei nessas manifestações, nessas expressões, nesses movimentos 
populares. Então aconteceu o seguinte de interessante. Em 1942, diante 
dos torpedeamentos, o governo de Getúlio Vargas
 declarou guerra, em agosto de 1942, ao eixo nazi-fascista. E ,depois 
disso, abriu-se o voluntariado em várias partes do Brasil, para quem 
quisesse. Passou-se a tratar praticamente da constituição de uma unidade
 do exército brasileiro que iria combater na Europa. E o general que 
comandava a região militar na Bahia, general Demerval Peixoto [assumiu o
 governo de Pernambuco, como interventor, em 1946], lançou um desafio 
pela imprensa. Ele disse: “Os estudantes que andaram aí pela rua 
clamando pela guerra agora têm a oportunidade de se apresentar como 
voluntários”. Eu considerei esse desafio como uma questão pessoal. Eu, o
 Mário Alves [(1923-1970), militante comunista desde a juventude, 
quando, aos 15 anos, na Bahia, em plena ditadura do Estado Novo, ingressou no PCB. Destacou-se como dirigente do partido e estudioso do marxismo-leninismo,
 e apoiou a participação do Brasil na guerra ao lado das forças 
aliadas], o Ariston Andrade [Zilteman, na época, estudante de direito] e
 mais alguns estudantes.
Paulo Markun: Todos comunistas?
Jacob Gorender:
 Éramos todos nós comunistas. Mas isso não foi ordem do Partido 
Comunista não. Seria um equívoco, porque o Partido Comunista estava 
esfacelado nessa época, estava envolvido, tinha sofrido grandes baques 
da repressão, dirigentes presos, de maneira que não havia uma direção 
realmente eficiente e nacional.
Paulo Markun: Sim, mas a ideologia do senhor é que o motivou a aceitar o desafio do general.
Jacob Gorender: É. Eu já, naquela época, tinha convicções comunistas. Tinha alguma idéia do marxismo, embora muito superficial. Ainda era muito jovem e a literatura marxista só circulava clandestinamente, era a época do Estado Novo.
 Mas, enfim, aberto o voluntariado eu me apresentei. E me recordo que, 
no posto de apresentação, eu fiquei aguardando lá as formalidades, então
 um sargento apareceu lá e disse: “O que é que o senhor tem com o 
general? O general ficou possesso quando viu o seu nome”. Quer dizer, o 
general não esperava que eu me apresentasse como voluntário. E eu me 
apresentei.
Beatriz Kushnir: Mas 
ser filho de imigrantes judeus não lhe causava nenhuma questão? O senhor
 o Salomão Malina [(1922-2002), último secretário geral do Partido 
Comunista Brasileiro, onde ingressou no início dos anos 1940, passou 
vários anos preso e 35 anos na clandestinidade. Na Segunda Guerra 
Mundial combateu como oficial e foi condecorado com a Cruz de Combate de
 Primeira Classe, a maior condecoração do Exército brasileiro], o Carlos
 Scliar [(1920-2001), famoso artista plástico, especialista em 
natureza-morta, em 1944 foi convocado pela Força Expedicionária 
Brasileira para lutar na Itália, onde permaneceu 11 meses e produziu 
cerca de 700 desenhos] são judeus que são voluntários na Segunda Guerra.
 Como era esse dilema: você estar num front quando, para a Alemanha nazista, você era um alvo privilegiado?
Jacob Gorender: Como era esse problema?
Beatriz Kushnir: Isso se apresentava como um problema para vocês ou essa questão judaica não se apresentava?
Jacob Gorender: Não, não era um problema. Nunca me disseram que eu tinha tais ou quais qualidades ou defeitos por ser judeu.
[...]: E se eu apresentar um outro dilema?
Jacob Gorender:
 Eu nunca tive isso, não passei por esse problema em qualquer parte da 
minha vida e em qualquer setor profissional por ser judeu. Eu considero 
que, na prática, não existe anti-semitismo no Brasil. Há anti-semitas, 
isso há, sobretudo quando houve o integralismo, o Gustavo Barroso 
[(1888-1959), foi advogado, jornalista, escritor, militante fascista e 
anti-semita extremado. Foi comandante geral das milícias da  Ação 
Integralista Brasileira (AIB) e membro de seu Conselho Superior. Apoiou o
 golpe do Estado Novo
 (1937)]. Mas uma militância anti-semita não existe. Pelo menos, nunca 
me atingiu. E, no caso da guerra, sem dúvida alguma, eu tinha plena 
consciência que se fosse feito prisioneiro, eu estava liquidado. Meu 
nome é inconfundível. Todos nós tínhamos uma chapa com o nome e número 
de inscrição para a eventualidade de ferimento ou de morte, aquilo 
orientava. Então eu não tinha dúvidas a esse respeito. Mas considerei 
que devia me apresentar voluntário. O Mário Alves não foi aceito porque 
não tinha condições físicas, ele era muito fraquinho. Mas não sei por 
quê, me consideravam com condições físicas [risos] de encarar essa 
tarefa.
Ricardo Maranhão: Jacob,
 o Leôncio Basbaum [(1902-1969), médico e historiador pernambucano, 
filho de imigrantes judeus ucranianos, foi militante do Partido 
Comunista Brasileiro. Sua obra em quatro volumes, intitulada História sincera da República
 (1957), foi uma das primeiras iniciativas de se pensar a história do 
Brasil sob uma perspectiva marxista], aquele historiador, diz no livro 
dele que o partido teria dado a ordem. Não, ordem não, uma orientação, 
uma sugestão para os militantes todos se alistarem. Isso é um pouco 
contraditório com o que você está dizendo.
Jacob Gorender: Todos se apresentarem?
Ricardo Maranhão: 
Para todo pessoal do Partido Comunista se alistar na guerra, na FEB. É 
uma informação que ele dá, eu não sei até que ponto isso chegou a ser 
uma diretriz do Partido mesmo ou se foi apenas ele que teve essa... Uma 
pequena célula lá, um pessoal que teve... Porque, na verdade, grande 
parte das pessoas que se alistaram ou eram democratas, socialistas, 
gente que de alguma forma tinha alguma simpatia um pouco mais à 
esquerda. Porque, inclusive, como você sabe muito bem, o staff getulista
 de primeiro escalão estava cheio de nazistas; eles mesmos não queriam a
 guerra. O [Eurico Gaspar] Dutra [ministro da Guerra no governo 
provisório de Getúlio Vargas
 (1936)], o Góis [Monteiro, comandante militar da Revolução de 30. Foi 
ministro da Guerra (1934-1935), chefe do estado maior do Exército 
Brasileiro (1937-1943), e das Forças Armadas (1951 a 1952). Ele e Dutra 
foram peças-chave na implantação do Estado Novo]
 resistiram muito até concordar que o Brasil fosse à guerra. Então, na 
verdade, a maior parte do pessoal que queria assim, voluntário, não por 
necessidade, mas por voluntarismo mesmo, tenho a impressão que tinha uma
 porção de gente que era democrata, socialista, comunista. Então, eu 
queria só que você comentasse isso.
Jacob Gorender:
 Não, eu devo dizer que não houve nenhuma ordem que eu soubesse do 
Partido Comunista. Porque naquele momento, 1942 para 1943, o Partido 
Comunista, como eu disse, estava esfacelado, tinha sofrido uma repressão
 muito grande nos anos de 1940 pela polícia de Filinto Müller 
[(1900-1973), político e militar mato-grossense, foi o chefe de polícia 
do Distrito Federal (na época, Rio de Janeiro) entre 1937 e 1942, 
período em que comandou violenta repressão aos opositores do Estado Novo, especialmente aos comunistas, marcada por torturas e assassinatos], de Getúlio Vargas,
 e não havia uma direção nacional. Tinha se constituído no Rio de 
Janeiro a chamada CNOP, Comissão Nacional de Organização Provisória. Mas
 ela não era aceita por todos os militantes no Brasil, havia 
discordâncias muito grandes quanto à orientação. Então, o que acontece é
 que nós mesmos, um pequeno grupo que eu já citei, Mário Alves, Ariston 
Andrade e mais alguns, que éramos já comunistas, resolvemos nos alistar,
 consideramos que era o nosso dever. E não havia nisso ordem do Rio de 
Janeiro. Mais tarde viemos a conhecer os militantes do Rio de Janeiro. O
 Maurício Grabois [(1912-1973), um dos mais destacados 
marxistas-leninistas brasileiros. Tornou-se militante do Partido 
Comunista do Brasil em 1932. Eleito deputado em 1945, liderou a bancada 
comunista no Congresso Nacional até janeiro de 1948, quando os mandatos 
comunistas foram caçados. Dirigiu o órgão partidário A classe operária e atuou na preparação da luta e  resistência armada do Araguaia, onde comandou as Forças Guerrilheiras e foi assassinado pela repressão] editava uma revista chamada Continental que circulava no Brasil e que, dentro das condições do Estado Novo, era pró-americana, pró-aliados, antifascista, sem avançar muito porque não era possível.
Lúcia Hipólito: O senhor era muito menino. A sua família não se preocupou de o senhor ir pra guerra, essa coisa toda, ou não?
Jacob Gorender:
 Muito, se preocupou muito, mas muitíssimo mesmo. Até hoje, eu já 
avançado na idade, não deixo de sentir um mal-estar que causei aos meus 
pais com a minha vida. [risos] Não só por eu ter ido à guerra, eu 
imagino o quanto eles se preocuparam. E depois de ter abandonado o curso
 superior de direito e me tornado um militante profissional do Partido 
Comunista. Mas enfim, na vida, para realizar alguma coisa de útil, do 
ponto de vista político e social, a gente sofre e faz outros sofrerem. E
 no caso, me atinge muito porque se tratava de meus pais.
Alfredo Bosi: Gorender, essa frase última é de uma das cartas que Gramsci escreve para sua mãe...
Jacob Gorender: Quem?
Alfredo Bosi: Gramsci.
Jacob Gorender: Ah, o Gramsci.
Alfredo Bosi: Quando 
escreve cartas para a sua mãe, ele diz: “Eu sei que eu estou causando 
tristezas”. Mas quando a gente quer praticar o dever, muitas vezes vai 
desagradar às mães e aos pais. Mas o que eu gostaria de saber é o 
seguinte. Os seus contatos, o senhor está falando muito do Partido 
Comunista nessa situação ainda muito precária em que ele vivia, mas como
 é que foi a sua iniciação à esquerda, vivendo num lar, pelo que eu 
saiba, não era um lar de militantes. Ou houve qualquer relação da sua 
formação familiar com a primeira inclinação para a esquerda? Lembra-se 
disso?
Jacob Gorender:
 Sim. Meu pai, particularmente, era um homem com idéias, digamos assim, 
esquerdistas. Não tinha formação cultural elevada, não freqüentou 
academias, era um homem muito simples. Mas gostava de ler e, de certo 
modo, a sua posição influiu muito nas minhas atitudes. Mas a minha 
trajetória é curiosa. Eu me tornei materialista não com [Karl] Marx 
[(1818-1883), economista, teórico do socialismo e revolucionário alemão.
 Autor, entre outras obras, de O capital, sua obra prima e 
referência até a atualidade. O conjunto de idéias filosóficas, 
econômicas, políticas e sociais, elaboradas por Karl Marx e Friedrich 
Engels deu origem ao marxismo],
 mas com [Charles] Darwin [(1809-1882), biólogo e naturalista britânico 
que se notabilizou por uma idéia simples e revolucionária: a evolução 
das espécies por seleção natural]. Aos 13 ou 14 anos, eu encontrei num 
sebo da Praça da Sé, em Salvador, no Centro Histórico, A origem das espécies
 [obra publicada em 1859, em que Darwin explica e fundamenta sua 
teoria]. Eu não me lembro em que língua, mas deu para ler, eu já 
conhecia a importância desse livro. E, a partir desse livro, eu deixei 
de freqüentar a sinagoga e me tornei materialista. Só vim a conhecer 
livros marxistas cinco ou seis anos depois. E isso, é claro, acentuou 
ainda mais essa minha posição que se mantém até hoje. Apesar de tanta 
coisa que tem ocorrido.
Paulo Markun: E como é que o senhor entra no Partido Comunista?
Jacob Gorender:
 Eu entrei no Partido Comunista em 1942. Eu fui recrutado, como se dizia
 [rindo], pelo meu grande amigo, já falecido, o Mário Alves. Um grande 
herói do povo brasileiro, que morreu torturado num quartel da polícia do
 exército no Rio de Janeiro. Mário Alves já tinha contatos com 
comunistas, inclusive ele vinha aos congressos da UNE [União Nacional 
dos Estudantes] que, naquela época, tinha muita influência e que hoje 
não tem. No Rio de Janeiro ele conheceu comunistas, alguns que tinham 
vindo da Bahia e outros que residiam lá: o Maurício Grabois, Pedro Pomar
 [(1913-1976), médico e político militante comunista, foi assassinado 
durante um ataque a tiros no bairro da Lapa, onde o Comitê Central do 
PCdoB estava reunido, em dezembro de 1976, no episódio conhecido como 
Chacina da Lapa], João Amazonas [(1912-2002), militante comunista desde 
os 23 anos, um dos fundadores do PC do B,  deputado, cassado, em janeiro de 1948, teve que atuar na clandestinidade. Dirigiu o PC do B,
 com Grabois, nos difíceis anos do governo Dutra, no qual dezenas de 
comunistas foram assassinados], Diógenes Arruda [(1914-1979), militante 
comunista desde os 20 anos, foi membro da direção central do Partido 
Comunista e deputado federal por São Paulo. Foi várias vezes preso, 
torturado e viveu um tempo exilado no Chile]. E ele tinha então 
informações sobre os comunistas. E era comunista já. Em 1942 ele me 
convidou pra ser membro do Partido Comunista e eu aceitei. E formamos 
uma célula em Salvador
Lincoln Secco: Professor, na Itália o senhor conheceu certamente a figura do Palmiro Togliatti, eu me lembro que o senhor já disse também que, pela primeira vez, travou contato com algumas idéias ainda incipientes do Gramsci que depois teriam grande influência no Brasil e até no Partido Comunista. Como se deu isso? O senhor chegou a ver o Palmiro Togliatti, discursos dele? Teve contatos com o Partido Comunista Italiano?
Jacob Gorender:
 Sim. Isso já depois da guerra, depois que a guerra terminou. A nossa 
unidade da FEB... Terminou a guerra na cidade de Piacenza que fica a 
cinqüenta quilômetros de Milão. E, ali, eu pude assistir a um pequeno 
discurso de Palmiro Togliatti
 que já era reconhecidamente o líder comunista da Itália. O Partido 
Comunista circulava abertamente, não havia mais a repressão, [Benito] 
Mussolini [(1883-1945), ditador italiano que governou a Itália no 
período de 1922 a 1943, fundou o Partido Fascista] já estava morto e 
tal. Então eu conheci, pude ver o Palmiro Togliatti,
 na sede do Partido Comunista de Piacenza, fazendo um pequeno discurso. 
Ele estava a caminho de Milão, então ele se deteve ali por um pequeno 
momento para dizer algumas palavras aos comunistas de Piacenza. Eu posso
 dizer que, nessa minha estada na Itália, conheci duas grandes 
personalidades da vida italiana daquela época. Uma foi justamente o 
comunista Palmiro Togliatti e a outra foi o papa Pio XII [(1876-1958), nomeado Papa em 1939. Coerente com a orientação da Igreja, que já condenava o marxismo,
 em 1947, apoiou o partido da Democracia Cristã que venceu as eleições 
italianas, e proibiu o clero católico de votar no Partito Comunista. Sua
 ação durante a Segunda Guerra Mundial tem sido alvo de discussão e 
polêmica] [risos] Eu estive numa audiência que ele concedia em Roma – eu
 estava em Roma naquele momento – e num salão suntuoso do Vaticano junto
 com centenas de soldados, a maioria deles poloneses, mas também 
americanos etc. E, ali, o papa Pio XII, em certo momento, apareceu na 
parte do recinto a ele reservado e, pelo que eu me lembro, falou em 
quatro ou cinco línguas diferentes, inclusive em português. Havia muitos
 soldados brasileiros e ele sabia disso, e ele fez essa saudação ao 
Brasil, país católico, cristão. O mais curioso é que nós estávamos 
separados do recinto dele por uma espécie de gradeado e ele, quando 
terminou de falar, se aproximou do gradeado e todo mundo, todos os 
outros soldados, apresentavam a ele crucifixos e rosários para que ele 
abençoasse. E eu estava na primeira fila, consegui ficar. Então de trás 
vinham os rosários e os crucifixos, e eu apresentei ao Papa quando ele 
ficou perto de mim. [risos]
Paulo Markun: Quer dizer, o senhor foi a Roma, viu o Papa e foi abençoado! [risos]
Jacob Gorender: É, fui também. Pio XII, o Papa Pio XII.
[intervalo]
[Comentarista]: Jacob Gorender é autor de um dos mais completos livros sobre a luta armada no período do regime militar. Combate nas trevas
 trata das motivações teóricas das esquerdas e de suas razões para 
pegarem em armas e enfrentar a ditadura militar no Brasil pós-golpe de 1964.
 Ilustrado com várias fotografias, o livro fala de personagens e dos 
enfrentamentos desse período. Analisa partidos e organizações em que a 
ação esquerdista se apoiou. Mostra a mudança de concepções que marcaram a
 busca do socialismo e como, em momentos diferentes, se justificava ou 
não a luta armada.
Paulo Markun: Jacob Gorender, eu queria dar um salto no tempo e pular para 1964: o golpe militar, quando começa o livro do senhor Combate nas trevas,
 que cobre esse período da resistência armada que alguns chamam de 
guerrilha ou terrorismo. Cada um dá um nome para esse processo que o 
senhor analisou em profundidade. E eu queria que o senhor contasse, que 
já está no livro, o que é que o senhor estava fazendo no momento do golpe de 1964 e como é que o senhor imaginou que ia ser a reação da sociedade, para a gente começar essa conversa.
Jacob Gorender: Bom, antes do golpe, as nossas esperanças de comunistas eram grandes. O presidente da República, João Goulart, o Jango, tinha encontros freqüentes com Luís Carlos Prestes,
 o secretário geral do Partido Comunista Brasileiro. E tudo indicava que
 as chamadas reformas de base iriam pra frente. O comício que ele fez no
 dia 13 de março na Central do Brasil, diante de trezentas mil pessoas, 
foi de causar entusiasmo e de aumentar a confiança na realização desse 
programa das reformas de base: reforma agrária, limitação das remessas 
de lucro, industrialização do Brasil e assim por diante. Então tínhamos 
essa confiança. E pouco antes do 31 de março, fui para Goiânia porque 
naquela fase eu estava fazendo uma série de conferências: em São Paulo, 
no Rio, em Porto Alegre, sobre o marxismo.
 Era uma série, eram nove conferências, três por semana, eu ficava um 
mês quase em cada uma dessas cidades. Então eu fui para Goiânia e lá eu 
comecei a fazer essa série de conferências. E, a certa altura, isso já 
era justamente 31 de março, as notícias que vinham do Rio eram já 
inquietantes. Mas no dia 31 de março eu ouvi pelo rádio o discurso de Jango,
 que ele fez no Automóvel Clube. E esse discurso me inquietou muito. 
Embora eu não estivesse no Rio, eu tive um pressentimento de que algo 
estava para acontecer de muito grave. E, de fato, foi o que ocorreu. 
Pouco depois, veio a notícia de que o Jango tinha sido deposto. E eu caí na clandestinidade, a partir daí, já em Goiânia.
Paulo Markun: Agora, o
 senhor achava que era possível - isso está no fim do seu livro, pelo 
menos foi o que eu entendi - o senhor achava que era possível resistir 
pelas armas naquele momento?
Jacob Gorender:
 Não, não tinha essa noção. Antes sim, antes do golpe. Uma vez dado o 
golpe, eu não tinha muita confiança em que isso reverteria rapidamente.
Paulo Markun: Mas, antes do golpe, o senhor imaginava que era possível chegar ao socialismo, ao comunismo pelas armas?
Jacob Gorender:
 Não propriamente chegar ao comunismo e ao socialismo, não era esse o 
problema. Era a realização das reformas de base. Era essa a nossa 
perspectiva. Isso me parecia viável. E avançar. Porque até então 
estávamos avançando, tínhamos conseguido ir para frente. O suicídio de Getúlio Vargas,
 em 1954, permitiu que durante um decênio o Brasil vivesse um dos 
melhores momentos da sua história. Esse decênio foi o decênio do Cinema 
Novo, da bossa nova, de realizações artísticas de primeira ordem, do Grande sertão: veredas,
 do [João] Guimarães Rosa [considerado, por consenso, o maior escritor 
brasileiro do século XX, autor de romances, contos, poesias e novelas, 
em livros em que utiliza com maestria a linguagem e os tipos regionais],
 de florescimento literário, artístico de toda ordem. E isso nos 
entusiasmava. Depois havia ainda a circunstância internacional. A 
revolução tinha sido vitoriosa na China, o país mais populoso do mundo. 
Mao Tse Tung [(1893-1976), fundador da República Popular da China, em 
1949, e criador do marxismo-leninismo-maoismo
 com idéias sobre revolução e guerrilha que influenciaram marxistas no 
mundo inteiro, inclusive no Brasil, em particular o PC do B
 que, na década de 1970, desenvolveu ações inspiradas nessas teorias] 
dirigia um país que tinha um grande poderio. E tinha sido vitoriosa em 
Cuba, aqui na América Latina. Cuba, que naquele momento, contava com o 
apoio da União Soviética. Então, esses fatores nós julgávamos muito 
positivos, de modo que o golpe, quando veio, nos deixou desorientados 
com relação ao que poderia acontecer no Brasil.
Marco Antônio Villa: Só uma questão, professor. O golpe de 1964
 vai fazer com que o senhor, e grande parte da esquerda brasileira, 
passe a repensar o seu papel político. O próprio Partido Comunista vai 
se fracionar em vários grupos. E não só. Há uma grande divisão no 
interior da esquerda. Quer dizer, como o senhor avalia, e a trajetória 
do senhor, o golpe de 1964 e depois o senhor partindo para a fundação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário?
Jacob Gorender:
 Eu creio que uma das debilidades mais graves da esquerda nesse período,
 que se inicia com o golpe que durou vinte anos, uma ditadura militar, 
foi essa fragmentação da esquerda. Eu mesmo no Combate nas trevas cito,
 no glossário, uma série de indicações de organizações que se criaram. 
Uma parte delas veio do próprio Partido Comunista. Já antes do golpe, 
havia no comitê central um grupo que se opunha à orientação seguidista 
da direção de Prestes e de Giocondo Dias [conhecido como Cabo Dias, 
sucedeu Luís Carlos Prestes como secretário geral do PCB], que estavam indo atrás do Jango sem qualquer espírito crítico. Éramos o Marighella,
 o Mário Alves, o Apolônio de Carvalho [militante do Partido Comunista 
Brasileiro e da Aliança Nacional Libertadora (ANL), participou na Guerra
 Civil Espanhola e na Resistência Francesa contra o fascismo. Foi um dos
 fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT)], eu próprio, o João 
Batista Drummond e mais alguns, [Joaquim] Câmara Ferreira [ambos 
militantes do Partido Comunista, foram presos e torturados no DOI-Codi,
 e morreram em consequência da violência ali sofrida]. Fazíamos 
oposição. E, depois do golpe, nós procuramos nos entender. Acontece que 
chegamos a fazer uma reunião em Niterói de vários agrupamentos, de 
várias tendências, para unificar a esquerda que saía do PC. Mas isso já 
não foi possível. Marighella
 tomou o seu rumo próprio, criou a ALN [Aliança Libertadora Nacional] e 
iniciou o caminho dos assaltos, depois esteve em Cuba e assim por 
diante. Câmara Ferreira o acompanhou. Outros fundaram outras 
organizações. E havia ainda o POC, Partido Operário Comunista que foi 
matriz também de várias organizações e havia os militares que tinham 
sido excluídos das Forças Armadas, sobretudo sargentos. Daí surge a VPR 
[Vanguarda Popular Revolucionária, formada em 1966, a partir da união 
dos dissidentes da organização Política Operária (Polop) e militares 
remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Com o uso 
de táticas de guerrilha urbana e de terrorismo, tinha como objetivo a 
derrubada da ditadura militar e a instalação de uma ditadura operária, 
segundo o modelo marxista-leninista], depois a VAR-Palmares [a VPR 
fundiu-se com o Comando de Libertação Nacional (Colina), organização de 
combate à ditadura formada por militares esquerdistas, dando origem à 
VAR-Palmares, em homenagem ao Quilombo dos Palmares]. Foi uma tal 
fragmentação que não pode ser superada. E foi nociva à esquerda.
Jorge Caldeira: Nesse
 partido pequeno, no PCBR, o senhor logo foi preso. Foi a primeira vez 
que o senhor foi preso e torturado, não é? Como é que foi essa 
experiência? [Como foi] Sair dela e o julgamento?
Jacob Gorender:
 O PCBR foi fundado por Mário Alves, era o dirigente principal, o 
Apolônio de Carvalho, eu próprio e mais alguns outros companheiros. Por 
quê? Nós não queríamos acompanhar o Marighella
 porque ele era contra a existência de partidos. Ele dizia que partido é
 “reunismo”, “blá blá blá” e, na opinião dele, a direção da luta 
guerrilheira, da luta anti-ditatorial surgiria na própria ação. A ação 
iria indicar o caminho e fazer surgir uma direção. Não adiantava 
pré-figurar isso. Mas nós achávamos que devia haver um partido. E por 
isso nos reunimos, criamos e adotamos o mesmo nome, PCB, só 
acrescentando um erre: PCBR, Partido Comunista Brasileiro 
Revolucionário. E a nossa idéia era que fosse um partido que tivesse 
contato com as massas, que pudesse realizar as suas ações com apoio 
popular, o que não aconteceu.
Jorge Caldeira: Em vez das massas, o senhor foi para a cadeia muito rapidamente?
Jacob Gorender: Eu fui preso em janeiro de 1970 pelo Esquadrão da Morte
 do delegado Sérgio Paranhos Fleury e fui levado ao Dops, Departamento 
de Ordem Política e Social, que hoje não existe mais no Brasil, mas 
naquela época existia. O Dops de São Paulo era o único no Brasil que 
tinha uma atividade efetiva. Porque, no resto do país eram os DOI–Codi, 
os departamentos propriamente militares que atuavam. Aqui em São Paulo o
 Dops tinha força porque o Fleury era ligado ao Cenimar, ao Centro de 
Informações da Marinha. Com isso, ele tinha grande força, tinha trazido 
para dentro da polícia todos os assassinos e malfeitores que o 
acompanhavam Ele próprio era ligado a traficantes de drogas que 
combatiam os competidores. Era um delinqüente dos piores. Então eu caí 
nas mãos deles e, é claro, fui torturado.
Jorge Caldeira: Como é que o senhor se defendeu das acusações no tribunal militar?
Jacob Gorender: Das acusações?
Jorge Caldeira: É. Diz que o senhor mesmo fez a sua defesa, é isso?
Paulo Markun: [interrompendo] Se acusando.
Jacob Gorender:
 Eu não posso me recordar exatamente do teor da minha defesa. Eu tive o 
meu advogado aqui em São Paulo, foi o Raimundo Pascoal Barbosa, já 
falecido; e no Rio de Janeiro, no Superior Tribunal Militar, o meu 
advogado era Jorge Tavares, não sei se ainda vive. Mas eu o aprecio 
muito pela maneira como ele conduziu a minha defesa. Mas eu sempre me 
apresentei, quando tive que fazer depoimentos na auditoria, como um 
patriota, como alguém que estava lutando pelo progresso do Brasil.
Paulo Markun: Mas o senhor assumiu a responsabilidade de ser o fundador do PCBR? Essa culpa?
Jacob Gorender: Assumi, isso eu assumi.
Paulo Markun: E isso 
criou um problema para o tribunal porque não sabia como fazer com um 
sujeito que assumia a culpa de um crime que era menor do que outros 
crimes relacionados. Mas eu queria voltar à questão da tortura. Porque 
no seu livro, o senhor resume numa frase esse episódio. O senhor conta 
que um dos policiais disse que o senhor iria sofrer como Jesus Cristo. E
 aí o senhor diz assim: “Sofri menos, não fui crucificado”. Eu queria 
saber o que é que o senhor passou.
Jacob Gorender: Contar os detalhes da tortura?
Paulo Markun: Não, 
não precisa ser detalhes, mas eu acho, até por experiência, que é 
importante que as novas gerações tenham uma vaga idéia do que é isso.
Jacob Gorender:
 Bom, tortura continua a existir hoje. Relatos de tortura não são, 
infelizmente, coisas do passado. É claro que militantes políticos não 
são mais torturados. Mas os acusados de crimes comuns, acusados 
verdadeiros ou falsos, continuam a sofrer. Nesse meu último livro, Direitos Humanos,
 tem um capítulo que é intitulado “Violência policial, um câncer 
social”. É realmente um câncer social no Brasil. O que a polícia 
militar, sobretudo, mas também a civil, fazem em nosso país é algo que 
não acontece em países civilizados. Agora mesmo, a matança de trinta 
pessoas no Rio de Janeiro a esmo [no dia 30 de março de 2005, trinta 
pessoas foram assassinadas a tiros em 11 locais das cidades de Nova 
Iguaçu e Queimados, municípios da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.
 As mortes, efetuadas com a participação de policiais, vitimaram jovens 
pobres, em situação de risco social, moradores de rua ou da periferia, 
muitos deles negros ou mulatos], só como represália aos comandos da 
Polícia Militar é algo inimaginável. É algo horroroso!
Lincoln Secco: 
Professor, o senhor considera que essa eliminação física de comunistas 
durante a ditadura ou a tortura era uma política consciente de Estado ou
 era uma prática de setores do Estado que saíam do controle do governo 
central?
Jacob Gorender:
 Não. Eu creio que era uma política da qual as autoridades superiores 
tinham plena consciência, tinham conhecimento. Quando começaram os 
assaltos a bancos e a carros que transportavam valores aqui em São 
Paulo, o primeiro ocorreu em Santo Amaro, perto daquele monumento dos 
bandeirantes, de péssimo gosto.
Lincoln Secco: O Borba Gato.
Jacob Gorender:
 É. Não havia aqui em São Paulo, no Brasil mesmo, uma organização 
adequada para enfrentar esse novo problema. As polícias, os Dops e a 
polícia civil não estavam preparados para enfrentar esse problema. Era 
uma coisa nova para eles. Então o Estado, o governo precisou improvisar.
 E aí se criou a Operação Bandeirante aqui em são Paulo. Como não havia 
no orçamento uma previsão de verbas para essa entidade nova, que se 
instalou numa delegacia de polícia na rua Tutóia, como é sabido, então 
essa verba foi requisitada de empresários. Isso é sabido. O Elio Gaspari
 [jornalista e escritor italiano naturalizado brasileiro. Publicou, em 
quatro volumes, uma extensa pesquisa sobre a ditadura] confirma isso. 
Esses empresários, é claro, não deixaram os nomes. Eles são 
suficientemente perspicazes para saber que nessas coisas não se deve 
deixar rastro. Mas sem esse dinheiro como é que se instalaria essa 
entidade, Operação Bandeirante, com tiras, oficiais, torturadores, 
carcereiros, administradores, analistas de interrogatório e tudo mais? 
Era preciso de dinheiro. E esse dinheiro veio dos empresários. Aí houve 
um episódio interessante. Um dos empresários que deram dinheiro era o 
chamado Henning [Albert] Boilesen, de origem dinamarquesa, que era o 
diretor da Ultragás. E esse Henning Boilesen, por temperamento, devia 
ser um sádico. Ele ia à Operação Bandeirante para ver a tortura, para 
ver os presos. Passeava por ali, ia com freqüência. Isso acabou chegando
 ao conhecimento das organizações clandestinas, dos dirigentes. O nome 
dele se tornou conhecido, foi identificado; passaram a pesquisar o 
trajeto que ele costumava fazer e acabaram cometendo um atentado. Ele 
foi morto num atentado numa rua de São Paulo. [Henning Boilesen foi 
morto em 1971 e sua história rendeu um documentário, chamado Cidadão Boilesen, lançado em 2009, dirigido por Chaim Litewski e que tem um depoimento de Jacob Gorender]. 
Ricardo Maranhão: Jacob,
 olhando pelo outro lado, não do lado da repressão, mas pelo lado da 
resistência, o caso é o seguinte. Essa resistência armada... Voltando à 
questão da... Bom, o Marighella,
 diz você, não queria saber muito de fazer política, criar partido e 
tal. Agora, é a tal história, naquele momento que tivemos oportunidade 
de vivenciar, muitos dos militantes desconfiavam um pouco de que não 
adiantava quase fazer política com a classe operária. Isso acaba levando
 a uma questão mais geral, inclusive, das discussões sobre o processo 
revolucionário na contemporaneidade que, inclusive no seu livro Marxismo e utopia,
 existe essa questão. Mas o operariado dificilmente é revolucionário, o 
operariado freqüentemente é reformista, sindicalista. Claro, embora nós 
tenhamos exemplos históricos importantes de movimentos proletários 
revolucionários, hoje em dia isso é muito mais claro, é muito mais fácil
 a gente levar em conta hoje, nos últimos vinte ou trinta anos essa sua 
assertiva. Agora, naquele momento do enfrentamento com a ditadura, com a
 sociedade amortecida pela teia da repressão, realmente como é que você 
acha que se colocava essa questão política de fazer mesmo um movimento 
em direção à classe operária, como alguns setores propunham ,ou era 
melhor mesmo fazer como o PC do B: “Vamos lá para a guerrilha rural”, ou fazer o foquismo,
 como se dizia na época, o foco guerrilheiro primeiro para depois ter o 
movimento de massas. Quer dizer, isso é um problema daquela época, mas é
 um problema geral da própria questão de como o revolucionário se 
relaciona com as massas. O que você poderia comentar sobre isso, por 
favor?
Jacob Gorender:
 Naquele momento isso era motivo de grandes discussões. A ditadura 
militar, quando se instalou, fez uma varredura completa nos sindicatos. 
Toda a liderança sindical de esquerda foi presa ou teve que sair do 
país, enfim, o movimento sindical foi aniquilado e imobilizado. As 
greves foram proibidas. Eram toleradas no máximo greves quando as 
empresas não pagavam o salário. Mas fora daí eram consideradas crime 
contra a segurança nacional. Essa situação deixou de fato a classe 
operária por muito tempo inerte ou em movimentos muito localizados e 
pouco efetivos. Esperava-se que isso revertesse rapidamente, mas não 
aconteceu. Então, qual era a perspectiva em geral das organizações de 
esquerda? Era de um movimento guerrilheiro na área rural. O Brasil 
naquela época tinha uma proporção de população rural bem maior do que 
agora. E nós tínhamos um exemplo da China e de Cuba, sonhávamos com uma 
nova Sierra Maestra [região serrana de Cuba de onde Fidel Castro 
coordenou as ações de guerrilha para o posterior golpe de estado ao 
governo ditatorial de Fulgêncio Batista], tínhamos essa esperança. E daí
 nasceu Caparaó. Um grupo de quinze ou vinte ex-militares e também civis
 que se fixou no alto do monte de Caparaó, lugar muito frio, esperando a
 hora de começar uma guerrilha. E acabaram sendo presos. Eram ligados ao
 [Leonel] Brizola [(1922-2004), influente político
 gaúcho, foi governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro e 
presidente de honra da Internacional Socialista - ver entrevista com 
Brizola no Roda Viva]. Depois 
disso, novas tentativas dessa ordem é claro que não ocorreram. Mas 
sempre havia essa expectativa de que um dia começaríamos a guerrilha na 
área rural. Para isso foram compradas fazendas onde se estabeleciam 
pequenos núcleos que não chegaram a atuar em coisa nenhuma.
[Comentarista]: Mesmo tendo vivido na clandestinidade por longo período, Jacob Gorender
 tornou-se um estudioso da formação social brasileira. Com três livros 
dedicados à análise da estrutura escravista colonial, o historiador 
trouxe novas visões sobre a escravidão e o abolicionismo no Brasil. O escravismo colonial virou obra clássica nessa área. Mas A escravidão reabilitada criou polêmica entre acadêmicos ao questionar algumas teses da historiografia recente que, segundo Gorender, não correspondem à realidade histórica. Uma realidade que fez do país, um Brasil em preto & branco e que se baseia num passado escravista que não passou.
Paulo Markun: Jacob,
 eu queria entender como é que, no meio dessa ação política toda, dessa 
militância, da prisão, o senhor consegue escrever um livro que modifica 
todo o conceito de como era a escravidão no Brasil e contesta inclusive 
Gilberto Freire? [(1900-1987) antropólogo, sociólogo e historiador 
brasileiro, sua obra Casa-grande & senzala (1933) é considerada um marco na compreensão do país]
Jacob Gorender: Qual livro?
Paulo Markun: O escravismo colonial.
Jacob Gorender: Ah, sim. O projeto de escrever O escravismo colonial eu
 já o tinha antes de ser preso e procurava me enfronhar na literatura 
disponível, embora isso fosse muito difícil na clandestinidade. Tinha um
 amigo que conseguia retirar livros da biblioteca da USP, em nome dele. 
Porém a coisa avançava muito precariamente. Mas o projeto estava na 
minha cabeça, e com as poucas leituras que eu ia fazendo, a convicção 
aumentava. E qual era a questão que se colocava para mim? É que a tese 
do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, ao qual eu pertenci durante 25 
anos, de 1942 a 1967, era de que o Brasil tinha um passado feudal e que 
ainda existiam sobrevivências feudais no Brasil. E isso não me parecia 
correto. Quer dizer, O escravismo colonial foi escrito para 
contestar essa tese. Eu quis provar, e acredito que o fiz, que o passado
 do Brasil foi escravocrata. Nós tivemos um regime escravista até o 
final do século XIX, durante quase trezentos anos. E isso marcou 
profundamente a sociedade brasileira. E eu cunhei a expressão 
“escravismo colonial”, que não existia antes. Escravismo colonial é um 
regime todo especial que fez do Brasil um país marcado pela necessidade 
de produzir gêneros e artigos para o exterior com uma população de 
escravos e, depois, de ex-escravos, muito grande, que constitui um 
problema social até hoje. Então, o livro foi escrito, essa foi a minha 
idéia, para refutar essa tese. E quando eu consegui a liberdade, depois 
da prisão, ainda nos anos de 1970, com grande dificuldade, então eu já 
podia freqüentar bibliotecas e consultar arquivos etc, aí o livro 
avançou. E tive a sorte de encontrar numa grande editora, a Ática, um 
grande amigo, o [José] Granville [Ponce, jornalista e escritor], de ter o
 beneplácito, a aprovação do professor Alfredo Bosi, que está aqui 
presente, que foi importantíssima. E, com isso, eu, com mais de 
cinquenta anos, que nunca tinha publicado um livro, de repente apareço 
com um livro de quase seiscentas páginas e com grandes pretensões.
Jorge Caldeira: Professor Jacob,
 nesse período do livro nós trabalhávamos na mesma redação, o livro foi 
escrito quando o senhor trabalhava de dia, como redator da Abril.
Jacob Gorender: [interrompendo] Trabalhava?
Jorge Caldeira: Na 
Editora Abril, como redator, trabalhávamos na mesma sala, naquela época 
e, à noite, com ajuda de amigos. Eu queria um pouco entender como foi 
possível essa passagem, essa produção de alguém que escreveu em 
condições tão precárias e sem passado. Quer dizer, o senhor tinha já uma
 disciplina intelectual interna muito grande, acho que vinda do partido,
 mas eu queria que o senhor contasse um pouco para quem está nos vendo, 
como foi internamente, depois de 25 anos como militante profissional em 
partido, se transformar em intelectual?
Jacob Gorender:
 É uma história, de fato, bem pessoal. Uma vez que eu não tinha 
graduação, abandonei o curso de direito no terceiro ano; 
profissionalmente fui jornalista, trabalhei em jornais. Então, como 
poderia me dedicar a fazer um livro dessa espécie? Durante um certo 
tempo, eu trabalhei na Abril Cultural, e fui seu colega, tínhamos uma 
convivência muito amistosa naquela época. Mas naquela época, trabalhando
 na Abril, eu não podia avançar na feitura do livro, era trabalho em 
tempo integral, me ocupava muito tempo, não era um trabalho tão fácil 
assim, era cansativo. O que me possibilitou escrever o meu livro, quando
 eu tomei a decisão, foi justamente quando eu saí da Abril e aí eu me 
dirigi a alguns companheiros...
Jorge Caldeira: [interrompendo] Que fizeram uma vaquinha.
Jacob Gorender:
 ... que eram abonados, expus a eles o plano do livro e pedi um subsídio
 a eles. Não vou citar um ou outro porque faria uma omissão injusta. Mas
 agradeço de coração a confiança que eles tiveram em mim e que me 
forneceu recursos para ficar três anos sem obrigações de emprego e 
podendo me dedicar totalmente à feitura do livro. A terminar a pesquisa e
 depois a redigir o livro. Redigi em máquina Olivetti, não tinha 
computador. [risos]
Jorge Caldeira: Sua vida mudou em função do livro?
Jacob Gorender:
 Depois que o livro foi publicado? Eu não sei dizer até que ponto ela 
mudou. Depois disso, o fato é que eu não voltei mais a trabalhar em 
nenhuma empresa. Eu me dediquei a fazer traduções...
Jorge Caldeira: [interrompendo] E em partidos? O senhor voltou a militar em partidos depois do livro?
Jacob Gorender:
 Eu estive durante certo tempo na militância do PT. Mas, já há alguns 
anos atrás, houve um recadastramento e eu não me recadastrei. De modo 
que não sou mais militante do PT.
Marco Antônio Villa: Professor, o senhor encontrou muita resistência no Escravismo colonial.
 O senhor teve resistência a uma historiografia conservadora, que o 
senhor critica no livro, mas encontrou resistência também de uma 
historiografia acadêmica, que o senhor responde no Escravidão reabilitada, e faz duras críticas. Como o senhor encara essa questão da recepção, tanto do Escravismo colonial,
 por parte da universidade, por muitos estudantes que ficaram 
impressionados? Eu, na época, estava entrando no curso de história, 
fiquei impressionado pelo rigor da pesquisa, pelo cuidado com que o 
senhor trabalhou conceitualmente, o que não era prática entre os 
historiadores, vale lembrar, esse rigor. E e a resposta depois, de 
alguns departamentos, de algumas universidades que criticam 
violentamente o livro do senhor. E o senhor responde no Escravidão reabilitada.
 Como o senhor analisa hoje, à distância – afinal já passaram mais de 
vinte, 25 anos – a recepção que o livro do senhor teve, tanto O escravismo colonial como A escravidão reabilitada?
Jacob Gorender: O que sucede é que O escravismo colonial saiu a público pela Ática, a primeira edição, em 1978, e o marxismo
 ainda estava em alta, nesse período, pelo menos no Brasil. De certo 
modo também na Europa. Então o fato de ele ser um livro marxista não 
causou nenhuma repulsa, e eu passei a ser convidado para conferências, 
estive inclusive na USP, não houve nenhum problema negativo com relação 
ao livro, ao contrário, ele me posicionou e me tornou conhecido. A 
própria Veja publicou uma página sobre a publicação do livro. Mas, pouco depois disso, o marxismo
 entra em refluxo. Nos anos 1980, isso foi mundial, e no Brasil em 
particular. No campo da história, da historiografia, surge a chamada 
“escola da história do cotidiano”, um grupo de historiadores, muitos 
deles talentosos, passa a dar privilégio à vida cotidiana das pessoas, 
aos acontecimentos corriqueiros aos quais, em geral, a historiografia 
não dá grande atenção. E, sob esse aspecto, o meu livro passa a receber 
uma crítica muito séria. Foi em resposta à posição desses historiadores 
do cotidiano, dos fatos menores colocados em relevo, que eu escrevi A escravidão reabilitada, como uma resposta a esse posicionamento.
Alfredo Bosi: Professor Gorender,
 eu queria dar um testemunho que realmente, por volta de 1977, fazíamos 
parte, vários professores da USP, o saudoso Rui Coelho [antropólogo], o 
professor Aziz [Ab’Sáber, geógrafo e professor emérito da Universidade 
de São Paulo - verf entrevista com Ab'Saber no Roda Viva],
 e o professor [de sociologia] Duglas [Monteiro], quero deixar bem 
claro, eram professores muito ligados à área de ciências sociais. Eles 
formavam, junto com outros, um conselho, o conselho da coleção Ensaios, 
da Editora Ática. Então, normalmente, nós analisávamos teses, porque a 
coleção tinha essa finalidade de editar teses. E aí, chegaram às nossas 
mãos uns originais curiosos, porque não era tese universitária, era um 
livro, que foi encaminhado pelo Maurício Tragtenberg [(1929-1998), 
filósofo e cientista político, destacou-se como um grande pensador 
brasileiro], que logo nos pareceu revolucionário, mas ao mesmo tempo, 
tinha uma cara auto-didática, não era um livro de universidade. É claro 
que lemos aquilo e logo nos apaixonamos, de fato o livro foi editado. 
Então continuando um pouco aquilo que o professor Villa disse, eu acho 
que nesta  sessão aqui o senhor deu uma certa ênfase à idéia de que O escravismo colonial
 procurava responder a uma tese do Partido Comunista, a uma tese que 
chega também à idéia da dualidade do Brasil, que é um desdobramento, o 
Brasil feudal, o Brasil burguês. E essa tese foi de alguma maneira 
respondida ou criticada no seu texto. Depois a outra tese, que eu 
gostaria que o senhor falasse alguma coisa, que causou mal-estar na 
universidade, porque o senhor também nega que o Brasil precocemente, 
desde o início, tenha sido uma formação capitalista. Essa era outra tese
 que tinha maior prestígio dentro da USP, com Caio Prado,
 e ainda tem, podemos dizer. Eu acho que a sua tese hoje briga mais com 
essa, que foi hegemônica durante tantos anos, e ainda é em grande parte,
 do que com a tese feudal. O Brasil como modo de formação capitalista. 
Então, o que o levou a negar tanto um lado como o outro? Porque o outro 
lado da Universidade de São Paulo era a resposta à primeira tese, já 
havia essa resposta de alguma maneira, desde Caio Prado.
 Mas também essa resposta lhe pareceu inadequada. O senhor sustenta essa
 posição agora, de nem uma nem a outra? Nem a feudal, nem a capitalista?
Jacob Gorender:
 A minha ênfase foi que o quê prevaleceu até o fim do século XIX foi o 
escravismo colonial. E cessado esse regime, o Brasil entrou penosamente 
num caminho de formação de uma sociedade capitalista. Mas entrou 
penosamente, com dificuldade. Eu creio que Caio Prado,
 grande historiador brasileiro, deu uma ênfase muito grande às relações 
comerciais que havia já desde o tempo colonial e posteriormente. Eu 
procurei mostrar que essas relações comerciais, por si mesmas, não iriam
 caracterizar um regime capitalista. E que esse regime capitalista se 
fixaria, se formaria de maneira penosa, vagarosa em nosso país na 
primeira metade do século XX.
[Comentarista]: Os direitos humanos, no alerta de Jacob Gorender,
 são notícia todo dia. E a defesa que se faz deles vem exatamente do 
fato de serem violados a todo instante e de todas as formas. Direitos 
humanos: o que são - ou devem ser - mostra a evolução do conceito, da Revolução Francesa
 aos dias de hoje. Analisa guerras, formas de governo e as situações de 
violência, abuso e desrespeito que ainda ferem direitos fundamentais das
 pessoas em todo o mundo.
Paulo Markun: Até 
pelo fato de o último livro do senhor ser sobre direitos humanos, eu 
queria comentar uma curiosidade que é a seguinte. Qualquer pessoa que 
pesquise na internet "Jacob Gorender”
 vai encontrar o nome do senhor em diversos sites de extrema direita. 
Sites que mencionam as descrições que o senhor fez de justiçamentos e 
assassinatos – também é um outro caso em que a palavra se encaixa de 
acordo com a vontade de cada um – de militantes de esquerda, pela 
esquerda e até de presos que tinham sido detidos, militares detidos 
pelas organizações de esquerda no período do combate, da luta armada. 
Como é que o senhor, que escreve um livro sobre direitos humanos, encara
 esse tipo de atitude dos chamados grupos revolucionários?
Jacob Gorender: No meu livro Combate nas trevas,
 eu procurei ser fiel aos fatos, mostrar por que a esquerda foi 
derrotada, porque ela não conseguiu os resultados que esperava e alguns 
de seus líderes perderam a vida, como foi Marighella,
 Câmara Ferreira e vários outros. Procurei mostrar isso. E mostrar 
também os pecados, os crimes da própria esquerda. Mas eu só 
identifiquei, no caso de militantes da própria esquerda, quatro 
justiçamentos, não mais do que isso. No caso de militantes da esquerda. 
Não posso dizer os nomes porque eles estão no livro, não tenho de 
memória. De adversários é outra coisa. Como o [Charles Rodney] Chandler 
[capitão do Exército dos EUA, que estava no Brasil com esposa e filhos 
para estudar na Escola de Sociologia e Política da Fundação Álvares 
Penteado. Em outubro de 1968, ele foi morto a tiros por militantes da 
esquerda, que suspeitavam ser ele um agente da CIA], o Boilesen, eu 
falei aí que também sofreu um atentado, aí são inimigos.
Paulo Markun: O senhor acha que é justificável matar um inimigo?
Jacob Gorender:
 Acho. Numa luta daquele tipo, sim. Porque os nossos também eram 
assassinados. Havia a Operação Bandeirante [(Oban) Centro de 
informações, investigações e de torturas montado pelo exército 
brasileiro em 1969, e financiado por alguns empresários] transformada 
depois em DOI-Codi. Então, era uma luta sem trégua. Não direi o mesmo nos dias de hoje, que não teria nenhuma justificativa.
Paulo Markun: Mas 
esse argumento que o senhor usa não é o mesmo que os militares defendem 
para dizer que a violência da ditadura contra a esquerda foi uma 
resposta aos atentados?
Jacob Gorender:
 É o que eles afirmam. E ainda recentemente em nota oficial do Exército.
 Mas isso não justifica de maneira nenhuma a tortura de prisioneiros. O DOI-Codi, primeiro a Operação Bandeirante, depois DOI-Codi,
 não justifica a tortura de prisioneiros e o assassinato de prisioneiros
 indefesos. Ainda agora nós estamos vendo que militares que combateram 
os guerrilheiros do Araguaia
 estão requerendo benefícios dizendo que a luta que eles travaram se 
equipara a da Força Expedicionária Brasileira. Isso é uma infâmia, 
porque a Força Expedicionária Brasileira da qual eu fiz parte – estive 
durante oito meses na linha de frente, na Itália – combateu o exército 
nazista e fez prisioneiros e nunca torturou prisioneiros. Não há 
registro dessa espécie. Os prisioneiros alemães e de outras 
nacionalidades eram interrogados conforme as normas da Convenção de 
Genebra [Reunião de líderes mundiais em Genebra, na Suíça, onde foi 
definida uma série de tratados, definindo as normas para as leis 
internacionais relativas ao direito humanitário internacional. Esses 
tratados definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou 
não, em tempo de guerra]. Mas tortura jamais. E o que fizeram esses 
militares no Araguaia?
 Eles decapitaram guerrilheiros que estavam vivos. Eles fuzilaram 
guerrilheiros que capturaram vivos. Lançaram no oceano, incineraram, 
carbonizaram corpos de prisioneiro. Quer dizer, praticaram toda espécie 
de crueldades e hoje estão reivindicando benefícios comparando-se aos 
expedicionários da Força Expedicionária. Isso é uma infâmia, que eu 
repilo aqui neste programa.
Beatriz Kushnir: Professor, em 1998 quando o senhor relança o Combate nas trevas,
 o senhor diz que a historiografia do pós-1964 só vai avançar quando os 
arquivos do exército forem abertos. A gente vive neste momento um dilema
 bastante difícil. Depois das fotos falsas do Vladimir Herzog
 publicadas o ano passado, o governo fez uma medida provisória que 
passou no Senado recentemente e se tornou uma lei de que tudo que se vai
 consultar nos arquivos hoje, da história do contemporâneo, passa por 
uma comissão interministerial, o que leva muito tempo. Coisas que 
pesquisadores podiam ver até o ano 2000, 2001 nós não podemos mais ver 
hoje em dia. A sociedade civil está se mobilizando contra essa medida 
provisória, e a família dos mortos e desaparecidos fez essa semana, em 
São Paulo, um movimento chamado Desarquiva Brasil. Eu queria que o 
senhor comentasse um pouco sobre essa questão dos arquivos do Estado, 
que este governo também não libera nem a pesquisadores, nem ao cidadão.
Jacob Gorender:
 É, esse é o grande problema brasileiro. Basta dizer o seguinte: os 
arquivos, os documentos referentes à Guerra do Paraguai, que estão em 
poder do Exército, até hoje não foram postos à disposição de 
pesquisadores. Os pesquisadores brasileiros não têm condições de saber o
 que está ali, o que foi dito, que registros foram feitos. Isso da 
Guerra do Paraguai. Eu penso que o governo do presidente Lula marcaria 
um grande ponto se determinasse, como presidente da República, a 
abertura desses arquivos. Isso é imprescindível. E se constituísse uma 
comissão não muito grande, mas idônea, de historiadores e autoridades, 
enfim, que examinasse o conteúdo desses arquivos, desde a guerra do 
Paraguai até os mais recentes. Porque o que nós ouvimos sempre do 
Exército é que não tem arquivo. Em primeiro lugar, o Exército jamais 
reconheceu oficialmente que houve guerrilha no Araguaia.
 Isso não foi reconhecido. Com relação, por exemplo, à Aeronáutica, 
quando apareceram aqueles papéis na base aérea de Salvador, a 
Aeronáutica declarou que também não tinha arquivo porque tudo queimou no
 incêndio do aeroporto Santos Dumont onde eles estavam depositados. Quer
 dizer, é um jogo de esquiva que precisa acabar. E o presidente Lula 
marcaria um grande ponto se conseguisse determinar a abertura desses 
arquivos. É claro que há documentos que não podem ser colocados em 
público. Mas, em grande parte, o que está se fazendo é esconder tudo. E 
já se estabeleceu que tem documentos que, pela eternidade, ficarão 
desconhecidos do povo brasileiro. Isso eu acho que deve terminar.
Jorge Caldeira: O 
senhor, depois de 25 anos, de militância no Partido Comunista 
Brasileiro, em cargos de direção, pensando o tempo todo em um partido 
que ia fazer uma revolução. Depois de tentar a luta armada como caminho 
para a revolução e depois de se fixar como nome de intelectual 
revolucionário, aos 81 anos o senhor publica um livro chamado Marxismo sem utopia, que é um livro de quem conhece profundamente o marxismo,
 isso é bom dizer, mas onde tem algumas afirmações que, para muita 
gente, têm parecido difíceis de digerir. Entre elas, que: "democracia é 
um valor universal e não uma farsa", uma democracia burguesa, farsa, 
como já dizia a propaganda durante o século XX. Segundo, que "os 
direitos humanos são valores universais e fundamentais e não invenção 
burguesa", como a tradição revolucionária marxista leu essa coisa. Por 
fim, tem a famosa frase, que acho que vai virar um clássico, de que “o 
proletariado é uma classe ontologicamente reformista”, que tem dado pano
 pra manga e muita discussão por aí. Bom, aí são duas coisas. Em 
primeiro lugar, é preciso muita coragem, para quem fixou o nome como 
revolucionário, entrar tão fundo nessas questões. A minha pergunta é: 
isso não abre para trás uma brecha para ler o século XX, ou reler o 
século XX ,a partir do marxismo da social-democracia
 – [Eduard] Bernstein, [(1850-1932)], [Karl] Kautsky [(1954-1938)] 
[teóricos políticos alemães e os dois principais representantes do 
revisionismo ou social-democracia,
 que previa uma evolução do capitalismo o qual, gradualmente, através de
 reformas sociais, daria lugar ao socialismo. O revisionismo também 
buscava alterar alguns pontos teóricos básicos do marxismo,
 com base no evolucionismo darwiniano e nas idéias do filósofo Kant], 
que foram os que propuseram isso na Alemanha, no final do século XIX, e 
isso gerou a social-democracia? Enfim, onde que vai ficar o limite entre social-democracia e socialismo, se essas afirmações do senhor forem verdadeiras?
Jacob Gorender:
 São questões que eu precisaria fazer uma conferência para poder 
responder a elas [risos]. São muito complicadas. Mas eu devo dizer o 
seguinte: eu não tenho receio de mudar as minhas idéias se eu me 
convenço de que o que eu pensava anteriormente não estava certo. E, 
depois, os tempos mudam. Para novos tempos são necessárias novas idéias.
 Então eu não fico com receio de apresentar essas novas idéias. Eu 
cheguei a essa conclusão: que o proletariado, ontologicamente, é 
reformista, não revolucionário. E isso é muita coisa. Se não fosse o 
reformismo do proletariado, nós estaríamos hoje ainda na época da 
revolução industrial inglesa. Quer dizer, esse reformismo, essa luta 
pelos seus direitos, embora não revolucionários, foram muito importantes
 para nossa sociedade e para as sociedades onde o proletariado pôde 
atuar. Isso não é pouca coisa, embora não seja revolucionário. Eu me 
considero marxista hoje, mas como o título desse meu penúltimo livro 
diz, o marxismo
 ainda era utópico. Marx e Engels pensaram em se desfazer da utopia, mas
 não conseguiram isso. Eles continuaram sendo utópicos. E aqui eu quero 
citar três aspectos da utopia marxista. Em primeiro lugar, o 
produtivismo infinito. Marx tinha a convicção de que, em condições 
sociais favoráveis, em que as relações de produção sejam um incentivo ao
 aumento das forças produtivas, a sociedade atingiria uma produtividade 
de tal ordem que as coisas perderiam valor. Quer dizer, elas se 
tornariam extremamente abundantes. E as pessoas poderiam gozar quase de 
uma situação paradisíaca. Isso é falso. A história mostrou que a 
produção tem limites que Marx não conheceu. Marx não conheceu a 
ecologia. Tem limites ecológicos, os recursos naturais são limitados e o
 abuso deles provoca o efeito-estufa, a poluição e outros problemas 
graves para a própria sociedade humana. Então, não se pode pensar numa 
produtividade infinita. Há limites que precisam ser observados, e Marx 
não conheceu esses limites ecológicos. E daí essa idéia. A segunda 
questão é o desaparecimento do Estado. Eu considero que o Estado não vai
 desaparecer. A sociedade moderna é de tal maneira complexa, constituída
 de segmentos, não só de classes sociais, mas são os idosos, os homens, 
as mulheres, os profissionais de várias áreas, a diferença entre países.
 Quer dizer, tudo isso exige uma escala de prioridades. E quem é que vai
 tomar a iniciativa disso? É necessário um órgão superior que é o 
Estado. E que seja um Estado democrático, obviamente. Por isso eu falo 
em democracia. Eu considero que qualquer idéia de socialismo tem que ser
 democrática. Porque o socialismo autoritário e ditatorial deu no que 
deu na antiga União Soviética, na criminalidade de um tirano como Stalin.
 Então, é por isso que eu falo nessa questão. E a existência do Estado 
pode levar ao estabelecimento dessa escala de prioridades, em benefício 
de uns, às vezes deixando de beneficiar outros, mas de tal maneira que 
isso seja feito em prol do bem comum da sociedade, das várias etnias, 
dos vários países do mundo. Então, esse aspecto, o desaparecimento do 
Estado e o produtivismo são erros, são utopias dentro do corpus
 marxista, dentro da obra de Marx e de Engels. E depois, a confiança 
ilimitada no proletariado, que não se confirmou. Por isso é que eu digo 
que o proletariado é ontologicamente reformista. Isso é claro que, para 
um marxista, soa como uma heresia tremenda. Mas eu não tive receio dessa
 heresia, porque eu considero que é isso o que acontece. O que é o 
socialismo e como ele virá? Eu penso que o socialismo é um projeto. Não 
está inscrito na história que o socialismo é inevitável. Eu não 
considero as coisas assim. Isso seria uma questão de fé. Fé religiosa, 
transformar o marxismo em religião. Em vez da Bíblia, dos Evangelhos, O Capital.
 Não pode ser assim. Então, como é que pode vir esse projeto? Nós não 
temos certeza como ele virá. Mas é um projeto. Eu inseri também nesse 
livro, isso está feito, a teoria da incerteza e da indeterminação de 
Heisenberg. Quer dizer, dentro de um sistema, as coisas funcionam de 
maneira determinista. De outra maneira, o sistema se desagrega, não 
funciona, seja ele qual for: uma máquina, uma entidade humana e assim 
por diante. Tudo tem que funcionar, uma peça provocando o movimento da 
outra e assim por diante. Mas a passagem no plano social, no plano 
civilizacional, de um sistema para outro tem incertezas, tem 
indeterminações. Nós não podemos ter certeza de que agora, deste 
capitalismo, que é planetário hoje, nós passaremos para o socialismo. 
Esse é um projeto, mas não é uma certeza. Quer dizer, assim como na 
física, há a incerteza, conforme mostrou Heisenberg, assim também, muito
 mais, nas questões históricas e sociais.
Paulo Markun: Professor Gorender,
 o nosso tempo acabou e eu fico pensando que o Papa Pio XII abençoou um 
herege marxista [risos]. Eu quero agradecer muito a sua entrevista. 
Lamentar, porque esse é o mais longo espaço que a televisão dá para o 
debate de idéias, uma hora e meia, e ainda foi insuficiente. Agradeço a 
sua participação e a dos nossos entrevistadores.
  

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