Tirou uma xícara de chá instantâneo da máquina automática na
parede, apanhou uma vassoura e pôs-se a varrer; em pouco tempo a frente da
American Artistic Handcrafts Inc. estava pronta para o dia, limpinha, com a
caixa cheia de troco, um vaso de margaridas frescas e o rádio tocando música de
fundo. Lá fora na calçada passavam homens de negócios a caminho de seus
escritórios em Montgomery Street. Ao longe, um bonde; Childan parou para
observá-lo com prazer. Mulheres com seus longos e coloridos vestidos de seda...
observou-as também. Então o telefone tocou. Voltou-se para atender.
― Sim ― disse uma voz conhecida, quando atendeu.
O coração de Childan ficou gelado.
― Aqui fala Mr. Tagomi. O meu cartaz de alistamento da
Guerra de Secessão já chegou, senhor? Por favor, lembre-se; foi-me prometido
para a semana passada.
A voz era exigente, breve, apenas polida, apenas mantendo a
etiqueta.
― Não lhe dei um depósito, Mr. Childan, com aquela
exigência? É para presente, sabe? Já tinha explicado. Um cliente.
― Pesquisas prolongadas ― começou Childan ― feitas às minhas
próprias custas, Mr. Tagomi, referentes à encomenda prometida que, como o
senhor sabe, origina-se fora desta região e é portanto...
Mas Tagomi interrompeu: ― Então não chegou.
― Não, Mr, Tagomi. Uma pausa glacial.
― Não posso mais esperar ― disse Tagomi.
― Sim, senhor.
Childan olhou com tristeza através da vitrine da loja, o dia
quente brilhante e os edifícios comerciais de São Francisco.
― Um substituto, então. Que recomenda, Mr. Childan?
Tagomi propositalmente pronunciou mal o nome; era um insulto
dentro da etiqueta que fez arderem as orelhas de Childan. Estava numa falsa
posição, sua situação causava-lhe uma terrível mortificação. As aspirações, os
medos e os tormentos de Robert Childan vieram à tona e ficaram expostos,
inundando-o, paralisando sua língua. Gaguejou, com a mão crispada no telefone.
O ar de sua loja cheirava a margaridas; a música continuava a tocar, mas ele
sentiu como se estivesse mergulhando em algum mar distante.
― Bem... ― conseguiu murmurar. ― Batedeira de manteiga.
Máquina de fazer sorvete de 1900.
Sua mente recusava-se a pensar. Como quando a gente se
esquece; como quando a gente se engana. Ele tinha trinta e oito anos, recordava
os dias anteriores à guerra, os outros tempos. Franklin D. Roosevelt e a Feira
Mundial; o antigo mundo, muito melhor.
― Talvez pudesse levar vários artigos interessantes ao seu
escritório? ― sussurrou.
Foi marcado um encontro para as duas horas. Preciso fechar a
loja, pensou, enquanto desligava. Não havia escolha. Era preciso manter a
boa-vontade desse gênero de clientes; os negócios dependiam deles.
Ali de pé, ainda trêmulo, percebeu que alguém ― um casal ―
entrara na loja. Jovens, elegantes, bem vestidos. De aspecto agradável.
Acalmou-se e caminhou, sem pressa, na direção deles, sorrindo. Estavam
debruçados sobre o mostruário no balcão, e tinham escolhido um lindíssimo
cinzeiro. Casados, adivinhou. Moram na Cidade das Neblinas Sinuosas, os novos
apartamentos exclusivos no Skyline, com vista para Belmont.
― Alô ― disse, e sentiu-se melhor. Sorriram-lhe sem nenhuma
superioridade, apenas com afabilidade. Seu mostruário ― que era realmente o que
havia de melhor no gênero ali na Costa ― tinha impressionado; percebeu isso e
ficou agradecido.
Eles compreenderam.
― Peças de fato excelentes, senhor ― disse o jovem.
Childan inclinou-se espontaneamente.
Os olhos deles, brilhantes não só pela ligação humana, mas
ainda pelo prazer comum que sentiam ao ver os objetos de arte que ele vendia,
por seus gostos e satisfações mútuos, fixaram-se nele; agradeciam-lhe por ter
coisas como estas, que eles podiam ver, tocar, examinar, manusear talvez, até
mesmo sem comprar. Sim, pensou, sabem em que espécie de loja estão; aqui não há
bugigangas para turista, placas de sequóia onde se lia MUIR WOODS, MARIN
COUNTY, P.S.A., coisinhas, aneizinhos ou cartões postais com a vista da Ponte.
Especialmente os olhos da moça, grandes, escuros. Como seria fácil, pensou
Childan, me apaixonar por uma garota assim. Que trágica seria então minha vida;
como se já não estivesse bastante ruim. Esse cabelo preto na moda, as unhas
pintadas, as orelhas furadas com os longos brincos de metal feitos a mão.
― Seus brincos ― murmurou. ― Comprados aqui, talvez?
― Não ― disse ela. ― Em minha terra.
Childan balançou a cabeça. Nada de arte americana
contemporânea; apenas o passado poderia estar representado ali, numa loja como
a dele.
― Vão ficar muito tempo aqui? ― perguntou. ― Na nossa São
Francisco?
― Vou ficar aqui por tempo indeterminado ― disse o homem. ―
Trabalho na Comissão de Inquérito para Planejamento do Nível de Vida das Áreas
Sinistradas..
Seu rosto demonstrou orgulho. Não era militar. Não era um
daqueles recrutas provincianos, mascadores de chicletes, com seus rostos de
camponeses gananciosos, perambulando por Market Street, boquiabertos diante dos
cabarés, dos filmes sexy, dos tiro-ao-alvo, das boates baratas com fotos de
louras de meia-idade sustentando as tetas entre dedos enrugados, com um riso
debochado nos lábios... os antros de jazz, que formavam a maior parte da baixa
São Francisco, frágeis barracos de lata e de tábuas que surgiram das ruínas
mesmo antes de cair a
última bomba. Não ― aquele jovem era da elite. Culto,
educado, mais ainda que Mr. Tagomi, que afinal era um alto funcionário, com o
posto de Adido Comercial para a Costa do Pacífico. Tagomi era um homem velho.
Sua formação vinha do tempo do Gabinete de Guerra.
― Queriam objetos de arte popular tradicional americana para
presente? ― perguntou Childan. ― Ou talvez para decorar seu novo apartamento
aqui? Se fosse esta última hipótese... ― seu coração apressou-se.
― Acertou ― disse a moça. ― Estamos começando a decorá-lo.
Estamos ainda um pouco indecisos. Acha que poderia ajudar-nos?
― Poderia passar em seu apartamento, sim ― disse Childan. ―
Levarei várias malas com material e lá, no ambiente, posso sugerir coisas que
lhes convenham. Esta é, naturalmente, a nossa especialidade.
Baixou os olhos para encobrir suas esperanças. Poderia ser
um negócio de milhares de dólares.
― Estou para receber uma mesa da Nova Inglaterra, toda de
madeira de encaixe, não tem um prego. De enorme beleza e valor. E um espelho da
época da guerra de 1812. E também a arte aborígene: um grupo de tapetes de pêlo
de cabra com tintura vegetal.
― Por mim ― disse o homem ― prefiro a arte das cidades.
― Pois não ― disse Childan ansiosamente. ― Ouça, senhor.
Tenho um mural do período dos correios W. P. A., original, feito de madeira, em
quatro partes, retratando Horace Greeley. Peça de colecionador, de valor
inestimável.
― Ah! ― disse o homem, com os olhos escuros brilhando.
― E uma vitrola de 1920, transformada em bar.
― Ah!
― E, senhor, ouça: um retrato emoldurado e autografado de
Jean Harlow.
O homem ficou com os olhos esbugalhados.
― Vamos marcar um encontro? ― perguntou Childan,
aproveitando o momento psicológico certo.
Tirou do bolso interno do casaco a caneta e a caderneta.
― Anotarei seu nome e endereço, senhor e senhora. Mais
tarde, quando o casal saiu da loja, Childan ficou de pé, mãos nas costas,
olhando a rua. Feliz. Se todos os dias fossem assim... Mas era mais do que os
negócios, era o sucesso de sua loja. Era a oportunidade de conhecer um jovem
casal japonês socialmente, na base de uma aceitação dele como homem mais do que
como um yank ou, na melhor das hipóteses, como um comerciante de objetos
artísticos. Sim, esses jovens da geração em ascensão, que não se lembravam dos
dias de antes da guerra, nem da própria guerra ― eram a esperança do mundo.
Diferença de lugar nada significava para eles.
Isso acabará, pensou Childan. Algum dia. A própria idéia de
lugar. Não mais governados e governantes, mas gente.
E contudo tremia de medo ao se imaginar batendo à porta
deles. Examinou suas anotações. Os Kasouras. Se fosse recebido, sem dúvida lhe
ofereceriam chá. Faria direito as coisas? Saberia como agir e falar no momento
exato? Ou iria se desgraçar, como um idiota, com alguma gafe terrível?
O nome dela era Betty. Que compreensão em seu rosto, pensou.
Os olhos delicados, sensíveis. Certamente, mesmo naquele pouco tempo na loja,
percebera suas esperanças e derrotas.
Suas esperanças ― de repente ficou tonto. Que aspirações
eram essas, beirando a loucura se não o suicídio? Mas não eram desconhecidas as
relações entre japoneses e yanks, embora geralmente fossem entre um japonês e
uma yank. Mas... estremeceu à idéia. E ela era casada. Afastou da cabeça esse
desfile de pensamentos involuntários e pôs-se a abrir a correspondência matinal
com toda atenção.
Suas mãos, descobriu, ainda estavam tremendo. E foi então
que se lembrou do encontro com Mr. Tagomi às duas; diante da idéia, suas mãos
deixaram de tremer e seu nervosismo transformou-se em decisão. Preciso
encontrar alguma coisa aceitável, disse a si próprio. Onde? E como? O quê? Um
telefonema. Fontes. Habilidade comercial. Desenterrar um Ford 1929 totalmente restaurado,
com capota de tecido preto e tudo. Uma grande jogada para manter sempre a
clientela.
Avião trimotor do correio aéreo, modelo original, encontrado
num celeiro em Alabama, etc. Apresentar a cabeça mumificada de Mr. B. Bill,
incluindo os cabelos brancos esvoaçantes; sensacional objeto americano. Firmar
minha reputação nos mais altos círculos de connoisseurs do Pacífico, incluindo
o arquipélago nipônico. Para inspirar-se, acendeu um cigarro de niarijuana da
excelente marca Land-O-Smiles.
...
1
por Phillip K. Dick
Tradução de SYLVIA ESCOREL
Título original: The Man in the High Castle
SOBRE O AUTOR:
Três pontos dão a medida do talento de Philip K. Dick. O primeiro é um certo número de qualidades essenciais, como: capacidade de urdir uma intriga e desdobrá-la de maneira complexa, sem afetar a coesão da estrutura; faculdade de construir um ambiente; criação de um diálogo convincente e sempre pertinente; imaginação excepcionalmente desenvolvida. O segundo é a maneira quase alucinatória de dar detalhes referentes a qualquer mundo não real que ele resolvesse criar. O terceiro é a capacidade de retornar, tantas vezes quantas julgasse necessário, a um tema já abordado num livro anterior, que ele sentia não ter esgotado - e o resultado invariavelmente mostrava que tinha razão.
Seus principais temas cíclicos eram: o mundo vazio, ou seja, uma sociedade em que as pessoas importantes eram reduzidas a um número ínfimo; o exercício do poder, cujo conceito subjacente parecia ser a faculdade de agarrar a oportunidade no vôo, graças à determinação e à malícia; a ilusão substituindo a realidade, disseminada, aliás, em toda a sua obra; a alucinação provocada pela ingestão de drogas, criando mundos imaginários sem saída; a maleabilidade do universo exterior ― o desejo do homem de aceitar não uma "realidade" hipotética, no sentido kantiano do das Ding an sich, mas uma construção elaborada pelo efeito de idéias preconcebidas implantadas no seu cérebro; e, finalmente, o tema desenvolvido em The Man in the High Castle: nossa existência e o universo inteiro são manifestações de um substrato flutuante, uma cera virgem onde os humanos vão imprimir, por suas decisões e percepções, uma forma dotada de sentido só para eles.
Apaixonado por música, Dick empregou-se numa loja de discos e produziu um programa clássico na estação de rádio KSMO, de San Mateo, Califórnia. Estudou na Universidade daquele Estado, mas não terminou o curso porque "havia gente demais fumando e lendo o Daily Cal, o que não me permitia ouvir os professores". Começou a ler f.c. aos 12 anos em conseqüência de um engano: comprou Stirring Science Fiction em vez de Popular Science. Lia também Joyce, Kafka, Steinbeck, Proust, Dos Passos. Casou-se com Anne, que conheceu na loja de discos, comprou uma casa, começou a escrever e a vender f.c, largou o emprego na loja, continuou ouvindo Monteverdi e Buxtehude mas passava a maior parte do tempo lendo Ibsen e escrevendo. Adorava gatos.
(*) Philip Kendred Dick (1928-1982) era um alucinado. Daqueles típicos hippies drogados dos anos 60. Enxergava raios de luz rosa. Acreditava em reencarnações e em conspirações globais.
Acontece que o escritor, nascido em Chicago, mas
californiano de formação, diferenciava-se da maioria dos paranóicos pelo teor
da sua obra. Dick escreveu 36 romances -
alguns em quinze dias, durante delírios turbinados por anfetaminas - mais cinco
historietas curtas, produzidas no início de sua carreira, entre 1952 e 1956.
Tecnicamente, sua ficção-científica não se aproximava da classe de um Arthur C.
Clarke, estava mais para um estilo bem folhetinesco. Mas Dick sobreviveu ao
tempo e superou sua geração graças aos temas abordados em seus livros. Há
quarenta anos, o escritor discutia ética e experiências genéticas, liberdades
individuais e problemas de identidade, controle de mentes e demais
interferências humanas na ordem natural das coisas. Era um
visionário.
Muitas das experiências reais de Dick (foi abandonado pelo
pai aos cinco anos de idade, assistiu à morte prematura das suas irmãs gêmeas
recém-nascidas, além de casamentos desfeitos e problemas com drogas) serviram
para construir uma personalidade pessimista. Em seus livros, o futuro sempre
seria pior do que o tempo presente. A Los Angeles de Blade runner - O caçador
de andróides (Blade runner, de Ridley Scott, 1982), fria, suja, escura e
superpopulosa, era fiel ao pensamento do autor. O quarto imundo do cirurgião de
olhos, exibido em Minority report, filmado por Steven Spilberg, provavelmente foi imaginado assim por Dick.
Nos livros, fica evidente o descrédito no governo, nas
autoridades. Seu primeiro romance, Solar Lottery (1955), exibe um mundo
comandado por lógica e números: os governantes mundiais são escolhidos numa
sofisticada loteria. Por outro lado, há também a porção metafísica. No fim da
carreira, Dick produziu textos autobiográficos fantasiosos, descreveu
experiências com alienígenas e combates entre o Bem e o Mal, baseados em
preceitos religiosos.
A consolidação veio somente depois da sua morte. Por mais
que o trocadilho seja perigosíssimo, seus seguidores ostentam o orgulho de se
denominarem dickheads. Veneram uma personagem folclórica, suspeita de ter
sofrido de esquizofrenia, mas capaz de imaginar coisas que hoje se tornaram
reais, como a clonagem e os Big Brothers da vida.
Adaptadas para o cinema, suas obras tornaram-se cult-movies. Os
dois exemplos mais célebres, Blade runner e O vingador do futuro (Total recall,
1990), serviram para impulsionar as carreiras dos diretores Ridley Scott e Paul
Verhoeven. Mas, se o reconhecimento é merecido, a fama já causa alguns
problemas: com o tempo, adquirir o direito de seus textos tornou-se um
investimento e tanto, quantia suficiente para inviabilizar inúmeros projetos
cinematográficos.
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