segunda-feira, 30 de agosto de 2010
"A Arca Russa" no Palácio-Museu Olímpio Campos
Há cerca de 20 anos, quando me mudei para Aracaju mas ainda passava os fins de semana em Itabaiana, descobri uma verdadeira mina de ouro cultural que me ajudou a matar o tédio na "cidade serrana": a Super Vídeo Locadora, de Ivan Valença (notório crítico de cinema local). Lá encontrava (em VHS, claro, pois nem se sonhava com a existência do DVD) os filmes dos quais sempre tinha ouvido falar mas nunca tinha tido a oportunidade de assistir, como O Encouraçado Potemkin de Einsenstein, Cidadão Kane de Orson Welles, Amarcord de Felline e muitos, muitos outros – isso sem ter que passar pelo constragimento de ter atendentes me recomendando o mais novo de Jean Claude Van Damme ou fazendo comentários como um que ouvi certa vez sobre “A Laranja Mecânica”: “esse filme tem uma mensagem ótima e edificante”. “Qual seria”, perguntei à solícita atendente, intrigado. “Aqui se faz, aqui se paga”, ela respondeu.
Então ta.
Recentemente a locadora de Ivan foi mais uma a sucumbir à crise do mercado de vídeo provocada pela pirataria e pelos downloads gratuitos na internet (mea culpa também, admito, ontem mesmo vi “Kick Ass” em arquivo baixado da rede). Antes que fechasse, me dediquei a alugar e copiar os filmes que mais me interessavam, como a pequena obra-prima esquecida da nossa cinematografia “Iracema – Uma transa amazônica”, “Macunaíma” e os filmes do Glauber em versão restaurada, dentre outros. Dentre estes outros estava “A Arca Russa”, de Alekxandr Sokurov, brilhante obra filmada em um único plano sequencia no Museu Hermitage de São Peterburgo. Foram 15 anos desde a idealização, sete de preparação e um dia de filmagem com a utilização de 3.000 figurantes (nada de multiplicação via computação gráfica) com requintados figurinos de época que resultaram em 97 minutos de um deslumbrante passeio pela História do corte imperial russa, desde Pedro, o Grande, que vemos de passagem numa licença poética, já que o Hermitage não existia em sua época, até um jantar da família do último czar, Nicolau II – passando, evidentemente com destaque, pelo reinado de Catarina, a grande. O ponto alto é o último baile imperial, reconstituído em toda a sua pompa de forma exuberante e minuciosa.
Pois bem, tenho a cópia em DVD mas, por puro desleixo (e por excesso do que ver, ler e ouvir, também), nunca tinha assistido. Eis que, zapeando a net, me deparo, no Blog da jornalista Suyene Correia, o “Bangalô Cult”, com a notícia de que haveria uma exibição do mesmo no sábado, às 11 da manhã, no recém-reformado Palácio-Museu Olimpio Campos. Uma combinação pra lá de feliz e apropriada. Fui, e vi. Só não foi melhor porque uma sonolência inesperada me pegou e a sala não estava suficientemente escura, o que deixou a tela um pouco opaca. Fora esses pequenos detalhes, foi uma ótima sessão – e além do mais, o idealizador do projeto, batizado “Cine Experiência”, que estava presente, avisou que o mesmo mudaria de data e horário, passando a ser exibido às 19h, o que resolveria o problema da iluminação.
O filme é realmente deslumbrante e foi apresentado com propriedade por Suyene, além de ter sido seguido por um interessante debate que lançou algumas luzes sobre alguns detalhes da obra que enriqueceram bastante a experiência. Por exemplo: Ficamos sabendo que o “Marquês”, que comanda o passeio, representaria a cultura européia, daí suas fustigadas ao que ele chama de “talento russo para a cópia”, chamando a atenção para o fato de que aquele povo estava sempre em permanente busca por uma identidade própria, fato explicado em parte pela localização geográfica em si do país, parte na Ásia, parte na Europa. Houve também uma inesperada, pelo menos para mim, leitura política, com a insinuação de que o filme faria uma “ode” ao luxo e refinamento aristocrático em contraposição à mediocridade do chamado “realismo socialista”, cujo maior expoente foi, pelo menos em sua primeira fase (ainda não contaminada pelo esquematismo stalinista), o cineasta Sergei Eisenstein que, pode-se dizer, foi uma espécie de criador da montagem cinematográfica, eliminada em “A Arca Russa” pelo recurso do plano sequencia. Meus brios socialistas adormecidos foram atiçados, mas me dei por satisfeito com um comentário de Suyene de que era necessário lembrar que fora daquele palácio, muito longe daquele luxo exuberante, havia uma massa de operários e especialmente camponeses que passavam fome e todo tipo de necessidade, o que legitimava, de certa forma, o processo revolucionário, por mais penoso e tortuoso que o mesmo tenha sido. Valeu também a lembrança de que o filme já havia sido exibido no cinema na extinta Sessão “Cinema de Arte” do antigo Moviecon, em mais uma iniciativa do produtor Roberto Nunes. Infelizmente, essa eu perdi ...
Foi a primeira vez que visitei o Palácio-Museu, antiga sede do Governo do Estado, depois da reforma. Está bonito e, a julgar por minha primeira experiência, promete no que se refere à utilização do espaço. Precisamos muito valorizar este tipo de iniciativa, tão rara em nossa pequena província de Sergipe Del Rey. Espero que o projeto dê certo e se consolide, até porque o monopólio da Rede Cinemark em nossa cidade tem feito com que a oferta de bons filmes nas telas de nossos cinemas seja pra lá de restrita aos blockbusters enlatados norte-americanos – não fosse pela existência da Sessão “Cine Cult”, estaríamos irremediavelmente perdidos.
Para acompanhar a programação do “Cine Experiência” e do Palácio-Museu, consulte o site http://www.palacioolimpiocampos.se.gov.br/
por Adelvan
* * *
+ sobre " A Arca Russa " :
Os 97 minutos sem cortes que compõem o filme de Alekxandr Sokurov apontam para um dos caminhos do cinema no futuro
Por: Rodrigo Carreiro
NOTA DO EDITOR: ★★★★☆
Fonte: Cine Repórter
A simples realização de “Arca Russa” (Russkij Kovcheg, Rússia/Alemanha, 2002) já seria suficiente para inscrever o nome do cineasta Alekxandr Sokurov em uma nova página da história do cinema. A rigor, o longa-metragem nem precisava ser bom para conseguir marcar esse tento. É simples: “Arca Russa” consegue a proeza tecnológica de ter um único plano-seqüência. Ou seja, o filme inteiro numa tomada única. São 97 minutos gravados em um só fôlego, sem cortes. Além disso, o projeto leva, a uma série de reflexões acerca da natureza da arte cinematográfica.
Muita gente acredita que “Arca Russa” oferece uma pista inequívoca daquilo que poderá ser o futuro do cinema. Como grandes clássicos do passado (“Cidadão Kane”), o trabalho de Sokurov exigiu que um equipamento especial fosse adaptado para que pudesse ser realizado. O cineasta e o diretor de fotografia, Tilman Büttner, tiveram que inventar uma maneira de captar as imagens de forma 100% digital. Essa tecnologia já existia, mas não a possibilidade de gravar 97 minutos de filme sem cortes. O filme digital, em tese, teria que ter cortes. Por isso, a câmera utilizada no longa precisou ser ligada a um disco rígido especial, que armazenava os dados digitais à medida em que as cenas iam sendo captadas.
A suntuosidade do projeto também exigiu um ensaio monumental. Não é de admirar que Sokurov tenha sonhado com o o filme durante 15 anos, e que nada menos do que sete meses tenham sido gastos apenas para montar a coreografia do trabalho, que foi gravado em um único dia: 23 de dezembro de 2001. Por sinal, o filme tinha mesmo que sair naquele dia, querendo ou não, pois o Hermitage só permitiu o projeto porque não precisaria fechar a casa por mais tempo.
Um breve resumo do enredo, acrescido de alguns números, podem dar uma idéia do tamanho hercúleo da tarefa. O longa narra um passeio de dois personagens por 35 salas, pátios, corredores e escadas do museu Hermitage, em São Petersburgo (Rússia). Não é uma tour comum; nela, 3 mil figurantes, todos devidamente caracterizados com os figurinos pomposos, característicos da monarquia, encenam grandes e pequenos momentos de 300 anos da história do país, entre os séculos XVII e XX. Os espectadores ficam conhecendo personagens históricos como os czares Pedro o Grande, Catarina a Grande, Catarina II e Nicolau.
Do ponto de vista técnico, portanto, o projeto é capaz de fazer uma campanha logística como a responsável pela trilogia “O Senhor dos Anéis” parecer festa de aniversário de criança. Além disso, a fotografia, a cenografia e os figurinos se casam maravilhosamente, gerando um filme rico de conteúdo e com imagens de beleza plástica inconfundível. Sokurov logra sucesso em um dos objetivos declarados de “Arca Russa”: retratar o museu Hermitage como uma espécie de repositório orgânico, quase vivo, da cultura de um povo. O filme atinge admiravelmente esse propósito, inclusive quando realiza a crítica dessa mesma cultura, através do enigmático personagem do Europeu (Sergei Dreiden). Ele não economiza ironia, ao comentar sobre a vontade dos monarcas russos em copiar os franceses.
Quando se deixa de lado a parte técnica do filme, porém, sobram questões que merecem reflexão. Há uma pergunta que parece fundamental: por que “Arca Russa” precisou ser filmado em uma tomada só, sem cortes? Qual a razão para a utilização dessa técnica específica? Será que o trabalho ficaria pior se fosse filmado de modo tradicional? Essa pergunta permanece sem resposta. Projetos que tentaram experiências parecidas (“Festim Diabólico”, de Hitchcock, e o recente “Timecode”, de Mike Figgis) tinham justificativas mais sólidas. A película de Hitchcock necessitava de um encapsulamento rigoroso dos limites de tempo e espaço, para gerar a tensão necessária no espectador. Já o trabalho de Figgis tem uma semelhança muito maior com o longa de Sokurov, pois inclusive foi filmado com tecnologia digital de captação de imagens. Mas “Timecode” recorta um mesmo período do dia e o narra em quatro janelas simultâneas que se abrem na tela do cinema. Portanto, a continuidade das imagens também é fundamental.
Em “Arca Russa”, nenhuma resposta a essa pergunta satisfaz inteiramente. Parece óbvio, entretanto, que Sokurov tenta travar um diálogo com uma geração anterior; particularmente, com Sergei Eisenstein. O mestre formalista foi o homem que elevou o conceito de montagem ao nível de arte. Através de obras como “O Encouraçado Potemkim” (1925), Eisenstein mostrou que o cinema criava significado através da justaposição de planos – ou seja, através do corte. Em outras palavras, que o significado que emanava do choque entre duas tomadas isoladas não estava, sozinho, contido em nenhuma delas. A cena de uma criança chorando não significa nada além disso. Um plano de um prato vazio também não. Juntas, essas duas imagens geram uma imagem mental na platéia: fome. Esse conceito foi, depois, ampliado e refinado pelos gigantes na arte do filme, como Stanley Kubrick. Todo o cinema contemporâneo presta tributo a Eisenstein.
Talvez “Arca Russa” tenha a pretensão de oferecer um caminho alternativo ao criador de “Potemkim”, porque, de fato, o trabalho de Sokurov consegue ultrapassar esse problema. Mesmo sem cortes, o conterrâneo de Eisenstein também consegue construir imagens mentais que não estão estritamente contidas nas cenas que vemos na tela. Os 30 minutos finais do longa são o melhor exemplo disso – e também o melhor momento do filme. Vemos a última ceia da família Romanov (evocando a Santa Ceia). Depois, o último baile dos nobres russos, antes da revolução de 1917. A saída das centenas de nobres do prédio principal, em silêncio, imprime uma sensação de nostalgia e desolação que correspondem, em última análise, à imagem mental que a montagem de Eisenstein sempre se preocupou em evocar. O fato de o Europeu avisar ao colega-câmera que não pretende deixar o lugar apenas reforça essa nostalgia. Trata-se do final de uma era, o último suspiro de um período. A calma antes da tempestade.
Nada disso teria sido alcançado sem a ajuda, repito, de uma coreografia rigorosa e nunca menos do que espetacular. Nos 97 minutos, a câmera percorre um caminho literalmente impossível, subindo escadas em espiral, passando por sobre o fosso da orquestra (que executa uma ópera para Catarina, a Grande), executando giros de 360 graus e realizando um verdadeiro balé no trecho final, durante o baile de gala dos Romanov, quando chega quase a levantar vôo. Essas proezas técnicas imprimem um ritmo um pouco mais ágil à narrativa, que possui (como qualquer outro filme que usa a noção de tempo real) uma progressão naturalmente lenta. A câmera praticamente não pára, mas também não acelera a ação. Consegue, assim, um meio termo interessante entre a narração e a reflexão. Por tudo isso, “Arca Russa” é um grande programa para os amantes de um cinema que procura algo novo, ao invés de apenas repetir fórmulas consagradas.
O DVD nacional, da Versátil, é de boa qualidade. Traz o filme com enquadramento original preservado (widescreen 1.78:1 anamórfico), áudio em dois canais (Dolby Digital 2.0) e um making of.
- Arca Russa (Russkij Kovcheg, Rússia/Alemanha, 2002)
Direção: Alekxandr Sokurov
Elenco: Sergey Dreiden, Maria Kuznetsova, Mikhail Piotrovsky, David Giorgobiani
Duração: 97 minutos
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