À frente da gangue dos Droogs, Alex, interpretado por Malcolm McDowell, barbariza as ruas de Londres até ser preso e submetido a um tratamento de “reeducação”, baseado em lavagem cerebral, para ser reinserido na sociedade. O cenário futurista que criou uma nova estética, o figurino que influenciaria o punk, além do uso da música eletrônica – então uma novidade – intercalado com trechos de Beethoven marcaram época no imaginário da Sétima Arte.
Quarenta anos após seu lançamento, ele volta em cópia restaurada ao Brasil, durante a 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, assim como o documentário Era uma Vez… Laranja Mecânica, dirigido pelo francês Antoine de Gaudemar. Ex-diretor de redação do jornal Libération, Gaudemar fala com exclusividade à revista CULT sobre o documentário – “durou dez dias” – e a atualidade de Laranja Mecânica – “uma metáfora da violência da sociedade contemporânea”.
CULT - Laranja Mecânica é um dos filmes mais influentes da história do cinema?
Antoine de Gaudemar – Ele impressionou muito quando foi lançado, pois muitas pessoas o julgavam violento demais. Na Inglaterra, o próprio Kubrick decidiu retirá-lo de circulação após alguns jovens delinquentes terem dito que se inspiraram nele para cometer crimes. O filme se tornou um “cult” para todos aqueles que enxergavam ali uma metáfora da violência da sociedade contemporânea. Ele exprime muito bem o sentimento de desespero que pode levar jovens sem trabalho e sem futuro a atos extremos. Também mostra muito bem como, diante dessa violência, o Estado pode imaginar respostas igualmente violentas, como a lavagem cerebral e a lobotomia – que retiram do indivíduo sua capacidade de livre-arbítrio e o transforma em uma ovelha dócil.
A ideia de que se deve ter prazer o tempo todo – “é uma diversão só”, diz Alex em um dado momento do filme ” – parece disseminada hoje. Kubrick previu esse estado de coisas na sociedade atual?
Um dos slogans de Maio de 68 era: “Ter prazer sem entraves”. E muitos dos jovens dos anos 70 quiseram aplicar esse princípio em suas vidas, recusando-se a viver como seus pais, a trabalhar como todo mundo, libertando-se das proibições sociais (drogas, sexualidade) e cultivando uma forma de hedonismo e de anarquismo. Portanto, Kubrick sabia do que se passava à época, e isso certamente o influenciou. Mas Laranja Mecânica foi igualmente premonitório. As experiência psiquiátricas que descreve no filme de fato ocorreram, não apenas nos países comunistas – como a União Soviética -, mas também nas democracias ocidentais. Kubrick denuncia os perigos de uma repressão violenta demais contra os desvios sociais e a anarquia. Os Droogs recusam todos as amarras da sociedade, desejavam viver como quisessem, sem moral nem lei. Queriam se aproveitar da vida com tanto cinismo quanto as pessoas que os oprimiam - ministros, psiquiatras, policiais. Isso também é válido hoje: o cinismo do poder e do dinheiro é ainda mais forte do que nos anos 70. Os ricos estão cada vez mais ricos, os pobres, cada vez mais pobres, e nunca as desigualdades sociais foram tão grandes nos países ditos “democráticos”.
A cena em que Alex canta Singing in the Rain enquanto violenta a mulher do escritor funciona também como metáfora do próprio filme?
Ela é uma metáfora de Hollywood e da visão americana do mundo, sempre otimista e triunfante. É preciso cantar, ainda que debaixo de chuva. A ilusão é mais forte do que a realidade: o mundo vai mal, mas Hollywood canta. Bater em um homem indefeso e violentar sua mulher enquanto se canta é uma metáfora da violência da sociedade contemporânea: todos os golpes são permitidos, mas tudo é escondido sob um verniz triunfante, encantador como uma comédia musical. Isso é o que pensa Malcolm McDowell – e concordo com ele.
Quais foram as principais inspirações de Kubrick para o figurino e o cenário?
Laranja Mecânica supostamente transcorre em um futuro próximo, o que explica a escolha das casas (a do personagem escritor) e dos edifícios (a prisão) mais modernas, quase futuristas. O filme também é muito marcado pela estética de fim dos anos 60 e de início dos anos 70, da pop art: cores muito vivas, quadros psicodélicos, moda pré-punk, música pop e eletrônica – podemos ouvir no filme os primeiros sintetizadores de Walter Carlos [compositora americana nascida em 1939, foi uma das primeiras a utilizar sintetizadores].
Christiane Kubrick, viúva de Stanley Kubick , diz no documentário que Laranja Mecânica não é um filme inteiramente inglês. Concorda com essa afirmação?
Acho que ela quis dizer que essa história poderia ter ocorrido em outros lugares que não apenas a Inglaterra. O romance de Anthony Burgess e o filme epônimo de Kubrick foram realizados numa época em que despontava um novo tipo de delinquência, a delinquência juvenil. Esse fenômeno foi particularmente sensível na Inglaterra, com o surgimento de gangues como os “skinheads” ou os “hoolingans”, mas isso também ocorria em toda a Europa. Nesse sentido, estou de acordo com Christiane Kubrick.
O sr. vê algum paralelo entre a situação vivida pelos jovens no filme e os distúrbios ocorridos nas grandes cidades da Inglaterra, em agosto passado, e da França, seis anos atrás?
Há relação, sim, embora distante. Em Laranja Mecânica, os Droogs são uma gangue isolada, sem nenhuma consciência política, que roubam dos ricos, agridem mendigos e estupram as mulheres. Em Paris, seis anos atrás, ou em Londres, agora, tratava-se de grupos muito mais numerosos, que desafiavam a polícia, pilhando lojas e tudo o que simbolizasse dinheiro e autoridade. Nos dois casos, são pobres que atacam os ricos, uma espécie de desespero. Mas Alex e sua gangue dependem da criminalidade individual, isolada, enquanto os distúrbios urbanos em Londres e Paris são prova de um profundo mal-estar social e, sobretudo, coletivo.
O tema comum a todos os filmes de Kubrick é a dicotomia clássica entre razão e emoção?
Não sei dizer, pois cada um deles é muito diferente do anterior. Para ficarmos em Laranja Mecânica, diria que o tema do filme são o bem e o mal. Kubrick mostra que a verdadeira natureza do homem é má, e que o mal pode ressurgir nele a qualquer momento. (NOTA: Discordo dessa visão maniqueísta do filme, e não creio que Kubrick a endosse na fita. Acho que o embate está muito mais para o que é dito abaixo, entre PULÃO e RAZÃO. Se o filme passa alguma mensagem é a de que, muito embora seja necessário algum tipo de controle social para que o mundo não mergulho num caos hedonista, o caminho não é o o do autoritarismo. Mas em nenhum momento vejo no filme esta distinção entre bem e mal, tanto que, como o próprio entrevistadoa admite, o personagem principal, mesmo cometendo barbaridades por toda a narrativa, acaba se tornando simpático aos olhos do expectador). De fato, o homem se debate entre razão e pulsão, e isso é o que nos fascina em Alex: não chegamos a considerá-lo inteiramente antipático; ao contrário, ele desperta simpatia em nós, pois nos remete ao nosso próprio inconsciente, à porção de maldade que todos carregamos dentro de nós mesmos.
por Marcos Flamínio Peres
Fonte: Revista cult
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