segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O Anjo exterminador

Eu não acredito em fantasmas, mas tenho medo deles. Justamente pelo fato de não acreditar, me assusta a idéia de, um dia, os ver. Mas ver mesmo, de verdade. Porque acredito que as pessoas vêem fantasmas, apesar deles não existirem. É o poder de sugestão da mente, especialmente se a mente estiver, por si só, assombrada.
Quando eu era criança, uma vez, eu vi um fantasma. Estava deitado no escuro e com medo, claro. As orações não foram suficientes para evitar a visão de um espectro assustador pairando sobre minha cama de forma ameaçadora. Lembro que fechei e abri os olhos várias vezes para tentar fazer com que a imagem desaparecesse, mas não adiantou.
Na época interpretei a o fato como a aparição de um espírito, mas curiosamente, com o passar do tempo, o meu visitante noturno foi meio que se revelando mais como a figura de um anjo. Não era, no entanto, o anjo da guarda: era ameaçador, me espreitava e parecia estar pronto para me punir a qualquer momento – provavelmente por estar com preguiça de rezar antes de dormir. Uma espécie de “Anjo exterminador”, como no filme de Luiz Bunuel.
A imagem me veio novamente à mente anteontem, quando estava lendo os delírios infantis do autor de quadrinhos Craigh Thompson em sua graphic novel “Retalhos”. Ele também, assim como eu, cresceu num ambiente assombrado pela religião e suas regras proibitivas castradoras, e exorcizou-as em uma das melhores Historias em quadrinhos que eu li em tempos recentes (foi lançada originalmente em 2003). São praticamente 600 páginas que fluem suavemente e podem ser lidas, tranquilamente, numa sentada só. Até porque fica difícil largar antes de terminar: eu não consegui, pois queria muito saber, principalmente, como iria terminar aquele romancezinho adolescente tão bonito. Fiquei um pouco frustrado com o final, mas entendi: tudo passa. O amor é lindo, mas a vida é dura, e segue em frente. Sempre.
“Sing your life”, já dizia Morrissey. “Retalhos” é um romance gráfico autobiográfico em que o autor conta sua vida na infância e na adolescência, com um foco especial em seu primeiro namoro. E é belíssimo, tanto no conteúdo quanto na forma: o cara desenha muito! Tem um traço elegante, refinado, detalhista e, acima de tudo, bonito. Valorizo traços “toscos” que tenham estilo, mas confesso que tenho uma predileção especial pelos que, além do estilo, que é sempre importante, também fazem questão de desenhar bonito. E para os fãs de rock independente, como eu, há uma diversão a mais: identificar as imagens de capas e pôsteres de discos e bandas na superpoluida parede do quarto de Rania, onde acontece boa parte da narrativa. O Nirvana é uma presença constante, já que a história se passa no auge da febre “grunge”, mas também estão lá a PJ Harvey, o Dinosaur Jr., Sonic Youth e Daisy chainsaw, dentre outros.
A história é simples, muito simples até: fala de dois irmãos que têm que dividir uma cama e os conflitos que isto provoca, de seus pais cristãos fundamentalistas bem intencionados porém involuntariamente castradores, das sensações de inadequação e do bullyng na escola e do sentimento de possessividade em relação à mulher amada. Mas tudo contado de forma leve, fluente e, acima de tudo, poética – não aquela poesia empostada e floreada, mas a poesia da vida, em si. A beleza das pequenas coisas. Até mesmo a passagem em que é abordado o abuso sexual pelo qual os dois jovens passaram quando criança é narrada de forma tranqüila, sem resquício de rancor para com o agressor. O mesmo vale para seus pais, cuja crença exacerbada no poder supostamente educador da punição é mostrada em toda sua plenitude sem, no entanto, retratá-los como vilões - e olha que é angustiante e assustadora a narrativa de pelo menos um castigo infligido ao irmão menor, condenado a uma espécie de "solitária", preso em um quarto minusculo e sem ventilação. Craigh Thompson não é mais cristão, mas demonstra uma rara capacidade de perdoar.
Li o livro todo de uma vez só, numa madrugada insone. Comecei por volta das 3 da manhã e só fui terminar quase 7. O sono já tinha chegado, mas não conseguia largar. Estava apaixonado por Rania, tanto quanto o protagonista. Fiquei com uma imensa curiosidade de saber por onde ela anda, o que está fazendo, o que aconteceu com sua família depois que eles deixaram de ser o foco da narração do livro. É daquelas leituras que, ao fim, deixam um sentimento de leveza na alma. Tenho passado por alguns momentos difíceis, física e psicologicamente falando, e nestes momentos gosto ainda mais de ler. A arte é inspiradora, nos ajuda a seguir adiante, e a literatura é, definitivamente, uma grande arte.
por Adelvan
+ retalhos:
A infância e a adolescência de Craig Thompson não foram das mais fáceis. Humilhado por colegas de escola, vítima de abuso sexual, educado sob um cristianismo rigoroso, este garoto criado numa comunidade rural do provinciano Estado de Wisconsin foi um típico "loser" americano, atormentado pelas memórias até tornar-se adulto.
Sorte nossa. Os fantasmas da primeira idade serviram de inspiração para "Retalhos", bela história em quadrinhos autobiográfica, 592 páginas que dialogam com os romances de formação da literatura clássica.
Lançado no exterior em 2003, quando o autor tinha 27 anos, "Retratos" chega agora ao Brasil após merecidamente receber algumas das principais honrarias do mundo da HQ, como o Eisner e o Harvey Awards nos EUA (2004) e o prêmio da crítica francesa no tradicional Festival de Angoulême (2005).
O traço detalhista de Thompson não desenha apenas agruras. As brincadeiras e brigas com o irmão caçula e, principalmente, a relação com Raina, a primeira namorada, guiam o fio narrativo de "Retalhos".
À Folha o autor conta que "tinha uma motivação simples" quando começou a escrever a obra, no segundo semestre de 1999. "Estava frustrado com o predomínio das histórias de fantasia bombásticas no meio da HQ. Queria fazer um livro longo que deixasse de lado as sequências de ação para capturar uma experiência íntima e silenciosa, como a de dividir a cama com alguém pela primeira vez. Os temas autobiográfico e religioso se encaixaram."
Thompson afirma que, quando fez "Retalhos", estava "especialmente inspirado" pelos escritos de Marcel Proust e Vladimir Nabokov e que absorvia as obras de quadrinistas franceses como David B., autor de "Epilético" (1996), história também autobiográfica.
A fé ocupa espaço central nas memórias de Thompson, e "Retratos" é pontuado pelo crescente questionamento dos preceitos da Igreja Batista que o autor frequentava na infância. Ao informar à família que exporia o passado de todos em uma "graphic novel", Thompson recebeu o apoio do irmão, mas não dos pais. "Eles reagiram muito mal, me repreenderam, dizendo que o livro era um 'instrumento do demônio' e que eu iria para o Inferno."
O quadrinista diz que seus pais hoje respeitam sua descrença e que o sucesso da obra do capeta virou motivo de orgulho para eles. "Muitos dos fãs do livro são cristãos devotos, até pastores, que veem em 'Retalhos' um retrato honesto da espiritualidade de alguém."
Paixão abaixo de zero
Outro elemento importante da obra é o frio --Wisconsin tem invernos rigorosos, e grande parte da HQ se desenrola sob neve. "Talvez as temperaturas extremas tenham ajudado a congelar aqueles momentos, como memórias ancoradas por fortes sensações físicas", comenta Thompson. "Minha relação com Raina, como muitas experiências de infância, foi curta e efêmera --ligada a uma única estação de um único ano, e é impossível tirar toda aquela neve de minhas fotografias internas", conclui, poeticamente.
Após "Retalhos", Thompson lançou "Carnet de Voyage", com registros de sete meses de andanças pela Europa e pelo norte da África, e "Habibi", sobre o mundo árabe.
por LEONARDO CRUZ
Ilustrada


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