Agora o bicho parece ter pegado pra valer na “cidade maravilhosa cheia de encantos mil”. Não parece haver mais nenhuma dúvida de que a situação é de guerra – talvez não uma guerra civil, já que não há dois exércitos regulares travando combate pela tomada do poder do estado, muito embora o embate até que poderia se encaixar na descrição fornecida pela Wikipédia (Guerra civil ou guerra interna é a guerra que se faz entre partidos ou grupos de um mesmo povo ou país). Não não é o caso, já que o tráfico de drogas não é uma organização ampla e organizada ao ponto de aspirar o controle político da nação como um todo. É, no entanto, sem sombra de dúvidas, uma guerra, urbana, e das mais brutais.
Há relativamente pouco tempo a polícia carioca parece ter descoberto, finalmente, que a brutalidade pura e simples não estava adiantando nada nesta contenda, muito pelo contrário, estava apenas contribuindo para aumentar a rejeição da população às autoridades legitimamente (pelo menos em tese) constituídas. Com as UPPs, bases de polícia cidadã, instaladas nos morros e sempre em contato com a população, o governo começou a ganhar terreno nos territórios controlados pelo tráfico. A reação dos bandidos, tocando literalmente o terror por toda a cidade, parece ter precipitado algo que já estava se configurando para ser posto em ação de forma gradual. O resultado foi o que todos vimos nos últimos dias: a espetacular tomada de dois dos maiores redutos do crime pelas forças do estado, num raro exemplo de articulação bem sucedida entre as esferas federal, estadual e municipal. O clima é de otimismo, um pouco exagerado até, beirando o ufanismo, mas espero que, pelo menos em parte, se confirme. Não sou anarquista e portanto acredito na legitimidade do monopólio da violência pelo estado – desde que este seja, evidentemente, o mais democrático possível. Só a democracia, com o máximo de controle exercido pela sociedade civil organizada, é capaz de legitimar, moralmente, o poder estatal, e mesmo com dificuldades, aos trancos e barrancos, acredito estarmos avançando positivamente também neste sentido.
Vendo as diversas manifestações do tipo “I Love Rio” pelas redes sociais, resolvi dar uma modesta contribuição relatando minha experiência pessoal com a cidade e seus habitantes. Os cariocas são, em geral, gente boa, hospitaleiros e expansivos. Isso pode ser observado facilmente nas ruas, mas é fato, comprovado inclusive por pesquisas. Costumo dizer que a diferença entre cariocas e paulistas é basicamente a seguinte: se você fala, no Rio, que gostaria de conhecer um lugar, a pessoa geralmente se prontifica para levá-lo lá, servir como guia, se não na hora, no momento mais apropriado. Já o paulista simplesmente te ensina como chegar lá e você que se vire. Veja bem, não estou desmerecendo os paulistas, até porque se for comparar o sergipano tem muito mais de paulista que de carioca, é um povo meio “desconfiado” e avesso a abordagens excessivamente íntimas. Eu mesmo sou assim, mais introspectivo – neste ponto, me considero um sergipano típico. Isso é natural, são as características culturais de cada povo – os novaiorquinos, por exemplo, têm fama de serem avessos a demonstrações de afeto para com estranhos também, mas nem por isso Nova York deixa de ser uma cidade fenomenal, como São Paulo também o é. Mas que os cariocas são, geralmente, mais simpáticos e bem humorados, isso são. CB – Çangue Bom.
Digo isso baseado em grande parte em minha experiência pessoal. Conheci São Paulo primeiro e fui muito mais vezes para lá, pois é lá que tenho parentes e por isso era onde me sentia, a princípio, mais à vontade. Mas à medida que fui conhecendo melhor alguns cariocas e o Rio de Janeiro, especialmente a partir da segunda vez em que estive na cidade, em 1998 (primeiro show do U2 no Brasil), me apaixonei. Sou apaixonado também pelos meus amigos de lá – um deles, por sinal, morava (não sei se ainda mora) justamente no complexo do Alemão. Me lembro de uma vez em que liguei para ele e ele me pediu pra esperar um pouco para ele ir fechar a janela pois estava rolando um tiroteio lá fora. Falei: “tu ta de sacanagem né?”, mas ele colocou o fone na janela e dava para ouvir, nitidamente, o som de tiros de fuzil. Sinistro. Este meu amigo, inclusive, me dá a impressão de ser uma pessoa um tanto quanto triste, algo perfeitamente compreensível para quem mora num lugar onde você sai para trabalhar pela manhã e se depara com um aglomerado de gente em torno de uma Kombi cheia de cadáveres na porta de sua casa ou escapa por pouco de pegar o mesmo ônibus que seria, posteriormente, incendiado com as pessoas dentro – situações reais que ele me relatou ou que vi “in loco”, quando estava por lá. Mas é, ao mesmo tempo, muito gente fina, sempre solícito e com um humor afiado. Foi com ele que viajei de bondinho por Santa Tereza, que atravessei pela primeira vez a Baía de Guanabara rumo a Niterói e passeei pela Lapa, onde ele tinha uma loja especializada em vinis, além de dar muitos “rolês” pelo centro à procura de discos baratos enquanto conhecia o SAARA, o CCBB, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional ...
Com outro grande amigo conheci a Zona Oeste, já que ele mora em Campo Grande, um dos bairros mais afastados do Rio, praticamente uma cidade à parte. Na época, controlado por uma milícia, se não me engano. Lembro da gente passeando pelo calçadão, no shopping, e ele falando como era surreal minha presença ali, já que, pode-se dizer, ninguém vai a Campo Grande, a não ser que more ou tenha parentes por lá. Bom, parentes eu não tenho, mas tenho um amigo que pra mim é como se fosse um irmão, aquele tipo de irmão com o qual você tem mais afinidade e no qual confia plenamente. Pra mim, foi o maior prazer tomar uma deliciosa sopa de ervilha preparada por sua mulher num sábado à noite enquanto ouvíamos Ratos de Porão na varanda de sua casa. Vale citar, inclusive, o comentário que ele fez depois de ouvir com atenção meu rosário de loas e elogios deslumbrados à beleza do Rio de Janeiro: "É, curioso, eu não consigo pensar no Rio como outra coisa a não ser uma cidade muito violenta". Dependendo do lugar em que você more e da vida que você leve, deve ser bem por aí, mesmo ...
Como foi um enorme prazer ser hospedado por minha amiga Soraya, no Flamengo, ou por meu camarada Danúbio, em Ipanema - o cara na companhia de quem eu visitei o magnífico prédio do MAC de Niterói, projetado por Oscar Niemeyer. Em Ipanema, dentre outras coisas, pude conferir pessoalmente a sensação de ouvir um tiroteio pela janela do apartamento, já que ele morava de frente para uma favela, ou ver o por do sol nas pedras do arpoador e constatar que é verdade a história de que a praia inteira aplaude o espetáculo da natureza ao final. Uma cena meio hippie e piegas, mas confesso, foi emocionante. A gente vê a vida inteira essas paisagens em fotos ou pela televisão, mas acredite: estar lá, pessoalmente, é muito diferente. Não viajo tanto quanto gostaria, nunca estive fora do Brasil, mas duvido que exista, no mundo, uma cidade mais bonita que o Rio de Janeiro.
Tenho dito.
A.
Nenhum comentário:
Postar um comentário