Superestimamos as possibilidades com as vitórias de Hugo Chávez, Nestor Kirchner, Jose Mujica,
 Lula e tantos outros. Nosso segundo engano veio com a crise financeira 
norte-americana de 2008. Esses eventos políticos, econômicos e sociais 
transmitiram a sensação de que as ideias formuladas e propagandeadas 
desde Washington para o mundo estavam mortas.
Ledo engano, apesar das conquistas sociais e da exuberância 
do ciclo político de tentativas de distribuição de renda, riqueza e 
oportunidades na América latina. As ideias de Washington nunca morreram e
 nunca morrerão enquanto o capitalismo existir.
Nos últimos 20 anos, entretanto, as vitórias na América 
Latina de candidatos democratas e progressistas (com influência e 
participação da esquerda) foram reações políticas bem-sucedidas. 
Demostraram alguma capacidade de resistência ao rolo compressor 
reorganizado no programa chamando de Consenso de Washington de 1989.
Por outro lado, o terremoto financeiro de 2008 representou 
apenas dores de crescimento do projeto de Washington. A crise ocorreu (e
 ainda permanece) porque os capitais financeiros abundantes buscavam 
novos mercados para dar continuidade ao seu processo de acumulação 
continuada e acelerada.
A turbulência iniciada em 2008 não foi uma crise do projeto 
de Washington que demonstrou uma fraqueza teórica ou econômica do seu 
pilar. Muito ao contrário, era uma crise que revelava quão forte era o 
seu pilar. O poderio econômico monstruoso é o pilar do projeto de 
Washington.
Começamos uma nova era do capitalismo nos anos 1980, com as reformas propostas por Margareth Thatcher e Ronald Reagan.
 Tais propostas de mudanças foram consagradas no programa batizado por 
John Williamson de Consenso de Washington. Essa é uma agenda alternativa
 ao programa socialdemocrata que havia vigorado de forma mais intensa a 
partir dos anos 1940. A socialdemocracia havia organizado um sistema de 
harmonia entre o capital e o trabalho.
No pós-segunda Guerra, os capitais foram regulados e, 
portanto, foi contida a busca voraz pela maximização de lucros. Em 
linhas gerais, houve a socialização dos ganhos do sistema via esquemas 
de tributação e geração de pleno emprego, o que resultou na ampliação de
 oportunidades sociais. Era marca da socialdemocracia a geração de 
empregos com condições dignas e salários generosos. A socialdemocracia é
 um programa político de contenção dos instintos capitalistas de 
concentração de renda, riqueza e oportunidades.
Oposição teórica e política à socialdemocracia e ao 
socialismo existia há décadas. Contudo, não existiam condições objetivas
 para uma reação do capital. Somente nos anos 1970 é que houve a 
desorganização econômica no Reino Unido e nos Estados Unidos. Houve 
desaceleração econômica, recessão e inflação. As condições objetivas 
econômicas degradadas, então, abriram espaço para a reação política do 
capital.
O movimento iniciado por Reagan-Thatcher sugeria a superação
 do modelo que propunha a regulação do capital, que distribuía renda e 
riqueza e multiplicava oportunidades para todos. Nos anos 1980, foi 
idealizado uma reorganização do capitalismo onde foram escolhidos os 
atores que seriam os campeões mundiais da reação e da dominação do 
capital. Foram escolhidos os mais fortes para que ficassem mais fortes 
ainda. Os candidatos naturais eram as megacorporações financeiras e 
produtivas, ou seja, os grandes bancos e multinacionais.
A consequência dessa opção política e econômica é uma opção 
de classe, pois o capitalismo organiza a sociedade em classes. Os donos 
do capital seriam favorecidos, os trabalhadores seriam empobrecidos e os
 pobres se tornariam miseráveis.
O programa estabelecido no Consenso de Washington é 
essencialmente econômico. É, no entanto, reconhecido na apresentação do 
consenso por Wiliamson um desejo maior de Washington. Desejavam a 
democracia, direitos humanos e preservação do meio ambiente em outros 
países.
Essa é uma das partes mais importantes do artigo de 
Williamson. O autor claramente indica que embora existam esses objetivos
 mais amplos, “...(eles) jogam diminuto papel na determinação das 
atitudes de Washington em relação às (formulações das) políticas 
econômicas...”  e que as políticas estabelecidas no programa não teriam 
“...implicações importantes para quaisquer daqueles objetivos”.
A mensagem é que o Consenso de Washington é um programa que 
pode ser implantado com democracia ou sem democracia, com preservação do
 meio ambiente ou com a sua destruição e com direitos humanos ou sem 
eles.
Na primeira onda de aplicação desse programa, chamada de onda neoliberal
 dos anos 1990, houve as primeiras entregas aos campeões mundiais: 
desregulamentação financeira, privatizações e redução de carga 
tributária para o grande capital e seus proprietários. Embora 
bem-sucedido na realização de entregas aos de cima, o efeito colateral 
daquela onda neoliberal foi uma enorme insatisfação popular. Seus 
executores prometeram prosperidade aos trabalhadores e pobres, mas 
somente entregaram realizações aos rentistas, às multinacionais e aos 
bancos.
O projeto de Thatcher, Reagan e do Consenso de Washington 
foi derrotado nas eleições presidenciais no Brasil nos anos 2000 e em 
diversos países da América Latina onde tinha sido aplicado. Apesar dos 
fracassos eleitorais, continuou seu movimento por diversas vias. 
Penetravam nos governos que faziam oposição, apoiavam movimentos de 
desestabilização desses governos, conquistaram as mídias locais, o 
Judiciário, a burocracia estatal e financiavam movimentos para ampliar a
 base política de oposição nas casas legislativas e na sociedade.
Embora pareça um pleonasmo, vale dizer que o principal motor
 do capital é o seu poderio econômico. Isso facilita a sua atividade em 
uma sociedade capitalista: é peixe na água. O capital utilizou o seu 
poderio econômico para se valer das táticas elaboradas por seus 
opositores. Foi e tem sido bem-sucedido. Trabalhou incessantemente para 
conquistar a hegemonia cultural dos seus valores à Antonio Gramsci. Fez 
estudos, agitação e propaganda tal como descrito no “O Que Fazer?” de 
Vladimir Lenin. São 30 anos de atividade militante diária do capital 
apoiada por trilhões de dólares.
A ideologia e a política do capital se infiltraram por todos
 os cantos, por todos os lados. Penetraram na consciência e nos sonhos 
de lideranças políticas e do cidadão comum. Os grandes bancos passaram, 
por exemplo, a comandar os resultados de pesquisas nos departamentos de 
economia das principais universidades norte-americanas (cenas 
constrangedoras foram registradas no documentário Inside Job, de Charles Ferguson).
Mais: mundo afora, partidos progressistas e de esquerda 
abandonaram a luta de classes e suas políticas de desconcentração da 
renda e da riqueza para abraçar pautas identitárias (mas continuam se 
autovalorizando e arrogantemente se autointitulando de esquerda pura).
A força do capital é tão grande nos dias de hoje que ela 
neutralizou ou anulou o campo político no qual a esquerda pode atuar. A 
democracia e os processos eleitorais serão utilizados se o candidato 
representante do capital tiver vitória garantida. A democracia e os 
processos eleitorais serão controlados, deformados ou suprimidos se 
houver chance de vitória de um candidato que não seja de confiança do 
capital.
A corrupção será combatida em nome da vitória eleitoral do 
candidato do capital. A corrupção será praticada se for para garantir a 
vitória do candidato do capital. O capital necessita apenas controlar os
 orçamentos governamentais e os recursos naturais. A política, as 
organizações partidárias, a democracia, as instituições, os Estados 
nacionais não são necessários ao capital para que os seus fins 
(descritos em dez pontos do Consenso de Washington) sejam alcançados.
O erro inicial dos estrategistas do Consenso de Washington 
foi pensar que poderiam conviver com a política e a democracia sem 
restrições. As derrotas que sofreram em quatro eleições presidenciais no
 Brasil e em vários outros países colocaram fim nessa ilusão. Desfeita a
 ilusão, viraram a mesa. Tal virada somente foi possível porque 
conquistaram corações e mentes (ou seja, obtiveram hegemonia cultural e 
política).
O capital, por meio da atuação das multinacionais e grandes 
bancos, estava invertendo há anos a curva de desconcentração de renda e 
riqueza do período 1945-1975. Não era fácil fazer tal interpretação à 
época (ao longo dos anos 1990 e 2000). E mais: ainda que fosse feita, a 
força do capital é avassaladora. Talvez, a trajetória fosse de maior 
resistência, mas não necessariamente de vitória sobre o capital.
Na segunda década do XXI, o capital avançou ainda mais sobre
 a América Latina e busca a sua consolidação política e ideológica. Em 
Honduras, Manuel Zelaya
 foi golpeado. Fernando Lugo foi derrubado no Paraguai. No Brasil, Dilma
 Rousseff também sofreu um golpe. Na Argentina, Cristina Kirchner foi 
derrotada nas eleições e é perseguida pelo Judiciário. No Uruguai, Jose 
Mujica teve que dar ênfase nas pautas de identidade.
No Equador, Rafael Correa não conseguiu reintroduzir o 
sucre, a moeda nacional. Na Venezuela, Hugo Chávez politizou as forças 
armadas e as massas e reorganizou o Judiciário. Os Estados Unidos 
reagiram e derrubaram o preço internacional do petróleo por meio do 
aumento da produção (interna e com uma aliança com a Arábia Saudita). 
Assim, deixaram o país em crise e aumentam o cerco. Nicolas Maduro resiste como pode.
E, no Brasil, a perseguição continua incessante: Lula é caçado por todos os lados.
Na nova era do capitalismo, o capital não aceita mais a 
política de conciliação com o trabalho. Nenhuma concessão é feita. A 
socialdemocracia não é mais aceita, nem a genuína, a europeia, nem a 
latino-americana do século XXI. O rolo compressor avança. O jogo é 
jogado sem regras. É vale tudo. É luta de classes cristalina pela 
concentração da renda e da riqueza por meio do controle de orçamentos 
públicos e dos recursos naturais.
por João Sicsú
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