Multidões saíram às ruas. Enfurecidos, manifestantes depredaram a sede da Tribuna da Imprensa, o jornal de Carlos Lacerda, mais furibundo dos adversários de Getúlio. Uma massa humana de 100 mil pessoas, a maioria em pranto incontrolável, desfilou diante do caixão do presidente, velado no próprio Palácio do Catete, sede do governo federal, no Rio. A imprensa noticiou que cerca de 3 mil pessoas presentes ao velório, vítimas de desmaios, mal-estares, crises nervosas e problemas de coração, precisaram ser atendidas pelo serviço médico do palácio. Na enfermaria, o estoque de calmantes esgotou-se em minutos. O país inteiro quedou em estado de choque. Ninguém esperava por aquele desfecho para a crise que se abatera como uma nuvem negra sobre o governo, apesar de o próprio Getúlio ter dito, dias antes, com todas as letras: “Só morto sairei do Catete”.
A pergunta que se fez à época, e que até hoje ecoa, exatos 50 anos depois, é uma só: afinal, por qual motivo Getúlio se matou? O que levou o presidente a puxar o gatilho de seu revólver, após apontá-lo contra o próprio coração? Que sentimentos insondáveis povoavam o homem Getúlio Vargas no instante daquele gesto que mudaria a história do Brasil?
Como sempre ocorre, boa parte das possíveis respostas e certezas morreu junto com o próprio suicida. Mas, reconstituindo os fatos daquele aziago mês de agosto – mês de desgosto, no imaginário popular brasileiro –, é possível esclarecer os últimos momentos de Getúlio. Entre as tantas hipóteses, conjecturas e análises divergentes, uma coisa pelo menos é certa: o governo Vargas começou a morrer 20 dias antes, alvejado por outro tiro, este ironicamente disparado contra seu arquiinimigo Carlos Lacerda. Entre os dois tiros, um que atingiu o pé esquerdo de Lacerda, o outro que se alojou no peito de Getúlio, estão as respostas para a pergunta que não quer calar.
Na madrugada de 5 de agosto, pouco depois da meia-noite, Carlos Lacerda havia sido vítima de um atentado diante do portão do prédio onde morava, na rua Tonelero, em Copacabana. Dois disparos atingiram seu acompanhante, o major da Aeronáutica Rubens Vaz, que não resistiu aos ferimentos. Foi impossível não ligar o atentado da Toneleros às críticas virulentas disparadas diariamente por Lacerda contra o governo pelas páginas da Tribuna da Imprensa. Com a linguagem destemperada de sempre, Lacerda chegara a chamar o presidente de “monstro”, o deputado Lutero Vargas de “filho rico e degenerado do Pai dos Pobres” e Oswaldo Aranha de “mentiroso e ladrão”.
Carlos Lacerda escapou, por pouco, do atentado. Naquele mesmo dia exibiu, em seu jornal, as fotos de um ferimento a bala em seu pé esquerdo – ferimento cuja veracidade seria contestada depois. O prontuário do Hospital Miguel Couto, onde fora atendido, sumiria misteriosamente. Mas o estrago, àquela altura, já estava feito. “Acuso um só homem como responsável por esse crime. É o protetor dos ladrões, cuja impunidade lhes dá a audácia para atos como o desta noite. Esse homem é Getúlio Vargas”, escreveu Lacerda. A oposição tinha agora um cadáver, o do major Vaz, e seu principal representante, antes já suficientemente feroz, passara a agir a partir de então como um animal ferido.
“Esses tiros me ferem pelas costas”, reconheceu Getúlio. As principais suspeitas recaíram sobre Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do presidente. Na manhã do dia 5, Getúlio chamou Gregório e indagou-lhe se tinha participação no episódio. Ele negou. À tarde, no Congresso, o líder da maioria, Gustavo Capanema, leu uma declaração assinada por Vargas: “Até agora considerava Lacerda meu principal inimigo. Mas agora o considero meu inimigo número 2; o número 1, aquele que causou o maior prejuízo ao meu governo, foi o homem que atentou contra sua vida”.
Contudo, os indícios e as investigações da trama logo apontaram para os corredores do Palácio do Catete. O fio do novelo começou a despontar logo no primeiro dia, quando um motorista de táxi que trabalhava próximo ao palácio apresentou-se voluntariamente à polícia e afirmou que levara, na noite anterior, um membro da guarda presidencial, Climério de Almeida, ao local do crime. Manifestações de protesto civis e militares pipocavam na capital federal, deixando o governo cada vez mais acuado. Cerca de 5 mil pessoas compareceram ao enterro de Vaz, enquanto Climério, em vez de prestar esclarecimentos, tratou de desaparecer do mapa.
No dia 8, com as acusações desabando sobre sua mesa de trabalho, Getúlio resolveu dissolver a guarda pessoal e franquear as dependências do Catete para as investigações. Tal atitude não satisfez a ira dos adversários. No Congresso, deputados da conservadora UDN (União Democrática Nacional), agrupados na chamada “Banda de Música” – assim conhecida pelo barulho que provocava em plenário com seus discursos inflamados e orquestrados –, passaram a exigir a renúncia de Vargas. Da Aeronáutica, a crise logo se alastraria para as demais corporações armadas. Durante todo o seu governo, Getúlio enfrentara a oposição dos militares, especialmente após ter nomeado, no ano anterior, João Goulart, o Jango, no cargo de ministro do Trabalho. Jango, considerado pelos quartéis um notório esquerdista, propôs um aumento de 100% no salário mínimo e acabou derrubado do cargo, por pressão dos militares.
A saída de Goulart do governo não afastara a desconfiança dos quartéis ou das forças políticas e econômicas mais conservadoras, que diagnosticavam no nacionalismo de Vargas uma perigosa “guinada à esquerda”. Assim, naqueles dias tormentosos de agosto, as forças civis e militares insatisfeitas com os rumos do governo vislumbraram a ocasião propícia para afastar, de uma vez por todas, Getúlio do poder. Fazendo coro à “Banda de Música” udenista, membros do Alto Comando das Forças Armadas decidiram bombardear a resistência do presidente. No dia 12, data da missa de sétimo dia do major Vaz na Candelária, foi instaurado na Base Aérea do Galeão um inquérito policial-militar, um IPM, sob o comando do coronel Adil de Oliveira. Apelidado de “República do Galeão”, o IPM deteve suspeitos, convocou testemunhas e, em poucos dias, selaria o destino do presidente.
Enquanto o IPM era instalado e o comércio do centro do Rio fechava as portas para celebrar o luto pelo major Vaz, Getúlio decidiu viajar para Minas Gerais, onde foi recebido com pompa e circunstância pelo governador Juscelino Kubitschek. Na inauguração de uma siderúrgica em território mineiro, faria seu último e contundente discurso: “Advirto aos eternos fomentadores da provocação e da desordem que saberei resistir”, disse o presidente ao microfone, emocionado, ao lado de um sempre sorridente JK. No dia seguinte, de volta ao Rio, encontrou o cenário ainda mais turbulento. Um pistoleiro, Alcino do Nascimento, havia sido preso e confessara ter atirado contra Lacerda por encomenda de Climério, ainda foragido. Mas o pior ainda estava por vir: pelo depoimento de Alcino, as suspeitas da autoria intelectual do atentado recaíam agora sobre Lutero Vargas, ninguém menos do que o filho do presidente.
Lutero, por recomendação expressa de Getúlio, apresentou-se espontaneamente ao IPM e renunciou à sua imunidade parlamentar, pondo-se à disposição das investigações. “Estou sendo vítima de uma torpe difamação”, diria ele ao país, por meio de uma rede oficial de emissoras de rádio. Mas, nos dias seguintes, uma sucessão de acontecimentos abalaria ainda mais as estruturas do Catete. Em 16 de agosto, com a tropa fora de controle, o ministro da Aeronáutica Nero Moura pediu demissão. No dia 18, Climério foi preso e confessou ter recebido ordens de Gregório Fortunato, cuja prisão já havia sido determinada pelo IPM no dia 15.
Há quem afirme que Fortunato, após sustentar outras versões, acabou assumindo a culpa pelo atentado contra Lacerda para proteger aquele que seria o verdadeiro culpado do crime, Benjamin Vargas, o “Bejo”, irmão caçula de Getúlio. O jornalista José Louzeiro, por exemplo, foi um que defendeu a hipótese em seu livro O Anjo da Fidelidade: A História Sincera de Gregório Fortunato. Segundo seu biógrafo John W.F. Dulles, Lacerda também tinha a firme convicção de que Bejo seria o mandante do crime. Seja como for, outras revelações do IPM, levadas a público no dia 18 de agosto, apontariam novas e suspeitas ligações de Fortunato com familiares do presidente. De acordo com documentos apreendidos no porão do Catete, no arquivo pessoal de Fortunato, o filho mais novo de Getúlio, Manoel Antônio Vargas, o Maneco, vendera ao Anjo Negro uma fazenda por 3 milhões de cruzeiros – quando o salário de Fortunato não passava de 15 mil cruzeiros mensais. Era a gota d’água. “Estou mergulhado em um mar de lama”, foi a frase atribuída a Getúlio naqueles dias de tensão sem trégua.
A revelação alquebrou as forças do presidente. Segundo o jornalista Glauco Carneiro conta em seu livro Lusardo, o Último Caudilho, Oswaldo Aranha encontrou Getúlio debruçado numa janela do Catete, de óculos escuros, procurando esconder os olhos vermelhos. “Reaja, você é um homem forte”, Aranha ainda tentou animá-lo. Mas o cerco se fechara. No dia 21, o presidente recebeu no palácio o seu vice, Café Filho, que dez dias antes havia se reunido secretamente com Carlos Lacerda e aderido à conspiração. Café propôs a Getúlio o que havia combinado anteriormente com Lacerda: a tese da renúncia conjunta do presidente e do vice. Getúlio, porém, desconversou. No entanto, seus dias de governo – e de vida – já estavam contados.
Em 22 de agosto, um grupo de brigadeiros divulgou um manifesto que exigia a renúncia imediata do presidente. Os almirantes se disseram solidários aos colegas da Aeronáutica e também pediram a cabeça de Getúlio. A posição do Exército viria logo depois, no dia 23. Um documento assinado por 27 generais circulou pelos quartéis e passou a ser entendido como uma espécie de ultimato: “Os abaixo-assinados (…) declaram julgar como melhor caminho para tranqüilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas a renúncia do atual presidente da República”.
A notícia do Manifesto dos Generais, junto com a informação de que se tornara praticamente impossível controlar a agitação na caserna, chegou a Getúlio por volta de 0h daquele trágico 24 de agosto. A informação seria levada ao Catete pelo ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, e pelos também generais Mascarenhas de Morais e Odylio Denys. Exausto, Getúlio disse-lhes que convocaria uma reunião ministerial no dia seguinte para discutir a gravidade da situação. Mas o general Mascarenhas, apreensivo, aconselhou ao presidente que, mesmo levando-se em conta o adiantado da hora, era melhor que todos os ministros fossem tirados da cama e convocados imediatamente ao palácio. Getúlio compreendeu a urgência do caso, acatou a sugestão e ordenou que os assessores se concentrassem na tarefa de acordar o ministério com telefonemas disparados no meio da madrugada.
A tal reunião se arrastou, lenta, até depois das 4 da manhã, sem chegar a nenhuma conclusão. Alguns ministros sugeriram a resistência, apoiados pela palavra firme da filha do presidente, Alzira Vargas, que mesmo não sendo convidada invadira o salão ministerial e fizera questão de participar da reunião. Outros, a exemplo de José Américo de Almeida, ministro das Viações e Obras Públicas, afirmaram que a melhor saída, para evitar derramamento de sangue, seria mesmo resignar-se e submeter-se à renúncia. Impaciente, Getúlio abriu a agenda pessoal e rabiscou a seguinte nota: “Já que o ministério não chegou a uma conclusão, eu vou decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com um pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui o meu cadáver”.
Aquela última frase da anotação, logo se saberia, não significava um esforço retórico, uma mera frase de efeito. Dias antes, em 13 de agosto, Alzira Vargas já encontrara um rascunho, escrito a lápis pelo pai, no mesmo tom: “Deixo à sanha dos meus inimigos o legado da minha morte”. No dia 23, véspera da reunião ministerial, o jornal getulista Última Hora, de Samuel Wainer, publicara uma manchete que também se anunciaria profética: “Getúlio ao povo: Só morto sairei do Catete”.
Após a reunião, sozinho em seu quarto, Getúlio não conseguiu pregar o olho. Foi procurado pelos familiares pelo menos três vezes entre o final da madrugada e o começo da manhã. Primeiro, Alzira levaria a ele a nota oficial redigida pelo ministro da Justiça, Tancredo Neves, anunciando a decisão presidencial de licenciar-se do cargo até que todas as acusações fossem devidamente apuradas. Getúlio não quis ler a mensagem e pediu para que o deixassem sozinho. Poucos minutos mais tarde, em duas ocasiões, o irmão Benjamin foi também até o quarto, agora para dar-lhe duas más notícias: o IPM estava convocando Bejo para depor imediatamente e os militares não haviam aceitado a idéia de uma simples licença. Os quartéis insistiam no afastamento definitivo do presidente.
Às 8h30 da manhã, ouviu-se um tiro. Os familiares encontraram Getúlio agonizante, o corpo sobre a cama, o buraco da bala pouco acima do monograma “GV” gravado no bolso do pijama, por onde o sangue corria aos borbotões. “Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada da resistência”, diria certo trecho da carta-testamento. Há quem diga que o texto não era de Getúlio e sim do jornalista José Soares Maciel Filho, que o escrevera sob encomenda. Porém, nesta história cheia de controvérsias, pontos obscuros e detalhes nunca esclarecidos, a autoria da carta é o que menos importa.
O fato é que, se houvesse sucumbido à renúncia, tendo em vista a sanha de seus adversários e as graves acusações que recaíam contra si e seus familiares, Getúlio teria sido alvo de um linchamento moral sem precedentes. “Getúlio tinha uma profunda consciência de seu significado como personagem histórico. Seu último e trágico gesto precisa ser compreendido dentro dessa dimensão”, afirma o historiador Jaime Pinsky, professor da Unicamp. Quer dizer: o suicídio foi um ato político. “Ele preferiu protagonizar um teatro de tragédia a submeter-se à humilhação e ao teatro patético que os adversários encenariam com sua renúncia”, diz.
Segundo o historiador Marco Antônio Villa, autor de Jango, um Perfil, e que atualmente trabalha na biografia política de Vargas, aos 72 anos ele apresentava um certo cansaço e uma indisfarçável solidão. “Durante todo aquele mês de agosto, ele se sentiu abandonado pelos antigos aliados. Com toda a sua história de vida, ele não se submeteria mais à renúncia ou à derrota final do exílio”, diz. Para o presidente, a única forma de impedir a humilhação de uma devassa em sua vida era o suicídio.
Outro ponto pendente é que, vivo, Getúlio, ou pelo menos sua família, teria de enfrentar a Justiça. “A chamada ‘República do Galeão’ prosseguiria fustigando-o, num processo que talvez culminasse com sua prisão ou a prisão de gente muito próxima a ele”, diz Marco Antônio. De fato, menos de um mês depois da morte do presidente, o IPM que investigava o atentado a Lacerda foi encerrado e o irmão de Getúlio, Benjamim, e o filho, Lutero, inocentados. O único culpado foi Gregório Fortunato.
Com o suicídio e a comoção nacional que se seguiu, Getúlio transformou seu nome em mito. “Não foi uma decisão fácil, mas a percepção que Getúlio tinha de si mesmo, de seu papel histórico, transcendia sua própria existência terrena, de carne e osso”, diz Jaime Pinsky. Assim, os que conspiraram contra ele tiveram que esperar dez anos para, só então, concretizar seus planos. Antes disso, apesar de algumas tentativas, não houve clima político nem apoio popular para tal. Só exatamente uma década depois a “Banda de Música” udenista e os mesmos militares que assinaram o Manifesto dos Generais conseguiriam chegar ao poder, após derrubarem o herdeiro direto do getulismo, João Goulart. Afinal, o golpe de Estado que o país assistiria em 1964 foi, em edição revista e atualizada, o mesmo que Getúlio adiou, em 1954, ao apontar contra o próprio peito o cano frio do Colt calibre 32 com cabo de madrepérola.
(Texto publicado originalmente na revista Aventuras na História, agosto
de 2004)
por Lira Neto
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